XXXVII Edição

XXXVII

JUN 2023

CINEREO

Ser jovem é ser Cinereo. Não estamos no branco nem no preto, somos cinzentos, estamos no entre. Porém, cautela! O “entre” é uma terra de ninguém – estamos no foco da batalha.

O sangue espilra tanto de um lado como de outro, os odores pútridos dançam entre si e as lágrimas beijam promiscuamente todos os rostos inânimes. Mas todo este cenário bélico e grotesco tem um quê de sedutor.

Vivemos a guerra, mas ainda não somos guerreiros. Somos como o Cinereo num incêndio – a cinza -, que flutua no vento, sem origem ou rumo próprio.

Mas nós queremos ser o incêndio. Há que ter cuidado, há que saber sobreviver no entre. Já perdemos a inocência de criança: a nossa alma já não é branca como a neve e agradáveis como a lã. Por outro lado, também não somos – ou não queremos ser – os ideólogos, os fundamentalistas, os presos em mundos de ideias da criação de alguém.

Somos independentes quanto baste, responsáveis quanto baste, crescidos quanto baste.

Quanto basta? É a inquietude dessa incógnita que vagueia e alimenta a nossa identidade juvenil. A verdade é que ninguém sabe. Nós somos jovens nisto, mas o mundo também é jovem a olhar para nós. Somos mais um fenómeno demográfico no novelo embaraçado que é a sociedade pós-moderna – uma sociedade que não está em constante evolução, mas em constante revolução. E a revolução marca tudo. Mais uma vez, é como o Cinereo que se deposita a milhares de quilómetros quando um vulcão errupte. E o ensino médico tem erruptido muito no último século.

As cadeiras dos nossos professores pouco têm que ver com as nossas poltronas. Mudam-se os tempos, mudam-se as dores.

No meio desta inconstância, surgem ainda eventos desestabilizadores.

Os climas, os abris, as pandemias, as guerras. São atentados também à juventude, ou, há quem defenda, é a juventude quem atenta. Quando somos crianças, falamos como crianças, pensamos como crianças, e raciocinamos como crianças. E agora? Já podemos votar, mas conseguimos tocar no mundo? O que ressoa é que nem conseguimos tocar naqueles à nossa volta, ou até em nós mesmos.

A juventude é uma doença que se cura com o tempo. Até lá, somos condenados a angustiar esta pletora de sinais e sintomas inespecíficos, que tão facilmente nos elevam como derrubam. Vivemos este Cinereo.

Desejamos que esta XXXVII Edição da Revista RESSONÂNCIA seja como a vinheta clínica do jovem estudante na FMUL.

Alexandre Oliveira & João Correia Coordenação-Geral da Revista RESSONÂNCIA

CRÓNICA Sede

5

U m p r e l ú d i o a b u n d a n t e e m c o i s a n e n h u m a

6

BLOCO 1 Calor em Abril e Eco-Ansiedade

10

Nós somos aqueles por quem estávamos à espera

12

Te s t e m u n h o s d e A l u n o s d a U c r â n i a

16

BLOCO 2 Medicina: sonho de infância ou pesadelo da juventude?

20

M e d i c i n a e Te c n o l o g i a - D á d i v a o u C a i x a d e P a n d o r a ?

22

Te x t o d e f i n a l i s t a

24

CULTURA Awakenings

27

Severance | Um thriller empresarial

28

Aftersun | Quando se põe o sol da infância

30

Juventude na atualidade e os seus desafios na literatura

31

POESIA Nossa Senhora dos Remédios

33

Por entre a poeira dos cenários da minha mente

34

CRÓNICA Vida em Caixa

37

[Inserir Título]

38

C

N

R

I

Ó

C

A

CRÓNICA

Francisco Ganço

A SEDE O

som tonante do despertador volta a resgatar do sono o corpo e a mente de Luís. A rotina já não lhe paga as contas, tanto que não são feitas de dinheiro em dívida, mas de sonhos e aspirações.

A cara, cabisbaixa, como, de resto, a sua figura, ensona-se perante o fulgor crepitante da janela que desvenda o dia pelo seu detrás. A atmosfera fotónica do quarto contrasta com a escuridão que consegue ver e, a custo, lá se levanta calçando os seus sapatos cinzentos que, decerto, arrastará pela casa.

O telefone apita num frenesim ao dar pela sua presença.

E tanto que se ausente, não lhe poupam as mensagens, as chamadas, as notificações do calendário, as aulas que terá, e as milhares de rotineiras montanhas russas que terá de enfrentar dali em diante. Por muito que ignore, por momentos, toda aquela chamada por presença, é na moldura da janela do seu quarto — um subterrâneo quarto na capital portuguesa — que vê tanto de desespero como de perseverança.

A janela, mesmo fechada, revela-lhe tanto.

Em todos os dias da sua vida, em ciclos intermináveis de desespero, repete-se, sempre, o mesmo fado de acordar e ser chamado a ser algo que não lhe aprazeria ser. Mas, nesta angustiante e repetida vida, há sempre um toque de diferença e de mudança que, na tela do mundo real que é sempre feito do mesmo, vai, com vários tons de luz pintar sempre uma esperança nova. Um toque de pura diferença numa imagem que é sempre, sempre, sempre igual.

— O que me vale é esta luz. — reflete para si mesmo, ardido de devoção pela vida.

Aquela ténue luz é, hoje, amarela e quente. E tantos dias foi azul e fria, vermelha e encadeante, artificial ou natural como a água que corre serra abaixo e que nutre todos os solos ao seu redor. E todos os dias, mesmo que iguais, a luz que os ilumina é diferente.

Luís levanta-se, esfregando os olhos cansados.

Vai arrastando as pantufas cinzentas pelo chão empoeirado e, chegando à janela, abre-lhe os taipais e deixa que toda aquela vibração o inunde e ao seu quarto.

Abre a janela incrustada na parede dura e olha, pela grade que se ergue por fora, o mundo que se encima.

O mundo está por cima da sua cabeça, dos seus ombros, dos seus membros cravados no seu tronco. Sabe-os de cor.

Tem de os saber. Mas na janela que transparecia a luz e que desvendava um mundo novo de brilho e abundância, encontrou um mundo de reclusão, assente por cima de si, prensando-o hidraulicamente, mas sem lhe dar água senão sede.

Não lhe deu água senão sede, abrir a janela e enfrentar a luz brilhante.

E queira a luz brilhante, matar, um dia, a sede ao Luís que há dentro de todos nós.

