Flaubert #11

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Bruno Alves III Chris Sevla III Dante Ieltsin Flรกvio VM Costa III Gustavo Carneiro III Henrique Marson JD Lucas III Jeovane Cazer III Mario Filipe Cavalcanti Ottavio Lourenรงo III Paulo Raviere III Pedro de Azevedo Renato Amado III Vilto Reis III Willian Teca

ANO II

# 11

REVISTA DE CONTOS


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REVISTA DE CONTOS


© 2015 PUBLICADO ORIGINALMENTE EM 2015 COM O TÍTULO FLAUBERT REVISTA DE CONTOS Nº 11 /// COPYRIGHT DA SELEÇÃO © 2015 FLAUBERT REVISTA DE CONTOS /// todos os textos desta edição são copyright de seus respectivos autores /// © Bruno Alves // Chris Sevla // Dante Ieltsin // Flávio VM Costa // Gustavo Carneiro // Henrique Marson // JD Lucas // Jeovane Cazer // Mario Filipe Cavalcanti // Ottavio Lourenço // Paulo Raviere III Pedro de Azevedo // Renato Amado // Vilto Reis // Willian Teca ///


NESTA EDIÇÃO DE

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flaubert

Bruno Alves

REVISTA DE CONTOS

este pátio pertence aos irmãos santiago

Chris Sevla

constrangimento

Dante Ieltsin

DIÁRIO DO FIM DO MUNDO

Flávio VM Costa

homenagem a carlos franzino

Gustavo Carneiro picolé de limão

Henrique Marson nada é artificial

JD Lucas

vida noturna

Jeovane Cazer o elevador social

Mario Filipe Cavalcanti cinco minutos

Ottavio Lourenço

o medo é um lugar para viver

Paulo Raviere

suspiros que cortam o ar

Pedro de Azevedo trottoir

Renato Amado a cidade

Vilto Reis

amores invernas do sul

Willian Teca

conga na boca do cachorrão


FLAUBERT

REVISTA DE CONTOS

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Os personagens e as situações dos contos aqui publicados são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e sobre eles não emitem opiniões.

ano 2 III # 11 III BRASIL 2015


Charlie Hebdo blasfemava contra todas as religiões. Nenhuma possuía hegemonia; todas eram tratadas como Marx e Lenin queriam dentro do materialismo histórico. O primeiro as chamava de aguardente; o segundo, de ópio. A revista era de esquerda e não possuía patrocinadores. Portanto, os editores infamavam, porque o sensacionalismo vende exemplares nas bancas —, a advertência da bomba de 2011 deveria ter levado ao pensamento sobre a ética jornalística e o que estava sendo atingido como também o poder reativo do alvejado. Em entrevista, o editor Charb afirmou que não obedecia a Maomé, mas às leis francesas. Essas leis de que tanto se orgulhava causaram massacres em um passado colonialista. A liberdade era para poucos. Em uma sociedade do espetáculo vale tudo mesmo para se estar no centro dela? Hoje muitos são Charlie Hebdo, mas contra a declaração do humorista Renato Aragão de que nordestinos e negros não ligavam às piadas veiculadas no programa humorístico do quarteto. Como ser Charlie Hebdo e ser contra Os Trapalhões? O povo tem duas moralidades: uma para uso público e outra para o doméstico. Ser Charlie Hebdo não é estar contra as mortes daqueles homens na redação por fundamentalistas, porque me solidarizo com as vítimas e reprovo toda violência; ser Charlie Hebdo é estar a favor de uma política suspeita travestida de liberdade de imprensa em uma série de ignomínias ditadas pela ascensão de políticas conservadoras e protecionistas. É o engajamento na islamofobia promovida por Bush (pai e filho), reduzindo uma cultura a atos de barbaridades. O Islã erra por não condenar em conjunto o terrorismo, mas sua desarticulação, desde o último aiatolá iraniano, se deve tanto à União Soviética quanto aos eua, ambos classificados por Khomeini de grandes satãs. O meu repúdio é ao ato terrorista e às mortes. A minha indignação: o Islã precisa reunir seus intérpretes do Corão, estabelecer uma liderança equivalente a papal para se pronunciar contra atos como esse que emporcalham a imagem de cidadãos corretos, rebaixando-os à categoria de animais nocivos. Uma multidão desinformada não acompanhou os anos 1980 como deveria para compreensão do quadro de dissolução da consciência islâmica promovida por ambas as nações da Guerra Fria. Nem um nem outro queriam perder, na batalha, cada palmo de território a ser conquistado e sua influência ideológica — fosse ela capitalista ou comunista. No entanto, com a saída de Khomeini, ocorreu uma reviravolta perigosa que culminouw com a queda das Torres Gêmeas. MARIEL REIS III EDITOR


A raiva para querer resolver um problema é uma das manias mais funestas e mais estéreis que faz parte da humanidade. Cada religião e cada filosofia reivindicam ter Deus para si, olhando o infinito de cima a baixo e conhecendo a receita da felicidade. Que presunção e que insignificância! Eu vejo, no entanto, que os maiores gênios e as maiores obras jamais foram resolvidas.

Gustave Flaubert, 1865


este pátio pertence aos irmãos santiago bruno magno alves

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Ao tocar da sineta que anunciava o intervalo, Tiago e eu tínhamos o hábito infalível de pular de nossas carteiras e correr para sermos os primeiros a alcançar o pátio. Tarefa nada fácil: da nossa sala, devíamos atravessar um corredor, saltitar perigosamente por dois lances de escada e dar meia volta, contornando o corredor do térreo, para atingir nosso éden descoberto. Era a nossa aposta diária. O perdedor comprava um par de balas para o outro, com o dinheiro dado no começo do dia por papai. O ônus era apenas o de enfrentar a fila da cantina, naquele canto mais escuro do pátio, que eu acabei conhecendo muito bem porque, admito, Tiago era muito ágil. Mal soava o timbre estridente já saltávamos com aquela sincronia típica dos gêmeos. O resto da turma já estava acostumado. Apesar de saber que alguns achavam muito esquisito o nosso jogo, sei que outros acompanhavam com avidez nossas apostas. Quem sabe alguns mantivessem suas próprias, separadas, colocando mais em jogo do que nosso desejado par de balas de menta; ou fôssemos alvos de uma espécie de rede infantil de inofensivos jogos de azar? Se um dia tivesse me aparecdo um cambista primitivo, me desafiando a perder de propósito ao pagamento extraordinário de quatro balas, talvez eu não ficasse surpreso. Vez ou outra o pátio estava vazio quando chegávamos, de mãos nos joelhos, pernas bambas, e ofegando para o chão.


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O que tinha perdido então dava um tapinha no ombro do vencedor e já corria o resto do caminho em direção à cantina, antes da formação de uma inevitável fila. A ideia era perder o menor tempo possível, e a moça da cantina, uma mulher grande de cabelos grisalhos e olhos bondosos, já tinha as duas balas do dia separadas, tamanha a nossa fidelidade como clientela. Era sempre “aqui está”, para mim ou para Tiago, as balas na mão, os vinte centavos na outra, e uma expressão toda sorrisos de quem admira a inocência das crianças. Então pegávamos a bala e jogávamos na mão do vencedor que, quando em dia de bom humor, acabava dividindo o quitute. Tal éramos eu e Tiago nos bons dias. Pequena Verdade em nomes. Os nossos combinavam. Aquela dupla de nome engraçado que só gêmeos podem ter. Poderíamos ter sido Gabriel e Rafael, Miguel e Manuel, Lucas e Claus, mas éramos Iago e Tiago, original e corruptela, e já conjecturei a possibilidade de nossa mãe ter perdido uma aposta para escolher nossos nomes, tamanha a frustração, o número de piadinhas com as quais lidávamos por trás de um sorriso irônico, aquela expressão toda agridoce de eu já sei, já fizeram essa gracinha quinhentas vezes antes de você, mas continue, eu já parei de me importar (na verdade ainda me importo, chega, seja melhor que isso, nos deixe em paz). Finda a Verdade, faço um retorno: éramos (T)Iago e o pátio. Longo e largo para criança, árvores saindo de quadrados cortados no concreto, alguns bancos de madeira aqui e ali e a nova geração em toda parte a encher o ar quente da selva de pedra de vozes agudas. Último dia de março, começo de outono, ainda quente como sauna. Pela primeira vez na semana, eu vencia o jogo, e chupava uma das balas de menta, enquanto a outra releguei a Tiago. Os dois, primeiros a chegar ao pátio, suados de meio minuto de correria, a respiração ainda anormal, vendo o resto das turmas da escola adentrarem o território de concreto, fugindo das amarras. No pátio descoberto, reputação importava, segregação e união montava os grupos, distribuía os lugares, demarcava quem éramos até o fim de semana.


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Sentados naquele banco no meio do pátio, rodeados dois minutos depois pela trupe de sempre, e principalmente ela. Estava sempre a seguir o gêmeo mais novo: Beatriz encaracolava o cabelo com os dedos e olhava para o meu irmão enquanto comia com forçada elegância um sanduíche de atum que, segundo ela, não era assim tão bom mas era tudo o que teria até a janta. Estudávamos de tarde, intervalo às cinco, um horário bizarro que jamais vi repetido. Distraído, minha cabeça encostada contra a parede, mal percebi quando Tiago me virou os olhos e sorriu de uma maneira que percebi que estava a tramar alguma coisa. Sorri de volta, em um curto momento de metamorfose, em que virávamos uma entidade única. Deixávamos de ser dois para nos tornar uno, irmãos Santiago, os gêmeos, unimental. Ele se levantou de súbito, as costas manchadas de suor, e eu segui atrás sem hesitação, com aquela sincronia só nossa, eu jogando o jogo dele, sem saber o que pretendia mas já dentro por decisão contratual. “O que foi agora, vocês?”, perguntou Beatriz, tirou os olhos do sanduíche de atum, nos encarou, mais Tiago que eu, apertou os olhos, sorriu de leve, meu irmão nada disse. Beatriz me seguiu e eu segui meu irmão conforme ele, ainda em silêncio como se falando comigo em telepatia, atravessou o corredor, subiu os lances de escadas e atravessou mais uma vez o corredor na direção oposta, até dar de frente à porta de nossa sala, trancada durante o intervalo e supostamente vazia. Alguns poucos grupos se amontoavam pelo corredor em vez de ir ao pátio, e dali o burburinho das dezenas de crianças em espaço aberto não era mais do que um som ambiente, constante e seguro. Tiago tirou a chave de casa do bolso. A fechadura das salas de aula não poderia ser mais ineficiente, permitindo que qualquer coisa pudesse arrombá-la sem esforço. Enquanto meu irmão fazia o rápido trabalho, eu observava o corredor em busca de alguma figura indesejada de autoridade, e Beatriz discretamente saltava de um pé para o outro: “o que vocês estão fazendo?”, e nem se deu ao trabalho de dizer que poderíamos nos meter em encrenca porque, sem isso, qual seria a graça?


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Entramos, Beatriz em nosso encalço, fechamos a porta em silêncio. Cinco fileiras de carteira, desorganizadas, mochilas por aí, um chão de assoalho sujo, a sala da turma comprida e baixa — a mesa do professor vazia ao lado e aquele quadro branco ainda com a matéria da aula anterior. Tiago pegou o apagador no canto do quadro e sistematicamente ajudou o próximo professor ao apagar todo o material, enquanto eu escolhia os canetões que usaríamos. Ao terminar, ele se virou para mim, joguei o canetão verde e fiquei com o azul. Ofereci o vermelho para Beatriz, que sacudiu a cabeça, “não, não”, tudo bem. Virei para Tiago, que deu de ombros e piscou para mim, vamos começar? Canetão no quadro branco, linhas, curvas, um desenho, uma frase se formando, ilustrações, pura arte conceitual. A sala toda nossa, ali éramos criadores, exercendo nossa vontade através de traços coloridos, sujando o branco do quadro, destruindo a lisa pureza de sua superfície, manchando mãos e braços de tinta de caneta. Enfim, nos afastamos, Tiago e eu, e ele passou a mão pelos meus ombros e me puxou para perto dele. “O que você acha? Uma obra-prima?” Era mesmo. Beatriz observou nossa masterpiece: “cara, cês tão ferrados”. Mas, de novo, essa era a graça. Saímos com discrição pela porta da sala, levando Beatriz de volta até o pátio. As pessoas agiam como sempre, andando de um lado para o outro, conversando, encostados nos bancos, ignorantes. Agiam como se nada acontecesse, como se não tivéssemos exercido o nosso direito de Criador. Éramos crianças, Tiago e eu, e nos sentíamos os donos do mundo, uma caneta na mão, uma imaginação sem limites, um poder que alcançará o vácuo universal. O suor tinha secado, graças a Deus, e eu então tentava me lembrar do nome de uma música que eu tinha ouvido mais cedo no caminho para aula, no carro, antes do pai dar o dinheiro das balas. Tiago matutava em seu canto, sorrindo, extasiado com o seu feito. Seu lema era de que a satisfação está nas pequenas travessuras, em se sentir importante agindo como um inofensivo agente do caos, coisa que ele mais amava no mundo, e na qual eu ia com ele porque éramos os gêmeos, a entidade una que fazíamos parecer existir.


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Ele levantou a cabeça e olhou para mim, então, eu que perdia já o ritmo da música, e se levantou. Ali, subindo no banco, Tiago me chamou junto. Subi, meio bambo em cima do banco, e ele me amparou antes que caísse, suas mãos quentes de carinho. Mostrou-me todo o pátio, o enorme espaço da confraternização, e toda sua prole, crianças mais novas e mais velhas, gente da mesma idade. Puxou-me pelo ombro de novo, me enlaçando em seu abraço fraternal. Seu sorriso era o melhor, o sorriso mais límpido e sincero que eu jamais veria, tudo aquilo em seu rosto que também era o meu, os melhores gêmeos da escola, do Brasil, do mundo, e ele apontando tudo aquilo, disse: “Tudo isso aqui é nosso, já pensou nisso?” Éramos os Senhores da Criação, os melhores gêmeos do mundo. Crianças como nós éramos os donos de tudo. Uma exultação surda de ter sido responsável por alguma coisa, alguma movimentação emocional por menor que seja, em figuras de idades distntas nos fazia acreditar, ainda mais sendo dois em um, que tínhamos um poder ilimitado em nossas mãos, de mover montanhas e destruir nações. Éramos, então, os discretos donos do pátio, ali onde apenas nós sabíamos como éramos mais poderosos que os mortais que nos rodeavam. Pequena Verdade, parte dois: Tiago e Iago, irmãos Santiago, mais ele que eu. Iago como uma extensão de sua vontade, um corpo-apêndice; éramos ambos o Tiago, sua mente e corpos, ele sempre na frente, eu apenas apoio. Tudo com aquele incondicional amor de irmão, a intimidade de dividirmos tudo desde o ventre ao par de balas de menta, e agora a Criação. Um deus de duas faces. Ao tocar da sineta que dava fim ao intervalo, o retorno — agora sem joguinhos, quais seriam as apostas? Caminhamos de ombros dados, as duas faces quase idênticas, a de Tiago um pouco mais flamejante, seu espírito transbordando de nossos olhos castanhos, seu cabelo mais bagunçado, ele todo mais moleque de verdade que eu, que era e sou apenas meio sem começo nem fim. Beatriz acompanhava ao lado de Tiago, toda se esbarrando nele. O que começava como uma amizade real e ia lentamente se transformando em uma ameaça que poderia dissipar a nossa sincronia fraterna e divina.


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Sala de aula, agora cheia, a multidão a observar a nossa obra de arte, escondendo risinhos, virando o rosto em vergonha, esperando para assistir de camarote a enorme comoção. Quando o professor entrasse pela porta e visse o que fizemos... e eu e Tiago mais uma vez sentados, eu até que meio tenso, mas ele sorrindo com os braços cruzados e pés na carteira, o epítome do orgulho. À sua frente, Beatriz tentava conversar, arranjar alguma desculpa inocente para lhe tocar a mão, aproximar-se, ignorante da minha expressão deformada — era ciúmes? Era, sim. A figura de autoridade me tirou dos pensamentos venenosos. Um rosto avermelhado, um suspiro, uma mão pelos cabelos. Ok, quem foi que fez isso? Um rápido olhar pela sala, pessoas desviando o olho, parando em Tiago, clássico Tiago, encarando desafiador e um sorriso de deboche. Foi você, Tiago? Foi você, Tiago. Foi você, Iago? Por que não? Os dois pra coordenação. Levantou-se meu irmão com o queixo erguido e os ombros satisfeitos de quem não se arrepende, orgulhoso, está feliz, em êxtase, moveu o professor, atrasou a aula, colocou-se acima dos outros. Atrás eu seguia, emulando sua expressão, meio temeroso, mas nada demais. Se eu estivesse com Tiago ao meu lado, tudo terminaria bem. O professor nos guiando pelo corredor, andando sem olhar para nós, indo a frente, atravessando o corredor, desceu as escadas, meia-volta, lá estava chegando, ele, o pátio, a coordenação do outro lado da escola. O sol se punha, o alaranjado do começo da noite que indica que em breve estaremos livres da escola. “Espero que não estejam orgulhosos disso”, o professor dizia, sem olhar, à nossa frente como uma imponente sombra de um futuro que nos aguardava, essa coisa esquisita de crescer. Tiago nada disse, mas eu entendi o que pensava, “não quero ser essa pessoa, nunca, nunca na vida, não preciso crescer”. O pátio, aqui Tiago se desviou e saiu do caminho do professor. Mais uma vez esse enorme espaço descoberto de concreto, os nossos domínios, onde as pessoas ficavam mas nós que mandávamos, elas ignorantes do nosso poder,


trazendo boas lembranças de sete minutos atrás. Puxou‑me pelo pulso para o pátio, e o professor a seguir por seu caminho sem perceber que não estamos mais atrás. Deveria estar com algo em mente, essas muitas coisas que preocupam os adultos. E nós ali, naquele pátio que pertencia a nós e a apenas nós. Quase anoitecendo, os postes sem luz ao nosso redor, as árvores, os bancos vazios, e nós sozinhos naquele espaço destinado a dezenas. A qualquer momento o professor perceberia que perdera sua carga e voltaria, raivoso, para buscar esse par de delinquentes. Tiago andou de um lado para o outro, atravessou, deu a volta, circulou por todo o pátio, sentindo a extensão do seu poder, enquanto eu ainda tentava lembrar o nome de uma música arrítmica que não me deixava em paz desde o começo da tarde, sentado no banquinho, o mesmo de sempre. Nesse fim de tarde, meu irmão, imperioso, chamou a minha atenção. Trevas cobriam a face do pátio, e Tiago se movia sobre o piso de concreto. Com um sorriso travesso, apontou para os postes, suas lâmpadas ainda desligadas. Disse Tiago: “Faça-se a luz!”, e a luz se fez.

bruno magno alves é residente do Rio de Janeiro e atualmente estuda e estagia no mercado editorial


constrangimento chris sevla

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Ainda me lembro da cena. Feliz da vida por ter terminado mais cedo, fui buscar a mulher no trabalho. Seria mesmo uma surpresa. Surpresa, mesmo! Pra mim. Aliás, se tivessem me contado, duvidaria. Mas o problema foi exatamente esse, eu que testemunhei um colega dela dizendo que ninguém sabia que ela era casada. Pior. Ela não só se dizia solteira como namorava o recepcionista. O dia seguinte – porque ela só voltou pra casa junto do sol –, foi regado a muita pancada e separação. Quatro anos de casado, dois filhos, não dá pra parar de pensar numa coisa dessas. É como aquela piada do corno, de que chifre é coisa que colocam na sua cabeça. Batata que na rua todo o mundo ia me apontar, fosse o tempo que fosse; sempre o cabra traído, o marcado, o cornão... cor sim/ cor não... o Italiano do bar ia me chamar de alguma coisa que eu não ia entender... o zoado, o desonrado. Eu tinha honra. O suficiente pra não privar os filhos da própria mãe. Por isso todo o trabalho de enviar uma encomenda, uma caixa vazia ao tal cara e ficar esperando ele aparecer pra receber, só pra ver a fuça... Quem sabe até me chamassem o chifrudo. Se ninguém sabia que ela era casada, talvez ele também não soubesse, mas é como aquele outro ditado, cada um com seus problemas. O meu era essa história que, como eu te disse, não saia da cabeça, apesar de mais de ano.


chris sevla é neurocientista e pós-graduada em teologia. Colaborou nos sites Os Noivos, Guia do Sexo, Canal de Mulher, Banheiro Feminino e Revista Nova. Participou da antologia Território V (Terracota, 2009). Atua nas áreas de roteiro e direção de cinema.

