Thalita Delgado
Copyright © 2023 Thalita Delgado. Todos os direitos reservados à autora.
Revisão
Carol Canêdo
Capa e Diagramação
Renan Torres
Produção Editorial
Carol Canêdo
Autora
Thalita Delgado
1ª edição
2024
D352s Delgado, Thalita Sorrindo e chorando: porque é isso que a gente faz / Thalita Delgado. – Juiz de Fora: Autoria, 2024. 88 p.; 14 x 21 cm.
ISBN: 978-65-981978-0-3
1. Crônica brasileira. 2. Mulher. 3. Separação. I. Título.
Rua Batista de Oliveira, 931, 2° andar 36010-532 - Juiz de Fora, MG - Brasil autoria.casadecultura autoria.editora@gmail.com
CDD: B869.8
Dia 1
Você precisa me ligar
Búzios
A ligação
Deixa chover
Overdose de você
O chope está aguado
Oi, Deus
Blazer branco
Minha mãe chorou
Duas facas
Fim da paixonite
Tempo, passe
O ano-novo do fim
Continue a nadar
A
4h41
SUMÁRIO
Tomo coca e não mais café
Bola de pingue-pongue
Dia 100
Um mar de culpa
A louca, sempre gênero feminino
As pessoas perguntam cada coisa
Cartola
Não me parafraseie
Saudades (no plural mesmo)
Junho
Honre nossa história
A marca sumiu
Um fusca desmontado
Boa sorte
O novo pé na bunda
Gonorreia
Bora pintar uma parede
Nunca há fim
liberdade
da manhã 11 13 15 17 19 21 23 25 27 30 32 34 37 39 42 44 46 48 50 53 56 59 61 63 65 67 69 71 73 75 77 79 81 83 85
Dedicatória / agradecimento
Aos meus pais, que, cada um ao seu modo, me ensinaram a importância da arte na minha vida, incentivaram, investiram e admiraram a cada vez que minha veia artística pedia para ser atendida, e assim nunca me deixaram desistir.
Ao meu ex marido, que me fez passar momentos incríveis e momentos de desespero, ambos dos quais as vezes, ainda não consigo expressar em palavras.
A todas as minhas amigas que não me deixaram sozinha um só momento. Me deram afeto, colo, força, risadas e nutriram minha potência como mulher. Em especial cinco delas, que estão nessa jornada divertida que é minha vida: Lísia, Marina, Lorena, Mariana e Edilaine.
E por último, a mim mesma, por não ficar no quarto escuro chorando, não desistir um só momento e me permitir resgatar sonhos que estavam esquecidos.
Meu muito obrigada, divirtam-se.
Prezado leitor,
Um pé na bunda e lá se vai a identidade que você conheceu por 10 anos. Lá se vão os sonhos, os planos e a vida que você estava certa de que teria. A gente tem vontade de parar o mundo para descer dele. De se enfiar embaixo das cobertas e de nunca mais sair de lá. Thalita pegou seus R$15,70, suas linhas e agulhas de crochê, dirigiu até a praia e tentou gastar no mar todas as lembranças.
Ela entrelaçou linhas, sentimentos e palavras. Estancou ferimentos graves e atirou pedras. Crônicas de uma mulher em luto por um casamento acabado, com mágoa, com ódio, com amor. Conhecerão aqui o ex-marido. Ouvirão falar muito sobre ele. Terão raiva, pena, saudade… Como, de certo modo, em algum momento, acabamos sentindo pelas pessoas próximas. Talvez passem por ele na rua, mas não o reconhecerão, porque a vida real fica lá fora. Aqui dentro, nestas páginas, um relato sincero e bem-humorado de uma autora, com toda a sua licença poética. Com a licença de pintar a imagem que deseja nos fazer enxergar. Licença para fugir à gramática e sentar à mesa do bar com seu genuíno e inofensivo desrespeito aos pronomes e a mais algumas regrinhas. Licença de rir do que não deveria e de chorar pelo que não merece. Licença para fazer de conta que fala sobre ele, enquanto descobre quem ela mesma se tornou.
Thalita Delgado nos apresenta “Sorrindo e chorando”, o honesto diário de uma recém-separada.
Boa leitura!
Um abraço,
Carol Canêdo
Thalita Delgado
dia 1
Meus olhos ardem, doem e tentam segurar o resto de lágrimas que ainda tenho. Ainda não consegui tirar a sua toalha do banheiro nem me acostumar com a ausência da sua coleção de sapatos na porta da sala. O congelador ainda tem porções fracionadas para duas pessoas, e sinto que seguirá assim por tempo indeterminado.
Eu perdi o momento em que você deixou de ser o homem que fazia corações no boxe do banheiro, tirava fotos espontâneas de mim, me ligava no meio de qualquer tarde para dizer “te amo” ou perguntar “me ama?” e passou a ser a pessoa que me agride dizendo que é insuportável ficar mais um segundo ao meu lado, que o caos, que a falta, que o excesso, que o mundo é ruim comigo. Que já estava péssimo. Que foi pouco o que doei. Que meu fardo é demais para você suportar.
Fui o melhor que pude, sempre!
Na melhor versão do meu futuro, seríamos melhores juntos. Transbordaríamos. Conquistaríamos o universo todo. Teríamos a lancha, o apartamento com varanda grande, a fazenda com os cavalos e a grama verde, a piscina de borda infinita. Teríamos o céu, se quiséssemos. Nada seria grande o suficiente, porque juntos éramos uma fortaleza invencível. Éramos o casal que se parecia. Dizem que almas gêmeas se parecem, sabia? Éramos… Agora, suas roupas sujas estão no cesto sem lavar. Suas camisas sociais e o terno, ainda no armário. Os porteiros ainda me chamam de “sua”. Ainda não consegui dormir sem seu travesseiro ao meu lado. Tenho medo de quem vai me abraçar à noite quando eu tiver pesadelo. Sinto falta do seu perfume. Sinto falta do seu abraço diário pela manhã. Sinto falta da sua perspectiva sobre a vida e sobre os negócios. Sinto falta dos seus olhos sobre mim, do seu abraço grande me apertando quando eu choro. Sinto falta do som alto do carro nos dias de sol. Sinto falta de dormir com a janela aberta no frio. Vou ter de aprender a cuidar das plantas e do nosso filho de 4 patas, a lavar o banheiro com escova. A luminária da sala nunca funciona comigo. Mal consigo olhar minha estante de livros — você dizia que eu era viciada nela. Não consigo tomar banho sem olhar o vazio
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que ficou do seu shampoo azul. Não há dois despertadores de manhã. O café não está mais pronto quando acordo, mas sua xícara ainda está junto da minha. Terei de trocar as cadeiras da sala — amarelo era a cor que eu gostava, mas agora não faz mais sentido. O quadro de coruja pintado à mão — foi a primeira compra que fizemos —, quero jogar fora. A luminária que você fez de pinos ainda está na sala. O móvel do quarto ainda está lascado do dia em que quebrei seu telefone. O jornal impresso chega ainda todos os domingos pela manhã, eu não o abro. Releio cada declaração que fiz para você, cada palavra, cada letra, tentando achar onde foi a falha. Quanto mais procuro, mais isso me fere, mais dói. É como uma faca que vai me cortando bem lentamente. Vou ficando cansada. E aí o ciclo começa a se repetir: onde foi a falha... mais procuro, mais isso me fere, mais dói... onde foi a falha... mais procuro, mais isso me fere, mais dói... onde foi a falha... mais procuro, mais isso me fere, mais dói... O ciclo, por agora, parece meio sem fim, mas dizem que uma hora os olhos vão parar de arder. Quem sabe até a faca pare de cortar…
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você precisa me ligar
Faz 3 dias que eu coloquei suas malas na garagem, entreguei o Alfred a você, abasteci o carro e peguei a estrada até o lugar mais distante que eu poderia ir com R$15,70 na carteira. Faz exatamente 72 horas que eu saí da sua vida. Deixei para trás todos os funcionários, as empresas, as contas, a casa, o carro, os boletos, os amigos, o caos e vim embora. A praia está maravilhosa, com sol, muito sol. Em 3 dias, eu já estou mais bronzeada do que deveria. Passo todos os meus dias fora do apartamento. Levo o necessário para a rua: comida, água, cerveja, crochê, livro e uma amiga para escutar mais uma vez a minha mente inquieta. Não sei a que horas saio de casa nem a que horas volto. Como quando me dá fome. Mas continuo tomando três banhos por dia, porque a dignidade, eu ainda não perdi. O que eu perdi mesmo foi o momento em que você e eu nos desconectamos. O momento que eu deixei de ser o amor da sua vida e passei a ser a mulher que lhe causa o caos, que lhe cansa, que lhe cobra.