Luís olha para a janela, diante de si, sentado na berma da sua cama. Fita a luz que escapa por entre as vigas e que lhe toca a pele, queimando e enrubescendo.

5

CRÓNICA

Carolina Afonso

UM PRELÚDIO ABUNDANTE EM COISA NENHUMA U

m prelúdio abundante em coisa nenhuma. Sem água canalizada ou luz elétrica, sem internet nem edifícios de 57 andares. Foi esse o começo da nossa história, onde do nada que antes era se fez o tudo que hoje é. Estamos desenhados para olhar o ordinário e fabricar o extraordinário, de ver o q ue ninguém viu naq uilo q ue todos podem ver. E no mundo atual onde tudo está já inventado, a inovação terá de vir de nenhuma outra coisa senão da capacidade de relacionar e interligar o sabido e estudado e fabricar algo excecional e inesperado. É assim que se movimentam as rodas da revolução, neste caso, da revolução da medicina ocidental.

Atualmente uma medicina baseada na evidência, focada em métodos concretos e científicos de diagnóstico, extraordinariamente eficaz no tratamento de tudo quanto é físico e palpável, já não tanto no que toca a fenómenos no âmbito da psique, começa lentamente a ampliar o seu alcance às práticas desde há muito aplicadas no Oriente.

Abrem-se as portas à meditação na Medicina.

Meditar é encontrar o nosso “eu” interior e aprender a diferenciá-lo de pensamentos e emoções de forma a termos uma perceção verdadeira da realidade. A meditação não implica não pensar em nada ou não sentir nada, mas sim ter consciência dos nossos próprios fenómenos mentais e deixá-los seguir sem qualquer crítica ou julgamento. É encontrar o nosso sentido de paz interior. É um constante relembrar da vida que nos envolve, na totalidade, por dentro e por fora.

6

A raiva, por exemplo, não tem cura. Pelo menos, não ainda. É uma doença. Alastra-se a cada dia um pouco mais, percorrendo todos os milímetros de longos nervos periféricos por um período indefinido no tempo... Dias? Semanas?

Anos? Até que chega ao centro. Chega ao cérebro. A partir desse momento começa a agitação, a insónia, a confusão, a alucinação, a paranóia. Não há como voltar atrás. Não há como de outra forma a descrever. Morte.

Similarmente, a raiva do Homem em pensamentos e palavras irradia-se a cada célula, quer lhe pertença ou não, e como se de um vírus se tratasse, infeta. Amplia-se. E uma vez sem controlo, sem percepção, arrasta. Carrega-nos em peso à ponta do precipício, ao ponto crítico, onde sopra o vento cada vez mais forte, onde o nosso próprio peso nos deixa de agarrar à terra, onde sentimos a escolha, onde a um sopro de distância a escuridão se estende a ponto de não retorno.

E tal como na doença, onde nos meandros de uma negra história vulgarmente se omite a clara e serena realidade de um único sobrevivente se encontrar entre os demais, temos por hábito deslembrar a vida em cor e existimos em tonalidades de cinzento. Esquecemo-nos que à profundidade de qualquer abismo lhe antecede sempre um pico mais alto onde podemos escolher ser. Onde podemos escolher olhar em volta e ver como as folhas são mais verdes, as gargalhadas mais imensas, os abraços mais quentes. Onde podemos escolher bem acima do vento e escolher ficar na plenitude da existência. Aqui. E Agora.

ENTRETA

ANTO, JOVEM

NÓS SOMOS AQUELES POR QUEM ESTÁVAMOS À ESPERA P

hilippe Ariès, historiador francês, afirmava que até à altura da Revolução Francesa, quando inaugurou-se a ideia de uma educação universal – para os homens -, não era sólido nas sociedades europeias o conceito do adolescente, ou mesmo do jovem, enquanto uma fase diferenciada da vida. Era-se criança – a qual, segundo o mesmo historiador, era muitas vezes tratada como um adulto em miniatura, que poderia vestir as mesmas roupas e trabalhar junto de sua família –, e após a puberdade, o indivíduo se encaminharia para a fase adulta, com responsabilidade de trabalho e família. A alternativa a isto era vivida pelos que aderiam à vida religiosa, ou, nos casos raríssimos dos rapazes da elite, que poderiam iniciar um curso universitário antes de estarem formalmente em uma profissão.

Assim, sabemos que a juventude ser considerada uma fase da vida é uma experiência da contemporaneidade: não porque antes, em diferentes culturas, não se tinha 23 anos – contudo, o conjunto de expectativas e vivências associados a essa fase da vida em específico, pouco se diferiria do de alguém com 40 anos. O aumento da expectativa de vida e a melhoria de condições gerais possibilitou para muitos a experiência de ter uma nova etapa, uma transição, com foco no aprendizado e no desenvolvimento pessoal. Se antes, portanto, “ser jovem” chegava a ser um privilégio, vivido por poucos, um maior desenvolvimento social permitiu que uma parcela maior da população sentisse-se com um período da vida novo, no qual justamente a novidade, o desejo de escolher, aprender e mudar, fosse algo essencial.

10

E como era este ser jovem no século XX, há pouco mais de 50 anos, em Portugal?

Se fosses homem, e gostasses de ler, era muito provável que um em cada três amigos não tivesse a capacidade de fazê-lo. Se mulher, uma a cada duas. Estar na Praxe? Passar a noite em claro com as sebentas? Apenas com sorte, uma vez que apenas um em cada cinquenta jovens teriam a possibilidade de estar inscrito nas universidades, que existiam apenas nos maiores centros. Já as noites em claro poderiam ser às vindimas, às desfolhadas, à pesca, dependendo da região do país, para mais de dois terços dos homens e mulheres portugueses que eram habitantes das áreas rurais, e que das plantações, águas e montes tiravam seu sustento. Elas, que compunham oficialmente apenas 18% da população economicamente ativa do país, em grande parte trabalhavam de antes da aurora até o adormecer das crianças, na foice ou no fogão.