Só que foi numa outra noite, bem mais calma, com alguma luz, que descarreguei o tambor no desgraçado. Observei o pânico, a correria, mas não teve ninguém que viesse ver o que haviaacontecido. Não teve ninguém que se preocupasse com o tal; sinal de que ele não valia mesmo muita coisa. Não sou de me vangloriar e não era agora que ia começar. Só porque matei um? Grande coisa! Tem gente fazendo isso todo o dia. Eu disse que tinha honra, não era tão besta assim. E de mais a mais, me gabar por ter matado o homem que pegou minha mulher, era tornar público, fazer propaganda do meu chifre – olha! o chifrudo de novo –. Não, obrigado! Depois ninguém ia entender, mas isso era meu, eu precisava saber. E ele, o cabra, também. Onde quer que eu passasse, ele taria comigo. Era o único jeito de conhecer onde ele tava, de garantir que nunca mais eu tiraria os olhos dele. Nunca mais a minha mulher; nunca mais mulher nenhuma. O gordo do estúdio perguntou se eu tinha certeza, coisa que sempre tive na vida. A cara de espanto passou com o barulho da maquininha. Na pele cheia e cada vez mais vermelha, a imagem retangular foi se transformando nessa lápide eterna. Mas acho que toda lápide é eterna. Toda lápide é eterna?... E embaixo, a data do crime e o nome do cabra. Você pensou que eu ia dizer o nome da vítima, né? Mas a vítima fui eu o tempo todo. Ele até me ameaçou, dizendo que ia me matar, quando soube que bati naquela vagabunda... Não ouço mais a voz dele. Tinha noção que iam demorar a me achar, se é que iam. Cansei de tomar café na padaria com bandido que havia acabado de cometer um crime e ficava assistindo à polícia trabalhar. E tinham uns que ainda serviam de testemunha... Como dizem, só rindo! Eu, não. Era só esperar três dias pra tatuagem desinchar e eu mesmo seria minha testemunha, de verdade. Porque crime é crime e isso eu também aprendi desde pequeno com meu pai. Como ele me acompanhava, do mesmo jeito o cabra ia fazer. Na saúde ou na doença, na alegria ou na tristeza, na cadeia ou na morte, ele iria comigo. Me entreguei assim que tirei o curativo.


diário do fim do mundo dante ieltsin

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1º de Janeiro de 2000 Hoje entrei numa casa com quatro amigos meus. Era a casa deles, mas eu não a conhecia. Nunca tinha ido lá. A casa era grande, num bairro até sossegado. Uma bairro tão arborizado que por algum motivo me deu a impressão de ser Curitiba. Mas eu sabia que não era, que era uma cidade muito mais paulista, diria paulistana até. Não que isso importe alguma coisa, na verdade talvez importe daqui a pouco, mas agora não. A casa tinha uma arquitetura moderna, mas, por pura falta de conhecimento técnico, eu não conseguia precisar o estilo. Era uma casa escura, com algo que se assemelhava a granito negro espalhado por todas as paredes, o que dava para mim o ar de que eu estava dentro do monolito negro do 2001. Como ainda ontem era 1999 e a humanidade ainda não tinha uma base lunar, fiquei realmente pensando nisso. Por uns cinco segundos. Nós teríamos visitas naquele dia. Namoradas e parentes deles. Não tenho esse problema: não tenho nem parentes nem mulheres à minha porta. Isso implica em alguns outros problemas, que eu poderia resolver a qualquer hora por uns duzentos reais. É que se eu quisesse mesmo plenamente resolvidos, teria que gastar acima da tabela. Pode ser que alguns problemas psicológicos surgissem. Talvez se eu comer uma puta psicóloga eles não ocorram. Talvez ela cobre trezentos. Ou quatrocentos. Mas não é esta a questão.


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O que eu tinha que fazer, e rápido, era tomar um banho ligeiro (ou demorado, havia cinco chuveiros na casa, um pra cada um, e eu não esperava ninguém). O fato é que fiquei enrolando pra entrar lá. Tempo suficiente pra ser atacado por um cachorro gigante, porém de coração apenas enorme. Com o tamanho que o cão tinha, o coração só podia ser grande. Ele, o animal, não me mordeu. A garota que estava com ele era parente de um dos amigos. Parecia uma garotinha loira saída dos desenhos da Heidi, porém ela não era tão loira assim, apesar do cabelo natural. O gato dela que me incomodava, porque ronronava atrás de mim o tempo todo, e na verdade eu não conseguia nem ver se era um gato ou uma gata. Fosse de que sexo fosse, parecia gostar muito de mim. Tudo bem, sem problemas, eu preferia a dona, mas talvez fosse um começo. Resolvi então ir tomar banho, ouvindo Steal My Sunshine, de um grupo novo chamado len. Vai despontar pro fracasso, tenho certeza. Importante lembrar deste detalhe, porque ele não tem nada a ver com a narrativa que se segue. Entrei no banheiro e fechei a porta. Liguei a água do chuveiro e esperei esquentar um pouco, pois estava muito frio. Estranho este frio repentino, porque eu estava sem camisa e de bermuda até então. Cinco minutos depois, entrei debaixo da água. Então eu ouvi um resmungo, uma voz fina, meio andrógina, incompreensível e rápida. Era o gato. Eu pedi pra que ele falasse mais alto. Ele falou, mas era embolado. Fui pedindo para ele falar cada vez mais pausado, pausado, pausado, pau-sa-do, para que eu pudesse entender. Chegou uma hora que entendi a frase, em perfeito português: “Você é o homem que eu preciso”. Não precisa nem dizer que fiquei assustado. Não pelo fato de ser um gato falante, nem pelo fato de que gatos não fazem meu tipo sexual. O que me incomodava era não saber se o gato era gata ou gato. Ou gatô-tô. Juro que fiquei esperando que o bicho se transformasse. Na dona, claro. Nada melhor que essas fantasias sexuais que ocorrem quando você está no banho quente e ouve uma proposta dessas. E aquela voz estranha, perfeitamente humana, deixou meu pau duro, admito. Mas o gato não


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se transformou em nada, nem disse mais nada, o que me deixou muito confuso. Decidi apenas bater uma punheta e limpar o chão para que ninguém notasse. Enxuguei meu corpo e vesti a roupa que havia levado comigo. Na hora que abri a porta, resolvi não olhar para trás. Cinco passos depois de sair do banheiro, à minha frente, lá estava o gato dormindo no dorso do monstro canino. Então um abraço por trás de mim. Era a dona, que me deu um beijo na nuca, passou sua mão sobre mim até chegar na virilha. Ao invés da mão seguir o curso que seria natural, a garota simplesmente se desvencilhou de mim. Ao virar para trás, ela também não estava lá, apenas o irmão dela entrando no quarto. Como eu não curto muito isso de ficar encanado e havia gostado do beijo na nuca, resolvi sair fora da casa para enxergar alguma cor. A garota estava lá, sozinha, e me deu um sorriso magnífico. Sorri também e segui para o lado contrário, subindo a rua. Uma passagem de pedestres, na verdade, pois a casa ficava numa vila que me lembrou um pouco a Europa. Subi e fiquei assobiando sem sentido No Rain, porque pensar em melões cegos é algo que acontece comigo. Ao menos esta canção tinha a ver, porque era uma noite limpa e cheia de estrelas. Ao chegar ao fim da passagem, encontrei um papel familiar no chão: uma prova que eu havia feito em 1983, na sexta série. Bem na hora em que passa um carro à minha frente gritando meu nome. Era uma garota chamada Georgia, que jogava basquete e estava nesta mesma classe de 1983, porém que me tratava como um zero. Ou melhor, como um -6. Ela estava sorrindo. Eu teria mudado tanto assim? Ou ela? Foi quando notei que vesti minha calça ao contrário. Não fazia mal. Eu continuava assobiando e voltava pelo caminho quando um bicho me picou, uma abelha ou uma vespa. Eu tirei o inseto a tempo, mas quando vi, uma nuvem desses desgraçados começou a vir atrás de mim! Eu estava chegando à casa e resolvi gritar para abrirem a porta. Mas eu não conseguia lembrar o nome de ninguém. Para minha sorte, a garota linda estava no portão. Para meu azar, quando cheguei perto, vi que não era a garota, e sim um monte de sanitos azuis com lixo. A vida não é boa assim mesmo?


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3 de janeiro de 2000 Acordei com a promessa de um dia ensolarado e lindo neste domingo. Mas a verdade é que não lembro de ter olhado para o sol sequer uma vez durante o dia. Estava muito mais preocupado em olhar para as ruas e saber o que foi que deu errado. Acordei abrindo a minha caixa de correios e abrindo um envelope postado pelo estranho nome de Centuriac Deux Vi. Ele dizia exatamente com essas palavras e depois mandava suas risadas me curarem: “Auprès des portes et dedans deux citez seront deux fleaux onc n’aperceu un tel, faim, dedans peste, de fer hors gens boutez, crier secours au Grand Dieu Immortel”. Oras, eu sei um pouquinho de francês pra saber que isso é uma viagem sem graça de um tonto esquisito que achava que o mundo ia acabar e ponto, não é isso? Não, não era isso. Durante meu caminho pelas ruas da metrópole durante aquelas horas seguintes, foi incrível o número de amigas e ex-problemas com que cruzei. Com algumas, literalmente, cruzei as ruas. Com outras algumas (algumas as mesmas), cruzei nas ruas mesmo. A cidade, afinal, ainda estava bem deserta. Era um domingo com cara de ressaca, não se esqueça disso. E era bem cedo, apesar de eu só lembrar das cores do asfalto e das peles das garotas. Várias delas me fizeram propostas um tanto quanto estranhas: comprar um carro, abrir uma sorveteria, ganhar dinheiro na Augusta, deitar no meio da Faria Lima no dia seguinte. Algumas foram interessantes até, admito. E eu disse que sim para a maioria delas, pois só assim (na maioria das vezes) eu conseguiria comer as tais. Mas teve uma proposta de uma pessoa que me deixou muito injuriado. Ela se propôs a ser minha sócia num negócio, uma coisa muito justa. Mas a partir daquele instante, nunca poderia pensar nela como nada mais além de sócia. E era assim que ela me trataria, assim que eu dissesse sim. E seria como se eu desse adeus à minha vida. Porque justamente esta garota é a pessoa por quem mais sou tarado, mais apaixonado (se é que posso me apaixonar por alguém). Nem era ninguém de corpo fabuloso, não. Não em relação às dez modelos que comi durante o dia. Pro meu azar, eu já estava cansado e não sabia dizer não. Fechamos negócio em frente ao Cemitério do Araçá. E foi o meu enterro.


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Naquela noite mesmo ela foi em casa com um vestido provocante pra caramba. Preto, justinho. Ela faz o tipo mignon. Aquela garota que entra num bar e vai um monte de urubu em cima e ela pode escolher qual vai lhe fazer feder menos naquela noite. Bem, nesta noite o escolhido era eu. Não tocar. Negócios. Ok. Fez questão de se sentar à mesa. Da sala, não da cozinha, onde era mais costumeiro e a mesa era maior para espalharmos papéis. Somos ótimos com papéis. Mas nesta noite não estávamos atuando com nossos personagens de costume. Ela estava ali toda provocante com um único propósito: provocar. E eu estava ali todo relutante, por não saber novamente as regras do jogo. Odeio ficar perdido num jogo. Ela não, é assim que se sente por cima, mesmo sabendo que, pelas coisas que impôs, agora não vai saber mesmo como é. E nem eu. Mas tirou seu sapato de salto alto e, olhando sério para mim, inclusive usando óculos de executiva, roçava seus pés por debaixo de minha calça social. Eu, claro, também me mantinha sério. Porque esta era a fase do jogo: a fase do sério. E quem titubeasse primeiro ou desviasse o olhar perdia pontos. Ela não se deu por vencida vendo minha frieza construída e começou a acariciar meu pau com seus pés. Eu pensava em coisas horríveis, como as pessoas passando fome no Sudão, para que ele não endurecesse de forma alguma. Vendo que não dera resultado, ela começou a reclamar do calor. E apagou as luzes. Perguntei como iríamos trabalhar assim. Ela disse que não estávamos anotando nada, que poderíamos continuar falando, pois a escuridão não nos deixaria surdos. Eu concordei. Queria ver qual seria seu próximo passo. Ele foi bem direto. Ela se sentou no meu colo, ajustando bem sua bunda no meu pau. Nesta hora eu notei que ela havia ou tirado sua saia ou a erguido acima da cintura, pois não senti mesmo nenhum tecido ali. Começou a falar com sua voz sussurrada em coisas como commodities, juros de mora, riscos, capital a ser investido, preços de gráfica para todo o material impresso a ser produzido. E tudo isso passando suas mãos em meu peito, já sem a cobertura segura dos botões da camisa, que ela fez questão de abrir, usando novamente o calor como argumento. Eu não tive outra saída. No dia seguinte, arrumaria outra sócia.


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5 de janeiro de 2000 Estou fumando um beck no quarto, numa boa, enquanto mais um telefone toca e o canal pornô na tv digital me avisa que hoje em dia o que vale é a lei do sexo. Coisa que eu descobri já faz uns 14 anos, indo pra quinze, o que então quer dizer que preciso dar um baile de debutante pro meu pinto. Estou vendo mais um filme da Sylvia Saint e me pergunto se não cansa fazer isso sem tesão algum. Há muito pouco tempo vi algo assim num daqueles programas vespertinos de tv aberta, com uma gorda apresentando casos bizarros e inventados em sua maioria, tenho certeza. O tema era: você cansou de fazer sexo: e agora? Agora, eu acho bom é darem um Viagra para estes rapazes e moçoilas. Ou ainda, o que sempre achei melhor, um Fosfosol. Também existia o Memorex, mas infelizmente era uma marca de disquetes, e não de remédios, portanto impossível para curar esses males cerebrais. A não ser que na época existisse um plug neural. Como existem apenas 5 protótipos hoje em dia, três deles em estações secretas na Antártida, então se torna impraticável pensar nisso. Mais ainda com a Sonia ao meu lado. Assim mesmo, sem acento. Tudo bem, desde que eu fosse o seu assento. Ela sempre me procura para falar de flores, comprar bobagens nos lugares 24 horas da cidade, transar e comer comida natural. Ah, e claro, fumar um, que é o que fazemos agora, depois e antes de transarmos. É um ciclo mais do que vicioso. Já é viciado. Mas é só maconha e haxixe, nada mais pesado. Se fosse, com certeza amassaria nossos cérebros e, daí, não haveria Fosfosol que resistisse. E talvez daí fôssemos para a televisão dos pobres expor nossas mazelas a milhões de mal-amados do Brasil. Que rima com fuzil e com canil, mas não combina com raio de sol. A vantagem de se ter esse tipo de transa sem compromisso é que a gente sempre espera que ele aconteça quando menos se espera. Porque senão se espera e, se acontecer, se rotiniza. Definitivamente, andar em círculos com minha vida é uma coisa difícil e de pouca astúcia. Que rima com a pelúcia da bolsa escolar de ursinho que ela sempre traz consigo. Dentro da bolsa tem de tudo: caderno, livro, régua, lápis, compasso, k-y, lerin, camisinha pra mim, camisão e


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calça pra ela, uns docinhos pra larica, uma agenda que é o segredo dela. A Sonia diz que se a agenda for aberta por mais de 5 segundos por dedos sem suas impressões digitais, o invasor será transformado pelo resto do dia naquilo que ele mais desejasse. Achei extremamente estranho, e confesso que, além de ficar intrigado com a agenda (sempre fico), agora eu também estava curioso para saber que julgamento o dispositivo de segurança faria de minha pessoa se eu tentasse invadir os segredos de sua dona. Foi por isso que, assim que ela dormiu, armei o estratagema: peguei um plástico fino na cozinha e polvilhei com farinha e um pouco de pó umectante. Um rapaz amigo meu disse que era o que bastava para capturar as digitais de alguém se a mão estivesse oleosa o suficiente. Ou eu vi em algum desses seriados de espionagem fuleiros de hoje em dia? Coloquei sobre suas mãos delicadas e, com um sopro, tirei o resto do pó. E ali estavam, de maneira brilhante, as digitais dos seus cinco dedos. A seguir, embrulhei o plástico em minha mão com todo o cuidado. Assim, a agenda reconheceria uma mão com as digitais corretas abrindo o volume. Foi assim que eu agi. Abri aleatoriamente em uma página meio central. Li um pouco a respeito de nossas transas, de como eu como sem jeito os sanduíches, da vez em que derrubei café frio em seu umbigo, da vez em que conseguimos ficar quatro dias trancados num quarto transando quase o tempo todo, o que nos levou obrigatoriamente a entrar um pouco mais em forma. Fiquei ao menos duas horas lendo, nem reparando que Sonia tinha acordado. Ela colocou suas mãos em minhas costas e me abraçou forte. Eu me virei e a beijei de um modo como nunca havia beijado ninguém. Ela sorria muito. Foi então que ela pegou na bolsa um pênis artificial de uns vinte centímetros, de uma fidelidade impressionante. Colocou em si, simulando um homem, como se coloca um cinto, e me abraçou. Foi quando senti uma sensação incrível de surpresa e alegria. Foi quando me olhei no grande espelho do quarto: eu havia me tornado Sonia também. Naquela noite eu tive mais dois orgasmos.


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17 de janeiro de 2000 Estava caminhando dentro do Trianon, como faço muitas vezes, quando um amigo distante de longa data veio me cumprimentar. Salve, amigo, há quanto tempo, como é que vai, blá blá blá, estou desempregado, blá blá blá... Chegou um momento (neste papo breve que nunca pode demorar mais do que cinco minutos, senão de distante o amigo fica próximo e isso a Polícia do Pensamento não pode permitir) em que ele me perguntou como estava x, sendo x o nome de uma garota que só vi uma vez na minha vida toda, uns dois anos depois que parei de conversar diariamente com este amigo que encontrei. Eu achei muito esquisito e falei que não a via desde 1997. O cara deu três passos para trás e perguntou se eu estava tirando uma com a cara dele. Disse que era sério, que não a via desde que a conheci e que estranhei que ele a conhecesse. Chegou perto de mim novamente e perguntou se eu estava bem. Disse que estava, estava muito bem e que ele que devia estar viajando com o haxixe que fumava regularmente desde 94. Deu-me um soco na cara, me chamou de canalha por eu falar assim tanto dele quanto de uma mulher maravilhosa. Fiquei espantado: será que ele tinha tido alguma coisa com a Gisele? (Sim, vamos dar nome aos bois — ou às vacas, neste caso.) Eu não sou de julgar ninguém, não, não me entenda mal. A Gisele deu pra metade dos homens do curso de Arquitetura. Sim, fui veterano dela e ela me assediou pra cacete naquela festa na República do Sapato Velho. Mas a verdade é que eu já fui diferente (leia-se fiel) e naquela época não trairia por nada. Nem por decreto-lei. Olha que a Gisele conseguiu se trancar num quarto comigo, tirando suas roupas e tentando me seduzir tão bem que eu mereço um Oscar pela minha atuação como “o homem que não se sente atraído pela mulher mais tesuda da faculdade”. A verdade é que ela trancou matrícula um mês depois e nunca mais a vi mesmo. Deixei pra lá, resolvi andar mais um pouco, comer um lanche qualquer sem vegetais e tomar um refrigerante. Tranquilo, voltei para casa umas duas da tarde. Entrei, fechei a porta, liguei o computador do estúdio e coloquei um disco do Bach na minha vitrola. Não estava


dante ieltsin tem 39 anos, estudou jornalismo na FAAP, rodou o mundo em busca de literatura questionável e reside em São Paulo. A internet abriga os esqueletos de seu blog de crítica literária: criticaria.blogspot.com

a fim de nada de música eletrônica fazia uns dias já. Fui tomar um banho frio. Mas quando entrei no chuveiro, quem estava lá? Bom, já que está óbvio que era a Gisele, não preciso então contar da minha sensação de oh! Estava linda demais, aqueles peitos ensaboados, cabelo curtinho, uns quilos mais magra, corpo (ainda mais) perfeito. A minha carne costuma ser muito fraca quando estou solteiro. Comi ela ali mesmo, depois na cozinha, depois na cama, e ela me chamando de louco, de doido, rindo muito, dando numa variação de posições muito bem selecionadas. Até que ela falou pra pararmos porque o Carlinhos podia chegar a qualquer mome – Papai? Mamãe? !!!!!!!!!!!!!!!!!! Filho!?!??! Peguei a primeira roupa que vi na frente, atropelei o moleque e caí fora da casa! Descalço mesmo. Só peguei minha carteira, porque sem ela eu não vivo. O que estava acontecendo? E a y (dessa não digo o nome nem a pau), a garota por quem eu sou realmente louco? Fui correndo ligar pra ela. A mãe atende, pergunta se sou o Alexandre, digo que não, sou o Dante, ela está? Quem é você?, a mãe diz. Não lembra de mim? Olha, ela está aqui ocupada esperando o noivo, você quer deixar recado? Nem preciso dizer que isto era um daqueles pesadelos doidos que a gente tem quando tá sem nada para fazer e acaba dormindo sem escovar os dentes do café-da-manhã. Fui salvo por um telefonema de y (não insista), perguntando se eu queria ir ao teatro à noite. Disse que sim, claro que sim! Combinamos às oito na casa dela. Quando apareci, ela estava linda, toda de branco e preto combinando tudo, me esperando, a mãe tinha saído, que bom. Chegamos rapidamente ao teatro e ela quis que eu fosse acompanhá-la aos bastidores. Para desejar merda para os atores. Topei, claro. Por que não? A dado momento, nos camarins, uma garota tapou meus olhos com as mãos. Adivinha quem é? Nisso, y disse: – Eu não disse que trazia ele de volta, Gi? Agora vocês me dão licença, que eu e o Júnior vamos sair. E y me deu um beijo gostoso na boca, saiu toda rebolante pelos corredores do Municipal e trancou a porta da prisão, levando a chave.


homenagem a carlos franzino flávio vm costa

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Com policiais militares, traficantes, gente correndo de um tiroteio num buraco do Nordeste de Amaralina, arranjavase uma bala perdida e o problema estaria resolvido; ou um branco imbecil de classe média a dirigir bêbado pela orla; quem sabe um garoto de programa forte e humilhado, acossado pelo nojo de si mesmo, com uma faca de serra nas mãos em um hotel encardido no Dois de Julho; talvez um corno ultrajado, uma namorada ciumenta, uma briga entre vizinhos a ser apartada; seria bem alentador se o corpo de Carlos Franzino fosse colocado num dos cenários rotineiros da chamada “guerrilha urbana que arrasa Salvador nos últimos anos”. Abriríamos a boca para lamentar mais um homicídio de um jovem preto inocente (ou afrodescendente, se esta expressão te faz bem), para camuflar bocejos, por meio de expressões como apartheid social, limpeza étnica, escalada da violência, decadência soteropolitana; refugiar-nos-íamos na sabedoria do candomblé, estenderíamos as mãos na direção do pouco de catolicismo que nos resta, com ditos vagos sobre Deus; e vilipendiaríamos essa cidade caricata. Excelente seria vê-lo como mártir de uma conspiração de empresários e políticos para transformar de um pedaço de Mata Atlântica em um condomínio de apartamentos de cozinhas e quartos de empregadas estreitos, assolado por barbeiros nas imediações da Paralela. Reconfortante