No meu primeiro mergulho de mar, eu chorei. Demorei a sair da água. Fiz um pedido aos céus, que me curassem. Pulei sete ondinhas dentro do mar mesmo, como se fosse um novo ano-novo, para ver se o mundo me dava ali uma solução de como sair da merda de sentimentos em que eu estava... estou.. Pedi ao Universo que o sal do mar batesse nas feridas abertas e doesse muito, mas que curasse de uma só vez toda a dor que é imaginar recomeçar agora sem você. Acho que, no fundo, no fundo, o pedido era para me dar coragem de encarar a realidade sem você e conseguir ressignificar as imagens, os momentos, os lugares. Quem nunca pediu nada ao mar que atire a primeira pedra, né?
Faz 72 horas que você nem sequer me procura. NADA! Nenhuma mensagem. Nenhum sinal de vida. Nenhum sinal de preocupação. Eu sei o porquê. É a sua raiva de mim. Eu te deixei com tudo e fui embora. Essa é sua maior raiva. Para você, eu fugi. Para mim, eu vim sobreviver. Continuar era voltar para o mesmo de muitas vezes. Era perdoar, era seguir em frente e não conseguir colocar o basta que faltava. Eu queria que nada disso estivesse acontecendo. Queria minha vida de volta, não a de agora, a de 9 meses atrás, quando a
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gente ainda conseguiria restaurar algo. Faz SETENTA E DUAS horas que eu só falo de você, que eu só penso em você, que eu olho para o telefone a cada 20 minutos e não é você. Minhas amigas checam se estou bem, pelo menos, cinco vezes ao dia. Mandam inúmeras mensagens — com algumas, eu dou muitas risadas, com outras, eu choro. Em algumas, elas dizem que estão com saudade e perguntam se eu volto. Eu não tenho a resposta, não quero voltar. Eu não tenho para onde voltar. Voltar para o quê? Para quem? Eu fiquei sem nada: sem a empresa que administrei durante tantos anos; sem o novo empreendimento, já que o sonho era seu; sem renda; sem sentido; sem entender essa merda toda. Eu fiquei sem você! Eu não sei para onde voltar. Eu não quero voltar! Na verdade, eu quero. Quero que você me ligue aos prantos me pedindo perdão, dizendo que me ama, falando que dessa vez errou mais do que todas as outras. Eu e meus delírios, mas que mulher não os tem? Eu voltaria, mas não te perdoaria. Incrível como é o ego dos seres humanos, não é mesmo? Eu queria que você se ajoelhasse e colocasse a banda de Ipanema tocando na avenida principal da cidade apenas para eu dizer “não”. Você deve estar pensando “ai, como ela é previsível, justo uma banda de Carnaval, até nisso ela pensa no Carnaval.” Acredite: deveríamos ter ido ao Carnaval deste ano! Teria sido memorável! Quem sabe ali já não teríamos arrumado novos amores e nos pouparíamos de toda essa tragédia grega! Pois é, estou maluca mesmo, mais do que o normal. Mas quem não estaria? São 3 dias sem sinal nenhum de você.
Agora estou parada em frente ao mar, pensando em que momento meus olhos vão parar de arder para que eu possa começar a entender o que houve. Onde paramos? Onde deixamos de ser felizes? Onde colocaremos o que sobrou? Espero aqui, sentada na areia da praia, a ligação mais importante dos últimos 10 anos. Mas sabe o que é pior do que estar sentada esperando por uma ligação? É saber que ela não vai acontecer.
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búzios
Fui a Búzios! Coloquei minha melhor roupa, meu melhor biquíni e fui. Linda, claro, porque a gente sofre, mas não perde a elegância. De forma ridícula, quis ir à mesma praia que fomos no meu aniversário de 29 anos. Aquele dia foi um dos melhores da minha vida. De todos os aniversários com você, foi sem dúvida o melhor. E olha que já viajamos para muitos lugares legais no meu aniversário! Foi a primeira vez que viajamos depois que falimos na primeira empresa que montamos. Engraçado... não consigo me lembrar de qual o carro da época nem de como pagamos aquela viagem, mas foi tudo meio no aperto de ir e ter de voltar correndo. Chegamos na praia cedo, conversamos sobre todas as informalidades que podíamos, fizemos várias vídeochamadas para os nossos amigos, bebemos até o pôr do sol e voltamos a pé para a pousada. Aquele dia, usei uma lingerie nova. Lembranças que criamos. Como a vida de agora um dia vai ser. Só espero que passe rápido.
Tudo em Búzios me lembrou você, do asfalto às praias. Peguei engarrafamento. Você detesta engarrafamentos e, nesse momento, me senti tão aliviada de você não estar aqui. Ao mesmo tempo, senti que meus dedos, mesmo no sol de mais de 32 graus, suavam frio. Meus lábios estavam secos e eu nervosa em dirigir. Eu nunca fico nervosa em dirigir.
Percebi que o problema era constatar a realidade de que é bem provável que você e eu não venhamos aqui juntos, nunca mais. Viemos a Búzios também na primeira vez que nos separamos. Você pediu à pousada que forrasse a cama com pétalas de rosas. Bem cafona, diga-se de passagem, mas eu amo cafonices românticas. Eu me lembro bem daquele fim de semana. Lembro também da reação das pessoas quando eu disse que te daria mais uma chance, quando vim viajar. Provavelmente, tudo seria igual agora: outra chance, outro perdão, outra viagem. Mas eu decidi que agora não mais!
Passei o dia olhando o mar e imaginando como vai ser a volta. O cara da barraca perguntou se eu passava bem. A resposta foi “não”. Para quê manter as aparências, disfarçar as evidências – desculpa, cantei Chitãozinho e Xororó agora. Em um ato de desespero para tentar ser um pouco normal e voltar a ser eu mesma, contei em forma de piada toda a
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nossa história. Quando vi, o cara (de seus cinquenta e poucos anos) estava escorado no pau da barraca, com ouvidos atentos, opinando fortemente no que eu deveria fazer daqui para frente. Escutei atentamente os conselhos dele, mas, em algum momento, ele percebeu que eu não estava mais ali, então, o melhor conselho foi o grito que ele deu da areia para alguém me trazer uma caipirinha de limão. Faz muitos dias que não bebo, sabia? Meus dois fardos de cerveja não chegaram nem à metade. O vinho branco que deixei na geladeira do apartamento ainda está intacto. As cervejas na praia não me dão a menor vontade. Sigo apenas querendo a água salgada do mar, e, a cada vez que meus pés a encontram, eu peço desesperadamente que isso tudo passe; que você volte. Mas que volte a ser aquele que era há muito tempo: aquele que olhava para mim e nada mais no mundo importava; aquele que perguntava todos os dias “já falei que te amo hoje?”; aquele que me olhava sempre e dizia o quanto eu era linda. Esse você ainda existe?
Entrei no museu. Você nem gosta tanto de museu assim. Minha garganta fechou. Minhas mãos começaram a tremer. Meus pés, eu nem sei para onde estavam indo. Eu precisava muito de ar. Era muita gente. Muito som. Muita coisa. Muita informação. Sentei no primeiro banco que encontrei e, quando percebi, meu rosto estava quente e eu soluçava de forma desesperada. E eu, que dizia para todas as minhas amigas que ainda não tinha chorado, estava aos prantos e sem nenhuma vontade de parar. “Eu quero minha vida de volta”, “eu não quero nada disso”, “eu não quero sofrer assim” — as três frases que eu conseguia repetir como mantra. Não sei se foram 10 minutos ou 1 hora que fiquei ali. Apenas fiquei. Curioso como as pessoas nos olham quando choramos em público, né? Devem nos achar malucas. Você chora?