Ainda que as preocupações com o pão diário fossem o lembrete para suas realidades já desde muito cedo, evidentemente havia tempo para os folguedos, festas e namoros. Em que pese o

“ O acesso à saúde pública, [...] maior democratização do ensino superior, [...] o combate às mudanças climáticas são algumas das preocupações [...] de milhares de jovens “

-da-historia/ , https://www.pordata.pt, “História dos Jovens no Ocidente” , “História Social da Criança e da Família”

Luiza Tonon

Referências bibliográficas: https://www.ces.uc.pt/publicacoes/rccs/artigos/27%20-%2028/Joao%20Peixo to%20-%20Alguns%20dados%20sobre%20o%20Ensino%20Superior%20em%20Portugal.pdf, https://www.publico.pt/p3/como-ser-jovem-em-2021, https://aph.pt/a-juventude-como-objecto-

NÓS SOMOS AQUELES POR QUEM ESTÁVAMOS À ESPERA

NÓS SOMOS AQUELES POR QUEM ESTÁVAMOS À ESPERA

ideário de que no passado os casamentos eram celebrados antecipadamente, os dados mostram que na década de 1960 a média para subir ao altar era de 26 para os homens, e 24 para as mulheres – idade que era também a média para o primeiro filho. Hoje, as portuguesas casam-se em média aos 33 anos, e são mães pela primeira vez aos 30. Um enorme tabu no Estado Novo, que poderia mesmo gerar a contradição de um registo de uma criança “de mãe incógnita”, um bebé nascido fora de um matrimónio, que ainda assim correspondia a 9,5% do total de nascimentos, hoje chega mesmo a ser majoritário: 60% dos novos portugueses não têm seus pais casados no dia de sua chegada ao mundo. Se a escolha de parceiro/a feita na casa dos 20, com o passar do tempo não se

entre outros, tiveram drástica mudança em pouco mais de meio século. Todavia, existe um caminho longo adiante para que possamos plenamente ser jovens. A impossibilidade de atingir uma independência financeira, mesmo com trabalho, de ter sua casa, de planear uma família, de ter estabilidade laboral. O acesso à saúde pública, à cultura, uma maior democratização do ensino superior, e, ainda, e importantíssimo, a falta de ações para o combate às mudanças climáticas são algumas das preocupações da mente de milhares de jovens portugueses quotidianamente. Se param as chuvas, aumenta o calor, que terra teremos?

Se o trabalho de hoje nos deixa insatisfeitos, por quê nele continuar? Para quê e para quando a nossa força? Aspirações e questionamentos

revelasse a ideal, legalmente o divórcio e uma nova união não poderiam acontecer. Assim como uma mulher casada não poderia cruzar as fronteiras sozinha sem expressa autorização de seu cônjuge. Ainda assim, a contestação, a inquietação, o sonhar, que no século XX se tornaram a marca da juventude, fez-se aqui presente. Eram sobretudo jovens que fugiram pelos caminhos raianos, da pobreza, de guerras que nunca seriam as que queriam travar, da falta de possibilidade de dizer aos ventos o que poderiam fazer no futuro. Pensariam eles que seus filhos e netos poderiam ter uma vida tão diversa daquela que seus pais e avós também haviam levado?

por vezes muito parecidos com as sentidas nas décadas anteriores, outras emergentes do tempo em que o amanhã não tarda a chegar.

Sim, queremos ser jovens, com toda sua plenitude, mas, principalmente, com a certeza de que teremos algo pela frente, que não o resignar-se, que não um eterno esperar de um dia melhor.

Hoje, podemos fazer parte da estatística dos mais de 40% de jovens que podem frequentar o ensino superior. Os indicadores de saúde, educação, rendimentos, liberdade de expressão,

O sentimento dos que vieram antes de nós de que não estavam sós fez toda a diferença para podemos ser o que hoje somos. Se hoje nascer mulher não é mais um prenúncio de uma vida cerceada, ou se recusamos ter nossa causa calada, há de haver memória de quem teve a liberdade entre as grades de ferro. De quem a leveza da juventude não foi uma possibilidade, de quem a escolha não foi substantivo do futuro. É preciso haver a força dos que rasgaram a barreira do impossível. Há pouco tempo.

11

CALOR EM ABRIL E ECO-ANSIEDADE

Filipa Dias

CALOR EM ABRIL E ECO-ANSIEDADE C

omo bons portugueses, aos primeiros sinais de um raio de sol, pega-se na toalha e vai-se à praia mais próxima. E quando esses ares de verão decidem fazer uma visita surpresa em precoce Abril? O jovem português continua a ir dar um mergulho merecido com a mesma convicção… Mas não com a mesma segurança em relação ao seu futuro.

Sabe-se que os 10 anos mais quentes de sempre foram todos após 2010 [1] e que a tendência é que a temperatura média aumente 1,5ºC até 2050 em relação aos níveis préindustriais [2]. O jovem adulto atual já ouve falar sobre “crise climática” desde pequeno e é também aquele que vai arcar com a maior severidade de consequências da mesma num futuro nada longínquo. Depara-se com uma inação política e uma indiferença de uma população envelhecida que não será afetada pelos efeitos catastróficos desta emergência.

Daqui nasce um novo conceito: a “ecoansiedade”.

Segundo a Sociedade Americana de Psicologia, a eco-ansiedade é o medo crónico do cataclismo ambiental que tem origem na

12

observação do impacto das alterações climáticas e a preocupação associada pelo próprio futuro e o futuro das próximas gerações. Assim explicase já não ser fácil ir à praia em Abril sem uma certa sensação de catástrofe iminente. E qual é, de facto, o impacto? A temperatura, os tornados, os maremotos, as cheias, os incêndios e a seca são talvez os efeitos que são mais falados e são graves por si só. Menos falados são os que a crise climática tem no próprio funcionamento da sociedade.

Os setores económicos que são diretamente afetados pelo clima, como a agricultura, a pesca e o turismo, estão particularmente vulneráveis a um grande aumento de temperatura ou a um aumento de número de catástrofes naturais [3]. Para além da diminuição de recursos, naturalmente, haverá também menos oferta de emprego ao nível dos mesmos.

De forma mais indireta, os outros setores também são inevitavelmente afetados, dado o funcionamento interdependente da economia.