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seria vê-lo esmagado em Mussurunga, embaixo das rodas de um ônibus, dirigido por um motorista acossado pelas horas insones. Em uma quarta-feira Carlos Franzino deveria encontrar-me no Cravinho, por volta das sete horas da noite. Dividiríamos umas moelas com farofa, e sorveríamos umas doses de jatobá, e mais duas garrafas de cerveja. Talvez me contasse alguma anedota nova, a última trepada, a descoberta de uma roda de samba, antes da invasão dos gafanhotos alternativos. Mais uma vez, recordaríamos velhas histórias da adolescência, em que atos covardes se metamorfoseiam em proezas, a exemplo da vez em que tomamos uma carreira da turma do fim de linha. Como se fôssemos dois velhos alquebrados e dipsomaníacos, a expelir bafios de memória citadina, divagaríamos sobre uma Salvador que a gente não conheceu, que nunca existiu. Dissecaríamos a difícil situação conjugal de algum amigo. A mim caberia ainda louvar a sorte de ter conquistado minha mulher; lamentar estar casado com ela. Com certeza, eu diria: “o amigo conhece a história da padaria do meu avô?”, e inventaríamos histórias sobre o velho Aprígio. Carlos Franzino comeu uma moqueca de fato, logo no início da manhã de domingo, na casa do pai no Retiro. O pai me contou, dias depois, que conversaram sobre coisas bestas; algum perrengue de menor monta no trabalho dele; um parceiro do velho ausente no buraco domingueiro; o filho do dono do mercadinho a transitar numa moto invocada e histérica. Depois, ele foi visto no baba da Duarte Coelho, disputado pouco antes do meio-dia no Centro Social Urbano de Pernambués. Fez algumas piadas, marcou dois gols, xingou a mãe de um, pagou duas cervejas. Um antigo caso, Sandra disse-me que ele inventou de almoçar pelos lados do Dique, e logo depois, acompanharam um modorrento jogo do campeonato baiano. Dormiram na casa dela, na avenida Joana Angélica; ele foi muito carinhoso, solícito, vibrante, e, por fim, nada mais que distraído. Saiu de lá direto ao Porto da Barra, onde foi visto nadando, segundo dois vendedores de água de coco - a única informação útil que a polícia nos trouxe. Trabalhou na segunda-feira na concessionária da Vasco da Gama; nada de especial foi relatado pelos colegas ou pelo chefe. Foi visto entrando em casa no Engenho


Velho de Brotas, por volta das sete da noite. Cumprimentou educadamente os vizinhos. Foi visto na primeira missa na Igreja do Bonfim, na terça-feira pela manhã. Trabalhou na concessionária da Vasco da Gama; nada de especial foi relatado pelos colegas ou pelo chefe. Dormiu na casa de Marina, onde ele foi muito carinhoso, solícito, vibrante e, por fim, nada mais que apressado. De manhã foi visto na Feira de São Joaquim. Comprou algumas frutas, comeu mocotó. Trabalhou na quarta-feira na concessionária da Vasco da Gama; nada de especial foi relatado pelos colegas ou pelo chefe. Despediu-se por volta das seis horas. Andei com Carlos em muitas bocadas de Salvador. Apostávamos, às vezes, no Terreiro de Jesus, quem beijaria mais mulheres numa noite; eu perdia invariavelmente. Sabíamos que há lugares na cidade em que a escuridão domina mesmo sob o sol de janeiro; igrejas abandonadas onde o diabo dormita; encruzilhadas em que cabeças de bode apontam o caminho correto; bregas em que meninos e meninas são degustados apenas por uma noite. Sabíamos que uma criança nessa cidade pode ser vista andando tranquilamente na escalavrada rua direta de São Caetano, por volta das três horas da tarde, tropicar e sumir aos olhos de todos no segundo seguinte. Esses “mistérios” fazem a fama de Salvador. Gostamos de repeti-los quando estamos entediados no interior. Lugares onde afirmam o terem visto, após as seis horas daquela quarta-feira: em uma reunião evangélica em Paripe, em um terreiro de Itapuã, numa cerimônia de arrasta e quebra copos na Barra, escornado num puteiro no iapi. No final restam apenas nomes de bairro. Há quem veja um vulgar roteiro de despedida; os mais argutos constatam apenas a marca insossa da rotina. A casa dele permanece fechada, o pai continua a jogar seu baralho domingueiro. Marina está casada. Eu cheguei a me deitar com Sandra. Uma cicatriz acima da sobrancelha esquerda é o único legado da nossa amizade.

flávio vm costa publica contos no blog contosemchamas.blogspot.com


picolé de limão gustavo carneiro

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– Vâmo, mãe? – Só um minutinho, filha. – É que já tá em cima da hora... A mãe arrumava as coisas na cozinha enquanto Susana esperava sentada à mesa. A sua frente estavam a salada, a farofa e o arroz. No canto tinha uma garrafa de Coca-Cola. – E aí? Cadê a comida? – o irmão se acomodava à mesa sem tirar os olhos do celular. – A mãe tá trazendo. Tá enrolada com o frango. – Porra, frango? Achei que ia ser peru esse ano. – Ah, Bruno, somos só nós três. Vâmo comprar um peru inteirinho pra três pessoas? – Acho o fim Natal sem peru, sem árvore. – Tu é muito crítico, isso sim. Tu sabe o quanto que a mãe se esforça pra agradar a gente. Pra ti, especialmente. Bruno levantou os olhos do celular pela primeira vez. – Nem inventa, Susana. Eu tô falando de comida e de árvore e tu começa com esse papo de culpa aí. Susana suspirou, mas não disse nada. – E nem tô com fome ainda. Nunca vi comer tão cedo assim. Vou ver se passo na casa do pai mais tarde. Quem sabe lá posso participar de uma ceia decente. – Faz o que tu quiser. Só vê se não fala isso pra mãe. – E tu quer que eu minta pra velha no Natal? – Pelo menos tenta não comentar nada durante a ceia.


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– Comentar o quê? – perguntou a mãe, com o frango assado nas mãos protegidas pelos panos de pratos coloridos – Afasta, vai, que tá quente. Coloca o arroz mais pro lado, guri. Vai, que tá quente! – Hum... Tá com uma cara boa, mãe! – Susana ajudava a ajeitar os pratos na mesa apertada. – O quê que tu quer contar pra mim, guri? – Nada não – Bruno voltou a olhar pro celular. – Fala, filho, tem problema não. – É que eu queria dar uma passada no pai. Ver como que ele tá... Pensei que não ia ter problema, já que a gente tá comendo às cinco e meia da tarde, né? –  Não reclama do horário. Tu sabe que a gente só tá fazendo isso por que tua irmã tem plantão hoje. Quanto ao teu pai, faz o que tu quiser. Não te preocupa comigo que eu me viro aqui em casa. – Tá – Bruno sorria e digitava algo no celular. – Vamos comer? Larga esse celular, guri. Pelo menos hoje vamos passar um pouco de tempo sem essa coisa. Susana, pode ir servindo, vai. Susana era expectadora da ceia e dos dois. Ela se serviu. A mãe e o irmão se serviram. Conversaram pouco, forçando uma interação que faltava no dia-a-dia. Era Natal e eles cumpriam a obrigação de estar ali juntos. – Passa mais arroz, mãe? – Aqui. Uma hora depois, Susana já estava de jaleco branco, caminhando pelo corredor do “portal”. Era assim que chamava o hospital em que trabalhava, o lugar onde iam os doentes terminais de câncer para receber tratamento paliativo. Susana sabia que seu trabalho era cuidar dos pacientes, para uma transição calma e sem sofrimento. Aquela era a primeira vez que ela passava o Natal de plantão. Seria uma longa noite, das sete às sete. – Oi, Jaque, como tá tudo? – Oi, Susana. Tudo normal sim. E você? – Tudo certinho. –  O que cê trouxe pra nossa ceia? – Ah, só um pavêzinho pra gente. E tu? –  Fiz um arroz de forno. Você acha que tá tudo bem?


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– Claro! Vai ser ótimo. – Espero... – Já fez ceia hoje, Jaque? – Nada, menina! Comi uma pizza congelada na quitinete mesmo... – Pizza, Jaque? Que deprê! – Era de peito de peru! Mas relaxa! Ontem que eu fiz a ceia com a família... Comi lá na casa da minha mãe. – Tri legal! Mas me fala, como é que tá aqui hoje? Muito cheio? – Quase 80% dos leitos. E já tá na hora das famílias saírem, mas eu não tive coragem de falar com elas. Natal, né? –  Então tu vai lá falar pra eles que acabou o horário de visita, que eu vou fazer a ronda já, já. Cadê a lista dos pacientes? –Aqui... – Jaqueline entregou as folhas de papel que estavam no canto da mesa de fórmica branca. Susana passou os olhos na lista. – Mas a dona Eunice já foi? Achei que ela ia demorar mais... – Foi quinta-feira. À noite. – E como foi? Quem tava com ela? – A Estela me disse que foi a filha mesmo. Que ela ficou bem calma... Chorou baixinho, mas não desesperou não. Susana manteve os olhos perdidos na lista. Finalmente rompeu o silêncio. – Vou ligar pra ela amanhã. Pra ver como ela tá e desejar um Feliz Natal –  Susana voltou os olhos pra lista – O Everton ainda tá aqui? – Uhum... Tá fraquinho já, mas continua. – Nossa... Em cinco anos de portal nunca tinha visto ninguém ficar tanto tempo. Susana continuou a ler os relatórios do plantão anterior enquanto Jaqueline foi avisar aos parentes que era hora de ir pra casa. De sua mesa, podia ver os diversos pais, irmãos e esposas indo para as suas casas. Resolveu esperar um pouco até que a movimentação diminuísse antes de começar a ronda. Começou às sete e três. Ia de quarto em quarto olhando os prontuários de cada paciente e se apresentando. – Olá, seu Eliseu, eu sou a Susana e acabei de chegar. Vou ficar aqui no hospital hoje e amanhã – tentava decifrar


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as letras dos médicos. Algumas palavras só e já sabia do que se tratava. Próstata. Metástase... – Como o senhor tá se sentindo? Comeu alguma coisa gostosa no Natal? – enquanto o paciente respondia ela ia fazendo um olhar de raio-x. Eles nem percebiam, mas ela via se o soro estava cheio, se algum remédio precisava ser trocado, como estava o travesseiro, o penico. Ela olhava até o acompanhante e tentava passar algum conforto com os olhos – Daqui a pouco eu volto, tá bom? Mas qualquer coisa, tu pode falar com a gente. Se eu não estiver na mesa, chama o Geraldo ou a Jaqueline, tá bom? E ela ia passando por todos. Se apresentando pela primeira vez a alguns. Revendo outros. Pensando como todos que estavam ali iam sair logo. Como nunca ninguém tinha saído pra voltar pra casa. Ou na verdade como todos que estavam ali só saíam quando voltavam pra casa. Os plantões de Susana sempre a faziam pensar. Uma vez por semana ela encarava a vida se encerrando. Claro que ela se apegava a alguns pacientes. E a cada plantão novo ela podia ver a diferença neles. Poucos aguentavam três plantões, mas nunca alguém tinha aguentado quatro. – Boa noite, dona Elisa. Como a senhora tá? – a senhora estava sentada ao lado do Everton, seu filho, que dormia. – Oi, Susana, como cê tá, minha filha? – Tô bem. E a senhora? – Tô levando... Cansada – deu um sorriso triste – Ele dormiu tem uns cinco minutos. Tinha perguntado docê. Susana não precisou ler o prontuário de Everton. Era a quarta semana dele no portal. Ela já conhecia ele e a família. Já conhecia o câncer colorretal e a metástase. Já conhecia a barriga, cada vez maior, e o rosto, cada vez mais magro. –- Como foi o Natal? – Ah, minha filha, foi triste, né? Vieram os amigos dele aqui. Veio a namorada. Mas não quiseram ficar muito tempo não. Ele tava dormindo muito. Ele só dorme agora. Susana percebeu que o soro estava quase no fim. – Ele tá reclamando de dor? – Não, não tá reclamando de nada... Susana olhou para o rapaz de vinte e dois anos. Ele era mais novo que ela.


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– Ele só tava pedindo picolé de limão... – Picolé de limão? – Susana sorriu enquanto trocava o soro – Capaz... – Foi. – Dona Elisa riu um pouco – Ele pediu pra ceia. A gente fez uma ceia pequenininha aqui e ele... Ele nem deu importância. Tava sem fome. Só queria saber de picolé de limão. – E vocês deram? – Era isso que eu queria perguntar procê, o Ernesto foi buscar e ainda não voltou. Mesmo sendo de noite, será que ele pode entrar? Queria dar o picolé pro Everton... Eu não sei se amanhã... – Tu pode ficar tranquila, dona Elisa. Vou deixar avisado pro porteiro deixar o seu Ernesto entrar. – Ela olhou para o rapaz mais uma vez – Qualquer horário que ele chegar. Susana escrevia no prontuário e checava a morfina. Percebeu que dona Elisa sorria para ela. – Trouxe uma coisinha procê, Susa. – Um presente? Bah! – É só uma lembrancinha. Pra agradecer o cuidado. – Não sei nem o que dizer. Muito, muito obrigada! – É que ocê tá sempre aqui pra ajudar nós... Sempre dando uma palavra de conforto. Susana se aproximou da senhora. Em alguns instantes as duas estavam se abraçando. Dona Elisa era pequena e se encaixava embaixo dos braços dela. Logo depois vieram as lágrimas. Eram tímidas dos dois lados. É que ambas já tinham derramado lágrimas ali. – Muito obrigada mesmo, dona Elisa. Feliz Natal pra senhora. – Feliz Natal também, minha filha. Susana continuou a ronda. Alguns pacientes com acompanhantes e outros sem ninguém. Depois, voltou para sua mesa. Ela tinha duas horas para preencher uma papelada, terminar de fazer uns relatórios para os dois pacientes que tinham chegado naquela noite, verificar como estavam os depósitos e ainda repassar com a equipe a situação de alguns pacientes. No fundo, era um dia de trabalho como outro qualquer. Mais um dia de trabalho que, de especial, só tinha o refrigerante, o arroz de forno e o pavê. Tinha


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também a caixinha que ela tinha ganhado da dona Elisa. Susana olhou para a papelada, mas decidiu que poderia perder alguns segundos para ver qual era o presente. Ao abrir viu um papelzinho e uma medalhinha de uma santa. Era a Nossa Senhora Desatadora de Nós. Susana sorriu. Nunca tinha sido religiosa e muito menos católica. “Virgem Maria, Mãe do belo amor” leu Susana. Ela pensava na dona Elisa enquanto lia aquelas linhas. “Mãe que jamais deixa de vir em socorro a um filho aflito.” Pensou nas centenas de mães que já tinha visto por aquele corredor. “Mãe cujas mãos não param nunca de servir seus amados filhos” Pensou em sua mãe servindo a ceia. Ela devia estar em casa agora. Sozinha. É. Eram todas santas. Santas, cujas mãos não paravam nunca de cuidar de seus amados filhos. Susana suspirou e voltou para os relatórios. – Susa, tem alguém na portaria querendo entrar – a voz de Jaqueline quebrou a atenção de Susana. Ela estava encostada no batente da porta – Disse que você tava sabendo... – Ah sim. Deve ser o seu Ernesto! Eu me esqueci de avisar! Susana foi para a portaria para acompanhar seu Ernesto até o filho. Ele carregava um pequeno isopor. – Picolé de limão? – perguntou Susana. – Peguei todos que eles tinham... Acho que tem uns vinte aqui. Eles sorriram e não falaram muito mais até chegarem na cama do Everton, para encontrar a dona Elisa sentada na ponta da cadeira, próxima ao filho. – Que bom que cês tão aqui. Não queria tá sozinha. Tô achando que é agora. Nem Susana nem seu Ernesto falaram nada. Apenas foram para mais perto de Everton. Ele estava respirando muito devagar. – Será que ele acorda, Susana? – Eu não sei, seu Ernesto. Vamos ver. Susana encostou no ombro de Everton, que estava um pouco frio. – Deixa eu dar a volta pra ficar desse lado, dona Elisa. Susana se posicionou em frente a Everton e o chamou. Pegou seu pulso, estava bem fraco. Ela não tinha certeza se


ele ia conseguir acordar. Chamou algumas vezes e sentiu a pulsação aumentar um pouco. Ele abriu os olhos. – Tem picolé pra ti. De limão. – disse Susana – Teu pai que trouxe. – Aqui, meu filho. Pode comer o quanto quiser – o pai levantou o isopor. Everton sorriu. O sorriso dele ainda era bonito. Apesar de o rosto estar cavado, sem as feições que Susana tinha visto quando ele tinha chegado, o sorriso continuava lá. – Quer sentar, Everton? Me ajuda, seu Ernesto? Pega aquele travesseiro ali, faz favor. Colocaram Everton sentado. – Pode dar o quanto ele quiser, que hoje é Natal. Eu não vou contar pra ninguém. – E piscou pro pai dele – Agora deixa eu ir, que tenho umas coisas pra fazer. Qualquer coisa me chama, viu? Susana foi se afastando, mas depois de uns dois passos parou e se virou. – Que bom que tu acordou, Everton. Feliz Natal – e sorriu pra ele. Ele não falou nada, mas sorriu de volta.

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Everton olhava para os pais e tomava os picolés de limão. Foram sete picolés, um atrás do outro. Até que o sono foi mais forte. Antes de fechar os olhos, ele estendeu a mão pra mãe, que segurou. A fria e pequena mão de seu filho. E ele ficou parado. Assim como ficaram parados dona Elisa e seu Ernesto por uns dez minutos. Parece que eles sentiam que no instante em que alguém abrisse a boca, no instante em que alguém perdesse o jogo de ficar em silêncio, aquilo se tornaria realidade. Dona Elisa esperava isso há três anos. Era o que ela temia mais que tudo. O instante em que sentiria que seu filho teria que partir antes dela. Agora ele tinha finalmente chegado. O momento mais dolorido de sua existência. Mais silencioso, mais isolado, mais pontual. Para ela, perceber que o filho estava cada vez mais frio era como o ar que encontra resistência na fina e frágil camada de água com sabão e forma uma bolha que vai crescendo. Finalmente ela cresce tanto que se desprende, vira uma bola e flutua no ar. Bela


e efêmera. Qualquer pequeno movimento poderia estourar a bolha e libertar o ar. Fazer com que o tempo continuasse. Fazer com que a morte do filho se tornasse realidade. Sua pequena bolha se rompeu com o choro de seu marido. Agora ela estava de volta. – Eu vou chamar a Susana pra ver se... Ele não conseguiu terminar. Dona Elisa ficou ali por alguns minutos a sós com o filho gelado.

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Susana chegou para conferir os sinais vitais de Everton. Ela abraçou seu Ernesto e dona Elisa. Escutou como Everton tinha sido um ótimo filho e como tinha lutado como um guerreiro nesses últimos anos. Como todos tinham aprendido com ele e como nunca seria esquecido. Nunca. Todos esses momentos eram tanto idênticos quanto únicos. As cenas se repetiam, mas nunca eram as mesmas. Susana aprendeu que não havia certo nem errado ali. Alguns se desesperavam e outros ficavam calados. Uns pensavam que tinha ido muito cedo e outros diziam que foi um descanso. Uns tinham toda a família em volta e outros estavam sozinhos. Susana chamou Jaqueline e pediu para ela arrumar Everton enquanto ela acompanhava o casal para a sala da despedida. – A gente traz o Everton daqui a pouco pra vocês ficarem a sós, tudo bem? Cerca de vinte minutos depois tinham trazido o filho em lençóis brancos para os pais. Deram toda assistência sobre quais papéis eles precisavam, mas todos ali já estavam preparados para isso. Funerária, caixão, tudo isso já tinha sido resolvido antes. Quando era nove e meia, seu Ernesto e dona Elisa estavam indo embora, levando o filho pra ser velado. – Passa lá de manhã, Susana? O Everton ia gostar que cê fosse. – Passo sim, dona Elisa. – Fica com os picolés que sobraram, Susa. Dá pro pessoal aí, quem quiser. Acho que tão no isoporzinho lá perto da cama dele... Ela apenas sorriu e agradeceu. Por volta das onze horas Susana foi com a equipe para a copa. A ceia tinha arroz de forno, Coca-Cola, pavê e alguns picolés de limão.