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a ligação
Nunca vou esquecer o momento em que você atendeu o telefone. Eu me senti péssima. Mas você ainda é meu marido. Era sua obrigação correr atrás de mim, me ligar, querer saber onde eu estava, com quem estava, se eu estava viva ou morta. Faz dias que coloquei suas roupas para fora e saí de casa. E nenhum telefonema? Quem você pensa que é? O Rei da Inglaterra? O cara mais lindo do planeta? O Rodrigo Hilbert? Faça-me o favor! Você não é essa Coca-Cola toda nem nunca vai ser. O mínimo de decência é me ligar, implorando para que eu volte correndo para a sua vida, porque você não dá conta de viver sem mim. Que homem é esse que você pensa que é, que consegue viver sem mim? Não vai viver, claro! Já era de se esperar isso tudo. Você é a pessoa mais convencida desse planeta todinho. Você sempre dá um jeito de ser. Soube disso no momento em que te vi. Suas roupas de marca, sua importância a carros grandes, suas escolhas de perfume, óculos, relógio. Tudo para você é sobre como você pode ser mais, em como ser o cara perfeito, o mais popular, o mais querido, o da galera todinha, o cara que reúne pessoas. O cara que é o cara. Não para cima de mim! É sua obrigação — na minha cabeça maluca, claro — implorar para eu voltar. Vir me buscar! Passar com aquelas faixas ridículas de avião de praia, sabe? Mandar um carro de som com o locutor anunciando declarações de amor. Qualquer coisa! Você tem de fazer alguma coisa: cartão postal, fax, sinal de fumaça, recado na rádio local. Por favor, faça alguma coisa! Eu vou enlouquecer se você não fizer. E um dia, eu terei de voltar e lidar com essa indiferença aí, sem o mar! Portanto, por favor, faça!
Você não fez.
Eu fiz o seu papel, porque não estou podendo lidar com a ansiedade. Então, liguei. Ouvir o som da sua voz me trouxe conforto, mas me arrependi 3 segundos depois, quando você disse que estava tudo bem e era para eu aproveitar minhas férias, da forma mais irônica e cruel que alguém poderia falar. Perguntei se você sabia onde eu estava. Você disse que já não importava mais, porque abandonei tudo. Quão previsível! Eu já sabia que você falaria isso. Perguntei como estava nosso filho peludo. Você disse que melhor seria impossível.
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Previsível de novo. Perguntei sobre a casa, as empresas, as contas, os funcionários. De acordo com você, tudo sob a mais perfeita ordem e correndo tudo bem. Previsível mais uma vez. Você jamais iria implorar para eu voltar. Não teria a banda de Ipanema. Ninguém se importa, foi o que você disse nas entrelinhas. Ninguém está sentindo sua falta ou morrendo por você ter ido embora. Ninguém está nem aí se você precisa se recompor. Eu desliguei.
Em que momento passamos a isso? Qual foi o dia em que as coisas começaram a ser assim?
Você ia desistir de mim assim, sem mais nem menos? 5 minutos depois, eu liguei novamente, aos prantos, soluçando. Implorei para que nada daquilo estivesse acontecendo. Que poderíamos resolver. Que daria para resolver. Que venderíamos tudo, compraríamos a maldita lancha, construiríamos o sítio, trocaríamos o carro. Eu perdoaria, mas precisava que a vida fosse outra. Precisava da sua garantia de que a vida seria outra de verdade agora, de coração, de juro, juradinho.
Nenhuma palavra do outro lado da linha telefônica — nossa, alguém ainda usa esse termo?
Acho que estou velha.
— Me desculpa, não estou conseguindo me concentrar em uma única coisa — Silêncio!
Total silêncio do outro lado.
— Acabou, não dá mais — Foram suas palavras.
Como se eu tivesse sido a errada dessa história toda. Previsível de novo, eu deveria saber. Eu nunca mais vou esquecer. Engraçado como a gente é quando quer ainda restaurar, consertar, levar até o último dos últimos. Como a gente se acostuma com as migalhas e quer as migalhas, porque acha que elas nos salvarão. Salvarão de quê? Pensei em tudo. Pensei em nada. Hoje a cama de casal ficou imensa. Um mar, que daqui em diante será meu por inteiro. Tão previsível!
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deixa chover
Eu já consigo andar na rua sem chorar. Isso é muito bom, né? Hoje fui tirar sangue e nem senti dor. Não suei, não fiquei falando de nervoso nem pedi café na saída. Eu só conseguia pensar em quantas vezes você segurou a minha mão para eu não sentir medo. Era nítida a sua imagem ali ao meu lado, sempre segurando minha bolsa preta (suja) na sua frente e a outra mão acariciando a minha mão livre. Eu de uniforme, camisa preta, calça jeans suja e cabelo preso, sempre o cabelo preso. Sempre parecendo um sol — sabe, essa gíria é legal, eu mesma inventei, lembra? Uma das poucas que você não criticou. É quando o cabelo da gente nunca fica preso certinho, alinhado, com o rabo de cavalo, e aí aqueles fiapinhos novos que vão crescendo insistem em ficar rebeldes. Então, a gente fica “cabelo de sol”, cheio de minirraios. Eu sempre conto isso para todo mundo. Hoje não doeu. Meu braço não está roxo. É como se meu corpo soubesse que tenho dores maiores. Sabe aquela dor de que te falei outro dia, da faca que fere de mansinho? Pois é, mas olha, fui ao mercado e só quando cheguei ao caixa percebi que tudo estava pela metade. O biscoito que você gosta de comer com leite não estava no carrinho. Nem o leite. Mas eu comprei duas vezes mais de feijão, e eu nem gosto tanto de feijão assim, não combina com tomate. Tomate é você quem gosta de comer, mas peguei o hábito. Eu gosto de alface, mas ele dá sono, conforme sua teoria. Passei no banco e o gerente me perguntou sobre a alteração contratual das empresas, se ele poderia dar sequência. Acenei que sim. Eu fiquei tonta, nunca senti tanta sede na vida. Achei que estava no deserto, mas eu nunca fui ao deserto. Precisava de ar. Preciso de ar. Mas preciso de um ar que não seja esse que me lembra como as coisas estão agora. Falei com minha madrasta hoje, ela me proporciona diversão de boa qualidade com a autoestima dela, você sabe como ela é. Aí, no meio do nada, ela me disse “mas, aqui, na sua festa era nítida a paixão dele por você. Ele disse mil vezes que você era a mulher da vida dele”. Pois bem, também estou tentando entender. Faz tão pouco tempo da minha festa de aniversário. Foi nela que você conheceu novos amores? Eu estava tão linda com o
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vestido que fizemos juntos para aquele dia. Com brilho, com franja, a minha cara. Alfred sente sua falta. Às vezes, ele me olha de uma forma que eu não consigo interpretar e, aí, me sinto falhando. Quem não sente que falha dia sim, dia também em alguma coisa? Uma impotência. Sinto que ele quer dizer “faça alguma coisa”; mas eu não sei o que fazer. Ainda não troquei nenhum móvel de lugar, mas tirei as minhas roupas da sua parte do armário. Com coisa que isso ia adiantar. Joguei todas na gaveta sem dobrar mesmo. Tanto tempo que não chovia, né? Aí, onde você está, tem buracos no teto. Eu sei, essa empresa também é minha. Te ofereci o sofá. Você disse “obrigada pela gentileza, vou pensar”. Pensar em quê? Se a goteira da loja é melhor que o nosso sofá que você tanto ama? Me poupe querido! Acho que você está se punindo. Ou não, talvez seja realmente insuportável ficar ao meu lado, como você me diz desde o dia em que quebrei seu telefone. Engraçado, as pessoas dizem que minha companhia é boa. Tenho tido conversas estranhas com nosso filho, do tipo “se a gente morasse numa ilha e começasse a chover como agora, teríamos medo de morrer alagados?”. Ele apenas me olha como quem diz “não entendo”. Nem eu! Deixa chover, né?