CALOR EM ABRIL E ECO-ANSIEDADE

Por outro lado, o setor da habitação, que já representa um problema na atualidade, enfrentará outros desafios. Os Censos de 2021 mostram que a tendência da litoralização da população se mantém, sendo que “cerca de 50% da população residente em Portugal concentrase em apenas 31 municípios, localizados maioritariamente na Área Metropolitana de Lisboa (AML) e na Área Metropolitana do Porto”. Prevê-se que o nível médio do mar se eleve 60 a 80 cm até ao final deste século. [3] Desta forma, os jovens de hoje que procurem uma situação de habitação estável e segura no futuro, junto dos maiores centros urbanos litorais onde há mais oferta de emprego e melhores condições de vida, incorrerão num grande risco ao estarem sujeitos a catástrofes naturais. É também impossível ignorar os malefícios na saúde. Certamente que a mortalidade e morbilidade associadas a vagas de calor aumentarão, haverá aumento da mortalidade e morbilidade associada a desastres naturais, emergência e reemergência de doenças zoonóticas e de pragas em plantas, doenças respiratórias associadas à (falta de) qualidade do ar, etc. [3] Como em todo o tipo de crises, espera-se que haja uma acentuação da desigualdade entre classes sociais. Pessoas que tenham baixo estatuto socioeconómico terão maior dificuldade no acesso a água potável, condições de climatização adequadas na sua própria habitação, condições de segurança na mesma e à possibilidade de emigração para um sítio com melhor qualidade de vida. Mais tudo o que não foi mencionado e que já representa um problema atualmente.

Que futuro têm as próximas gerações? Aliás, será que a crise climática está a influenciar a vontade dos casais em idade fértil de ter filhos?

O estudo realizado em 2022 com a participação de 1328 adultos dos Estados Unidos entre os 18 e

os 45 anos conclui que 42% reporta preocupação em trazer uma criança ao mundo por causa das alterações climáticas [4]. Alegadamente, até o Príncipe Harry diz querer limitar-se a dois filhos por questões semelhantes. [5] O clima atual não é só quente, mas é também de instabilidade económica, social e política. A prioridade não tem sido o clima (ainda que se possa argumentar que o governo tenha sido ineficaz nas outras áreas de crise).

Contudo, contam-se entre as medidas de combate ao cataclismo ambiental a criação de instrumentos legais para regulamentar o uso do solo e promover a proteção de áreas sensíveis, aumento da utilização de fontes de energia renováveis, taxas sobre emissão de CO2 e o investimento em transportes públicos e bicicletas. Dito isto, a implementação destas medidas na prática consegue ser deficitária para causar influência palpável. Pense-se no último exemplo: apesar de ter havido a uniformização dos serviços de rodoviárias na AML com a criação da Carris Metropolitana no sentido de prestação de melhores serviços, os seus utilizadores queixam-se da pioria dos mesmos, referindo número de carreiras insuficientes e atrasos [6]; por outro lado, os utilizadores da GIRA queixam-se de número insuficiente de bicicletas e de ciclovias [7].

Estas são apenas algumas problemáticas deste tema no maior centro urbano do país, sendo que é de considerar que quanto mais longe destes centros, estas multiplicam-se.

Assim, os jovens em Portugal continuam a manifestar-se, seja na Greve Climática Estudantil, seja na Marcha pelo Clima, seja em ações mais pequenas: recorde-se o grupo de 4 estudantes que deram o corpo à causa (uma parte dele pelo menos) numa cerimónia de aniversário do Partido Socialista ainda este ano. [8] Que se vote e se proteste em prol do clima e para o bem do futuro das próximas gerações.

Referências bibliográficas:

(1) “Annual 2022 Global Climate Report | National Centers for Environmental Information (NCEI).” Www.ncei.noaa.gov, 2022, www.ncei.noaa.gov/access/monitoring/monthly-report/global/202213.

Accessed 30 Apr. 2023. (2) IPCC. 2021. Climate Change 2021: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change [Masson-Delmotte, V., P. Zhai, A. Pirani, S. L. Connors, C. Péan, S. Berger, N. Caud, Y. Chen, L. Goldfarb, M. I. Gomis, M. Huang, K. Leitzell, E. Lonnoy, J.B.R. Matthews, T. K. Maycock, T. Waterfield, O. Yelekçi, R. Yu and B. Zhou (eds.)]. Cambridge University Press. In Press. (3)“Consequences of Climate Change.” Climate.ec.europa.eu, climate.ec.europa.eu/climate-change/consequences-climate-change_en.

Accessed 30 Apr. 2023. (4) “Climate Change Is Another Worry for Prospective Parents.” Ipsos, 5 Dec. 2022, www.ipsos.com/en-us/news-polls/climate-change-is-another-worry-for-prospective-parents. Accessed 20 Apr. 2023. (5) Nast, Condé. “From the Archive: When the Duke of Sussex Interviewed Dr Jane Goodall about the Future of Sustainability.” British Vogue, 30 July 2019, www.vogue.co.uk/article/prince-harry-jane-goodall-september-2019-issue. (6)“A Carris Metropolitana Está a Funcionar Bem? Depende Do Lugar Onde Se Está, Mas Há Atrasos E Falhas Que Estão a Gerar Queixas.” Jornal Expresso, expresso.pt/ sociedade/2023-02-25-A-Carris-Metropolitana-esta-a-funcionar-bem--Depende-do-lugar-onde-se-esta-mas-ha-atrasos-e-falhas-que-estao-a-gerar-queixas-bda8eb35. Accessed 30 Apr. 2023. (7) “Utilizadores de Bicicletas GIRA Queixam-Se de Falhas.” SIC Notícias, sicnoticias.pt/pais/2022-10-08-Utilizadores-de-bicicletas-GIRA-queixam-se-de-falhas-d63f1e00. Accessed 30 Apr. 2023. (8) “Ativistas Mostram O Rabo Em Protesto Na Sessão de Aniversário Do PS.” Www.jn.pt, www.jn.pt/nacional/protestos-de-ativistas-do-clima-interrompem-sessao-de-aniversario-do-ps-16205917.html. Accessed 30 Apr. 2023.

13

TESTEM

TESTEM

MUNHOS

MUNHOS

TESTEMUNHOS

FROM WAR ZONE TO FMUL Overcoming adversities to achieve medical school success

I

write this on Wednesday evening, 10th of May 2023, knowing well that I have an anatomy oral exam the next day. I studied all day, until starting this piece. Now, I’m tired, there is no energy to study further, I guess my brain has registered too much new information within a short period and is not willing to take more. I’m just going to give the oral tomorrow, knowing that I tried my best.

with it, you can understand how crazy it was.

How uncertain life is. The year 2022 started promisingly. I was this bright-looking young man taking on Kyiv Medical University first-year courses.

The zeal then was unquantifiable, I was loving it, and I was enjoying every bit of medical school, but the fact that we don’t know the future or what comes right next minute makes humans vulnerable beings.

I was lucky, I escaped Ukraine alive, physically well but mentally in shambles. What happens next? Will I thrive after escaping? Was it a worthy escape? Isn’t it better to have died and be free of all uncertainties?