– Feliz Natal! – disse alguém. – Feliz Natal! – respondeu outro. – Vamos fazer o amigo-oculto logo? – Ai, eu to com fome, gente! E esse arroz tá com um cheiro... – Susana passava os pratos de plástico pra cada um. – É arroz de forno, mas coloquei o peru que minha mãe preparou pra nossa ceia de ontem! Tá uma delícia! – Jaqueline servia a Coca-Cola pros colegas. E enquanto todos conversavam e se serviam, Susana parou um pouco e olhou para a pequena ceia e para os colegas. Era simples, mas verdadeiro. Ela gostou do que viu.

gustavo carneiro nasceu em Brasília em 1986. É advogado de formação e viveu em Berlim por dois anos, onde fez mestrado. Ama cheiro de terra molhada e de roupa de cama nova, mas não gosta de spoilers, nem de morder a semente da uva. Mantém o blog gustavofsc.blogspot.de


nada é artificial henrique marson

Por isso é todo contínuo: pois ente a ente acerca. Parmênides

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A água, ali, envolvida por um arquipélago, é calma. As ondas mitigadas pela paisagem de relevos abundantes criam um balneário perfeito. O mar se contenta em tremeluzir sob as vistas dos banhistas; não se sabe ao certo se o que olham é água ou luz, pois, ali, a luz é como a água e o sol é como o mar. No entanto, o objetivo aqui é outro. O acidente geográfico, 1379 metros de altitude. No início da subida, ele vê o pico ainda distante, coberto com uma manta verde e encimado por uma bruma espessa. Anda pelo chão com paralelepípedos que mostra uma cobra mutilada, apenas meio corpo em ziguezague. A vegetação começa amena, uma planta que não é nativa, alta até a cintura, quase esconde o caminho. Avançando pela trilha, a mata se adensa, mais alguns passos e não consegue ver o céu, o caminho é íngreme e exige força. Alguns quilômetros de subida, o rosto está suando, os quadríceps se ressaltam, a panturrilha arde, e o trajeto é cada vez mais inclinado, há literalmente degraus, os passos soam abafados no tapete de folhas, o chão úmido dificulta a aderência, escorrega, mas segura num galho e evita o chão. À frente um trecho de barro, consistente quase como argila, faz os sulcos de sua bota erguerem relevos precisos do solado: seu rastro. Começa a chover, as gotas são aparadas pela copa das árvores, que se mexem com o vento: o ressonar da água


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nas folhas é uníssono. Ele pensa em voltar. Vê uma placa indicando a altitude de 700 metros, já foi metade da trilha, decide continuar. A dor dos músculos não é mais notada, sua roupa está empapada de suor e água, a chuva agora é um temporal, ele decide acelerar a caminhada, força as pernas, que parecem ter o dobro do peso, bate os dentes, o vento combinado à chuva gela seu corpo até os ossos. 1048 metros. Continua. Segura-se nas raízes, as mãos sujas de barro, vê o flash do raio e estremece com o estrondo, afasta da mente o cansaço, se concentra em respirar e subir, a inclinação é aguda, ele sobe engatinhando. Subiu. Ele se deita sobre uma pedra, estafado, a respiração é difícil, sente o coração batendo rápido, a cabeça está doendo e suas têmporas latejam, ele vomita. A chuva acabou. Caem apenas alguns respingos que as frondes mantêm. Levanta, ainda ofegando, vê a paisagem mais de perto, percebe os diferentes matizes de verde: a vegetação antes como indistinta, agora é discernida por ele. Sua visão, no entanto, não é plena: a névoa lambe as adjacências. Olha ao redor, a nesga de mar vista de cima é como uma lâmina de luz. Ele abre a bolsa, tenta comer uma banana, mas não consegue, uma ânsia de vômito o faz cuspir uma saliva grossa: um fio se estica de sua garganta até o chão. Ela procura a garrafa d’água. Não tem água. Ele pega a garrafa e não consegue lembrar quando que ficou vazia. Podia ter aproveitado a chuva. Há uma poça, ele fica de cócoras. A água é limpa. Parece um espelho incrustrado na rocha. Ele se curva para pegar o líquido, se desequilibra e com os dois braços evita cair na poça, então, suspenso sobre a água, vê o reflexo: seu rosto. Percebe que no reflexo de seu olho ele está refletido novamente. Olha seu próprio olho. Olho no olho. Em seu olho vê novamente o próprio olho, olhando no olho de seu próprio olho vê o olho; abismoso, seu olho olha o próprio olho que sempre contém seu olho... Uma mosca pousa sobre seu globo ocular, sente imediatamente as patas tocarem-lhe, mas não pisca, após alguns segundos ela levanta voo. O olho direito coça e dói, ele esfrega com os dedos, procura no reflexo o que incomoda, o branco do


olho está todo vermelho, vê um verme sair dele, mais dois aparecem com seus corpos sanfonados e com pequeninos espinhos pretos, exponencialmente os vermes surgem: o olho, povoado de larvas, é como a cabeça de uma górgona. Ele puxa os bernes, tão logo um é retirado, outro surge imediatamente; vários são esmagados e seu rosto está sujo, os bernes caem na água, sua imagem se imiscui a eles, então, ele vê, do cerne de seu olho, que os invertebrados que estão lá não diferem dele: no interior de cada célula, existe uma espécie de código em dupla hélice, cada caractere é o mesmo que o seu. Idênticos. Ele e os vermes se entrelaçam na mesma linguagem de carbono, nitrogênio, açúcar e fosfato. São como dois livros diferentes, porém escritos sob o mesmo panteão de possibilidades das 26 letras. Tudo é a mesma coisa. Não se incomoda mais com os bernes, eles são o que ele é. Numa comunhão de ser, os vermes roem a carne, a putrefação acontece e enseja o nascimento de flores cujo perfume oculta a origem deletéria.

henrique marson é professor de filosofia em São Paulo (SP).


vida noturna jd lucas

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Acendo um cigarro molhado de chuva, aliso no bolso o vazio da calça de brim. Guarda chuva crepitando, alguém pede fogo: é um dos nossos. Da parede, Jesus Cristo vigia os homens com seus pigarros, histórias e perdigotos. Penetro o umbral da fumaça azul dos cigarros que vai dançar em volta da luz. Eu sou o João na mesa do fundo. Uísque ao garçom, o copo robusto desenha um círculo úmido na mesa. Adiante, irrompe a risada generosa do homem gordo ao balcão — a atmosfera cinza do lugar é entrecortada por um instante, mas logo tudo volta ao normal, e o normal é o de sempre: alguém apoiado à cadeira. – É você o João? Desconfiado parece. Cumprimenta com leve aceno de cabeça antes de se sentar. Lenço desbotado enxugando a testa, uma gota escapa incólume (suor ou água da chuva?). Grisalho, se apresenta em barbas feitas e blusa de propaganda. Pede conhaque e pra mim, nada? O copo não chega a marcar um círculo. Tenta o trivial, e eu, monossílabo, nem que sim nem que não. Oferece fumo de filtro amarelo, risca o fósforo, trêmulo, a mão protegendo o fogo frágil na cabeça do palito, mais uma vez se sou João. Eu sou o último trago no copo de uísque.


Gelo derretendo, pergunta se no meu ou no seu. Apartamento pequeno, lembra um esconderijo. Duas manchas de infiltração, o gotejo único explode no tapete gasto. Frio lagarto branco espreitando sua presa: é o olhar da lagartixa que atrai a mosca. –  Sente-se aí. Some por detrás da parede pintada sem arte, ressurge em meia garrafa de uísque, desculpa-se pela falta do gelo. Na beira da cama, a mão toca a perna por cima da calça, desliza pela coxa hesitante, desiste e vai ao peito. Adivinha uma letra no pingente de prata, detém-se tátil na cicatriz... Beija leve, quase não tocando o rosto – o lábio é um fino risco acima do queixo – percorre o ventre sem pelos e morre na cintura. Língua áspera de gato, enche a mão com o volume da calça – a outra segura inutilmente o copo vazio. A televisão ligada por ninguém, outro gotejo no tapete encharcado, saliva contaminada pelo sal da lágrima (minha ou dele?); dedos brincam na virilha, ganham coragem para massagear a pele quente e, súbito, a boca no grande coração azul. Eu sou a chuva caindo lá fora. Dentes arranham a lança vibrante de Heitor – flecha de Páris ou tendão de Aquiles? Eu sou a miséria da mosca. Nu, quer que acaricie o rosto; ventre flácido, umbigo cavernoso. Põe-se de lado, a cabeça repousando sobre o antebraço, é a vez do João: O Incrível Dedo-Sem-Unha na gruta movediça. Despede-se da porta, um recado importante: – Se me vir na rua... mulher e filhos, se é que pode entender... Nenhum aceno escada abaixo. Água fina em meu rosto, olhos embaçados, acendo um cigarro molhado de chuva, apalpo as notas no bolso da calça de brim. Eu sou a vida noturna do João. jd lucas é autor de José e da série Novelas Extraordinárias (Móbile Editorial), editor e pesquisador em Mitologia. Bloga em monomito.org


o elevador social jeovane cazer

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Oito horas de trabalho ordinário e quase três horas de engarrafamento depois, Pablo chegou no prédio onde mora e chamou o elevador social. Às vezes, o elevador estava vazio, e Pablo subia sozinho no silêncio até o 22º andar. Às vezes, tinha gente. Na maioria das vezes em que tinha gente, havia uma pessoa. Davam-se boa noite e, depois, cada um olhava pro seu canto. Pablo preferia assistir os números vermelhos dos andares mudarem no visor digital. Muitas vezes, as mulheres que entravam no elevador com ele também gostavam de olhar para o visor digital. Ele gostava da ideia de compartilhar com elas o olhar em direção ao visor. Era bom pensar que era um lance só entre ele e as mulheres. Havia um espelho; era uma opção olhar para o espelho, mas quase sempre o outro tinha a mesma ideia de olhar para o espelho, e iam acabar olhando um para o outro pelo espelho - nem pensar. Também havia o truque de mexer no celular pra não ter que olhar pra canto algum nem pra cara de ninguém. Quando havia duas pessoas dentro do elevador, geralmente era um casal. Pablo achava um saco quando começavam a conversar entre si como se ele não estivesse ali, sobre coisas comezinhas do dia a dia do casal, passando pela conta de luz que o outro não pagou, a gestos de amor - enfim sós, ele, o marido e a esposa entre quatro paredes.


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E quando o casal tinha uma criança, ela encarava Pablo como se nunca tivesse visto outro ser humano além dos pais; ele se sentia como um ET ou, quando a criança ria da cara dele, um palhaço, o que para Pablo era estranho e irônico, porque ele sempre achou palhaços figuras tristes. O pior era quando ele dizia ‘boa noite’ a alguém no elevador e a pessoa passava a contar toda a sua vida - a própria definição de um chato, pensava Pablo. Dessa vez, o elevador abriu e havia apenas uma mulher lá dentro. Era morena, aparentava ter entre 27 e 30 anos, tinha cabelos lisos que batiam nos ombros, castanhos claros e repartidos ao meio, olhos grandes e amendoados, a boca não era pequena nem grande, os lábios grossos e sem batom – estavam um pouco ressecados nos cantos. Vestia uma camisa de abotoar branca de algodão, com o primeiro botão aberto deixando aparecer o início do colo queimado de sol, e uma saia longa preta com bordados que descia um palmo abaixo dos joelhos. A mulher disse apenas o protocolar “boa noite” e ficou junto à porta, cabeça baixa, com uma sacola branca de tecido que segurava pela alça com as duas mãos, com esmalte preto, rente ao abdome. No braço esquerdo havia um relógio analógico de pulso azul e um ornamento com fio de embira amarrado três vezes ao redor do braço com nó bem feito. Quando a porta do elevador se fechou, Pablo notou que ela não apertara nenhum andar. Ele achou estranho, mas ficou quieto e abaixou a cabeça olhando para os pés da moça: ela calçava sandálias rasteiras de cor preta com tiras incrustadas de tachas metálicas em volta dos pés. Na lateral do pé havia a tatuagem de um ramo de flor que subia em formas curvilíneas um pouco acima do calcanhar até encontrar o desenho de uma borboleta na vertical, como se estivesse pairando no ar, com asas de escamas internas em azul celeste e as externas em preto intercalado com áreas sem tinta. Suspendeu os olhos e encontrou os olhos dela o espreitando. Então, com os olhos vidrados nele, a mulher se aproximou de Pablo, soltou a sacola no chão e o esbofeteou com a palma da mão bem aberta e estatelada na face esburacada


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de cicatrizes de espinhas e áspera de barba mal formada crescendo. Com o impacto, os óculos de armação retrô nerd de Pablo caíram no chão. Ele ficou atônito, sem reação. Em seguida, ela agarrou os cabelos ondulados, negros e oleosos de Pablo, puxando com toda força, enquanto ele se arqueava e gritava, paralisado pelas mãos femininas manufaturando a dor. Ele, que veio ao mundo pela dor, não segurou a estranha nem pediu que ela parasse. Pensou na agonia daqueles que arderam nas chamas da inquisição, e viu que a sua dor era fichinha perto disso – outro dia mesmo, experimentou a sensação de tocar, por acidente, a ponta do dedo numa panela ardente no fogão, e com certeza não suportaria aquele contato com o calor por mais de 1 segundo. Pensou no ritual de flagelo da crucificação dos romanos, e achou que sua aflição era nada em comparação. Na verdade, já agradecia àquela mulher por não ser queimado na fogueira nem estar pregado na cruz. Pablo apenas sentia a dor como algo que devesse experimentar, como uma revelação ou rito de passagem. Aquilo durou uns doze andares, até que ela largou o cabelo dele e o beijou. Forçou a boca contra a dele, abrindo espaço com a língua entre os lábios de Pablo, que cedeu finalmente ao toque úmido e quente da língua da desconhecida. O gosto agridoce da boca da estranha – mais cedo ela tinha comido chocolates e fumado cigarros – se misturou ao cheiro extenuante de hidratante corporal que exalava da pele da mulher. Sugavam a boca um do outro com pressa e perigo. Em seguida, ela afundou o nariz no pescoço dele, respirando o ar que pairava no vão entre suas narinas e os poros do pescoço branco e úmido de Pablo, passando os braços ao redor do abdômen dele e o apertando contra o corpo dela bem forte. Ela emitia um gemido de cólera enquanto enfiava as unhas na carne de Pablo sob blusa dele, como se quisesse arrancar suas costelas, uma resposta ou mesmo sangue. Pablo fazia um som surdo de dor e pensava naqueles que tombaram com grandeza nos campos de batalha sangrenta de Montese, na II Guerra Mundial, e no modo como eles enfrentaram a dor e a morte numa guerra que eles não provocaram. Contudo, entre a guerra e o tédio,


alguns preferem a primeira. Naquele momento, a coragem e a resignação de Pablo eram a mesma. Ele olhou os números dos andares passando: 19, 20, 21. Enfim, o visor mostrava o número 22 – o último andar. A porta se abriu. Pablo olhou para baixo e viu os pés de tamanho 37 dela numa sandália rasteira preta com tiras incrustadas de tachas metálicas. Tinham o formato romano, em que o primeiro e segundo dedos têm o mesmo comprimento e, a partir do terceiro prodactilo, o tamanho dos dedos vai diminuindo progressiva e harmoniosamente. As unhas estavam pintadas com esmalte Hits preto. Pablo levantou os olhos para a mulher, que estava junto à porta do elevador de cabeça baixa, com uma sacola de tecido branca que segurava pela alça com as duas mãos rente ao abdome. Pablo olhou para o visor digital que mostrava P em vermelho escuro. Baixou os olhos no painel de números dos andares e viu que as bordas dos botões 8 e 22 estavam fluorescentes em vermelho. A porta se fechou e subiram no silêncio. Pablo checou o celular, mesmo sem rede, com medo de encarar a estranha...

jeovane cazer é escritor e tradutor


cinco minutos mario filipe cavalcanti

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Os olhos. Sim, os olhos foram a primeira coisa que eu tinha visto. Estava um pouco afobada naquele dia. Dia de feira e eu nunca gostei de dias de feira. Quando era menorzinha e mainha fazia aquela questão de que a seguisse ao supermercado, ficava fula. Batia o pé, não queria nem gostava, mas mainha sempre foi daquele seu jeito irredutível, quase déspota russa – feliz somente por ser esclarecida, mas sem qualquer vontade de condescendência. Pensando bem por esses lados, acho que virei uma réplica de mainha. Mas o fato é que nunca gostei dos dias de feira. Ultimamente, já adulta, tinha três empregadas em casa, mas agora com a carga de direitos que elas têm não dá mais pra mantê-las todas e ainda atualizar meu closet. Resolvi eu mesma fazer esse trabalho que nunca considerei digno de mim. No entanto, o grande problema que tive não foi o de realizar essa tarefa comezinha. O grande trabalho que tive, e nem imagino como, foi ter descoberto essa face minha que nunca pensei que estivesse tão latente em mim. Uma face minha que nunca esteve no perfil do Facebook, nem nas selfies do Instagram. Essa face minha que agora penso e nem imaginava que um dia poderia pensar – coisas assim. Uma face que antes estava escondida por dentro da parte mais amorfa da máquina. Tinha abaixado a alça do carrinho de compras pra não ter que segurá-lo no elevador. Estava esbaforida somente com


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a ideia de ter de sair de casa para aquilo e não ter sequer uma filha para obrigar a me seguir para dar-me ao menos alguma decente companhia. A companhia de alguém que seria como que uma réplica minha. Isto é, uma companhia que me seria decente por ser minha. E pensando isso vi as portas do elevador se abrirem ao chegar à garagem. Inclineime para puxar a alça do carrinho e quando tornei a olhar foi que vi os olhos. Os olhos dele como os olhos de lince. Abertos e delgados, puxados e melados com um mel, um mel tão cor de mel que nunca dantes eu vira em vida, sem falar que lá em casa tudo é verde ou azul e isso tem um tempo que perde a graça. Aqueles olhos entraram e me deram bom dia. Não sei como respondi. Estava um tanto paralisada pelo encanto que tinham. Mas estava maquinalmente consciente. Sim, estava! Recompus-me e respondi de volta educadamente. Mas o tempo que passou entre respondê-lo e recompor-me foi o suficiente para a porta do elevador fechar e sentirmos o solavanco da máquina subindo lentamente. Fiquei contrariadíssima com aquilo e não sei como expressei, mas ele notou e perguntou se eu tinha perdido o andar. A voz aveludada. Sim, não sei fazer comparação mais racional. A voz dele era tão aveludada que me deu calafrios. Assim que ouvi a voz penetrando lentamente no mais profundo dos meus ouvidos internos, olhei para ele, mais precisamente para sua boca e o desenho desta era tão sensível e tão angelical que a visão de vê-lo falando tomou-me. Não sei por que, mas ao vê-lo falar, sua boca mexer e sua voz soar, ao mesmo tempo em que seus olhos se apertavam e suas mãos gesticulavam, eu parei no tempo. Senti no corpo todo um arrepio seguido de um desejo crescente, um desejo que me tomava toda num crescendo frenético. Meu Deus, eu não precisava daquilo. Eu não precisava de nada daquilo. Adulta, empresária, esposa, e ali no elevador como uma adolescente se sentindo atraída por um moleque de seus lá dezessete anos? Mas o tempo tem momentos fulcrais, como pontos cegos de sua existência. Nesses momentos a gente não pensa, sente. Eu sentia um universo de hormônios trepidarem em meu organismo vivo. Eu estava viva, era ali muito mais que uma máquina amorfa. Daí minha mente


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deu um salto. Um salto tão grande que eu poderia ter caído no infindo buraco do país das maravilhas. Eu era um ser que deitava num carpete de veludo púrpura e sentia na pele a excitação dos poros. Ele, sem nome, sem nada, como a máquina anônima, era o carpete. (– Cortem a cabeça dela! Não senti a lâmina afiada do carrasco de copas, mas sei que perdi a cabeça e a puta da rainha continuou seu miserável jogo de toque-emboque). Ele, com aquela voz poderosa, perguntou-me de novo se estava me sentindo bem. Acho que perguntou aquilo três vezes enquanto estava absorta em meu ensandecido momento de epifania. Respondi que sim, desajeitadamente como uma menina que somente agora chega à puberdade sem saber como, mas não sei o que tinha na minha voz. Minha voz estava sensual. Eu estava sensual. Louca varrida de vontade. Ele disse que desceria somente na cobertura e lá eram vinte e cinco andares e o elevador que, malgrado novo apresentava problemas, subia lentamente ainda o décimo. Não sei se era o elevador que ia lento ou se era o tempo que havia congelado. Não sei dizer. Mas não consegui mais vê-lo. E soltei a alça do carrinho numa atitude suspensa, com a boca entreaberta, como que à espera. Ele já tinha exercitado dessas coisas com suas colegas, certamente. Agora, não sei se para sua cabeça infantil eu seria um troféu a ser mostrado aos amigos, um troféu que causasse inveja, mas na hora eu só havia pensado que... Não havia. Ele me tomou de assalto com um abraço de apertados braços, trazendo pra junto de mim o corpo e eu senti... Senti-o todo, com as roupas e tudo. Estava rijo como o meu desejo. O elevador trepidava a aproximação do vigésimo andar e ele já percorria os montes dos meus seios com a firmeza de suas mãos de lavoura – não sei como adquirira aquele atributo de mão que só o povo do interior adquire, mas na hora era de nada que eu sabia, e apenas sentia o arrepio de uma mão percorrendo a minha pele. O mundo era uma mão que percorre a pele. Mais nada. A sedução de uma mão que percorre a pele. E foi aí que minha mente pediu o seu quarto, quarto de menino travesso com pôster da Angelina


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Jolie nua e com suas mamas rijas e artificiais. Minha pele pediu o seu quarto. Ele encostou a boca em meu ouvido e pediu-me no seu quarto. A voz dele toda aveludada e sensual, soando baixinho num sussurro quente que arrepiava os pequenos pelos de minha orelha, num quente sussurro como a brisa do mar... Eu queria. Eu iria. Mas... Eu queria? Eu iria? Como poderia? Olhei de relance e o carrinho de compras no chão do elevador lembrou-me a casa, o marido e a fome. O mundo é a fome que a gente mata de variadas formas. Mas aquela fome não poderia eu matar. Vigésimo quinto. As portas se abriram e ele me puxou, mas eu hesitei, larguei suas mãos e apertei rapidamente no botão de fechar as portas. Não, não iria evitar com isso a traição. Eu já havia traído o meu marido no elevador do prédio, sordidamente, como uma putinha barata. Mas o que eu queria evitar era o pior. Era a cama daquele estranho dos andares de cima, de quem eu conhecia apenas os olhos, o corpo, a força, a boca, a língua, a virilidade, a traição de meu marido. Ah..., me senti como uma puta de uma Santa Tereza em chamas! Mas não podia ir... A última coisa que vi, enquanto as portas fechavam, foi a imagem que se fazia de seu membro marcando a calça, ele estava louco de desejo. Mas eu? Quem eu era? Eu era uma loucura repleta de desejo, do mais vil, do mais sórdido, do mais mordaz. Eu sentia na pele a excitação dos poros e... – Querida?! – Hã?! Quê? – Faz cinco minutos que estou aqui falando com você e você aí divagando como uma louca! O que houve? – Hã?! Ah! Nada, absolutamente. – Então? – Então o quê? – Responda a pergunta. – Que pergunta? – A pergunta da porcaria da revista! Você não me chamou aqui pra matar hora fazendo esse jogo besta de casais? – Ah meu Deus! É mesmo, me perdoa amor. Por favor! Enfim, faça a pergunta de novo que essa quem tem de responder sou eu porque se não me engano é sobre você, né?