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overdose de você
Hoje te vi, depois de alguns dias. Duas vezes no mesmo dia. Impressionante como tudo na nossa vida é demais ou de menos. Tudo sempre foi ao extremo, ou muito ou pouco. Sua barba está enorme e sem forma. Há quanto tempo você não corta o cabelo? Sua aparência está péssima! Você está magro, com coisa que algum dia você não foi, com olheiras terríveis. Você sabe que poderia contar com a minha ajuda, né? Alfred vai ficar feliz em passar o dia com você, tem tempo que ele não fica na empresa se sujando de óleo. Depois, ele terá que tomar banho e eu sei que é você quem vai fazer isso, você sempre faz. Essa overdose de você tem me feito pensar em por que escrevo, ou melhor, por que eu escrevia tão pouco. Não tenho quem me ouça. Você não me ouve mais. Você me ouvia, né? Lembro de conversas toscas que a gente tinha. Lembra sobre como falávamos em viajar pelo mundo? Fizemos uma lista. Compramos passagens para Las Vegas. Eu queria me casar em Vegas. Nada mais a nossa cara: cervejas, loucuras, vestido de brilho com franja. Te contei que um dia desses eu bem saí para escolher esse vestido de brilho? Branco, queria que fosse branco, com lantejoulas nele inteiro. Que bom que não achei! O que faremos com a viagem de Vegas? Acho que vou sozinha, casarei comigo mesma. É o que todo mundo deveria fazer, inclusive. Dos locais da lista, agora eu viajarei apenas para os que escolhi. Sempre achei que eu era a menina da política, mas percebi que não assisto à CNN desde que você foi embora. Era “Puco” o primeiro apelido que você me deu. Depois foi “Puthubi”. Depois “Bebê Gigante”. Foram tantos ao longo dos 10 anos que estivemos juntos. Eu nunca te apelidei de nada, sempre foi “amor”. Palavra complexa essa, né? Amor. Poucas letras, grandes significados. Assim como dor, céu, fé. Tão pequenas e tão grandiosas. Te contar: eu ando firme na academia, malho todos os dias agora, mas continuo levantando às 8h30. Talvez você não saiba, mas esse foi um hábito que você criou em mim. Eu tomo mais Coca-Cola também. Não consigo mais almoçar sem ter algo para beber. Por falar em almoço, eles são solitários agora, me lembram seus embarques. É deprimente fritar
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apenas um ovo. E eu nem gosto de ovo frito. O dia está tão lindo hoje, você percebeu? É possível criar coisas boas em meio ao caos! Você me irrita profundamente. Esse som do carro alto, a sua cara de sempre “tá tudo bem”, essa sua pose de adulto com o Ray-Ban que eu ajudei a escolher. A sua insistência para a minha conta do bar ser colocada na mesma comanda que a sua. A conta pode, a vida não? Que coisa irritante e intrigante. Queria uma lágrima, um grito, uma ligação, um desespero. Mas nada, nenhum sinal de fraqueza da sua parte. É fraqueza me querer? Eu já te disse que ando meio perdida, sem entender as coisas? Não vou ter respostas sobre o momento em que a gente se perdeu. Preciso parar de me perguntar sobre isso, com urgência. Não há resposta. Sabe aquela faca que eu disse que estava me cortando lentamente? Pois é, ainda está.
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o chope está aguado
É o segundo dia que te vejo. Hoje a barba e o cabelo estavam feitos e sua cara já não estava tão ruim quanto a de outro dia. O mínimo para as pessoas solteiras no fim de semana: boa aparência. Esses encontros me deixam ainda mais confusa. Mas, sabe, eu bolei um plano e ele é muito bom. Acho que vou embora. Já fui à praia, agora posso ir para o frio. Quem sabe a Suécia? Quem sabe o Alasca? É um bom plano. Nossos amigos são os mesmos. Ainda compartilhamos a mesma conta bancária. Temos CNPJ juntos. Um tempo longe fará bem. Ainda não decidi se vai ser melhor para mim ou para você.
Achei a última cueca sua no cesto de roupa suja, coloquei para lavar junto com as minhas coisas. Alfred não está mais dormindo no seu travesseiro, ele dorme ao meu lado agora. Ele é sensitivo, será? Dizem que os cachorros são. Queria comer lasanha hoje, mas quem gosta de lasanha é você. Ainda não comprei tabuleiros menores. Sabe, a vida está seguindo, mas quando me pergunto como foram as últimas semanas, eu não tenho resposta. Entediantes. Angustiantes. Sofridas. Proveitosas. Não sei, apenas não me recordo delas. É tipo uma matéria de jornal que a gente lê e esquece.
Você não gosta que eu fale muito sobre as minhas leituras, né? Sinto muito, elas são meu passatempo preferido. Talvez eu devesse ter incluído na lista de livros o Kama Sutra, assim quem sabe a coisa teria ficado mais divertida. Você é de escorpião, eu não deveria ter me esquecido disso. Mas me esqueci. Você anda se alimentando bem? Você está mais magro, e mais triste. Seus olhos estão sempre caídos. Ou será que eu estou vendo coisas? Sabe aquele chope que tomamos no mesmo bar, mas em mesas diferentes? Então, estava aguado, né? Sei que você também percebeu. Também te passou pela cabeça que nada mudou? As mesas eram as mesmas. Os amigos, os mesmos. O ponto de encontro, o mesmo. O cardápio não teve alteração. A gente já não sentava na mesma mesa há tempos, era libertador não ter de ser um casal romântico. Ou será que eu inventei isso porque você não era romântico em praça pública? Sempre fomos bem resolvidos. Eu era. Eu achava
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que você fosse. A gente se amava em casa, no suco de limão da hora do almoço. O chope estava mesmo aguado, né? Eu sei que você sentiu também.
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oi, deus
Mudei o repertório e hoje eu queria muito não falar de você. Acredite, meu amor, eu também sei rezar, acho que talvez até mais que você. Então, só quero falar com o ser superior que nos rege mesmo.
Oi, Deus, você está bem? Acredito que sim, você nunca deve ficar mal, né?. Venho pouco aqui, falo pouco com você, mas falo muito com o Universo — por algum motivo, eu acredito que o Universo inteiro seja você. Se isso for real, eu falo com você o tempo todo e te sinto presente na minha vida. E se for isso mesmo, muito obrigada. Eu sinto você perto de mim. Agora, se você for essa divindade sentada aí olhando a vida da gente, aí sim, eu tenho feito pouco por nós. Não tenho condições de pensar que você possa estar sentado me olhando, enquanto eu me afogo no meio do caos. Mas não preciso dizer isso, você me criou, sabe tudo sobre mim. “Então, parece clichê, preciso de você” — desculpa, cantei mentalmente a musiquinha do Sorriso Maroto, mas você sabe como eu sou dispersa — eu queria agradecer. Agradecer mesmo, com toda a minha força, de toda a minha verdade, por você me mostrar as coisas certas. Mesmo no caos, no meu sofrimento, na minha angústia, você continuou me mostrando que sim, eu tenho muita força para fazer as coisas acontecerem. Mas hoje — como se eu viesse muito aqui — o meu agradecimento é mais específico: queria agradecer, e nem sei como, pelas pessoas que você colocou na minha vida para que eu pudesse suportar tantas coisas. Eu nunca me senti tão amada, tão querida e tão potente. Sempre que olho para qualquer lado, tem alguém. Sempre que eu penso que ficarei sozinha, tem alguém para me lembrar que não. Sempre que eu peço ajuda — nossa, como eu tenho pedido ajuda — tem alguém pronto para estender a mão.
Toda vez que escutava alguém dizer “eu sou abençoado por ter pessoas ao meu redor”, eu pensava em como seria isso. Eu sei agora. Eu estou rodeada de pessoas que não me deixam cair, e eu ando caindo muito. Eu tenho andado na corda bamba com frequência. Eu queria agradecer por você me permitir ser assim, por ter me feito assim, esse excesso todo que eu sempre sinto que sou, e agora não sentir mais incômodo por isso. Eu amo ser esse excesso!
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E todas as pessoas ao meu lado sabem disso. Elas me dizem isso! Acreditam que isso é o que me faz estar perto delas. Obrigada por cada pessoinha que você tem colocado perto de mim, até as mais complexas. Se eu pudesse pedir, gostaria de pedir duas coisas hoje. A primeira: não me deixe sozinha. Continue mandando essas e muitas outras pessoas para perto de mim. A segunda: não carregue muito mais a mão, eu ando cansada de tempestades, furacões e sacodes no meu coração. Seria possível me deixar um pouco em paz? Entenderei que se isso não acontecer, é porque eu não sou e nunca serei o tipo de pessoa que sobrevive na paz, porque sou feita de e para os excessos. Qualquer dia, eu volto, está bem? Fique com Deus. Ou melhor, fique na sua companhia, que é a melhor.
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blazer branco
10 anos. Não são 10 meses, semanas ou dias. São anos da sua vida, A-NOS. Eu não canso de falar “anos” para ver se entra na sua cabeça sem miolos. 10 anos ao meu lado e não acredito que você conseguiu dizer que aquele blazer branco, de tecido vagabundo, com umas linhas soltas, era meu. Patético! Só consigo pensar em como isso é patético. Você ficou com o carro que eu escolhi. Na atual circunstância, achei justo, já que fiquei com a casa, os móveis, a louça, a roupa de cama. Tudo sobre o que opinei tão pouco ficou pra mim. O que opinei tanto ficou para você. Rir me fez amenizar a incrível vontade que eu estava de dar na sua cara!