These were my questions. I strongly want to thrive after escaping war. I want to experience a normal life again without hearing bomb alarms, sirens or having to sleep in bunkers. I want to continue my medical studies and become what I have put so much energy and money into. I can’t go back to my home country at this point, because if I go, they will only be happy to see me for the first few weeks, after which I will be deemed a looser, a failure, or a weak man, someone that couldn’t achieve what he set out for.

The war started like a mirage after having discarded all indications and rumours of it starting. The university said nothing was going to happen, and the government said it was all bluffs, “they won’t invade” they said. It started on a cold midnight, and I wouldn’t want to write about my experience again, it is something I’m healing from, and I want to forget it as soon as I can. What I know is that it was a horrible experience, one that no one should go through. However, the text below can give you a sneak peek of what the situation was. I hope

I began to knock on doors, seeking a welcoming hand, a warm place where I could start my life again. I didn’t give myself time to heal, I believed the faster I look, the faster I could get. So maybe when I finally get a place to continue my life, I could start my healing process. I knocked on numerous doors, and I messaged almost all medical schools in Europe, but I was mostly rejected, hard landing rejections, not warm ones, the “we can’t take you because you are not a Ukrainian national” responses filled my email. I was dejected.

Some have met the cruel being, death. They were burned to death; their remains were ashes. Some sat down, shaking heavily like freezing goats. Some were standing, gasping, going forth and back.

Some were neither standing nor sitting but breathing heavily like a burdened truck. They were grappling in fear, looking forward to their ending.

Going through their mind was a lot; it was all written in their eyes. Half of their heart was filled with feigning hope, expecting miracles. The other half were in expectation of death. Hmmm! So, this is my end.

16

I aimed for ninety years, but I guess I’m not getting past 20. I came here to study; will death be my graduation? I came here seeking peace, but I’m only getting pieces.

What about my parents, what state are they in? This war, will I ever get to see it

TESTEMUNHOS

I wandered around Europe, but I only met discrimination and marginalization. Where I wasn’t marginalized, money was the problem. Medical schools are expensive. The least expensive one I saw was asking for 2x what I was paying in Ukraine. I was going to give up, maybe medicine isn’t for me after all, I thought. Then I saw the news that Portuguese public medical universities are willing to take medical students from Ukraine. I applied and was set for an interview.

During the interview, I asked what the medium of study was going to be, I was told majorly Portuguese, but sometimes English too. I was happy, I finally found a place to continue my studies.

It hasn’t been an easy ride. The Portuguese language is hard. Till now, I can only do basic conversation.

Although I understand some things during lectures when the professor isn’t speaking too fast, it is still very

hard. I’m making progress with the help of amazing students of my study year. They answer my disturbing questions, try to translate stuff for me and reassure me that it is going to be fine.

I will drop my pen here; I don’t want to bore y’all with long texts. I appeal to the university to understand our situation and procure better measures so that our learning experience here will be an enjoyable one. I hope I heal and forget everything about the war, I hope that the world will embrace peace, I hope I finally realize it was worth it escaping Ukraine. My heart goes out to Ukrainians who have gotten their homes destroyed, and their families separated because of the war. I wish Ukraine goes back to the peaceful country it used to be with the beautiful safe skies, and I hope when the war ends, I can go back to Ukraine and visit her amazing beaches.

O seguinte testemunho chegou-nos via mensagem Whatsapp

“

Olá a todos! Meu nome é Maria, sou da Ucrânia.

Como vocês sabem, os eventos começaram lá há um ano, por causa dos quais eu e parte de minha família deixamos nosso cidade, Kramatorsk. É muito perto da fronteira com a Rússia, então a situação se desenvolveu rapidamente e tivemos que arrumar todas as nossas coisas também muito rapidamente.

Pegamos nossos duas gatas e fizemos uma viagem muito longa e cansativa para a casa da minha avó que mora aqui em Portugal. Foi muito difícil para mim ter que deixar tudo: amigos, grande parte da família, quase todas as minhas coisas e a esperança de um futuro feliz.

Nessa época, quase parei de pensar em como realizar meu sonho de ser médica. Mas esta situação foi rapidamente resolvida, pois a FMUL aceitou-me.

Por muito tempo me senti um completo estranho neste país e na faculdade, porque muitos pessoas já tinham encontrado companhia e era difícil fazer amigos. Embora eu esteja muito grato pela ajuda que recebi. Todos os alunos a quem pedi algo ou pedi conselhos me ajudaram muito e ainda hoje me comunico com muitos deles.

As dificuldades com a língua diminuem a cada dia, mas é difícil para mim lembrar de todas as coisas pelas quais já passei. Eu não gostaria que isso acontecesse novamente com ninguém neste mundo.

Então agora, um ano depois, me sinto mais ou menos bem e tenho novas esperanças e significados na vida.”

17

ENTRETA

ANTO, MÉDICO

MEDICINA: SONHO DE INFÂNCIA OU PESADELO DA JUVENTUDE? Augusta Parsotam

MEDICINA: SONHO DE INFÂNCIA OU PESADELO DA JUVENTUDE? Nos dias de hoje? Talvez um pouco dos dois…

A

dmiro-te. Admiro-te jovem prendado que passeias as íris por estas duas páginas repletas de devaneios sobre o que é ser estudante de Medicina nos dias de hoje.

Prendado de quê? Serão três trabalhos de grupo para apresentar no mesmo dia? Ou dois relatórios individuais que devia ter entregue ontem até às 23:59h? Não, já sei, é a oral de Anatomia e os 6 exames que lhe seguem o rasto! Ou será a OSCE? A PNA? Os Estágios?

Os 167 358 projetos em que ingenuamente te inscreveste no início do ano? O texto da RESSONÂNCIA de 1200 palavras que estás

falso e a média desce, o sonho apaga-se. E a pandemia trouxe um reboque de exames cheios de perguntas sobre rodas dentadas e pirâmides imaginárias para piorar a situação. Há quem diga que o mais difícil neste curso é entrar e depois o resto faz-se em pézinhos de lã. Ora, nem sempre foi assim:

há 2 dias para continuar? Se calhar tudo isso e o facto de ainda não teres superado que Anatomia não acaba no primeiro ano, nem Histologia, nem Bioquímica! E Farmacologia… bem, vendo a tua cara neste momento acho que é melhor não falar de Farmacologia. Mas ORL não é assim tão mau, pois não?

o que ia na cabeça do meu autor durante a minha síntese. Escolheste isto para a vida, quando a ideia deste curso apenas residia no âmago do teu coração expectante e sonhador.