– “Qual parte de seu marido você mais acha atrativa e encantadora?”, está assim descrita a pergunta. Disse ele demonstrando-se ainda contrariado. – Os olhos. Sim, os olhos foram a primeira coisa que eu vi.

mario filipe cavalcanti nasceu no Recife, em 1992. É colunista da revista Samizdat (Madrid) e da revista Página Cultural (MG). Autor dos livros de contos Comédia de enganos (Penalux, 2013), semifinalista no Prêmio SESC de Literatura 2014, Morte e vida e outros contos e O circo (Editora Universitária da UFPE, “Coleção Novos Talentos 2013/2014”, prelo). Publicou nas revistas Flaubert e 7faces. Mantém o blog literário mariofilipecavalcanti.blogspot.com


o medo é um lugar para viver ottavio lourenço

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– Me Ilumine! Grito: aflito, meia lamentação, meio canto, projetado contra a escuridão oculta; um homem envolto em branco, braços erguidos para as sombras desafiadoras, órbitas escuras onde antes havia olhos, suplicante, exigente, fúria e desespero, angústia da alma no mundo. Ele cambaleou, um passo, dois, tropeçou, débil, o homem voltou à criança, procurando encontrar alguma saída do vasto mar de escuridão em que se debatia. – Me ilumine! Em torno dele, um coro de vozes sussurrantes; arrancando as roupas, ele cambaleou na direção da insinuação do som, um lugar de repouso, um objetivo. Este ser em aflição, a personificação de toda consternação, todo o desespero, sem que houvesse em lugar algum daquele círculo de luz angustiante uma libertação do tormento. Pés descalços avançando, cada passo à beira de um abismo, sem esperança nem segurança. O que pode significar ser permanentemente cego? Considerando uma sátira dirigida àqueles que enxergam, mas não veem ou que veem, mas não enxergam. E novamente: – Me ilumine! Palavras tortuosas saem da garganta dilacerada pela desesperança de salvação. E então o personagem deslizou para as sombras, que o sufocaram. O rosto meio oculto no


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claro-escuro, do sombrio ao tropical, preto intenso, branco ofuscante, do vermelho modificando-se para o azul, deste azul para o cinzento em volta dos pés, o círculo de luz branco e ofuscante a lhe comprimir, uma criatura empalada numa lança de luz, fechando, fechado até tragá-lo, tudo escuro, a escuridão presente interiormente e exteriormente e cada vez mais profunda, o nada, fim, silêncio. Denis Langres, Édipo, representara o seu primeiro papel. E 25 anos depois, iria representá-lo de novo, como o último. Mas antes que se fechasse a cortina sobre esse desempenho final, houve 25 anos de glória, por todos os palcos da vida, teatro e emoção. E assim caminhamos com a percepção de que o tempo passa. Quando a companhia teatral decidiu apresentar o papel para ele atuar interpretando o mendigo de Les Miserables, Denis Langres foi a vários brechós na Rua Mateus Leme e comprou um conjunto de roupas mais que surradas que estavam esquecidas nos cantos e nos fundos em suas várias pilhas, peças que até mesmo as mulheres religiosas que trabalhavam na loja não haviam encontrado em suas catas diárias. Comprou um par de sapatos rasgados e praticamente quase sem solas, um tamanho maior que seus pés. Comprou um boné que já estava descolorido, com a aba torta e encolhido pela exposição de mais de uma centena de dias ao sol e a chuva. Comprou um colete de cor indefinida, de um terno há muito destruído, assim como uma calça com os fundilhos esgarçados e remendados, uma camisa sem três botões, um paletó que parecia representar todos os mendigos que já haviam passado ao menos por uma hora de sono inquieto numa pilastra ou num beco imundo. Denis Langres comprou essas coisas sob os protestos das mulheres bondosas, de cabelos brancos, que estavam dando sua contribuição de caridade no brechó naquele momento. Ele desviando do assunto perguntou se não poderia ocupar o banheiro por um momento, a fim de experimentar as “novas” vestes. Ao sair, com o sua jaqueta e calça esporte considerada da melhor qualidade no braço, era inteiramente outro homem. Como num passe de mágica, a barba por


fazer (que já podia existir quando ele entrara no brechó, mas que ninguém reparara, pois um rapaz distinto e bem vestido jamais sairia de casa sem se barbear) aparecera no rosto flácido. Os cabelos tinham perdido inteiramente o brilho e estavam agora desarrumados embaixo do boné. O rosto marcado pelas privações e depravações de uma vida inteira passado nas sarjetas e bares, pois estes pareciam ser os únicos lugares que sua presença era tolerada. Havia crostas de sujeira nas mãos, os olhos estavam embaçados, destituídos de qualquer personalidade, o corpo grotescamente derreado, pelo fardo da uma mera existência. Esse agora idoso, uma lembrança de que era Denis Langres ... Como conseguira meter-se no banheiro?

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E onde estava o rapaz simpático que lá entrara, vestindo aquela jaqueta e aquela calça? Será que aquela criatura encontrara algum meio de subjugá-lo? (E que arma ou artimanha horrenda aquele visualmente idoso débil teria usado para dominar um rapaz tão forte e cheio de vitalidade?) as boas damas da caridade, todas de cabeça branca, ficaram paralisadas de angústia ao imaginarem o jovem atraente e determinado estendido no chão do banheiro, o crânio esmigalhado por um pedaço de cano. O senhor idoso entregou o casaco, a calça e o resto das roupas que o jovem usara. E com uma voz que era 30 anos mais jovem do que o corpo do qual saía, ele explicou: – Não vou precisar mais dessas roupas. Podem vendê-las a alguém que seja capaz de tirar bom proveito delas. Era a voz do jovem, saindo daquele personagem. E ele pagou pelos trapos que agora usava. As senhoras ficaram observando-o, enquanto avançava claudicando para a porta e saía para as ruas viciosas, mais um desocupado a se juntar à onda de almas penadas que inevitavelmente se transformaria num córrego, um rio, e num oceano de tristezas e refugos, que acabavam encalhando em alguma detenção, beco ou banco de praça. Denis Langres passou seis semanas vivendo em diferentes vias, dormindo em albergues noturnos, lojas abandonadas,


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porões, parques e praças, pequenos telhados e cortiços. Partilhou e se espojou na natureza, na imundície e degradação dos homens vazios, que tudo haviam perdido ou tudo haviam subtraído. Por seis semanas foi de fato um inativo no ponto de vista da sociedade capital, um bagaço humano, debilitado, sem esperança, os olhos fundos e cansados, as mãos entrevadas. Uma a uma, as semanas chegaram a seis. E no primeiro dia da escolha do elenco para Les Miserables, a segundafeira da sétima semana, Denis Langres chegou ao teatro na Rua 13 de maio no centro de Curitiba, onde os candidatos estavam sendo selecionados, com os mesmos trapos que usara pelas seis últimas semanas. A peça ficou em cartaz por 270 apresentações e Denis Langres ganhou o Prêmio Gralha Azul como o melhor ator paranaense do ano. Ganhou também o Prêmio da crítica e público como o mais promissor estreante do ano. Estava com 22 anos nesta ocasião. Na temporada posterior, depois que Les Miserables saiu em turnê pelo restante do Brasil, Denis Langres soube, através das paginas dos jornais que estavam prestes a iniciar a seleção do elenco para O vampiro e a polaquinha, a nova peça de Lala Scheneider, a nova peça que já era projetada em muitos anos. O papel de escritor e vampiro introspectivo e atormentado, profano e insaciável, deprimido pelo nível comercial a que seu personagem mergulhara e não ocorrendo o mesmo com a sua obra, assim tomou a decisão de recuperar uma inocência da infância ou sentimento de natureza que perdera, usando as mãos para trabalhar numa fundição. As críticas da noite de estreia classificaram a concepção de Denis Langres, o escritor e vampiro, como “pináculo da intuição teatral”. E houve um crítico que comentou: “A autoridade com que representou o papel levou os espectadores a se perguntarem como um ator tão sensível foi capaz de apreender a vida rude e sem sutileza de um operário siderúrgico”. Ninguém sequer desconfiou de que Denis Langres trabalhara por quase dois meses no período noturno numa fundição na Cidade Industrial de Curitiba. Escrevendo, ensaiando e vampirizando durante o dia.


Mas o maquiador de “O Vampiro e a Polaquinha” ficou achando que Denis Langres estivera outrora envolvido num terrível incêndio, pois suas mãos estavam marcadas pela devastação do calor intenso. Depois de dois sucessos, duas conquistas na dramatização, duas caracterizações que foram prontamente classificadas entre as mais brilhantes que o teatro local já produzira, a reputação começou a se transformar numa lenda.

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“O ser que é o método, e o método de ser ator”, assim era chamado em artigos de análise e entrevistas. Augusto Boal, quando entrevistado, informou que Langres nunca fora seu discípulo, mas que poderia perfeitamente convidar para fazer o curso, se a ocasião apresentasse. Seja como for, o domínio das teorias de interpretação, da imersão total num papel, tornou-se um exemplo ativo da validade do conceito. Não um mero ator a dizer frases decoradas; num palco, Denis Langres era realmente o personagem que pretendia ser. Pouco se sabia a respeito de sua vida privada, pois ele deixava bem claro que, para que uma caracterização fosse totalmente convincente, não queria qualquer sombra intrusiva a se interpor entre o público e a imagem que oferecia. As propostas de estrelato em novelas foram recusadas. Uma famosa revista comentou, num breve artigo sobre Denis Langres: “A gestat que Langres projeta sob os refletores teatrais seria ofuscado e reduzido a duas dimensões na tela da TV. A arte de Langres é um supremo refinamento de uma verdade e transformação, exigindo realidade da produção cênica mantenha sua pureza. Pode se até dizer que Denis Langres representa em quatro dimensões, em oposição ao mero artesanato em três dimensões de seus contemporâneos. Certamente ninguém pode contestar que assistir a um desempenho de Langres é quase uma experiência religiosa. E devemos todos nós apreciadores dar os parabéns a Denis Langres por sua sensatez ao repelir as ofertas dos grandes estúdios.” Os anos de acumular um estoque de papéis definitivos (efetivamente arruinando-os para outros atores que estavam


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condenados a representá-los depois que Langres mostrara tudo que havia a mostrar) foram passando. Denis Langres tornou-se, sucessivamente, um Hamlet que projetava novas luzes através do espelho das implicações Lacanianas sobre Shakespeare. Langres é o espelho e sempre o mesmo, porém as imagens que produz variam, multiplicando-se após cada novo movimento. Seja sendo um ardente nacionalista, seja como um vendedor de fala macia que se depara com a futilidade, seja atuando como Caio Júlio César de muitas facetas e totalmente amoral, compelido por uma aversão às mulheres que o leva a vender a própria irmã à prostituição, um político impiedoso, corroído pelo desejo de poder. E um dos maiores desafios que ele enfrentou, foi a montagem do livro que se tornou filme que se transformou em peça teatral: Psicose. Norman Bates e a simbolização claramente articulada do complexo de Édipo e o complexo de castração, acuado por suas emoções conflitantes, até chegar ao assassinato de uma jovem loira. Quando o encontraram, na suíte da modelo em um hotel próximo à rodovia dos minérios, o investigador não conseguiu extrair-lhe um relato coerente do motivo pelo qual cometera o ato hediondo, pois ele ressaltava um discurso retumbante de fervor moralista e conservador quase bíblico, discorrendo sobre pureza, e os fogos eternos da perdição. Entre os policiais do departamento de homicídios, havia um jovem policial que começou a se sentir terrivelmente mal, ao ver as paredes com azulejos brancos manchados de sangue e o corpo com vários orifícios dentro da banheira ensanguentada. E teve de ser retirado dali, minutos antes de levarem Denis Langres. O julgamento foi de uma tristeza profunda para todos os que o tinham visto no palco, e por todos os desdobramentos. Os jurados nem precisaram confabular para chegar ao veredito de insanidade. Afinal, quem quer que fosse o louco por justiça que a defesa pôs no banco das testemunhas, não era um sujeito são. E certamente não era mais Denis Langres, o ator. Para o Dr. Joséf Iohann, o paciente no quarto de segurança 17 representava um envolvimento constante. Ele não conseguia divorciar-se da recordação de uma noite, há três anos, no Teatro Guaíra, quando assistira a Denis Langres,


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vibrante e vigoroso, apresentar-se como filósofo cômico na comédia que fizera o maior sucesso na temporada, O Sobrinho de Rameau. Ele estava incapaz de separar seus pensamentos do ator que, por algum tempo, em três atos, fora de fato um bêbado inconsequente, aproveitador e desonesto, com uma atração irresistível por pinhão (que Langres mastigava no palco). Como podia separar tais recordações da criatura estranha e de muitas facetas, que vivia suas muitas vidas na cela acolchoada de número 17? A princípio, houvera repórteres desejando entrevistar o sensato Doutor incumbido do caso de Langres. Ao último deles (pois o Dr. Iohann instituirá restrições a esse tipo de publicidade sensacionalista), ele dissera: –  Para um homem como Denis Langres, o mundo era muito importante. Era um homem atemporal. Não possuía uma personalidade própria, a não ser a faculdade compulsória e a necessidade irresistível de refletir o mundo a seu redor. O mundo lhe dava personalidade, atitudes, razão, emoção e fachada para sua existência. Tirando-se tudo isso dele, metendo-o numa cela acolchoada, como fomos obrigados a fazer, fez com que ele começasse a perder o contato com a realidade. – Pelo que posso compreender, Langres está revivendo todos os seus papéis, um depois de outro – dissera o repórter, cuidadosamente. – É isso mesmo, Dr. Iohann? Acima de tudo, Josef Iohann era um individuo imbuído de uma profunda compaixão. Sua contrariedade diante de tal comentário, que revelava uma falha no sistema de segurança da clínica, estava evidente. – Denis Langres está sofrendo do que se pode chamar, em termos psiquiátricos, de “regressão alucinatória induzida”. Em sua busca de alguma realidade, lá naquele quarto, ele se apegou ao método de assumir as personalidades que representou no palco. Pelo que posso determinar, através de uma revisão de suas atuações, ele está voltando da mais recente para a anterior e assim por diante. Outros periodistas fizeram outras perguntas, suposições mais superficiais e fantasmagóricas, até que o Dr. Josef Iohann concluiu a entrevista bruscamente.


Mas mesmo agora, sentado diante de Denis Langres na tranquilidade do consultório, ele sabia que quase nada que o repórter concebera poderia igualar-se ao que o ator fizera a si mesmo.

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– Diga-me, Doutor, qual é a novidade por estes cantos? – Perguntou o caixeiro viajante exuberante e bombástico que era Denis Langres. – Anda tudo muito tranquilo por este dia, Iohann – respondeu. Langres estava assim há mais de dois meses, inteiramente absorvido no papel de Norman Bates. Incógnitas, jogo de desejo, jogo de repetições e de duplicações, o tema da duplicidade: a dupla personalidade. – Estou me lembrando de uma garota, onde foi mesmo? Ora, claro foi isso mesmo! Preciso voltar ao trabalho, preciso voltar ao Bates Motel, pois me deixe retornar. Era difícil acreditar que o homem sentado no outro lado da mesa fosse um ator. Parecia com o personagem, falava como o personagem, era mesmo Norman Bates. O Dr. Iohann podia surpreender-se de vez em quando pensando em soltar aquele estranho total que se insinuara misteriosamente na cela que seria de Denis Langres. Ele ficou escutando a história da garota fogosa da Rua Riachuelo que Norman Bates conhecera num restaurante romeno e permitiu sentir-se seduzido com as palavras da loira oxigenada. E escutando-a, compreendeu que tudo o mais que pudesse ser verdade em relação a Denis Langres, aquele sujeito de muitas faces e muitas vidas, ele não era mais sano do que no dia em que matara a moça. Depois de 18 meses na clínica, Langres continuava a regredir, cada vez mais, por sua carreira de ator, reconstituindo os papéis, mas jamais encontrado a realidade. Na crise de Denis Langres, o Dr. Josef Iohann via um pouco de si mesmo, de todas as pessoas de seu tempo, dos incontáveis males de que eram herdeiros. Ele encaminhou Denis Langres, assim como Norman Bates, de volta à segurança e ao pequeno mundo do quarto 17.


Dois meses depois, tornou a tirar Langres da cela e passou três horas das mais interessantes discutindo terapia de grupo com a filósofa Jilvana Luek, com as credenciais da Filosofia Clínica do Paraná. Quatro meses depois, o Dr. Josef Iohann teve de conhecer o imperante personagem de Caio Júlio César. E quase um ano depois, o Dr. Iohann sentou em seu consultório com um mendigo de olhos fundos e cansados, um bagaço humano sem qualquer esperança, que só poderia ser o personagem de Les Miserables, o primeiro triunfo de Denis Langres, 25 anos antes. O que Denis Langres podia parecer, sem a camuflagem, em sua própria pele, era algo que Iohann não podia imaginar. Para todos os efeitos e propósitos, Langres era agora idoso e andrajoso, abandonado, a sujeira acumulada nas dobras do rosto flácido. – Sr. Langres, quero falar-lhe. A desesperança estampou-se nos olhos do idoso inativo. Não houve resposta. – Escute Langres,por favor preste atenção. Se estiver aí, em algum lugar, se pode ouvir-me. Quero que compreenda o que vou dizer, pois é muito importante. Um som rouco, forçado, emergiu dos lábios do idoso, que murmurou: – Preciso de uma bebida, não é possível pagar-me uma boa bebida... Iohann inclinou-se, suas mãos tremeram quando segurou o queixo do senhor, tranquilizando-o, cravando os olhos daquele estranho. – Preste atenção, Langres. Você tem de me ouvir. Fiz um levantamento e, pelo que posso determinar, este foi o primeiro papel que representou. Não sei o que vai acontecer. Não sei que forma essa síndrome assumirá, depois de consumir todas as suas outras vidas. Mas se pode ouvir-me, tem de compreender que pode estar-se aproximando de um período critico em... Sua vida.

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O homem idoso passou a língua pelos lábios rachados. – Escute Langres! Estou aqui, quero ajudá-lo. Quero fazer alguma coisa por você. Se sair por um instante, por um


segundo que seja, podemos estabelecer contato. Tem de ser agora ou... Ele deixou a frase inacabada, pairando no ar. Não tinha meio de saber se... O quê. E quando caiu no silêncio, largando o queixo do personagem inativo, uma estranha alteração dos músculos faciais começou. O semblante do molambo mudou, amoldando-se como se fosse de chumbo quente. Por alguns segundos, o médico viu um rosto que conhecia. E dos olhos que não mais estavam injetados, o Dr. Josef Iohann percebeu a inteligência espiando. – Soa como medo, Doutor. – E imediatamente depois: – Até logo, mais uma vez. A luz se desvaneceu, o rosto tornou a se alterar, o médico estava novamente contemplando a expressão vazia de um ser abandonando nas ruas. Enviou o personagem idoso novamente ao quarto 17. Mais tarde, pediu para o enfermeiro levar uma garrafa de vinho francês. – Fale homem! O que está acontecendo? – Eu... Eu não posso explicar Dr. Iohann. Mas é melhor, é melhor ir até lá imediatamente. – Mas o que está acontecendo, afinal? Por favor, fale pausadamente, William, e diga-me qual é o problema! – É no quarto 17. Estarei lá dentro de vinte minutos. Mantenha todos longe do quarto. Entendido? William! Está me entendendo? – Sim, senhor! Sim, senhor!

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Iohann podia sentir a calça do pijama embolada nos joelhos, por baixo da calça que vestira às pressas, enquanto pisava o acelerador de seu carro. As estradas noturnas pareciam esburacadas e a escuridão que se comprimia contra o para‑brisa era quase grotesca para ser um fato da natureza. Quando diminuiu a velocidade, ao se aproximar da entrada, o porteiro levantou imediatamente a cancela. O carro avançou rapidamente pelo caminho, espalhando seixos por todos os lados. Ao parar diante da clínica, os pneus rangendo, a porta abriu-se bruscamente e o encarregado do plantão noturno, William, descendo correndo os degraus.


– Por aqui, Doutor, por aqui, Doutor... – Obrigado, mas conheço e lembro perfeitamente o caminho! Ambos subiram apressadamente os degraus, entrando no prédio. – Tudo começou há cerca de uma hora, não sabia o que estava acontecendo... – E não me chamou imediatamente? Isso é um absurdo! – Pensamos, pensamos que fossem apenas outros estágios dele, sabe como ele é! Iohann soltou um suspiro de irritação, tirando o, sobretudo enquanto avançava rapidamente pelo corredor para a ala da clínica em que ficavam as “salas” de segurança. Ao entrarem na ala, passando pela porta resistente, com um painel de vidro para observação, Iohann ouviu o grito pela primeira vez. Naquele grito, naquele tremor atormentado, suplicante, exigente, desesperadamente perdido estavam todos os sons do medo que Iohann já ouvira. Naquela voz, ele ouviu até a sua própria voz, a sua própria alma, clamando por alguma coisa. Por alguma coisa indescritível, enquanto o grito soava novamente.

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– Me Ilumine! Outro mundo, outra voz, outra vida. Algum suplicante assombroso e vazio, de algum canto do universo coberto de poeira. Pairando ali, intemporal, vibrante na agonia. Um milhão de vozes roubadas, cansadas e cegas, todas reunidas num único uivo, todas as tristezas permanentes, todas as perdas e aflições já conhecidas pelo ser humano. Estava tudo ali, enquanto o mundo era aberto e deixava escorrer seu fluido dourado para a poeira. Era um ser animal solitário, sendo devorado por um pássaro predador. Era uma centena de pessoas com sentimentos esmagados. Era um sujeito com as mãos encharcadas de sangue. Era a alma e a dor, a própria fibra vital da vida, escoando-se, sem luz, sem esperança, sem socorro. – Me Ilumine!