Um blazer branco, no banco do carona, sabendo que você me ofereceu o NOSSO carro para o compromisso que eu tinha. São seus deslizes, suas falhas, sua falta de empatia gritando, berrando, escancarando. Eu ri. Rir me fez guardar a vontade que eu estava de gritar. Tirei o blazer do banco — eu poderia ter jogado na graxa, poderia ter jogado na rua, quem sabe passado batom, ou então ter deixado um bilhete na manga, falando sobre como você é essa pessoa confusa que confunde a gente. Mas não, eu fui te entregar e disse que não era meu. Você disse que era meu. E ficamos nesse embate até eu dizer “aham”. Sabe a vez em que sua ex-noiva me ligou para dizer que vocês ainda estavam juntos? Você negou. Ela confirmou. Eu fiquei confusa e te mandei embora. Você voltou, me pediu perdão. Era o primeiro dos muitos que viriam. E me disse que iria resolver. Passei 4 anos do nosso relacionamento ainda com a sombra dela me atormentando a cada ida para visitar sua família. A cada ligação de DDD diferente. A cada e-mail sem nexo que eu recebia. A cada vez que você sumia. Eu ando escrevendo em qualquer lugar da casa. Ela anda grande agora. Percebi que gosto de escrever sentada no chão do banheiro. Sei lá, é acolhedor. E deprimente, diga-se de passagem, mas quem não gosta de drama? Meus pincéis de maquiagem precisam ser lavados. Tenho usado maquiagem com frequência. Minhas olheiras voltaram a ficar intensas e, olha, eu já parei de chorar faz um tempo. Eu poderia ter chorado hoje. Eu queria muito
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ter chorado hoje com aquele blazer. Mas eu só conseguia dar risada. Rir me fez apagar a vontade que eu estava de voltar ao passado. O blazer era péssimo. Não consigo me conformar com o fato de você ter achado que aquilo era meu. Eu nunca tive mau gosto. Está certo, nem sempre fui a mais arrumada, mas sempre tive bom gosto. Detalhe que você deveria saber! Ah, e isso não tem nada a ver com peças caras. Aliás, você sabe que meu guarda-roupas guarda peças lindas de brechó. Você nunca gostou que eu comprasse em brechó, pelo contrário, as marcas te fascinam. E agora esse blazer. Aff! Se eu pudesse, colocaria mais 30 “f” nesse “aff” para que você pudesse sentir minha indignação.
De novo sua ex. Lembra dos escândalos dela? Todos me contavam sobre os escândalos dela. Eu nem a culpo agora. Tudo bem, não a quero por perto, mas a entendo. Deve ser difícil manter a calma, até porque ela também deve ter encontrado alguns blazeres brancos, pretos, rosa e infinitos. Eu jamais faria escândalo, porque é isso que se espera das mulheres, não é mesmo? Escândalos, tapas, copos voando, gritos, soluços sem fim, para que no fundo nós sejamos as loucas e vocês os que mantiveram a calma em meio ao caos. Os eternos coitados. Rir me fez esquecer a vontade de colocar a sua cara dentro do vaso e dar descarga.
Aqui em casa anda ventado mais do que o normal, mas também tem mais sol. O chuveiro agora não desarma, e olha que eu fico muito tempo no banho. Acho que é para limpar a alma, sei lá. Às vezes, fecho os olhos e os espremo com força para ver se sai alguma coisa. Não sai nada. Me faz raiva. Aí eu os abro e está tudo embaçado com pontinhos pretos vagando aleatorimente na minha visão. Quando eles passam, eu desenho corações na porta do boxe, para lembrar como era quando você ainda existia aqui. Todos os dias fazíamos isso. Corações e mais corações no boxe do banheiro. Era a nossa forma de nos comunicar. Será que é por isso que ando escrevendo no banheiro? Meus olhos agora estão cheios de lágrimas e eu nem precisei espremê-los. Foram os corações. Vou parar com essa mania. Não consegui mudar nada de lugar ainda. Estranho que corações me façam chorar e o blazer mequetrefe me faça rir. Você sabe o que anda fazendo da vida? Eu não. As plantas ainda estão vivas por aqui. Os cactos eu já esperava, não os tirei do banheiro. Apesar de que outro dia cheguei bêbada e os derrubei em cima de mim. Passei a manhã do dia seguinte tirando pequenos espinhos da minha perna. Que raiva de você! Eu sempre disse que não queria esses cactos aqui. Não se preocupe (se é que você se preocupa), eu ando
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bebendo pouco, mas o suficiente para chegar em casa e dormir bem. Acredito que você esteja fazendo o mesmo.
Sabe, eu queria um blazer. Xadrez. Uma saia de couro. E a capacidade de desver o blazer branco, brega e de outra. Talvez você o tenha confundido com a minha camisa de forças, aquela que os homens sempre vestem nas loucas, digo, nas mulheres!
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minha mãe chorou
Talvez você tenha mudado o perfume, comprado umas roupas novas e parado de usar alpargatas (espero que sim, porque são muito bregas!). Talvez você não se lembre de como eram os dias que passávamos longe, quando você ainda embarcava. Talvez seja o almoço de hoje com a minha mãe, que chorou por saber que nossas vidas estão seguindo, mesmo que atrapalhadas, que tenha despertado coisas em mim. Talvez as lágrimas dela acabaram despertando em mim a vontade de chorar também, por lembrar de como eram as datas comemorativas quando você estava com a gente. É difícil isso, né? Pegar-se pensando nas coisas boas, mesmo sabendo que houve muitas ruins. A reclamação em ir, a cara feia em estar em assuntos desinteressantes, o exagero de cerveja nessas datas... a minha tensão em estar tensa por você estar tenso.
Lembrei do dia em que você ajustou o patinete da Liz e jogou bola com o João. Eles me perguntaram sobre você e dessa vez eu consegui explicar. Eu não chorei, quem chorou foi minha mãe. Você seria um pai brilhante, talvez ainda seja. Ontem te vi, você estava tão bonito. Voltou a se arrumar, cortou o cabelo. Blusas cinza te caem bem. Seu carro novo é lindo, a sua cara, bem playboy mesmo. Coisas irritantes que só você sabe fazer: marcar presença quando eu não quero sua presença.
Nós perdemos, né? Estamos na roleta-russa da sorte, do amor, do jogo doido da vida. Você tem vários outros alguéns. Eu também, um alguém. Os dois ganhamos, os dois perdemos. Sua proposta de me namorar é quase irrecusável, se não fosse pelo fato de o sexo ter ficado ruim, de a gente já saber quando vamos brigar, do que gostamos de beber, quais nossos amigos preferidos. A proposta é ótima, nós que não somos bons para ela. Outro dia te vi me olhando com os olhos brilhando, e então me disse que eu estou radiante, que tenho vida. Engraçado, a vida me despedaçou e nesse momento é quando você mais acha que eu tenho vida. Confuso esse negócio de viver. Sinto sua falta, mas não sinto falta do nosso casamento. Sinto saudade de ter com quem falar, falar, falar e falar. Eu falava muito enquanto estávamos juntos, não é? Eu pensava muito também. Algum dia ficamos
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sem assunto? Acho que sim, o dia em que tomamos vinho e transamos para tentar reatar. Você também sente falta? Te preenche isso que a gente está fazendo? Estranho saber que mesmo sendo dolorido, é melhor do que como estava. Lembra daquela faca? Então, hoje ela voltou a cortar de forma sorrateira e incômoda, como há muitas semanas não cortava. Deve ter sido o choro da minha mãe.