Lembras-te dessa altura? Recuemos no tempo um pouquinho.

Enfim, não passo de um amontoado de vocábulos articulados em frases. Apenas digo

20

Nos anos que se seguiram após o 25 de abril de 1974 o sistema de ensino sofreu uma intensa mudança de tipologia, que de elitista e exclusiva passou à massificação.[1] Nessa altura os exames de aptidão tinham sido suspensos e

Se há memória que os estudantes de medicina têm do secundário é a de estarem sempre a fazer contas na suas cabeças pensantes. Um passo em

MEDICINA: SONHO DE INFÂNCIA OU PESADELO DA JUVENTUDE?

o número de estudantes a querer prosseguir estudos aumentou. Devido à elevada pressão que se sentia nas áreas da saúde, o curso de Medicina já apresentava um numerus clausus, antes mesmo deste termo ter sido introduzido nos restantes cursos universitários. Apesar desse facto, a facilidade de entrada no curso comparando com a atualidade é deveras notável.[2] Voltando ao presente, diria que provavelmente já querias medicina antes de seres gente, que decidiste esta sina enquanto curavas brinquedos. Se formos pesquisar o número dos que passeiam todos os dias pelos corredores da FMUL, onde a utopia e o tormento existem num só, não encontraríamos nenhum que estivesse aqui por não querer. Às vezes o difícil é manter essa convicção.

Todos os anos cerca de 450 novos alunos, sendo 295 pelo concurso nacional de acesso, juntam-se à FMUL. Mais de metade são deslocados tanto de outras zonas do país como de outras partes do mundo, a diversidade é crescente de ano para ano. As mulheres prevalecem cada vez mais nas escolas médicas (68%), talvez em breve tenhamos um auditório com um nome de uma ilustre senhora, nossa colega.[3] Grande parte dos alunos que estudam Medicina atualmente frequentou outros cursos no passado, tendo essa percentagem subido com a chegada da pandemia e a consequente subida das médias. Desde engenharias até outras portas abertas relacionadas com a área da saúde, os estudantes entram nas escolas médicas com um “background” de duração variável repleto de experiências diferentes e uma maior adaptação à vida universitária.

Como era o curso nos primórdios da faculdade? Em 1825, foram criadas as Régias Escolas de Cirurgia em Lisboa e no Porto. O curso tinha a duração de cinco anos, durante os

quais eram ensinadas sete disciplinas. Podiam ser admitidos alunos a partir dos 14 anos, desde que dominassem certas artes. Porém a situação tornou-se insustentável devido às péssimas condições antipedagógicas que a escola apresentava. Mais tarde construiu-se um novo edifício que em 1911 deu origem à FMUL. Com o aproximar do século XX, o espírito científico começou, finalmente, a influenciar a medicina portuguesa, levando à panóplia de trabalhos de investigação desenvolvidos até hoje.[4] E atualmente? Medicina é tanto um sonho como um pesadelo. São 6 anos de trabalho árduo e algumas distrações, uns quantos obstáculos. É uma viagem emocional, física e psicológica na adesão de conhecimento para um futuro profissional de saúde competente e empático.

O ensino médico pode deixar ainda bastante a desejar, mas a evolução tecnológica dos métodos de consulta de bibliografia, de redação de trabalhos, de pesquisa e de investigação está presente em cada dia que vocês passam na faculdade. O próprio modo de ensino, as aulas gravadas e a autonomia no estudo acrescida. Os alunos do 3º ano que foram criados no berço do ensino à distância ou os do 1º ano que preferiam aulas teóricas gravadas. Os do 4º, 5º e 6º que lidam com as condições por vezes adversas do hospital e os do 2º que nem tempo têm para respirar. É a oportunidade dos alunos de terem uma voz nas mais altas discussões, são os projetos sem fim e a possibilidade de dar asas à vertente científica através da realização de projetos de investigação.

Com toda esta história contada e comigo a chegar ao fim, concluo que ser estudante de Medicina atualmente em Portugal reflete um progresso de longos anos de pessoas que lutam todos os dias por uma educação médica melhor. Dos pesadelos, acorda-se, os sonhos perseguem-se.

Referências bibliográficas: [1] Silva, Rolando F. 2016. “O 25 de abril e o Ensino e a Educação em Portugal”.Antena livre, 22 de abril de 2016. https://www.antenalivre.pt/ noticias/o-25-de-Abril-e-o-ensino-e-a-educacao-em-portugal [2] Albuquerque, Mariana. 2019.”As médias de acesso à universidade de portugueses extraordinários”.Notícias magazine, do Jornal de Notícias,18 de setembro de 2019.https://www.noticiasmagazine.pt/2019/as-medias-de-acesso-a-universidade-de-portugueses-extraordinarios/historias/241074/ [3] Boletim “FMUL em números”, disponível no site da faculdade: https://www.medicina.ulisboa.pt/fmul-em-numeros [4] Silva, J. Martins. “Anotações sobre a história do ensino da Medicina em Lisboa, desde a criação da Universidade Portuguesa até 1911”.RFML 2002; Série III; 7 (6): 305-314. Disponível em: https://ordemdosmedicos.pt/wp-content/uploads/2017/09/Anotac%C3%B5es_sobre_hist%C3%B3ria_do_ ensino_medicina_I_eII_2002.pdf

21

MEDICINA E TECNOLOGIA - DÁDIVA OU CAIXA DE PANDORA?

Antonio Lopez

MEDICINA E TECNOLOGIA - DÁDIVA OU CAIXA DE PANDORA?

O

conceito “tecnologia” pode ser definido como a ciência cujo objecto é a aplicação do conhecimento técnico e científico para vários fins, sejam eles industriais, comerciais ou outros.[1] Etimologicamente, a própria palavra tem origem no grego tekhne e logos, significa o estudo da arte, dos princípios. Sendo comumente (e equivocadamente) limitada apenas ao campo da informática. [2] O nascimento da tecnologia não pode ser separado do surgimento do Homem no nosso planeta. Cerca de setenta mil anos antes de Cristo, o homem Neandertal já apresentava um grau de especialização bastante notável para a época, permitindo-lhe utilizar materiais encontrados (como a pedra, ossos, madeira, couro etc.) para auxiliá-lo na sua sobrevivência.