Iohann correu para a porta e puxou o trinco da janela de observação. Ficou olhando em silêncio, por um longo momento, enquanto o grito novamente ecoava pelo ar, sem peso, transparente, povoando o vazio. Ficou admirando e sentiu todo o impacto de um horror total sufocar seu próprio grito de incredulidade e terror. Depois, afastou-se da janela e ficou com as costas suadas encostadas na parede, com a última visão de Denis Langres que esperava ver gravada para sempre por trás de seus olhos. O som de seus suaves soluços pelo corredor manteve os outros a distância. Ficaram olhando em silêncio, aturdidos, ainda ouvindo aquele eco sem precedentes reverberar interminavelmente pelos corredores de suas mentes. – Iluminado Tocando sem olhar, Iohann fechou a janela de observação da porta, baixando o braço em seguida. Lá dentro, comprimido contra a parede do outro lado, Denis Langres olhava para a porta, para o corredor, para o mundo, para o sempre.

ottavio lourenço nasceu em Curitiba, é músico, letrista, escritor, compositor e filósofo. Seu livro Sombrio e Tropical foi lançando pela Editora Inverso em novembro de 2013 e em outros países da América do Sul. É vocalista da banda metal/hardcore “Choke”. Este conto pertence ao novo livro de contos do autor, inspirado em filmes Hitchcockianos ambientados em Curitiba, que será lançado pela Encrenca Literatura de Invenção.

E a tudo deixava, saía do mundo como entrara, pura e simplesmente. Sem uma face. Da linha dos cabelos ao queixo, uma extensão vazia, sem feições. Vazia e silenciosa, destituída de vista ou som. Vazio e sem rosto, uma criatura que simplesmente foi um espelho do mundo. O método agora se apagava. Da mesma forma, os personagens da história, que, embora viva apenas uma única vida, aparecem de tantas maneiras quantas sejam os pontos de vista daqueles que os veem. Os interpretes jamais escapam de transformar seus personagens em fantoches, os quais em última análise dublam suas falas. E, ao recriá-los através de medidas exatas, muitas vezes esquecem-se de deixar transparecer o aspecto contraditório que todo ser possui – Assim refletia em seus pensamentos Dr.Josef Iohann a respeito dos acontecimentos. Denis Langres, ator, desempenhara seu último papel e se fora, levando consigo Denis Langres, um homem que conhecera todos os sons, todas as vistas, todas as psicoses e que o medo é um lugar para ela viver.


suspiros que cortam o ar paulo raviere

Where sighs, and groans, and shrieks that rent the air Are made, not marked Shakespeare, Macbeth, IV,III Rios de lágrimas correm-me dos olhos Por causa da ruína da filha de meu povo. Lamentações, 3, 48

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Num desses pequenos povoados sem nome, num beco sem destino que tinha duas saídas, mas não ligava ruas, entre a casa herdada da família Silveira e o asilo permanente de Maria Eduarda, jazia há dias a filha de Elias Matogrosso. Os moradores não se importavam muito em pintar de civilização todo aquele lugar esquecido, e a terra vermelha flutuava livremente por entre as casas e as pessoas, como se agradasse a todos. O beco em questão, por durante boa parte do dia, não recebia sombra. Razão a mais para que estes moradores displicentes não a completassem com cimento ou uma horta, ou para não deixar algum maquinário, ou encostar alguma coisa, ou ainda, à maneira de seus antepassados, levantar um muro e utilizar o espaço – e razão pela qual ninguém pensou em procurar a moça por ali. O capim crescia ousadamente, e o roxo do corpo apodrecido se confundia com algumas petúnias que cresciam lá, não se sabe como, entre todo o mato, as ervas daninhas e as flores selvagens, coloridas e venenosas que existiam no beco. Talvez por causa dos perfumes fortes destas plantas que o invadiam e se misturavam com o vento avermelhado pela poeira, ou da vasta distância do beco para a rua que a cortava, e longe até para o resto do povoado, nem o cheiro forte do cadáver maltratado, nem sua mera aparição, o que seria nauseante para uns, chamara a atenção. Os vermes


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invadiam, as moscas sempre estiveram por toda parte, e ninguém pensou em seguir os urubus. Sempre há pelas ruas pequenos animais mortos de todas as maneiras, e havia uma mata por perto, que começava quase na saída do outro lado do beco. Pela saída da rua, ao longe, do outro lado, sozinho e sem camisa, Lázaro Cavalcante era a única pessoa que sabia onde estava guardado o corpo da moça que tanto procuravam, pois ele mesmo o colocara lá. O suor lhe descia os olhos, e a luz do sol, ao passar por um céu indefectivelmente límpido, refletia por todo aquele prado como se possuísse o único objetivo de cegar o mundo inteiro. Mas o que lhe incomodava não era a sua posição física perante a rua, o corpo, os urubus, os vivos. Era que não havia encontrado a paz. Jazia vivo, suado e sem camisa; sozinho e sujo. Vez ou outra jogava água no rosto, para aplacar, até onde fosse possível, o suor que descia insistentemente, mas a própria cabaça estava um tanto empoeirada. E seu corpo todo era sujeira; não tomava banho, não trabalhava, não comia há alguns dias já: apenas velava à distância o cadáver não descoberto. As mãos lavadas de sangue, o coração enegrecido de fel. Seu punhal refletia tudo com perfeição. Não pensou em se livrar dele. Quando vão encontrar a pobrezinha? As casas que formavam o beco estavam vazias. Maria Eduarda morava só, e Lázaro não sabia por que ela não estava lá. Elias Matogrosso vivia na casa herdada com sua esposa e sua filha. Era o amigo mais próximo da trágica família Silveira, que praticamente havia desaparecido, sem deixar herdeiros de sangue. O único vivo errava como um vagabundo, e já era tido por morto, também. Tomaram, então, a casa pra si, e lá mesmo tiveram sua única filha. Viviam felizes até que se soube do caso de Elias com Lalinha, menina adolescente, uma entre tantas, mas nem por isso menos amada ou apreciada, na vasta prole de Lázaro Cavalcante. Não existem segredos duradouros em um povoado tão pequeno, e logo sua mulher soube, e Lázaro, e todos os outros. Tudo foi resolvido de maneira simples e pacata. A esposa resolveu passar uns tempos na casa dos pais, e levou


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a filha consigo. Elias continuou com a jovenzinha, e por Lázaro não havia problema, contato que cuidasse bem dela. Seu novo genro era de uma magreza morena, bem esculpida, que indicava força e trabalho árduo, sob este mesmo sol que agora o purificava. Ainda não houvera casório ou separação oficial, pois esperavam por tempos melhores, quando tudo foi interrompido pela tragédia. Na verdade, depois do acontecimento com Lalinha, e agora com o sumiço da infanta de Elias, que esperava por notícias na cadeia, não só estas casas pareciam vazias, mas quase todo o povoado. As pessoas evitavam sair, a não ser que fossem para a praça ou para a igreja, onde sempre havia mais alguém, e faziam questão de serem vistas. As mulheres tinham medo de ser a próxima vítima do assassino que, se sabia agora, estava à solta, pois não poderia ser Elias. Os homens temiam que algo ocorresse com mais alguém, e lhes acometesse o próprio destino do preso, que agora passara a vítima do sistema. Por isso tudo não estranharam, ou acusaram, e nem mesmo foram falar qualquer coisa com o estático Lázaro Cavalcante: a perda definitiva às vezes há de trazer, além de trauma e insanidade, a absolvição do julgamento popular. Lázaro podia ser louco o quanto quisesse, e passar dias velando o beco manchado de sangue, pois era apenas vítima: ainda não o tomavam por assassino. Elias foi acusado pela sua perda, fato que o tiveram de convencer, uma vez que antes ele até apreciava o genro bastardo; mas depois de lograda a ideia, sua convicção da culpa do homem era total. Assim, o que absolvia Elias do julgamento popular – o fato de ter sido ele uma possível vítima do hipotético assassino de moças (pois os olhos do povo ainda não tinham a dele como morta) – não o absolvia perante Lázaro Cavalcante, quem mais detinha conhecimento dos fatos. Havendo um apelo popular, logo Elias haveria de ser libertado, podendo voltar para casa, e assim provavelmente haveria de perceber o cadáver apodrecido no beco, concluindo a vingança do quase sogro. Mas, pensava Lázaro, enquanto enlameava com um pano sujo a sua testa suada, isso não lhe trazia paz. A baixa população do povoado e a escassez de lugares a se investigar delimitavam o modus operandi dos ditos homens


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da lei, grupo composto pelo próprio povoado e chefiado por um cabeça, um forasteiro, escolhido pelo juiz, o principal, da cidade em torno da qual o povoado girava. No primeiro dos casos, como a justiça não deve ser unilateral, eles tinham então de conseguir um criminoso, para que tranquilizassem as pessoas e acrescentassem uma razão que justificasse a existência de homens da lei por ali, e para que aplacassem a ira robusta de Lázaro Cavalcante. Na falta de quem entrevistar, conseguiram convencer a todos de que Elias, por ser o único suspeito (as mulheres, por razões fisiológicas, não participavam desta lista), era o culpado. Mas eles não podiam contar com a vingança secreta, e reação nenhuma lhes permitiu deduzi-lo, pois Lázaro e sua família preferiram simplesmente evitar qualquer contato com Elias. O restante do povoado, por outro lado, e mesmo pessoas de outras cercanias, numa insaciável sede de sangue, também chamada justiça, desejavam linchar o desgraçado, e por isso foram repreendidos pelos poderes superiores (e eles temiam o que vinha de cima). Esta repreensão, mais tarde, ao se provar a inocência, foi de grande alívio para todos, e não era assunto nem de menção. Elias poderia ter sido vítima duas vezes, mas logo estaria andando livremente por entre aqueles que a pouco queriam sangrar sua pele purificada. Pela parte de Lázaro Cavalcante, chefe de família, não houve oposição ou apoio em relação ao linchamento: apenas manteriam distância. Mas ali, em frente ao beco das flores, ele ruminava outros assuntos. Lalinha foi encontrada na mata, violentada de maneira que somente um homem de força poderia fazer. Claro que, certamente, Elias não era o único homem forte por ali, mas ele não pensava em mais ninguém: tinham lhe convencido para sempre. Obviamente, era um tanto injusto realizar sua vingança contra uma criança inocente, pois ela não sabia de nada, não havia feito nada a ninguém – e a mãe também sofreria pelos crimes alheios. Mas e o que pensar dele? Também estava sofrendo, e todos os seus filhos, e a sua esposa... Então se ajoelha na terra quente, numa posição que em outra ocasião seria notado o desconforto, e percebe um movimento ao longe. Parece que finalmente vinham atrás


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dele. Teriam descoberto? Seria Elias? Seria a esposa? Todos seus humores estavam saciados, mas ele meditava, meditava, e não conseguia descansar. Enquanto o movimento não o alcançava, ele relevava que para além da inocência da menina, havia a culpa do pai; não fora cruel, pois não conseguira. Intentara torturá-la, maltratála e violentá-la, da mesma maneira que foi feito com sua filha, mas no ato só lhe ocorreu apunhalar a garotinha no peito e, quase sufocando, deitá-la no beco. Guardou-a com ternura, como se pusesse uma de suas próprias filhas para dormir. Seu dia continuou normalmente, até que percebeu a poeira que se colava ao sangue em sua bainha, o que lhe atentou para o horror de toda a existência, o horror verdadeiro pela perda de sua própria filha, e que ainda assim, ela era apenas uma entre tantas; e o horror de ser mais um entre tantos pais; o horror da continuação. A partir de então estivera lá, praticamente estático, há dias, esperando, meditando, justificando. O movimento estava perto: uma comoção geral. Todo o povoado vinha em sua direção, comandado por um Elias esperançoso. Foi a mais nova de suas filhas, Joana, que lhe deu a notícia. – Papai, papai, pegaram o homem de verdade, o assassino. A mãe agarra a garota, tampando a boquinha pequenina, e Elias se senta a seu lado, o convidando para uma conversa em particular. – Sim, Lázaro, é verdade. Estou grato por você não ter me acusado. – Ele tem a fala chorosa. – Obrigado. Ainda existe justiça no mundo. Ele coça o nariz, esperando uma resposta. Lázaro apenas enfia as mãos na areia quente, olhando para baixo. – Acharam um homem lá em Versalhes, um homem da cidade, fazendo... Tava no ato com uma jovem. Uma jovem morta. – As lágrimas que ele trancava insistem em fugir de sua cela. – Ele é um doente, Lázaro. Contou tudo normal; não se arrependeu. Disse que aqui era o melhor caminho. Tinha passado por aqui antes. Ele veio e... Hum... Foi ele. Ele admitiu. A estas horas já devem ter dado cabo da cabeça dele. Na comoção, as crianças traquinas já começam a se espalhar por toda a rua com a mesma liberdade do vento


e da poeira vermelha. As mães tentavam correr atrás dos fedelhos, outras gritavam ou tentavam segurá-los, ainda com receio de deixá-los sós. Os garotos, os homens, os justos, os senhores da lei, as moças solteiras, algumas outras crianças, os idosos, as duas famílias, sendo que dos Matogrosso já diziam que eram desgraçados como os Silveira, por morar naquela casa, todos olhavam para as duas vítimas com alívio e compaixão. Quando Elias explicou que o relato do bandido não incluía sua garotinha, e que por isso queria sua ajuda para procurála, as mãos de Lázaro tremeram dentro da terra quente, e ele percebeu que seus olhos não conseguiam mais ver, e que ele jamais, jamais, mesmo que lhe esfolassem todo o corpo, jamais encontraria a paz novamente.

paulo raviere nasceu em Irecê (BA) em 1986. Tem mestrado em tradução pela UFBA. Publica em raviere.wordpress.com. O conto presente faz parte do volume Nomes de Guerra, ainda inédito.


trottoir pedro de azevedo

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Não sei ao certo que horas são Uma e pouca; talvez mais. A rua está vazia, olho para Matt que está um pouco trôpego. Eu não estou lá essas maravilhas mas estou bem. Acendo um cigarro, que ele pega da minha boca, sou forçado pegar outro. A festa não foi o que esperávamos. Muita bebida e poucas pessoas interessantes, mais nada a declarar. Devido à hora e ao nível que embriaguez que imaginei que estaríamos, avisei a minha mãe que dormiria na casa de Matt. Solto a fumaça sinto o vento gelado em meu rosto. Minha calça esta um pouco apertada demais, incomoda. Atravessamos uma rua e percebo que não sei bem onde estamos, pra falar a verdade não me importo muito. Ele solta a fumaça e fala algo que não ouço e simplesmente aceno com a cabeça. O meu celular toca e desligo sem ver quem é. Andamos durante mais um tempo e ele para alegando estar cansado e pedindo pra diminuir o ritmo. Ele joga o resto do cigarro fora e se senta no chão, isso me irrita. Um carro passa pela rua e o ronco do motor me desperta para perceber que eu realmente não faço ideia da onde estamos. Sussurro que temos que ir para casa e ele concorda, mas pede para esperar um pouco. O examino de cima a baixo. O oposto de mim. Blusa branca, gola em corte v de mangas compridas e uma calça jeans escura. Seus olhos perdidos e vermelhos. Ele me olha e sorri. Estou de blusa preta de manga curta com corte em v e uma calça jeans cinza totalmente apertada.


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“Vai fazer trottoir?”. O ignorei e ele soltou uma gargalhada rouca. Acendo outro cigarro. O silencio da rua me incomoda, e outro carro passa; talvez o mesmo que passou há alguns momentos, ótimo. Não somos os únicos perdidos. Essa porra de lugar deve ser desconhecido para o mundo. O carro diminui até parar no acostamento, Matt se levanta, e o vidro do carona abaixa. Me aproximo e apoio em cima do carro me abaixando para ver as pessoas dentro. Matt me dá um tapinha na bunda que ignoro. Talvez minha posição esteja um pouco apelativa, mas sem a menor intenção. São duas mulheres, não tão velhas, beirando os vinte e cinto ou até mesmo trinta. A que dirige é uma loira, de olhos escuros. Ela sorria. A do carona tem cabelos castanho-escuros como os de Matt e olhos azuis, pergunto o que elas precisam. “Não querem ir pra outro lugar, rapazes?” a loira ao volante pergunta. Noto uma garrafa de vinho entre as pernas dela. Olho para Matt que com uma expressão engraçada faz que sim com a cabeça. Eu sem pensar abro a porta de trás e nós entramos. Não me orgulho disso, mas ao mesmo tempo me sinto excitado com o rumo que as coisas podem tomar. O carro fede a vinho caro. Elas perguntam nossos nomes e idades, falamos sem mentir e elas parecem gostar disso. Devolvemos as perguntas. São Carla e Viviane, de vinte e sete e vinte e cinco anos. A conversa prossegue sem ninguém realmente se importar; Matt aperta minha coxa e sorri maliciosamente. O carro para na entrada de um luxuoso motel chamado “Guerreiro” nós quatro entramos e a morena, Viviane, paga adiantado em um cartão de crédito que me parece platinum. A atendente nos olha curiosa mas logo perde o interesse. Não olho o saguão, não absorvo nada. Deixo Carla me guiar para o quarto. Lá elas abrem mais uma garrafa de vinho e nos colocamos a beber e fumar jogados na cama. O quarto é grande com imensas janelas que mesmo fechadas me surpreenderam com sua imensidão. A cama é grande e aconchegante com uma colcha vermelho sangue. A morena beija Matt que recua um pouco antes de agarrá‑la, e quase ao mesmo tempo sinto a mão de Carla em minha coxa, e deslizando para meu zíper. Nesse momento paro de


pensar. Me torno automático. A coloco na cama e olhando rapidamente para o lado vejo que a garota esta a chupá-lo, que suspirando me olha e ri. Pisco pra ele, e arranco o vestido da loira e ela rapidamente tira minhas roupas. Ela desce até minha barriga e lá começa a me chupar. Tá na cara que ela já fez isso milhares de vezes. Apago esse pensamento e deixo minha respiração se perder. Ouço Matt suspirando. Me farto puxando-a pra cima, é hora de dominá-la. Vejo que Matt tomou a mesma decisão que eu. Começou. A dança que nascemos sabendo executar, e que absolutamente ninguém se iguala a nós. Gemidos, fluidos e toques. Acordo de cara com o travesseiro e percebo que estou sem roupa nenhuma. Me levanto, minha cabeça dói, olho para o lado e vejo Matt dormindo de bruços, também nu. Deposito um beijo na base de seu pescoço e acaricio suas costas. Vou ao gigante banheiro da suíte tomar uma ducha fria e sem me importar se tem toalha ou não ,saio pingando pelo quarto. Com a cabeça mais leve me sento na cama, ainda nu e tento não acordá-lo. Ligo meu celular e há dezenas de chamadas perdidas. Uma e vinte da tarde. Coloco o celular na pequena mesa de cabeceira, e pego meu maço de Marlboro Red, até que algo me chama a atenção. Duas notas de cinquenta reais em cima da cômoda, e um pedaço de papel higiênico escrito em caligrafia feminina “obrigada”. Me encho de raiva, e em um acesso jogo a cômoda no chão. Matt dá um salto acordando com o barulho. O olho furioso pensando em quão baixo nós conseguimos chegar.

pedro de azevedo é carioca e nasceu em 1995. Estudante de jornalismo, escritor e crítico. Administrador e redator do blog Conversa Urbana. Expansivo e ansioso. conversa-urbana.blogspot.com.br


a cidade renato amado

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A Pedra A planície do Rio de Janeiro é limitada, no litoral sul, por praias de mar aberto. Na região central ergue-se o Maciço da Tijuca, granito-gnáissico, impondo uma barreira geográfica entre as regiões sul e norte que estimula precipitações de um lado e doutro. Grande parte desta formação rochosa é tomada pela Floresta da Tijuca, terceira maior floresta urbana do planeta, que tem flora e fauna típicas de Mata Atlântica, bioma que se espraia por grande parte do litoral brasileiro, esticando-se de um Rio Grande ao outro. Algumas das plantas mais comuns na Floresta são o angico, o cedro, o ipê, a quaresmeira, o palmito, a mangueira, o bambu e o jambeiro, sendo as três últimas não-nativas. A acidentada geografia da cidade ainda conta com mais dois maciços: da Pedra Branca, sobre o qual deita raízes a segunda maior floresta tropical do mundo; e o Gericinó. Ambos ficam na Zona Oeste do município. Contornando-se o Maciço da Tijuca pelo leste, é possível atravessar da Zona Norte à Zona Sul. Por ser a região de passagem entre norte e sul e onde a cidade mais se desenvolveu até as primeiras décadas do século xx, é conhecida como Centro da Cidade. O Centro é plano desde a demolição do Morro do Castelo, em 1922, com o fim de aumentar a circulação de ar, o que levaria os micróbios para outras bandas e reduziria a canícula.