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duas facas
Hoje fiquei um tempo olhando o prato branco, de flor, que escolhemos juntos aqui para casa. Ele é bonito, né? Maior do que o tamanho padrão e também tão simples, típico de você. Típico da gente! Complexos e simples! Hoje te vi de novo e você me tratou como uma bosta. Uma pessoa medíocre. Você anda ficando com tanta gente, tantas pessoas diferentes que nem sei, e nem quero saber. Algumas típicas do padrão que eu já imaginava: menos de 25 anos, bunda na nuca, cabelo liso — sempre de cabelo liso. Nada de cabelo de sol como o meu. Elas são branquinhas como nuvem, magras como o padrão. O seu critério de beleza e perfeição. Nossos amigos desaprovam o seu comportamento. O padrinho dos nossos filhos, os que teríamos, desaprova. Nossa melhor amiga desaprova. Nosso melhor amigo desaprova. A moça da sua mais nova cervejaria preferida desaprova. Nossos velhos amigos desaprovam, sua família e a minha desaprovam. Eu desaprovo também, mas não me surpreendo. Você é tão previsível que nada do que anda fazendo sai do roteiro que imaginei. Todas as ofensas e pedras que joga na minha cara estavam no script. Eu só estava esperando o momento certo para chorar, para falar “eu sabia” e me perguntar “em que momento viramos essa merda toda e paramos de nos respeitar”. O dia que te vi pela primeira vez com alguém foi um choque. Sua falta de pudor, de bom-senso. Sua falta de empatia comigo, sua falta de preocupação, sua falta de lógica para ver que nada ali fazia sentido. Mas aí me recordei de como era quando a gente ainda estava junto. Tudo aquilo já acontecia. Todas as vezes que eu saia e voltava e você estava nitidamente flertando com alguém! Dói agora. Mas doía muito mais quando ainda estávamos juntos. Dói menos porque nada do que você faz agora é diferente do que você fazia. Estava tudo milimetricamente calculado por mim sobre como você reagiria. Aquele olhar fuzilador e aquela dor da faca que me mata lentamente, lembra? Lembro do meu novo amor, que já virou velho. Que me dizia depois de uma noite de amor: “deita aqui, só deita aqui e deixa eu te abraçar... uma hora a gente acorda...” e a gente pegava no sono como se nada no mundo fosse acontecer. Um dia me disseram que choveu. Eu não ouvi.
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Nem ele. Estávamos dormindo, ou transando, ou conversando sobre a civilização Maia, ou sobre negócios, ou a vida. Não sei mais. Disseram-me que eu estava doida por sentir aquilo. Doida eu era por ficar em um relacionamento que era tão ruim. Hoje, eu não sei se sinto mais falta de “e o fluxo de caixa da nossa empresa?” ou de “sabe o faraó?”. Bom, na verdade eu sei, mas ambos escolheram caminhos diferentes, então hoje, a faca que antes era uma, se tornou duas!
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fim da paixonite
Preciso de um café. Quente, muito quente. Um, não, baldes, litros, xícaras inteiras para me animar depois do caminhão que me atropelou. Nem é você. É sobre minha nova paixonite que virou ex. Na mensagem, ele me diz: “que você encontre o que procura”. Meu amor, ou melhor, meus amores, eu não faço a menor ideia do que estou procurando. Nem do que vou encontrar pela frente. Nem do rumo que as coisas tomaram agora. Nem de quantas cervejas quero tomar à noite. Como posso saber o que ando procurando? Que fala ridícula a dele. Mas que raiva sinto de você. Sim, agora é você mesmo, ex-marido, que desfila por ai cada dia com uma novinha, bundinha na nuca, zero olheiras, cabelo liso. Eu tenho muitas — olheiras, celulites, cabelo de sol, boletos. Raiva de você, que consegue estar cada dia com uma e eu agora, de novo, sem ninguém. Sem você, sem ele, sem ninguém. Voltamos à estaca zero do eu.
Lembra de quando eu morava no quinto andar da avenida secundária da cidade? Meu quarto tinha uma frase escrita em caneta preta permanente: “nascemos sozinhos, morremos sozinhos”. Você ficou puto quando pintamos o apartamento e aquela frase insistia em não ser apagada, mesmo com as quatro demãos de tinta. Às vezes, sonho que você lê tudo isso o que escrevo, e nesse momento te vejo nitidamente me perguntando: “como você lembra de tudo isso, amor?”. “Como você consegue fazer tanto drama assim, amor?” Nem eu sei. Ênfase no “amor”. Lembro de coisas bizarras que gostaria de esquecer. Às vezes, acho que coisas que vivi foram fantasias da minha cabeça, porque apenas eu lembro. Raiva de você ter aparecido no bar outro dia e pegado duas cervejas e ido embora. A sensação era de que você tinha virado um fantasma. Eu queria ver um. Apareceu o outro. Eu queria falar sobre drinks. Ele beija bem, melhor que você. Ele fala bem, melhor que você. Ele faz tudo melhor que você. Ou será que as coisas entre nós estavam tão ruins que qualquer coisa seria melhor do que era?
Ele reparou na minha coleção de livros. Não li todos. Óbvio, todos que consomem livros, compram três e acabam lendo um. Mas ele disse, ele reparou, ele elogiou. Os meus livros
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no fundo te irritavam? Eu nunca tinha tempo de ler, porque o tempo em que lia, você estava na rua, sem hora para chegar, sem lugar certo de estar, sendo o que você sempre quis ser: o cara mais legal da parada dos sucessos – meu Deus, eu tenho gírias cafonas e velhas, estou perdida para encontrar um novo amor geração Z. Então, eu lia pouco porque estava sempre com você. Preferiria estar com você. Hoje prefiro os drinks, prefiro o cheiro dele, o carro dele e até mesmo as mentiras dele. Vocês mentem, né? Que coisa intrigante. Comprei roupas novas, de novo. Comprei botas também. Você sabe como amo botas. Compro pouco é comida mesmo, quase nunca estou em casa. Fiz novos amigos. Me disseram outro dia que isso era totalmente esperado, que amizades eram uma certeza que eu teria, que comunicativa como eu, não há. Acho que isso era uma disputa entre nós. Os olhares vindos para mim te incomodavam e só agora percebo. Eu achei que você os admirava. Alfred está bem, mas a cada dia que passa, tenho a certeza de que não sei ser mãe nem de cachorro, quem dirá de pessoas. Eu estaria derrotada se fosse mãe agora. Estaria aos prantos, jogada em algum lugar, não por você, mas por mais uma responsabilidade. Já você, que ótimo pai seria. Ele tem esse tipo de responsabilidade, sabe? Empresa, filhos, mulheres, tudo o que adultos têm. Só me dei conta de quão adulta já me tornei no primeiro dia em que dormi com ele. Eu sou totalmente responsabilidade minha. Não quero mais ninguém. Rá! A mentira que todos nós contamos! Todos queremos alguém, não porque precisamos, mas porque é bom. Nunca mais vou usar aquele vestido preto. Me lembra você. Me lembra ele. Me lembra a potência que eu posso ser mesmo quando não quero ser absolutamente nada. Também não quero mais aquela sandália de corda. Ela nem é confortável. O cabelo, não vou mudar, porque mesmo que eu corte curto, ainda serei eu. Mas o vestido preto, lavei e guardei no fundo do guarda-roupas, no mesmo lugar em que ele se escondia a ponto de nem lembrar que ele existia. Será que tem lugar para você nesse armário sem fundo das coisas esquecidas?
Estávamos todos de preto naquele dia. Engraçado! O Universo é intenso. Escrevo aqui, agora, para te dizer que não te trai. Nunca te trairia. Mas me sinto profundamente apaixonada por alguém que conheço tão pouco. Queria estar apaixonada assim por alguém que conheço muito, de quem sei histórias que foram construídas por 10 anos. Meu olhos ardem e eu me sinto absolutamente triste. Te liguei, ato falho. Era para perguntar como você conseguia ter contatinhos, porque eu precisava de um novo. É o cúmulo do absurdo pedir ajuda ao ex para arrumar um novo contatinho, mas fazer o quê se cara de pau nós
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dois temos? Você riu e disse “você sendo você”, não entendi se era para eu ser eu ou se você estava afirmando de forma debochada que eu era cara de pau de estar perguntando aquilo. Falei sobre meu vazio, sobre minha dor, sobre como estava sendo bom. Você escutou e disse: “Você tem o potencial de conquistar quem quiser”, no ato falho respondi “menos você”. Ficamos mudos! Não tinha o que dizer. Você me disse “apenas sorria, o sorriso conquista”, eu gargalhei por ver que você estava se contentando com tão pouco, tão frágil, tão sem sentido. Falei que precisava desligar. Você me lembrou que outros virão, o que me deixou mais furiosa. Olhei para o Universo e repeti a frase escrita no meu quarto: “nascemos sozinhos, morremos sozinhos”.