A primeira revolução tecnológica ocorreu mesmo no Neolítico.[3] A evolução da tecnologia revela, em cada momento da história da Humanidade, uma grande ligação entre os incentivos e oportunidades que favorecem as inovações tecnológicas e as condições socioculturais nas quais elas têm lugar. A verdade é que os avanços da tecnologia trouxeram inúmeros benefícios para o Homem, entre os quais se elenca a facilitação do trabalho, maior produtividade e eficiência no trabalho e a diminuição dos custos associados.[3-5]

22

Os avanços na tecnologia tiveram um grande impacto em várias áreas. Na área da Medicina, permitiu melhorar o diagnóstico, o tratamento e, não menos importante, a prevenção de doenças. Esta tecnologia permitiu que médicos e investigadores explorassem novas maneiras de melhorar a prestação de cuidados de saúde e os resultados dos pacientes. É importante ressalvar que a tecnologia e a Medicina têm tido uma relação quase umbilical e que permite a ambas estar em constante evolução. Desde o desenvolvimento do estetoscópio, das seringas para coletar sangue, passando pelos equipamentos usados na área da Imagiologia, que nos permite poder fazer uma ecografia, tirar uma radiografia, fazer uma ressonância magnética ou uma tomografia computadorizada para obter vários tipos de imagens e com graus diferentes de detalhe Estas tecnologias permitem que os médicos observem diariamente o que se passa em cada organismo, sem a necessidade de grandes procedimentos invasivos, podendo culminar em diagnósticos mais precoces e precisos.

Além disso, o uso da telemedicina permitiu que os pacientes recebessem atendimento médico a partir de locais remotos, melhorando assim o acesso aos cuidados de saúde em áreas carentes dos mesmos. Esta evolução da telemedicina foi mais notória, e também fulcral, em tempos recentes durante a pandemia SARS-Cov-2.[35]

MEDICINA E TECNOLOGIA - DÁDIVA OU CAIXA DE PANDORA?

A área da investigação médica também foi muito impactada pela tecnologia. Se os laboratórios já estavam bem equipados com equipamentos como microscópios, cromatógrafos, contadores de células, máquinas de PCR, centrífugadoras, o desenvolvimento de ferramentas como a edição de genes e CRISPR-Cas9, engenharia de tecidos, que têm tecnologia de ponta a suportá-las, tem levado a grandes avanços na medicina, sobretudo na medicina personalizada. Dispositivos médicos como próteses e bombas de insulina também melhoraram em larga escala a qualidade de vida de pacientes com doenças crónicas.[3-6] No entanto, apesar de todos estes avanços, a integração da tecnologia na Medicina tem tido os seus desafios, os seus obstáculos. O custo da tecnologia e infraestruturas necessárias para apoiá-la podem ser uma barreira de acesso para alguns pacientes, principalmente em países de baixo PIB. Os riscos ambientais e ameaças à sustentabilidade associados ao uso de algumas tecnologias têm sido também discutidos amplamente na sociedade. Por outro lado, existem também preocupações no que toca à segurança e à privacidade dos registros eletrónicos de saúde, assim como as questões éticas no que toca ao uso desenfreado da tecnologia para deusificar o Homem e as suas ambições (i)limitadas. Com o crescimento do uso da inteligência artificial no nosso diaa-dia, existem sempre questões sensíveis a resolver no que toca ao seu uso. Permitir que um “organismo” cresça sem barreiras ou limites, possa ter acesso total a muitos dados poderá ser

um perigo real, uma caixa de pandora. Tal como já retratado pela indústria cinematográfica faz alguns anos, o uso da nanotecnologia poderá culminar num grey goo e com isso o fim da Humanidade, o uso exponencial da Inteligência Artificial pode dar azo a situações que nem nós próprios conseguiremos prever. [7-8] Por fim, e talvez um dos argumentos mais importantes, as questões humanas associadas ao potencial uso da tecnologia para substituir a interação humana são algo que para todos nós, mas especialmente para profissionais de saúde e futuros profissionais de saúde, nos deve preocupar. Porque na verdade somos todos seres sociais, com as nossas características, a nossa personalidade. Nada substituirá o contacto humano e a empatia na prestação dos mais diversos cuidados de saúde. [7-8] Em suma, a tecnologia tem vindo a desempenhar um papel crítico no avanço da Medicina, mostrando múltiplos benefícios no que toca à melhoria da saúde da população, transformando positivamente o setor para melhor nesse aspecto. Contudo, mesmo que se tenha perfeita noção que a integração contínua da tecnologia na Medicina é uma grande promessa para o futuro da saúde da Humanidade, existem limites e barreiras que nunca deverão ser ultrapassadas. Porque, no fim de contas, não é a tecnologia, não são várias linhas de código que dão sentido à nossa existência; é a nossa humanidade, são os nossos gestos e atos de generosidade de uns para com os outros que alimenta e dá sentido ao que fazemos.

Referências bibliográficas: [1] https://dicionario.priberam.org/tecnologia (consultado em/05/2023) [2] https://etimologia.com.br/tecnologia/ (consultado em 01/05/2023) [3] https://www.coladaweb.com/geografia/tecnologia (consultado em 02/05/2023) [4] https://www.jornalmedico.pt/opiniao/39938-tecnologia-ao-servico-da-medicina.html (consultado em 03/05/2023) [5] Rampton, V., Böhmer, M., & Winkler, A. (2021). Medical Technologies Past and Present: How History Helps to Understand the Digital Era. Journal of Medical Humanities, 1-22. [6] https://www.sciencedirect.com/topics/medicine-and-dentistry/medical-technology (consultado em 05/05/2023) [7 ] https://medicalfuturist.com/bioethical-issues/ (consultado em 05/05/2023) [8] https://www.medscape.com/features/slideshow/tech-dangers?icd=login_success_gg_match_norm&isSocialFTC=true (consultado em 05/05/2023)

TEXTO DE FINALISTA

Raquel Morgado

TEXTO DE FINALISTA E

screvo este texto após ter perguntado à Comissão Organizadora da RESSONÂNCIA qual era a data-limite da sua entrega. Percebo depois que a mesma já tinha passado. Maio, o mês do estudante, o meu último maio académico, começa assim e acho que representa muito do que ainda está por vir.

Despedirmo-nos de um sítio onde ainda sentimos que não estamos completamente enraizados é, no mínimo, inquietante.

Estamos a sair de onde, mesmo? A Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa proporciona mudanças constantes aos alunos que alberga e apanha-os numa etapa por si só já famosa pelo crescimento e alteração. Mas, se até aqui me perguntava “O que é que eu ando aqui a fazer?”, no sexto ano pergunto-me “Mas quem é que eu sou?”.

