Flaubert #09

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mas ela trazia uns charutos da loja de conveniência, aos domingos, os mesmos onde a morbidez imperava, ele desconsiderava o hálito gasoso, gelado, amargo de cerveja e cigarros, que beijava as crianças, que os deixavam na sala enquanto tomava um banho. Ele batia punhetas nas madrugadas insones, gemia, tudo confundido com o ronco discreto dela, que ressonava as cervejas de mais cedo, que balbuciava o nome do ex-marido. “Mais uma dose, seus viados!”. Eram cunhados que o serviam agora, sustentando na cara um riso gélido, mortal, murcho? Eles ouviram sua voz e seu insulto? Levaram a sério aquele palerma desmanchando na poltrona de couro? Não interessava, somente o copo novamente cheio, de destilado, aguado, os dedos ainda metidos, submersos, enrugados pelo frio, brancos - eram seus aqueles dedos? -, encarava a janela, a parede, o mesmo quadro que o intrigava. Já haviam arrancado algumas bexigas coloridas, que estouravam aos poucos, os meninos davam saltos desajeitados, manchavam as cadeiras, as roupas alvas das tias sorridentes, as paredes pintadas recentemente, derramavam o guaraná quente, borbulhante, no tapete velho e esburacado. Ainda sorria, afinal de contas? Sentia ainda a boca, as bolas, as nádegas dormentes, o nervo, a pupila dilatada pelo álcool? Quem era afinal de contas? Um dos filhos, o ex-marido que não pagava as contas, que atulhava a casa de presentes inúteis e flores esporádicas para ela, que as recebia no dia do aniversário com os dentes arreganhados? Mas tudo era perdoável, “sensatez, querido”, e ela vinha, trazia flores, ia à manicure, uma velhice lúgubre, relacionamento cabeça, cheirando a lavanda recente, os cabelos úmidos, escorridos, um riso de mil dentes na cara. Então abanava o rabinho, evitava cagar no tapete, sustentava o seu sentimento resoluto, firme. Dormia horas seguidas, um comprimido que virava pó, goela abaixo, depois uma xícara de café, adoçado, quente. Inicialmente o quarto turvo, mole, derretendo, o espelho da estante ondulava. As paredes brancas saltavam aos seus olhos, realçavam a si próprias, e o sono surgia em definitivo. E tudo se convertia num preto sem fim. Da janela o mesmo escuro de seu sono, pontuado pelos postes ordeiros, que banham a rua, pequenos pontos de claridade. O relógio grita as horas. Ergue-se da poltrona, desenterra-se, cambaleante e tonto, desaba com estrondo, todos riem, constrangimentos e a luz apagada (alguém lhe traz um troço redondo, cheio de cores, babados, de superfície lisa, onde uma vela está fincada, suas chamas vacilam, teimam, fazem os rostos tremerem, refletidos nas paredes frágeis, que não aguentam a porra dum prego), se ergue de novo, as mãos espalmadas, aflitas, tímidas, sonsas, as vozes que cantam num tédio absurdo, alguns falam de Deus, que o abençoe, seu olhar passeia (ainda o copo na mão, os dedos enfiados lá dentro), os rostos bruxuleantes, que tremem, sorrisos de dentes amarelos, escuros, ferventes, vez ou outra flashes, esporádicos. Nada é identificável, estranhamento. Somente o quadro brilha, cintila, reluz, numa moldura rebuscada e dourada, que também brilha, e ele deseja uma crença, ter fé, sua década perdida, quer ver uma multidão ao redor da Casa Branca e que seu pau vire uma arrebatadora orquídea, e no quadro tem uma cabaninha, timidamente pintada, acinzentada, contraste com todo o resto (o azul que a cerca, o branco de algodão das nuvens, o verde esguio de coqueiros deitados), e ele saca que é o mar, que é Cuba, que pode ser um bom lugar. Que aquele lugar tão perto é o seu lugar, viver ali, enfiado numa cabana, como o velho “Hem”. Ter o mesmo aspecto bravio e destemido, melancólico, em sua cabana, de portas velhas, de janelas pequenas, onde o mar está emoldurado por pedaços de pau envelhecidos, escuros, onde ele poderia viver, como o Ernest, e dar um fim aquilo, ao bolo, às caixas coloridas, enfeitada com lacinhos vermelhos, onde o nome de uma loja qualquer aparece pendurado, uns abraços, cuecas, camisas gola polo, o 51


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