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Tempo, passe
Não é saudade de você. É saudade de ter com quem reclamar do fornecedor chato de carne. É saudade de ter alguém para tirar as cortinas da sala para lavar e colocar no lugar de volta. É saudade de alguém para lavar a roupa sempre, todos os dias — hábitos estranhos seus, eu só lavo às segundas e, às vezes, às terças. É alguém para levar o peludo à rua. É saudade de ter alguém para me abraçar quando eu tenho pesadelos à noite. Eu ando tendo muitos pesadelos. Minhas olheiras estão enormes como há tempos não ficavam. Não uso mais aquele creme caro para reparação, achei melhor deixar assim mesmo e disfarçar com maquiagem, assim, eu posso escolher quando mostrá-las. É saudade de alguém para reclamar comigo de qualquer coisa. É saudade de alguém dirigir o carro, reclamar do porteiro, da falta de grana, dos funcionários, da falta de chuva, da sobra de sol. Sinto falta do excesso de cerveja aos finais de semana. E das tarde de sexta também. Será que sentir saudade de tudo isso é amor? Ou será que eu preciso mesmo é de um estagiário e de uma faxineira eficiente? Eu sinto saudade de muita coisa ultimamente. Da minha casa antiga. Da minha vó e do cheirinho dela. Das minhas amigas do salão pertinho da empresa, onde eu sempre chegava atrasada. Aff, eu vivo atrasada para tudo. Você adiantado para tudo. Que coisa! Será que essas diferenças importam? Os únicos desenhos que faço agora são para a pós, ou aleatórios mesmo, no caderninho que levo na bolsa. Raramente eu olho para eles de novo, mas hoje quis olhar, com atenção, carinho e calma. Te contei que num ato falho voltei a fracionar as porções do freezer para duas pessoas? Hábitos da nova paixão que durou tão pouco. Até isso se foi. Não vou te culpar, mesmo querendo te culpar imensamente. Ninguém tem culpa de nada nesse mundão. Mas sigo relutante em pegar as porções na geladeira, coisa irritante ser uma e ter sempre uma porção pra dois. Coisa irritante ter um sofá, uma mesa, uma cama, uma casa tão grande. 50 metros quadrados parecem infinitos para mim e o peludo. Saí por aí às 21h. Apenas me levantei do sofá, coloquei uma roupa e fui. Andei bastante. Ninguém está nem aí para as pessoas que caminham sozinhas. Engraçado como os carros pareciam tão pequenos e eu tão grande.
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Eles estavam passando rápido demais, mas deu para reparar algumas coisas. As pessoas, eu as via, mas parecia que elas não me viam. Umas ao telefone, outras cantavam alto, umas apenas dirigiam, outras com os filhos.
Incrível como esse assunto da maternidade tem tomado conta de boa parte do meu cérebro. Eu tinha total certeza de que não seria mãe, de que não queria ser mãe. Você sempre quis ser pai. Parece que todas as pessoas que eu conheço querem. Ô editor da vida, me colocando para pensar? Agora eu sinto mais uma sensação de impotência por não ter a escolha de ter filhos. Não dá para tê-los sem um parceiro. Não no meu modelo de família, de construção de mundo, de moral. Até isso me irrita profundamente. Antes havia possibilidade, agora não tem possibilidade nenhuma. Coisa irritante as peripécias dessa vida, adulta no caso. Já almoçou hoje? Talvez eu faça macarrão. Mas nem gosto tanto assim de macarrão. Mas é prático, ando precisando de praticidade. A casa está uma bagunça e eu também. Tempo, apenas passe.
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o ano-novo do fim
Foi a primeira vez que passamos Ano-Novo separados. Nos conhecemos pertinho dessa data — dia 27 de dezembro de 2012 —, você tinha acabado de chegar do exterior. Eu estava na praia acompanhando uma amiga que tinha acabado de levar um pé na bunda. Sempre o pé na bunda. Nos conhecemos de um jeito bizarro. Eu já tinha bebido demais e não dei conta de fechar o trinco da porta do banheiro. Você abriu e viu aquela cena toda, pediu desculpa e ficou segurando a porta para mim. Isso aconteceu mais algumas vezes. Não sei até hoje se aquilo foi de propósito ou se era o Universo agindo sobre a gente. Nossas mesas nem estavam no mesmo quiosque de praia. Começamos assim e este, seria nosso “aniversário” de 10 anos juntos. Cafona contar o tempo, né? Mas eu sempre gostei, sempre fiquei pensando se duraria muito. Por muitos anos, achei que sim. Conseguia ver nossa casa de campo e eu tomando vinho lá. Engraçado, agora que parei, percebi que sempre vi essa cena acontecer só comigo, sentada na cadeira sozinha. Será que eu deveria ter reparado os sinais?
Seriam 10 anos juntos, mas acho que só estávamos no mesmo espaço, não mais juntos. Não estávamos mais um para o outro. Você disse que não queria fazer nada. Eu queria fazer crochê, porque estava deprimida por passar essa data em casa mais um ano. A briga começou no instante em que você disse que iria ao mercado comprar vinho e parou no bar. Às 23h15 do dia 31 de dezembro, eu sabia que era o fim, alguém só precisava de coragem. Eu soube ali, no momento em que você pegou as malas e o edredom e bateu a porta, às 23h40. Minha aliança estava na mesa — eu tirei num ato de desespero porque não aguentava mais uma briga —, eu a peguei e te entreguei. Foi o pior dia dos últimos tempos. De todos os tempos. A gente se ofendeu tanto que meu sentimento era um misto de desespero com angústia e liberdade. Eu repetia para mim “não tem mais como consertar”. Eu sabia que para cada palavra dita ali, não haveria o pedido de desculpas, nem meu nem seu, que desculpasse, que apagasse, que pudesse fazer voltar atrás. Era o fim! Era o fim
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que nós dois queríamos e não conseguíamos dar. A gente não conseguia mais se conectar de nenhuma forma.
Você saiu e a mesa estava posta. Eu odeio mesa posta. Detesto essas coisas de ficar colocando cada coisa no lugarzinho certo... Haja paciência! Eu queria mesmo era estar com um vestido de brilho, feito de crochê — claro! —, dançando loucamente por aí e tomando muuuuuuuitas cervejas para celebrar a vida. A pandemia até causou em mim um certo senso de urgência, mas, em você, parece que causou dez vezes mais. Faltavam 15 minutos para a meia-noite. 15 minutos para um novo ano, que começaria e eu não tinha a menor ideia se suportaria passar por mais uma briga, mais uma separação, mais um volta para casa, sem ninguém pedir desculpas. Aquela volta em que tudo vai apenas se encaixando como era, e quando você vê, as coisas se normalizaram. E aí você pergunta: “e a briga?”. Pois é, fazia tempo que as coisas eram assim. Briga, sai de casa, volta para casa. Normalizamos tudo. Chorei 15 minutos seguidos. À meia-noite, os fogos começaram. Eu fui para a sacada e me ajoelhei no chão, por não saber mais o que fazer. Quando percebi, estava pedindo com cada força do meu corpo para que naquele novo ano, eu conseguisse que aquela briga tivesse sido a última. Que fosse o recomeço para a minha vida. E para a sua também. Eu lembro bem da minha fala para o Universo: “o que mais precisa acontecer para eu sair?”. Eu gritei de ódio na minha sacada, — pelo menos os vizinhos devem ter pensado que era de felicidade. Totalmente ilógico como a gente tem sérios problemas em assumir nossas responsabilidades e quer tanto colocar a responsabilidade no outro, né? Mas você me responsabilizava por tantas coisas: a falta de dinheiro, o não ter nada, a distância da sua família, o controle com o sair de casa, a falta do almoço na hora certa, o fluxo de caixa da empresa, o cartão de crédito, a falta de planejamento do ano novo... eram tantas as responsabilidades. Era justo eu jogar essa para você, não é mesmo?
Eu podia sair, minhas amigas me lembravam disso todos os dias do último ano. “Você pode fazer o que quiser, mas não é obrigada a nada”. Chorei mais alguns minutos, acho que uns 5, foi quando os fogos acabaram. Liguei para a Dani, no ato de procurar uma das pessoas em quem eu mais confiava e que eu sabia que não me julgaria. Ela não julgou. Me escutou. Me acolheu. Eu disse que não queria mais, que não suportava mais passar por aquilo, que não dava mais para restaurar. Com o tempo, fui ligando para cada uma das amigas que sabiam que eu só ligaria se estivesse em apuros, — ou precisando de alguém para pagar minha fiança. Você não ligou em nenhum momento. Você também não aguentava mais aquilo. Liguei a TV, a coisa mais deprimente que alguém pode fazer em um Ano-Novo, fala sério! Justo eu que amo loucamente festas, me vi sozinha, sem aliança
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no dedo, sem nenhuma noção de por que continuar. Bebi a garrafa de vinho sozinha e brindei à minha vida.
