Flaubert #06

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fez um olho e uma boca na tapioca? De brincadeira, pai. É sapeca, a grudentinha. Tome, essa alpercata eu peguei da bodega para o senhor. Encerrava o assunto e deixava o pai e o pai conversarem do jeito que gostavam: do fumo feito de folha do mato, sem uma gota de voz, ao café forte, moído na cozinha em peso pra o mês. Boa coisa foi Dôra ter viajado a passar o resguardo com Dona Fernanda, livre da fita enganchada: “Essa sua mãe tem uma língua!”. Sem obrigação durante a noite, entrava na oficina, cheio de invenção, não bastava pagar, era preciso lhe dar um agradinho, pois só assim Conceição apertava as amêndoas e as mergulhava na calda de gordas lágrimas de bem-querer. No dia em que lhe dei um cavalinho de madeira com um laço rosa feito com uma fitinha de pulso comprada no Horto, fez massagem em meus pés, chegando a perguntar se eu queria água quente pra ser maior o alívio do dia. Precisa não, meu denguinho, chegue, suba aqui, suba, brinque com esse outro cavalinho! Não dando em nada os quarenta minutos perdidos na oficina, fui até o roupeiro e vasculhei debaixo dos panos do casamento. Nunca usei a caixinha de sabonete Febo, o pente azul e o frasco de perfume Blue Lotus – o que salvava no meio do resto. Juntei as coisas com o vestidinho amarelo, muito simples, comprado fiado com paga na conta de um mês. Olhe, Conceição, eu trouxe uma coisa para você, uma não, quatro. Para que vá à missa das cinco quando quiser, e não se importe com cara feia, faça careta também, bata o cabelo de rabissaca. Garanto que no céu vão fazer é festa de sua presença, Maria Madalena morta de orgulho de sua aparição! Ah Jolí, como ficava alegre, ia logo dizendo se eu demorava a voltar. Demoro não, minha flor, e será que vivo sem sua graúna? Pegue uma coisinha de café pra nós, pegue. Saía com a promessa de voltar e de trazer babosa para o fim de desmamar o afilhado de Conceição, o menino já com dois anos ainda exigia o peitinho de Dadá, que nunca foi afamada, mas era capaz de fazer gente voltar à casa de Dona Rita. Com o menino pendurado nas peras, sobrou o serviço de casa pra ela, deixava tudo limpo depois de cada ocorrido. Na soleira, gritei Eu trago, viu Dadá? E fui para o caldo de peixe em Raimundo Marco. Eita como cresceram esses teus meninos! Naquele tempo ninguém falava em jogo de bola, o assunto era a casa de Dona Rita. Rafael e Mirialdo, a mando de Raimundo, fizeram farra com as meninas, e como qualquer que somasse dois e dois sabia que dava quatro, eu soube quais eram as prediletas dos garnisés. Mirialdo falou de Ledinha: “Essa faz qualquer coisa, capaz de subir no pé de cajá e caí só porque você mandou!”. Disse que Délia era mulher pra três cabras de uma só vez, e que ele mesmo era esses três num só. Disse ainda, que até Dona Rita contando anedota era apetitosa, e que quando com ela esteve quis brincar de filhinho e mãezinha. Luzinete era quem não colaborava, queria sempre-sempre a luz apagada: “Quantos anos na vida precisa pra saber que homem gosta é de olhar?”. “Conceição vocês já sabem...”. Raimundo balançou a cabeça concordando com seu mais velho, chegando a vez do moço Rafael. Mais reservado, olhava o chão, todo encabulado, e quando precisava falar, botava na boca o copo, que era pra se safar. “Deixe disso, fale

pro seu pai se gostou, Rafael!”. “Gostei, pai. Mas também não gostei não. Porque Dadá agora ganha quase nada e Dona Rita já disse ao mano que a queria expulsar! E tudo por conta desse aí! Que faz filho em outra e corre com medo da mulher saber!”. Todos levantamos da mesa como se tivessem anunciado um tiroteio. Peguei o frango pela gola, pense numa raiva, Jolí! Mirialdo segurou Raimundo Marco: “Você deixe pai, que é Assis!” Durou nem um minuto, mas o menino ficou tão apavorado, também muito orgulhoso de se ter batido comigo, que eu fiz foi dar uma risada alta e até Reginaldo deixou a cozinha pra vir perguntar de que se tratava. Esse frango aí, só porque virou macho deu pra querer ser de meu tamanho! Me conte logo de onde tirou essa história. “Tirei de canto nenhum, ou se o senhor quiser, tirei de todo canto, porque todo mundo já sabe de seu segredo...”. Nunca tinha ido de tarde à Casa das Primas, como se escrevia no letreiro pintado à mão. Não é que dou de cara com o menino de Dadá solto na soleira da sala? Ainda mama, é seu safado? Pois não é meu, que não mamei nem três meses, não dei prejuízo a minha mãe! O menino de chupeta, uma frauda maior que ele agarrada a ela. Uma alpercata escura e a cueca com tinta largada de tanta lavagem. Vá chamar sua mãe, vá! Coçou o bracinho e foi andando para trás. Pela sobrancelha fininha podia bem ser de Marciano. Agora, se vejo o narizinho de cebola, lembro logo de Ciço Bode, que foi também muito feliz se aproveitando de sua mãe! Cruzei o corredor e fui direto à lavanderia. Nem sei o que pensava na hora, Jolí. Conte, mulher. Conte, tudo. Desatou num choro tão desgostoso, as coisas prontas pra ir embora. “Pode não acreditar, mas Macarrão é seu.” Com dois anos e já tem apelido? Oh bicho safado é homem! Tem que tirar o menino desse lugar, Dadá! Oh azar dessa mulher, meu Deus, pegar bucho no primeiro mês de trabalho! Não me olhe assim, Jolí. Que você sabe que guardo por tudo que é meu. Se ela dizia que o menino era meu filho, e mais que isso, se as amêndoas de Conceição, tristes como nunca havia visto, deixavam escapar o mesmo, nunca eu poderia duvidar. Saí pra resolver as coisas, pôr Daiana num quarto, prover do possível, nem que assaltasse, à surdina, a bodega num primeiro enquanto, ou vendesse um gado, aradasse um terreno. Proibir Macarrão de ser chamado de Macarrão, num batizou de Juliano? Pois chame de Juliano! Amenizar a intriga pelo lado de cá... Descer a escada que subia com tanto gosto foi o mais difícil. As amêndoas em calda eram descerteza perdida enroscada em um novelo de linha podre! Por que Dadá no lugar de Conceição? Agora em vez de um inferno, eu teria que manter dois! E mantive, não foi, meu amigo? Tanto que tenho você, pra agradar os cabrinhas. Me dou o regalo de morar nessa rua chamada Conceição, que muito vizinho nem desconfia por quê. Posso pensar assim e ser mais feliz: mudei para Conceição, moro nela. Não sei se existem ainda as amêndoas, aguadores desse sertão cuja flor é sempre de pedra. A bem dizer, nem sei de onde tirei essa palavra “amêndoas”, coisa que nunca vi, mas se existem devem ser iguaizinhas as dela. Naquele dia, quando voltei pra buscar a criança enrolada num cueiro e a mulher com o pano de prato feito toca na cabeça, soube da 24


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