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Nisto, certamente, não houve sucesso, uma vez que até hoje é uma das partes da cidade onde mais se passa calor, com a temperatura ultrapassando insuportáveis quarenta e dois graus nos dias mais quentes do ano. Somente no inverno o clima do Rio de Janeiro é ameno. O outono e a primavera são estações idênticas, com temperatura na linha média entre o agradável e o inadequado ao organismo humano. O Maciço da Tijuca, a oeste, e a Baía de Guanabara, a leste, são os limites geográficos do Centro. Fronteira natural colossal, esta é a segunda maior baía brasileira, com 380 quilômetros quadrados de área. Banha vários municípios e seu formato lembra um rascunho do mapa nacional. Tem diversas ilhas, dentre as quais se destacam por sua extensão ou relevância histórica ou social: Villegagnon, Governador, Fundão, Paquetá e Fiscal. A Ilha Fiscal fica próxima à Praça Quinze de Novembro, onde se encontra a Estação das Barcas, pequeno porto do Centro da Cidade, do qual partem ferries para a cidade vizinha Niterói e para algumas das ilhas. A Praça Quinze de Novembro é delimitada pela própria Baía de Guanabara, pela Avenida Primeiro de Março, pelo Paço Imperial e pelo Arco do Teles. Por cima dela, ao menos por enquanto, passa o Viaduto da Perimetral. A Perimetral é um grande viaduto que começa no Centro da Cidade, próximo ao Aeroporto Santos Dummont, e se conecta a outros elevados, como a Linha Vermelha e a Ponte Rio-Niterói. Em seu trajeto há acessos para importantes endereços, como a Praça Mauá e o entorno da Igreja da Candelária, imponente construção localizada na Av. Presidente Vargas. A Av. Presidente Vargas é a veia aorta do Centro. Tem três pistas, cada uma com quatro faixas, cinco estações de metrô e circulação de ônibus para quase todas as partes da cidade. Não bastasse, ao seu lado ficam a Central do Brasil, núcleo nervoso da rede de transporte público da metrópole, e a sede da Prefeitura. Essa avenida, assim como toda a região, tem muito concreto e pouco verde. É ladeada por grandes caixas que esfregam ombros umas nas outras e das quais, no meio e no fim do dia, escapa uma quantidade inimaginável de pessoas. Nestes


horários, o frenesi de pedestres supera o de automóveis e caminhar só é possível em ziguezagues. Não é encostada ao Maciço da Tijuca, mas ele chega até ela. Seja como produto de antigas pedreiras, seja por pequenas rochas que rolaram há séculos e foram se dividindo e se locomovendo por ação humana à razão de alguns metros por década, de modo que alguns granitos de poucas centenas de gramas são encontrados aqui e ali.

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O Cidadão O nativo do Rio de Janeiro é conhecido como carioca, por conta de histórico rio homônimo que nasce na Floresta da Tijuca e morre na Praia do Flamengo, na Baía de Guanabara. Ele foi fundamental para o crescimento da urbe, tendo abastecido o Centro e arredores através do Aqueduto da Carioca que, depois de desativado, passou a ser chamado de Arcos da Lapa, hoje cartão postal da zona mais boêmia da cidade e urinol informal. O jeito aberto e cordial do carioca é indevidamente associado à preguiça e à falta de combatividade. O ambiente praiano, o tino musical e o falar arrastado lhe deram traços de caricatura de baiano. Mas o carioca é, antes de tudo, um militante. Basta um incidente para que seus modos aparentemente lânguidos se transmudem. Um rápido passar d`olhos pela história demonstra: revolta da armada, revolta da vacina, revolta do vintém. Motivadas por razões tão diversas quanto insatisfação com o sistema político ou cobrança de vinte centavos pela passagem de bonde. Bem educado no Colégio Pedro II, Rodrigo, morador da Usina, bairro de classe média situado na base norte do Maciço da Tijuca, cercado por concreto de um lado e floresta de outro, tem uma queda pelas revoltas do Rio de Janeiro, por isso, enquanto conclui a faculdade de História, decide qual delas será objeto de sua dissertação de mestrado. Costuma pensar sobre isso enquanto corre. Tem o hábito de ir e voltar do estágio, próximo à Praça Quinze de Novembro, correndo, percorrendo um total de aproximadamente vinte quilômetros. Aos sábados pela manhã faz cooper no Aterro do Flamengo, onde passa sobre a foz do Rio Carioca três vezes.


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Politizado, reduziu os exercícios no período eleitoral de 2012 para fazer campanha para seu candidato a prefeito. Para desconhecidos panfletava e explicava o programa de governo. Para os companheiros expunha algumas ideias e escutava muitas. Fazia, de forma branda, papel de advogado do diabo, a fim de, na verdade, ser convencido. Queria adotar alguma bandeira. Sempre teve dificuldade de se alinhar a movimentos, uma vez que, invariavelmente, encontrava pontos de desacordo não apenas em detalhes, mas em questões nevrálgicas. E, normalmente, as ideias dos grupos já estavam consolidadas demais para que ele conseguisse mudá-las. Isso o colocava, apesar de seu inconformismo latente, em uma lassidão inquietante. Decidiu, por fim, ignorar algumas diferenças e abraçar a causa do seu candidato, escolhido pelo seu miolo ideológico. Sua ajuda, entretanto, de nada serviu, e seu candidato foi derrotado logo no primeiro turno. E o iptu subiu. E desapropriações em prol da especulação imobiliária e em nome da Copa do Mundo e das Olimpíadas, eventos que ocorrerão no Rio de Janeiro poucos anos após a data dos fatos narrados, continuaram sendo feitas. E a passagem de ônibus subiu. A tarifa do transporte público não aumentou apenas no Rio de Janeiro, mas em várias cidades do Brasil, como São Paulo, localizada num planalto da Serra do Mar – cadeia montanhosa que se estende por grande parte do centro-sul do país —, a cerca de 450 quilômetros do Rio de Janeiro. O Movimento Passe Livre, oriundo daquela cidade e que defende transporte público gratuito, foi às ruas reclamar de mais este aumento, uma constante nas metrópoles nacionais. A República respondeu às manifestações com bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta fartamente utilizados pela Polícia Militar do Estado de São Paulo. Havia uma insatisfação histórica com os poderes constituídos. Uma sensação de falta de representatividade, a despeito da democracia representativa. Uma falta de ingerência do povo nos assuntos da coletividade, discutidos somente em gabinetes. A polícia, órgão público, agrediu quem se manifestava por ter sido assaltado por mais um


aumento da tarifa de ônibus. As imagens correram o país e foram o estopim para que passeatas se alastrassem. Rodrigo rapidamente aderiu ao movimento e conheceu o lacrimogêneo, um composto gasoso à base de substâncias irritantes da pele e das mucosas, tais como brometo de benzila. É como se moléculas de pimenta se amalgamassem às da atmosfera e atacassem, juntas, o rosto da vítima, entrando pelos olhos e vias respiratórias. Depois de seguirem toda vida pelas vias aéreas desembarcam nos pulmões que, através dos alvéolos, entregam-nas aos glóbulos vermelhos, que as transportam sem custo para o resto do corpo. Quando chegam ao coração, combinam-se às enzimas de agressividade que, subindo pelos vasos capilares, fixam-se à epiderme.

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O Choque Às 16:30h Rodrigo encontrou, no Largo da Carioca, amigos do partido que apoiara nas eleições do ano anterior e com o qual flertava desde então. Desceram a Av. Rio Branco em direção à Candelária, onde estava marcado o início de uma grande passeata. Levavam vinagre, para neutralizar os efeitos do gás lacrimogêneo, e três cartazes: um favorável ao transporte gratuito, outro contra a violência policial, e um com um risco por cima de uma seta que apontava à direita. Rodrigo ficou com o segundo. Caminharam sem formação, observados pelo bem postado Batalhão de Choque da Polícia Militar. Em alguns minutos estavam na Candelária, compondo uma multidão em formação. Palavras de ordem eram entoadas. Rodrigo e seus amigos faziam coro com as que concordavam. Não demoraram a iniciar a marcha pela Avenida Presidente Vargas em direção à Cidade Nova, bairro onde fica a sede da Prefeitura. * À disposição no Batalhão do Centro: são o Batalhão de Operações Especiais (BOPE), a tropa de elite. Quando viesse a ordem era “chegar pra resolver”, disse o capitão. * Armadura, escudo. Rostos cobertos por máscaras e viseiras. Eram ciborgues. Máquinas não usadas quebram. Máquinas


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de guerra oprimem. Cão encurralado se esgueira para fugir ou ataca. O cão já vinha sendo atiçado pela máquina há décadas. Um granito de trezentos gramas voou, parando num escudo. Bombas de efeito moral abriram uma clareira na multidão, pouco depois coberta pela massa que vinha da Candelária. Foi o primeiro assalto. * “A sede da prefeitura está ameaçada”, disse o governador ao capitão da Polícia Militar ao ver a cena na televisão. O recado foi transmitido aos superiores do BOPE e do Batalhão de Choque. Num erro de estratégia, o Choque não esperou o BOPE chegar. Ansiosos, os ciborgues disparavam bombas de gás e manifestantes corriam atarantados, causando pontuais e breves dispersões. Foram três investidas deste tipo, absolutamente inúteis, até que o BOPE chegou. * Promoveriam pequenos cercos. Assustados, a maioria dos cariocas fugiria. Aos que ficassem, não faltaria munição. Balas de borracha podem ser usadas sem necessidade de registro de auto de resistência. A primeira batalha foi em frente à Prefeitura. Alguns homens recuados atiravam bombas de gás que pousavam na multidão, instaurando o desespero. À medida que os cariocas tentavam escapar do gás se aproximavam dos pelotões de vanguarda que, com seus fuzis, alvejavam-nos. As áreas aonde aterrissavam as bombas ficavam rapidamente desertas. Praças inexpugnáveis. Mas alguns militantes encontravam abrigos nas redondezas e de lá atiravam granitos, favorecidos pela escuridão, já que a própria polícia determinara o apagamento das luzes para prevenir registros audiovisuais. Acuados pelas pedras atiradas por fantasmas, o BOPE recuou. Guardaram posição e só voltaram a avançar sob a proteção dos escudos do Choque. Seguiu-se nova artilharia de bombas de gás e os militantes entocados foram obrigados a se expor em busca de novos abrigos. No caminho, balas de borracha. Algumas os atingiam de tal forma que os tiravam de combate. Manteve-se a carga até que sobraram um professor aposentado, dois homens de meia idade e um secundarista.


renato amado nasceu em 1981, no Rio de Janeiro. Fundou a Editora Flâneur e o coletivo Caneta, Lente & Pincel, pelo qual produziu quatro exposições em locais como o Centro Cultural Justiça Federal e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Publicou um romance e diversos contos em antologias. Fez roteiro e produção do curta-metragem “Morte Súbita”. É especialista e mestrando em literatura brasileira pela UERJ. Atualmente conclui seu segundo romance.

Eles se renderam e foram, aos trancos, levados à delegacia mais próxima sem, contudo, perderem a altivez. * O assalto seguinte foi em frente à Central do Brasil. Uma multidão que carregava cartazes e entoava gritos de ordem foi surpreendida pelas bombas que caíam em locais aleatórios. Enquanto o roteiro do combate anterior se repetia Rodrigo foi atingido por um tiro nas costas. Abandonou sua cartolina e correu até fugir do cerco. Só então sentiu com toda a intensidade a dor do ferimento. Lembrou-se das vezes que inalou gás lacrimogêneo desde o início das manifestações. A evocação das memórias pôs seu corpo em movimento. Corria em direção a um policial que estava de costas, atirando contra uma multidão ou contra o nada. Ao se aproximar pulou e jogou o pé direito para frente. O golpe surpresa derrubou Cabo Moreira. Rodrigo não esperou ele se recompor. Virou-se de costas e disparou pela Avenida Presidente Vargas em direção à Candelária, ziguezagueando para desviar dos fugitivos mais lentos. Enquanto escapava ouvia tiros, sentia balas passarem rentes à sua cabeça. Corria, corria. Se afastava da zona onde atacara o inimigo, mas as balas continuavam vindo, de todas as direções. Percebia que não se tratava de uma vingança contra ele, mas de um bombardeio sobre toda a área. As forças da República retomavam o espaço ocupado pelos cariocas. Continuava correndo, em meio a explosões, gritos, tiros e fumaça. Já se perdera de seus amigos. Passava pela esquina com a Avenida Rio Branco quando uma bala atingiu seu rosto, derrubando-o. Pousou as mãos sobre a ferida, que doía muito, e levantou-se o mais rápido que pôde. Seguiu. Ao passar pela Igreja da Candelária persignou-se e, metros depois, avistou o acesso à Perimetral. Subiu. O ruído que vinha lá debaixo era distante e disperso. À medida que se afastava, a sua respiração, os tênis chocandose contra o solo, e o murmúrio da baía abafavam os barulhos. Foi tomado pelo êxtase da corrida. Fazia o que mais gostava, afinal. Mais à frente estava o Aterro do Flamengo, onde passaria mais de três vezes sobre a foz do Rio Carioca. Estava a salvo.


amores invernais do sul vilto reis

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Franz Alfa se escora na porta do pub, bar, boate (o que é o Babel mesmo?) e assiste à imobilidade da noite, aguardando desesperadamente por Beta Schnitzler. Terá ela ainda os mesmos olhos de lâminas vítreas? Aquelas esferas azuis que parecem partir ao meio todas as esperanças? Ele tira as mãos de debaixo dos sovacos, porém logo as guarda de volta, se abraçando à jaqueta de couro. Repara nas pessoas desconhecidas que passam por ele, insignificantes para o seu enredo pessoal. Bafeja vapor contra o frio, pensando em sua vida até ali. O tempo parece ter vazado de um furo no frasco das expectativas. De chofre, como se conjurada de sua memória para caminhar sob a noite gélida, ele a vê surgindo na rua Antônio da Veiga. Vem por esta rua da universidade, defronte ao Babel. Aos poucos, ela se torna cada vez mais real. Não exatamente como estava em sua lembrança. Um pouco mais velha? É o que tenta perscrutar entre a toca e o cachecol que mal deixam os olhos à vista. Lhe ocorre que estão no sul, onde o inverno abarca as existências. Quando chega perto dele, Beta tira os fones de ouvido e sorri, mostrando apenas os pés dos dentes. Veio ouvindo o quê?, Alfa pergunta. Sonata Arctica. Rock finlandês, ela responde. Você não mudou nada. É geada ou seu cabelo tá mesmo branco? É assim que responde ao meu elogio?


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Mudei. Mudei sim. Ou não teria vindo. Tem razão. Entramos? Entramos. Alfa a segue túnel adentro, tomando cuidado para não tocar na frieza de Beta, com medo que se derreta, que o momento sonhado se derreta. Ele percebe que o Babel não tem seguranças na entrada, como se ninguém tivesse o poder de perturbar este labirinto. A cada passo, ouve ressoar pelas paredes de pedra o som das botas dela. Deseja que a música que vem do interior cresça em direção deles, preenchendo este silêncio dos anos passados, do tempo em que ficaram sem se ver. Então as paredes que eram de pedra se mostram cobertas por couros de animais, grafadas por símbolos estranhos. Quando finalmente chegam ao coração do Babel, Alfa se sente satisfeito, sempre amou o lugar, embora Beta não gostasse tanto. Fica à vontade no espaço escuro, envolto pelas paredes neutras, riscadas por linhas azuis. Também lhe agrada o som ambiente, alguma banda indie que não consegue identificar. Sentamos ali?, Beta pergunta, apontando. Pode ser. Distante da pista de danças, a mesa os acomoda. Logo Alfa se vê cercado por um funcionário do Babel. Vão tomar alguma coisa? Uísque, Alfa responde. Água sem gás, por favor, Beta acrescenta. O homem se afasta, e Alfa sustenta o olhar dela, ao que Beta pergunta, O que tem feito, Franz? Dez anos. Pois é. E então? Um divórcio, enterro dos pais, uma empresa falida, e agora uma vida de freelancer. Podemos voltar no tempo? Isso é uma indireta? Com você ainda de casaco? O Alfa com vinte anos se sente inseguro, ainda na faculdade. Será mesmo? Fará isso? Mas ela não lhe deu nenhum sinal. Ou as conversas, trocas de músicas, comentários sobre livros, significam alguma coisa? Precisa pensar rápido, é uma ação ardilosa. Antes que Beta volte do banheiro. Sim, decide que sim. Toma a jaqueta dela de sobre a mesa e


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enfia em sua mochila. Pouco depois, Beta retorna à sala. Vamos?, pergunta. Sim, sim, ele responde. Ela se vira com uma revoada de cabelos loiros, e ele sente que suas mãos começam a suar. Tão linda, Beta. Podia jurar que vim com meu casaco azul hoje, ela diz. Tem certeza?, Alfa pergunta. Tenho sim, responde. Ele faz de conta que a ajuda a procurar. Porém logo toca o braço dela e pede que deixem a sala de aula, ou perderão o ônibus. Beta se rende e diz que tudo bem. Ao lado de sua colega de faculdade, Alfa desce o morro que os leva até a rua. Depois seguem pela rua São Paulo, sem entrar na Antônio da Veiga, onde a placa do Babel está apagada. A seguir, tomam a Martin Luther, chegando ao ponto de ônibus, em que Beta espera pelo Troncal 15, e ele pelo 10. To batendo queixo, ela diz quando param sob a cobertura do ponto. Alfa tem certeza que esta é a deixa aguardada, para abraçá-la e dizer tudo, abusar das palavras para convencê-la de que a ama. Ele toma a atitude. Usa de toda a sua sinceridade, argumentando, explicando, falando de sentimentos, de convicções que ele acredita ambos terem semelhantes. Quando termina, pairam no ar alguns segundos de silêncio, frios. Não posso, ela diz. Só isso, não pode?, ele pergunta, desesperado. Beta afirma que gosta muito dele, mas não da mesma forma como Alfa gosta dela. Além do mais, complementa, Você me conhece, não vou conseguir me dedicar totalmente; no último ano de faculdade, esse namoro não tem como dar certo. Logo depois, distante, do meio da escuridão, ele vê o Troncal 15 vir crescendo e, depois, levar Beta embora, para longe dele. De volta ao Babel, não mais com vinte anos, ouve a confirmação desta outra Beta, a de hoje, Eu sabia do casaco, ok? Imaginava que sim. As pessoas mudam. Eu era – Sim. As pessoas mudam, sem dúvidas. O homem que anotou o pedido se aproxima, entregando a Beta a garrafa de água e a Alfa um copo de uísque com uma pedra de gelo. Sabe o que não muda?, Alfa pergunta. Uhm? O atendimento aqui na cidade.


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Frio. Impessoal. Como todo mundo. Aos poucos, Alfa sente que seu conflito é o centro do universo. E cada ação sua é o que se espera de um protagonista. Não sabe se terá uma segunda oportunidade, ou uma terceira, pensando melhor. Por isso, toma a iniciativa de esclarecer suas intenções. Esta é a hora. Sem as desculpas da juventude. Beta parece menos rígida, talvez quebrada pelo tempo, agora que passou dos trinta. Se lhe falta o frescor (ou frieza?) dos vinte, lhe sobra uma consciência, algo pontilhado em sua beleza crepuscular. Mas..., ela diz e suspira. Mas?, ele pergunta. E meu filho? Como ficará? Não sabia que você tinha um filho. Muda tudo? Não. Tem certeza? Posso te perguntar uma coisa? Mesmo, que não muda nada? No inverno, bem cedinho, você deixa eu levá-lo pra ver a geada? Beta assente com a cabeça. Alfa segura as mãos dela, Verdade?, pergunta. Claro. Alfa tem seis anos de idade. Os cobertores o fogueiam e, diante do frio da estação, é difícil deixá-los. Tão quentinho ali. Impossível manter os olhos abertos. Mas devagar, como a lesma que ficou olhando no piso ontem, ele vai saindo da cama. Calça os chinelos, tira o pijama e coloca a calça, a blusa, depois outra blusa e por último um casacão. Não, ainda tem as meias, as luvas de meio-dedo, a touca, o cachecol que só a mãe sabe enrolar, porém um dia aprenderá a fazê-lo, promete a si mesmo. A casa ainda meio escura. Ele se senta com a mãe na cozinha. Ela parece preocupada, quieta, toda vestida de azul. E quanto está assim, sem falar, ela nunca fica sem falar, é por que tem problemas. Alfa tem certeza. Ele come um, dois, três biscoitos. Bebe uns golões de café. Limpa a boca com a mão. Pede para a mãe se pode sair da


mesa. Ela demora a responder, mas depois lhe dá um beijo e diz que sim. Tem geada lá fora, a mãe comenta. Não posso sair pra brincar?, Alfa pergunta. Nem pensar, fofinho, ela diz. Por que não?, ele quer saber. E a mãe devolve, Porque não. Mas eu queria ver a geada, tenta choramingar. Ela lhe diz, Na vida, não dá pra conseguir tudo o que se quer. Mas mãe, Alfa ainda arrisca. Sem mas, a mãe encerra a questão. Então quando você se muda pro meu apartamento?, Beta pergunta, dias depois, ao Alfa de trinta anos. Ele sorri.