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continue a nadar
Dói de um jeito que às vezes eu nem sei explicar. Eu ando tentando, ando fazendo, ando que nem a Dory do Nemo “continue a nadar... lalalá”. Ontem fiz o que quase nunca faço: nada. Não consegui ficar no bar, nem na rua, nem conversar com ninguém. Cheguei em casa e liguei a TV, só isso. Simples assim. Liguei a TV e deitei no sofá. Nesse momento, entendi sua tara em dormir nele. Nunca tinha reparado como ele é confortável, uma belíssima escolha que você fez. Curioso, quase nada nessa casa eu escolhi. Acho que as cores das panelas, o azulejo de pastilha verde do banheiro... talvez a cor dos armários do nosso quarto? Não me lembro. Continuo olhando tudo aqui, tudo tão harmônico, né? Mas eu não sou harmônica, sou totalmente deslinear, desarrumada, “descabelada como o sol”.
Lembra? Ao contrário das suas meninas de agora, de cabelos lisinhos e arrumadinhos. Mas estávamos falando do agora, do meu sofá. Pois é, ontem entendi por que você tanto dormia nele. Te contar: apaguei. Não tive pesadelo, nem sede, nem vontade de fazer xixi de madrugada. Dormi até com a porta da varanda aberta, acredita? Roupa de ontem mesmo, moletonzinho cinza (sem graça demais para meu gosto, eu só uso moleton quanto estou doente). Talvez eu esteja. Fiz vários nadas! Nem acreditei quando acordei às 7h13 da manhã, um milagre. Mas, como nem tudo são flores, meu coração ainda está batendo em ritmo de ansiedade.
O contrato de compra e venda do apartamento ainda está na gaveta, não tive coragem de tirar a foto, como me pediu. Coitada de mim, uma hora isso vai ter de se resolver. Eu me preparei, juro que sim! Juro que todos os dias eu olhava no espelho e dizia “querida, uma hora isso vai chegar, você precisa resolver”. Af! Me lembrei de como ele me chamava: “querida”. Não, não é você, não se preocupe, eu ainda sei quem me chama de quê. É só uma boba referência ao meu novo, que já virou velho, amor. Sabe, você precisa tirar suas roupas de frio do armário. Está frio. Nesta cidade todas as temperaturas são intensas, assim como a gente. Então, melhor não esperar as coisas ficarem extremas, não acha? Mas que besteira a minha! Aqui preocupada com você passando frio,
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quando é bem provável que já tenha roupas novas agora. Já tem bastante coisa nova por aí, né? Você já tem até outro perfume.. Eu gostava do anterior. Bom, às vezes você mudou justamente por isso. Gosto de achar que ainda sou o motivo de algumas mudanças. Gente grande também faz pirraça, eu sou ótima em fazer isso.... Por que você é (quase) sempre o único assunto? Eu falo tão pouco de mim e nem sei o porquê. Falo de você (dentro da minha cabeça, em tom nítido e claro, no papel, na escrita diária e espontânea, e também em voz alta, com as minhas amigas — que não devem me aguentar mais, diga-se de passagem). Falo de forma compulsiva, o tempo todo. Sempre de você, eu acho!
Acho que é para que não sobre nenhum espaço para o silêncio. Sorrio para que cada sorriso tampe um buraquinho em mim — desculpa, lembrei de Chiquititas agora, “se seu coração tem buraquinhos...” voltemos ao assunto. Qual era mesmo? Viu? Estou totalmente desatenta nas últimas 24 horas. Estou inteira fora do eixo, fazendo coisas que nem tenho hábito de fazer: fazendo nada, dormindo fora da cama (no caso, eu queria que fosse em outra cama e não no sofá), ligando pouco para o sol, andando de havaianas... Tem coisas aí que eu nem gosto!
Me sinto tão estranha, meu coração continua disparado e eu nem sei como fazer ele ficar quieto. Sabe, o pior de tudo é que eu não te quero de volta. Não quero mais a sensação do seu sumiço, da sua incerteza, da sua cobrança, da minha angústia pela sua angústia. Mas não sei como vai ser quando eu não souber mais nada da sua vida. Quando eu não souber mais qual o seu bar preferido, a placa do seu novo carro, o endereço da sua casa nova, onde foi passar férias, se a contadora ainda é a mesma, se há funcionários novos na empresa. Pensar nisso me dá um nó enorme na garganta, no estômago, na cabeça e em todos os dedos. É a faca, lembra? Ela some e aparece me rasgando sempre, principalmente quando me distraio e acho que ela sumiu de vez. Quando acho que pouco me importa você e seu caos, ela aparece outra vez. Às vezes, eu sinto que não quero deixar de saber; que quando você vai sumindo, eu preciso te resgatar, pegar alguma faísca do que sobrou e transformar em fogo. Você agora compra maconha. Que engraçado, na nossa época — Deus, que termo ridículo! — isso seria inimaginável e, provavelmente, se eu usasse, você em algum momento jogaria isso na minha cara. Parei de fumar depois que te conheci, eram julgamentos demais para lidar. E agora você compra, mas nem sabe como apertar. Isso é patético! Repito: você é patético! Você nem sabe como segurar um baseado, ou um cigarro, ou uma mulher nas alturas. Você vai se perder, eu sei, posso ver. Não adianta falar que sou doida. Todas as vezes que criei cenários hipotéticos para você, eles se concretizaram, lembra? Pois bem, não é praga, é um fato: você irá se perder. Que você consiga enrolar seu baseado e ficar apenas nele.
43 SORRINDO & CHORANDO - porque é isso que a gente faz
a liberdade
Hoje, num ato falho, quis tirar a aliança do dedo junto com os outros anéis que uso diariamente. Sabe como é, né? Eu os tiro todos os dias quando chego em casa. Engraçado que hoje comuniquei a você que quarta-feira teremos reunião para resolver as coisas de forma judicial. Como sempre, sua reação foi plena, sem questionamentos e apenas um “tá bem”. Não gosto de pessoas plenas. Meu carro está com o motor de arranque falhando, sei disso pelos anos de experiência na oficina que construímos juntos. Você me disse que não teria tempo hoje. Na minha opinião, nem amanhã, nem tão cedo. O seu tempo para as minhas coisas, ou nossas coisas, se esgotou. Estranho como as coisas mudam. Eu até gostava daquela vida de trabalhar de tênis, cabelo preso e calça jeans suja de óleo. Eu só não gostava de chegar em casa com o cheiro de óleo em mim. Mas você sempre tinha esse cheiro, que misturava com todo o resto. Chato isso, a gente se lembrar de cheiros. Hoje tenho pavor desse cheiro, porque me lembra o tempo em que fiz tudo, que eu era tudo, que eu tentava de tudo e agora você me considera um nada. Seu discernimento e seu bom-senso não existem mais. Fiquei pensando: em algum momento eles existiram? Ontem almocei com meu pai. Ele me disse que eu sempre fui um caminhão para uma Saveiro 2003. Sempre achei que era papo de pai, essas coisas que eles falam do filho “olha lá, o mais lindo da quadrilha do colégio”. Sempre rolam essas comparações. Eu sei porque eu era feia e minha mãe me achava linda. Ontem, não! Ontem eu entendi a metáfora, senti a comparação como profundamente verdadeira. Você não valia o meu tempo de dedicação. Você deveria ter ficado com o meu tempo de sobra, e não com meu tempo principal. Ontem assisti a um filme, sozinha. Não tive nenhum medo de pensar a que horas você voltaria, onde ou com quem estava. Até você me mandar mensagem perguntando se eu estava em casa. Menti, disse que não, que iria para rua em segundos. Você me desejou “bom rolé”. Achei patético isso! Sim, eu tenho achado tudo o que você faz, fala ou respira, patético. Você sempre detestou essa gíria quando eu falava, agora usa como se fosse sua. Agora você faz tantas coisas que detestava enquanto estava comigo, não é mesmo?
44 Thalita Delgado
nunca há fim
Neste livro eu disse 556 vezes a palavra “você”; talvez, no fundo, este seja um livro sobre amor.
85 SORRINDO & CHORANDO - porque é isso que a gente faz
Livro composto em Cormorant Garamond e impresso em papel pólen natural 80g/m² em maio de 2024 pela Editora Autoria.