Alfa se levanta da cadeira e olha para a criança engatinhando no tapete, toda abarrotada de casacos. Se questiona de onde tira essas coisas que estão em sua cabeça. Vai até o pequeno e brinca um pouco com ele. Brinca de ser pai. Depois o toma no colo, dá alguns passos até a janela e,assim que abre a cortina, vê o sorriso no rosto da criança. Tudo branco, tudo branco. A geada cobre muros, calçadas, gramados. Uma camada fininha, cintilante. Logo voltará ao normal, quando o dia se firmar. Esta imagem criada, derreterá. E Alfa precisa retomar o trabalho, voltando à sua escrivaninha. Deixa a criança no tapete e retorna ao que interrompeu, parando apenas para beber, vez ou outra, um gole de café. E se aproximando do final, tem um último pensamento, poderia ser inverno para sempre, pois cristalizar ideias e palavras, em histórias, ganha mais sentido nesta estação.

vilto reis é editor e idealizador do site Homo Literatus, além de apresentador do podcast 30:MIN e da série de vídeos A Arte de Contar Histórias Por Escrito. Atualmente trabalha na escrita de um romance.


conga na boca do cachorrão willian teca

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isso tá aguado! ô rapá, me dá otro! magro suspeito, anda rebolano, parece mulé, desse não, do otro rapá, druris é pra otário, põe mais um poco rapá, faz rendê meu deizão, aí tá bom, qué me vê cuzido? só o primero gole dessa porra presta, depois fica aguado. esse otro ali no balcão também parece mulé, saca o jeito que ri quano fala, sei não, olha, tomano martini, bebida di mulé, pió que o cara do balcão nem marca o que ele bebe, pió ainda é quem num saca o naipe dessas bicha e cai na conversa, viadarada pela-saco do caralho! tipo assim num si cria lá na vila, num si cria, tem é que xingá. viado! e dá na cara, surra de sabonete febo enrolado em toalha, pra aprendê. diabo! cachorrão disse que esse lugá era manero, mais só tem viado. cachorrão disse que tinha umas coroa aqui, num gosto de mulé velha é muito larguifunda. ô viado pelasaco do caralho, tá olhano o quê? mais cachorrão disse que elas dava dinhero. o que que esse viado pela-saco do caralho tá olhano? isso de home querê home é nojento, escroto, que nem diz cachorrão, bom é a forquilha, o risco, a xana, a bucinha, a xoxota, a ostra, a chavasca, a mudinha, a pomba, até de chero. é bom vê elas de lado coa perna dobrada, a barriga que nem corda, rato novo. a preta é boa purisso, é apertada e güenta vara, branca polaca mia. viado pela-saco do caralho, risadinha e olho de canto,


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reloginho bonito, tem grana, podia dá o pino depois, bicha bêbada é mole, chora, ai meu deus moço! é, mijá, isso tá aguado, era melhó tomá caninha, mas cachorrão disse que num era pra tomá qualqué coisa que as mulé fica di bizu, e o bafo enjoa elas, era pra pedi blequeleibou, cum gelo, quem bebe puro é cuzido, pió ainda é gasta dinhero coesses cigarro caro, mais cachorrão disse que num dava pra ficá de cigarro vagabundo na boca, cachorrão disse, mais forte num fica cum cigarro vagabundo na boca, lá o negócio é camisa por dentro das calça, cabelo pentchado cum chero de neutroques, compra desodorante áquis que tem chero de home, mulé gosta de chero de home, mas suó tem que tê na hora de trepá, quano cê sobe nelas elas gosta do suvaco suado, tem umas que beja teu pé por causa do chulé, gosta de sebo de macho, é tudo cachorra que nem na música, bate na bunda delas que elas gosta, e enraba, elas finge que num quere, mas tão a fim. cachorrão sabia das coisa, arranjô uma coroa que banca ele, largô a obra, era bom de parede, foi fazê serviço fora, a coroa gamô, melhó que tinha filha, coisinha de quinze aninho, tineige, mais güenta o ferro de cachorrão, polaquinha de mucosinha rosada. come mãe e filha, ia comê as dua junta, dizia, pra velha lambê o cu dele e ele peidá na cara dela enquanto socava na filha, cachorrão sabia das coisa, preciso vê se arranjo ua coroa, pra encostá o casco, vivê junto, milhó mijá antes de pedi otro. ô véio, quidê o banhero? voz de pato, aponta pro fundo, diz algua coisa baxo, pra ovi e num ovi, fica dano risadinha co otro viado pela-saco do caralho, será que o banhero é de viado? si vié atrás desosso, preciso de ua coroa, megadete tá fulo pelas pedra, culpa daquela preta que só dava pelas pedra, mas a barriga esticada, nem preta direito num era, preta apelido, alcunha, é, só pensá nela emborracha o pau, o buraquinho quente, grelinho pequeno, grelinho grande parece pica pequena, mulé que baba pela xana, a preta era cherosa, bala de goma, suco de caju, levava gostoso. musiquinha no banhero, negócio de viado, sabonete, papel de enxugá as mão, coisa fina, mas é milhó enxugá a mão nas calça, cherinho de perfume, o otro da risadinha, voz de pato, veio mijá, acho, se olhá torto desosso.


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é, musiquinha do lado de fora, tutituti, coisa de paquito. otro blequeleibou, um cigarro, é, ué, o carinha do bar já encheu o copo e dexô no balcão, num pedi, tá noiado o viado pela-saco do caralho? o boiola tá a fim de mim, aí, viado pela-saco do caralho. voz de pato, a moça ali que pagô, aponta cum sinal de cabeça, olho a mina, polaca, caju-piranha, dona bem vestida, tomara que num seja larga, vai valê as pedra da preta, a grana de megadete, penso na preta, entra dobrado se preciso. chego perto, carrego o copo, cigarro aceso no canto da boca, olho meio fechado de arder a fumaça, me manda eu sentá. voz de mulé fina, diria cachorrão, unha feita, dente bonito, naipe que tem grana, naipe de mulé que dorme de dia, a grana das pedra da preta, a grana de megadete, se for pra casa dela inda rola uma cachanga. diz o nome, abre a boquinha bem devagá, l-e-n-a, lena. pergunta meu nome. cachorrão disse pra dizê o nome errado, também era pra inventá um nome de rico, as mulé saca o naipe dos cara pelo nome, cachorrão sabia das coisa, tava comendo a coroa rica e a filha dela, se fosse o caso dizia a verdade depois, cachorrão ajudô a escolhê o nome, tinha que sê nome de rico, pensava em maicou, mas era nome de pobre, dizia cachorrão, que sabia das coisa, bernardo era milhó, nome de rico. sentá de frente, num colocá as mão em volta do copo, costume de cadeia, senão te metem a mão no prato. pergunta o que que eu tô bebendo, pagô agora, agora qué bebê, que beba. dente bonito, entorta a boquinha de lado pra guspi a fumaça do cigarro cumprido, dá risada, boquinha boa, vermelha, toma um gole do meu copo, faz careta, diz que é muito forte, mais forte dona. oferece o copo dela e pergunta qualqué coisa, puxa papo. mulé perguntadera mia, inda por cima fala de jeito esquisito, fala por escrito, diria cachorrão, mas tem tino, naipe de peito pêra, biquinho rosado e pequeno, güenta poco, aí é bom, eu desconverso e vô pra preta, mas tem que vê as pedra, a grana de megadete, a preta é bico preto, isso em mulé é bom, num é fresca, num desatina e escorrega de lado, num tem que ficá prensano em parede mijada. pergunta o que faço, sei lá, invento história, cheguei agora, vim vê qualé, se dé fico, muito velho pra


bolero, vontade era dizê pedrero dona, pau de cavalo, que é o que tu qué, mas num dá. que diria cachorrão? pió que num vem nada, adivinha dona, me popa o guspe, balanço a cabeça, denuncio, desvirtuo, rio de lado, bebo um gole, tá aguado, a musiquinha mais alta, ela diz uma coisa que num entendo, rio de novo, balanço a cabeça. ergue o dedo, vem o magro todo de preto, parece ninja da televisão, dos filme de luta, gente brocha esses japa, vira rabo de arraia, martelo é pá bola, já era, já elvis, que nem dizia cachorrão. o magro volta, traz bandeja, dois copo, o meu e o dela, ela ri, só ri e faz pergunta essa dona. qué fazê tintim, diz alguma coisa, senta na cadera mais perto. tenho que mijá, dô um gole, só o primero gole dessa porra presta. ela diz de novo, chego perto pra dizê que num ovi, perfume, chero de mulé, chero bom, grã-fina, põe a mão na minha perna, abre a boquinha de risada, tá a fim. será? cachorrão disse que num era pra galinhá, só i se fosse na boa, era pra esperá o sinal. que porra de sinal? preciso mijá, digo pra dona, ela chega perto, vô falá, ela cola a boquinha quente na minha, língua macia, doce, encosta o corpo, passa de leve as unha em cima do pau, endurece o bicho, tá torto na calça, cresce de lado, ela dá risada, desgruda pega o copo e bebe rindo. bateu agora, esse tal de blequeleibou num é fraco, pensa se num fosse aguado, milhó mijá. ergo, o pau tá duro, ela ri, no balcão os pato ri, todo mundo ri. milhó mijá, onde é a privada? milhó i de leve, chapô a quina, a quininha de cachorrão pra dá balão bom antes de caí na naiti.

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dois cara se pegano perto da pia, uma gordinha no meio deles, alisa o pau de um, o otro aperta os bico das teta dela, nem me liga. entro num cubículo, o pau começa a mijá antes de abri a calça, o primero jorro pega pela metade, foi quase. diabo de nóia. espremo a cabeça, pinga um pingo grosso, baba de porra, chicoteio a pica e o pingo gruda na parede, saio fora. a gordinha leva por trás e bola gato no otro, lavo a mão na pia mais longe, lavo a cara, passo água na nuca, enxugo na calça pra disfarçá o jorro. olho vermelho, arroto sortido de cana. um cigarro.


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porra de musiquinha de paquito, mais alta, a dona dança do lado da mesa. chego, ela tá chumbada, segura minha cintura, esfrega a xana no meu joelho, é mais baxa, vira de costa e se encocha, o pau emborracha, levanta os braço, rebola, perfume bom. de trás vem alguém, aperta as teta dela, ela olha e ri, um viado pela-saco do caralho cum voz de pato, se folgá desosso. ela dá risadinha, o pato também, dá bejinho, que nem minininha de escola, ela senta e convida o pato, me apresenta, o pato dá a mão mole, parece um bicho morto, olha pra ela de canto, dá risadinha, todo mundo dá risadinha. ela diz que o pato corta o cabelo dela, se despede. cai fora, viado pela-saco do caralho. ela ergue a mão, o ninja volta, vira e volta, dois copo, vai meu vale todo na brincadera, tomara que compense e role as pedra da preta. ela acende o cigarro cumprido, gospe de novo a fumaça de lado, segura o cigarro que nem passarin, passarin rolinha de olho vermelho, a fumaça cara de cavera, encosto nessa mina, o alvará dela venceu. cigarro aceso, ela olha, passa o tino, será que saca o naipe, nem é coroa, pió é que emborracha o pau, só o primero gole dessa porra presta, depois fica aguado. ela tá calada, séria, nem ri, será que foi o pato? diz algua coisa, a voz dela tá pastosa, tá cum cinza cumprida, dô um gole fundo pra faz valê o deizão, ela deixa o copo intero, nem toca, pega a bolsinha na cadera, faz sinal pro ninja, cochicha no ovido dele, dá risada. pego o copo dela, dô um gole, parece nesaldina, seco, bate que nem martelo, bom, lá no fundo. tá quente aqui, porra de musiquinha alta de paquito. sai saindo, digo que quero pagá a conta, dinhero dos vale, as pedra da preta, o dinhero do megadete, caminho lento, pé de porco, ela gruda de lado, segura a cintura, os viado pela-saco do caralho cum voz de pato continua de risadinha. a luz da entrada é forte, a porta fecha, parece porta de faroeste, pra lá e pra cá, ela pega o papel das bebida, fala alguma coisa pro negão da entrada, o cara é grande, mas é lento, dava pra corrê, pisante de borracha eu, ele de sapato, ficava coa grana das pedra da preta, de megadete, se bobiá é martelo bem dado, rabo de arraia. ele dá pra ela uns papelzinho colorido, ela dá risada, o negão me olha no olho, manja a minha, balança a


cabeça, balanço na minha, deve tê dado o pino pra tá aqui, mais gordo que forte, martelo bem dado é pá bola, já era, já elvis, que nem dizia cachorrão. viva! ela gritava, esperano por mim do lado de fora.

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lá fora dá as chave prum piá, do lado da gente a gordinha e um dos viado pela-saco do caralho cum voz de pato do banhero. olho o rabo dela, ela ri, a gordinha ri. chega otro viado pela-saco do caralho cum voz de pato, todo mundo dá bejinho. todo mundo ri. mais bicho morto pra apertá, ela diz que não, alguma coisa, chega o piá e abre a porta do carro, ela diz tchau, dá nota pro moleque e entra. entro, carro cheroso, ela me dá um bejo, boquinha macia, quente, dente lisinho de grã-fina, gosto bom, a preta tem vão na boca, murro do macho dela, o toco do dente machuca a língua, mais é apertada a bicha. liga o carro, sai saindo de leve, liga musiquinha, é, musiquinha em tudo que é lugá. pára no sinal, brilho frio de vermelho, pingo de garoa, amarelo, verde, ela bota a marcha, aproveita e alisa a cabeça do pau, unha feita, cumprida, unha de mulé que dorme de dia, o bicho emborracha, abro o cinto, o zíper, tiro o pau, enverniza, ela segura cuma mão, coa otra dirige, soca uma punheta devagá, saca o troço, pára no sinal, vermelho frio, dá pra vê a garoa. boquinha quente, língua macia, passa de leve na cabeça e engole, fica cos pentelho que nem bigode, vai e vem coa boquinha, verde, o carro atrás buzina, ela ri, engata a marcha e sai, o carro passa do meu lado, a gordinha cum viado pela-saco do caralho e voz de pato do lado, o otro no banco de trás, buzina, passa rápido. vermelho, a gordinha pega o finzinho do verde, vai longe, ela ri, pega de novo, vai e vem, aperta as bola, passa as unha de leve, o pau contrai, lateja, cachorrão sabia das coisa. procuro o buraco dela, ela ri, tira minha mão, diz que não sem saí som, só mexe a boca, engata a marcha, num sei onde vai, mais é quente, vermelho frio cada vez mais molhado, saliva grosso, baba na pica, verde sem amarelo, vermelho, a gordinha tinha rabão, o riso do pato de lado, desossá os pato, dá pino, batê na cara, viado pela-saco do caralho, vermelho, só vermelho, verde, chuva grossa no mesmo lugá, a preta, as pedra da


preta, a grana de megadete, a preta, as corda da barriga, o caminho da felicidade, verde, chuva grossa no mesmo lugá, vermelho, baba, arroto de sortido, nesaldina e blequeleibou, pato do caralho, a preta, a preta, a preta. vermelho quente, deságua, chove grosso que nem corda, que nem corda, ela ri, brilho na cara, na boquinha, vem dá bejo, viro a cara, lambuza meu pescoço. verde, engata a marcha.

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reconheço as rua, os lado da obra, será que ela qué i pra obra? musiquinha de rico, cedê-sade diz a capinha de plástico riscada de gilete, carro quente, painel azuzinho, ela acende cigarro de mulé, cumprido cum barra de florzinha, puxa fundo, põe na minha boca, trago, o cigarro falha, o ar escapa antes do gosto, ela aponta o porta luva, abre a portinha, tira um pacotinho, joga no meu colo, o pau pensa que é coele e vira de lado. abro, chero, dechavado, madera de lei, seguro o cigarro co canto da boca, fecho miúdo o olho, seda, tiquinho não, charola, vela, carco fumo, chero bom, dechavado, enrolo quase seco, bazu pra sê bom tem que sê assim, num pode sê babado senão apaga fácil, cachorrão sabia das coisa, cum dona assim é mostrá perfeição, vai devagá, vira aqui e lá, enrola, que isso dona? buchinha na bolsa, capa de cedê-sade, giletinha, vermelho, divide quatro carrerinha, limpa o nariz, passa o cedê-sade, pega o bazu, acende, fuma fundo, fuma grosso, notinha de cem de canudo, lisinha, fungo fundo, agulha no fundo da cabeça, vem a gosma da barriga, a boca enche de espuma, engulo amargo, vontade de ri, porque é que a dona dirige? devia sê eu, sô o macho, se o pato dirige, eu dirijo, passa a bola dona, isso de cem fica comigo, discreto, cachorrão disse. fico segurano o cedê-sade, dô ua bola que a cabeça enche, rio, ela ri, tira o vidrinho azul da bolsa, pinga no olho, dá pra mim, friozinho. entra numa rua estreita, escura, rua da obra, vira pra direita, parece que vai entrá no cantero, faz um balão, entra na boca do prédio da frente, a garage abre, o carro escorrega macio pro escuro, passa entre os carrão, esse lugá é a festa. pára, desliga o som, desliga o moto, puxa a chave, pega a bolsa. pulo do carro, podia catá a dona, levá o carro, dá a dica, meia hora tudo feito, fim de obra, pedra


da preta e até cervejada co megadete, bebe aí mais forte camarada, mas cachorrão disse pra i lento, pegá confiança, tê paciência, tem paciência mais-forte.

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botão verdinho, elevadô, rápido, ela entra, aperta o doze, cum anelzinho de roda. olho o espelho, olho vermelho, cara de chapado, me abraça. enfia a língua na minha boca, macia, chero de suó, perfume e cigarro, o pau emborracha, aperto a bunda da dona, grudo na cintura dela, ela me empurra, o elevadô pára, a porta abre, ela sai, a luz acende sozinha, todas as porta são igual, a dona tira um sapato, depois otro, salto fino, pé pequeno, fica mais baxinha, dá risada, o tempo todo, abre a bolsinha em frente a qualqué porta, pega a chave, tenta enfiá no buraco, cato a dona por trás, encosto a pica, aconchego a encochada, ela se encolhe, rebola, tenta escapá, tateia a chave que nem cega, seguro a cintura, fungo a nuca. ela se bate coa porta, num consegue abri, puxo pela cintura, ergo a perna, chuto bem perto da fechadura, a porta estala, bato de novo,a porta abre, a dona escorrega dano risada pelo buraco escuro, vô detrás. escuto ela caí nalgum lugá, procuro o botão da luz. ela dá risadinha, sempre risadinha, acendo, sala grande, pé direito alto, ela estendida no meio da sala, dá risadinha, sempre a risadinha, levanta, a camisa quase toda aberta, saia erguida, as perna boa, peito firme, liga o som cheio de luzinha azul, que nem do carro, deve custá tanto quanto, mais luz, mais pedra, mais cedê-sade, num dá pra ficá loco nesse sonzinho, aquele cara do eici é que é bom, bate firme, a preta gosta, diz que bate que nem as pedra, puta, a grana do megadete, quantas pedra dá esse som? ela pega uma garrafa, dois copo, serve o dela, bebe tudo, passa a garrafa, o copo, vai saindo, deixa as ropa pelo caminho, some. pego a garrafa, que copo que nada, puro, bebo um trago, será que tem eici? eu é dona, que nem tem nada que preste aí pra escutá, esse cedê-sade trinca as bola, podia ligá pra preta, chamá ela, ela traz os eici. trago, bom isso, mas a garrafa é grande demais pra virá, num é blequeleibou, ja, jaq, jaque, jaquedaniéus, jaquedaniéus, será que tem um bazu por aí, a dona tá demorano, milhó, aí dá pra aproveitá, trepá agora era porra, ainda mais ia tê que


dá um jeito de escondê a tatuage, aquele troço feito a prego e tinta de caneta coa letra de cachorrão, dilma, o coração torto cum flecha, e a preta nem deu bola. mais forte, eu quero que alguém cuide de mim, que me dê algo pelo amô, cê é muito coitado, nem tem nada, dona adelaide diz que homem tem que provê a gente, disse pra eu num sê burra e num ficá cum cadeiero que nem você que é atraso de vida, eu sô bonita, é só eu arrumá os dente, dona adelaide disse que seu cristóvão me acha bonita, seu cristóvão é home fino, num é que nem você, bebe bebida importada, fuma cigarro de grife, veste terno, é cheroso. filho da puta, a preta deu o tombo depois, fodeu seu cristóvão e dona adelaide, tudo junto, aí deu a dica pra megadete a troco de pedra, abriu tudo na moita quano eles viajô, deu no pé, sumiu, aí caiu de vez na vida, mas nem agora dá valô, dilma do caralho, mas é gostosa a bicha, barriga de corda, teta dura, bico preto, mete sem folga. a dona tá demorano mesmo. i aí, buchinha, deve sê da boa, gente rica num faiz fiado na boca. coisa fina mesmo, cai fina na ponta da língua, cade o cedê-sade essa musiquinha até que é boa, musiquinha em tudo que é lugá, trago no jaque, bom, esse pó esfria a gengiva, cadê a notinha de cem. aquela coisa boa na parede do fundo da cabeça, é, que diabo de barulinho é esse, será tuim-tuim da coca? diferente, não, parece telefone tocano, isso é telefone tocano, tomara que a dona num me apareça agora, tocô, tocô, tocô e parô, belê. acabô o cedê-sade, colocá otro pra quê? num tem nada de bom, vai o mesmo, que porra, que botão aperta no meio dessas luzinha azul, cadê o plai? tá aqui!

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essa musiquinha até que num é ruim, cum goró até que num vai mal, tá demorano a dona, será que tá no telefone, o deve de te ido tomá banho, rico toma banho toda hora, vai vê cagô, o fez cocô, rico num caga, dona bonita nem faz cocô, tem buraquinho só pra enfiá o pau, bom isso aqui, sê rico deve de sê bom, coçá o saco o dia todo dizê que é empresário, que será que essa dona faiz, deve de tê marido bacana, aquele tio da fotografia, do lado dela, é, essa gente fica tudo chapado pra sê feliz, só casca, sem essência, que


nem diz cachorrão, de onde será que ele sabe tanta coisa? deve de sê aquelas putinha de faculdade que ele come. que porra de barulho é esse, acho que chegô alguém, milhó chamá a dona, porra, como esse apartamento é grande, será que a dona se escondeu e qué ficá brincano, tem mulé que gosta de brincadera desse tipo, cachorrão disse que conhece mina que curte apanhá e que mijem nelas, eu é rosa, que tipo. é, porta do quarto encostada, milhó batê antes, toque toque, é, mas num responde.

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e aí dona acho que tão bateno na porta, tá ligada? é, caída na cama de bruço dona, tá quereno, é, sê enrabada? é, nos cano dona, que que é isso? agulha fura. num é só deus que mata dona. então tá, vamo erguê a sainha, que se foda a porta, que isso dona, tá cum frio? tá gelada, num se mexe, vem cá dexa eu ajudá, meto a mão aí no buraquinho quente. que porra é essa dona? sai fora, fica aí viado pela-saco do caralho, voz de pato do caralho. sai fora, rapá, qualé, qualé, calma, calma, num puxa o ferro não,sinhô, num foi nada, nuo fui eu, num senta o dedo não sinhô, tipo eu tava só tomano uns goró, tá ligado? tipo, não, não, não.. .trac trac bum para todo lado.

willian teca é escritor e músico. Atualmente é doutorando em Estudos Literários na UFPR. Mora em Curitiba.


apoio


ATSIVER SOTNOC ED


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