A partida do curso nesta faculdade revelase complexa, mas pelo menos não ocorre de forma abrupta.

Começamos o sexto ano a preparar afincadamente aquilo que serve para

24

a celebração da finalização de um ciclo para uns e início para outros: a Noite da Medicina. Enquanto tal acontece, começamos a prática clínica a sério, às vezes até de forma demasiado independente. Deixamos de ser avaliados quantitativamente, os exames semestrais e as apresentações semanais desaparecem, e surge uma auto-avaliação diária quando começamos “a ver doentes”.

Mais do que perceber o que é que é o dia-a-dia laboral de um médico, começamos a contactar com a sua forma de gerir isso com o que se passa também para além do hospital.

Revoltamo-nos com uns tutores, aprendemos e somos inspirados por outros.

Neste hiato, irrompe a PNA e regressa a avaliação quantitativa logo quando percebermos que gostamos mesmo é dos estágios. A isto soma-se o facto de deixarmos de só assistir às notícias, onde nos falam de um SNS em rotura e passamos a ver o burnout nos professores e sobretudo a falta de cuidados que os doentes recebem naquele que é o maior hospital do país.

Sentimo-nos incapazes, a saber pouco, sabemos

TEXTO DE FINALISTA

“ [...] acho que ser adulto será um dia compreender e ter jogo de cintura para ir brincando com isto tudo. “ apenas que sabíamos menos antes, mas parece que agora precisávamos de saber mais do que efetivamente sabemos. E é com este sentimento e enorme motivação que partimos para as salas de estudo todos os dias para estudar para o exame final.

Alguns alunos mais novos admiram-nos e vemos na cara deles também medo e receio por estarmos no ano da PNA. Os colegas mais velhos parecem ter passado esta fase e estar mais contentes com a vida, lamentando a fase pelo qual os finalistas passam. As minhas amigas defendem que este é um ano especialmente difícil porque só trabalhamos para o futuro.

Nos últimos tempos, tenho constatado também que o nosso curso é efetivamente longo.

Medicina alberga na verdade dois cursos.

Há um antes e após anos clínicos. Para mim, esta ideia ganhou força quando o Covid chegou e alterou a nossa forma de viver, precisamente no segundo semestre do terceiro ano. Mudam os que nos rodeiam.

Quando, no meu 11º ano, ouvia em loop o Tomás Wallenstein cantar “A mocidade para nós chegou ao fim” sentia que percebia efetivamente o que ele cantava, estava a despedir-me da minha adolescência e a entrar na adultícia. Até podia estar um bocadinho certa, mas era mesmo só um bocadinho. Compreendo só agora o que é a mocidade e antecipo o que será ser adulto.

Contudo, encontro-me neste impasse, não sou

adulta nem adolescente. Deixam de acontecer “coisas” só aos que nos rodeiam e começamos a ter problemas e maleitas de adultos, sem possuirmos a independência financeira ou arcabouço emocional para os resolver.

Um dia feliz no meu sexto ano é ter a possibilidade, por exemplo, de ter estado com a minha madrinha, mais velha, que me parece estar muito feliz com o seu ano de IAC e ao mesmo tempo, à noite, fazer uma reunião no Google Meets com os meus amigos para falarmos da vida já que estamos em hospitais, cidades e até em países diferentes. Nos anos anteriores encontrava isto tudo num mesmo sítio: a faculdade. Já não é só a partida da FMUL, é a partida para um total desconhecido onde somos nós agora quem manda. Mas o que é o futuro, mas que raio vai acontecer?

Sinto-me assoberbada, agora decorrerá a imposição, a bênção das fitas, a escrita de fitas, a tese, a apresentação da tese, o estágio, o estudo para a PNA, a vida lá fora tem términos de relacionamentos e mudanças de amizades.

Provavelmente será um verão estranho, terei um exame louco e depois um ano numa cidade diferente? Não sei, ninguém sabe. Ainda assim, acho que ser adulto será um dia compreender e ter jogo de cintura para ir brincando com isto tudo.

CULTURA

CULTURA

CULTURA

Anamélia Almeida

AWAKENINGS B

aseado em uma história real, o filme Awakenings narra a trama de um médico neurologista, Malcolm Sayer, recém-contratado no bloco psiquiátrico de um hospital no Bronx. Embora não se considere apto para o cargo, devido à vasta experiência na área da investigação, Dr. Sayer aceita o desafio e logo se depara com a possibilidade de cura/reabilitação dos doentes neurológicos em estado catatônico, sequela de uma encefalite letárgica que assolou diversos países do mundo, entre os anos 1915 e 1926.

A história, baseada no livro de Oliver Sacks, passase em 1969, onde o obstinado médico chega à conclusão de que os seus pacientes estão “adormecidos” em seus corpos, e um fármaco, utilizado como tratamento em outra doença neurológica, pode vir a reverter o estado vegetativo destes. Dr. Sayer consegue convencer seus superiores, ainda que com alguma relutância, a conduzir o tratamento experimental de um dos seus doentes, Leonard Lowe, que desde há décadas se encontrava catatônico. À medida que o tratamento resulta na melhoria de Lowe, os demais doentes são incluídos no tratamento, e aos poucos “despertam” para uma nova vida.

O filme conta com a atuação brilhante de Robin Williams e Robert De Niro, o primeiro no papel do Dr. Sayer e o segundo atuando como um dos pacientes acometidos com a encefalite. Awakenings é considerado um grande sucesso do cinema, tendo sido indicado a três Oscars, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Ator (Robert De Niro) e Melhor Filme.

Awakenings Realizador: Penny Marshall Data de estreia: 15/03/1991 Duração: 2h 01min Género: Drama

27

CULTURA

André Amorim

SEVERANCE

P

ega nas pipocas e aconchega-te no sofá, porque a série televisiva Severance promete levar-te numa montanha-russa de emoções e deixar-te com tantas questões que mal podes esperar pela nova temporada.

Em Severance, acompanhamos a história de Mark, um funcionário da Lumen Industries que oferece uma oportunidade única de emprego: a possibilidade de segregar a sua vida profissional da pessoal através de um processo neurológico que compartilha o mesmo nome da série. Ao realizar esse processo, Mark, assombrado por eventos trágicos do seu passado, escolhe ser “severed” e é dividido em duas entidades: o “innie”, responsável pelo trabalho dentro da empresa, e o “outtie”, que é Adam em sua natureza completa. Cada um não tem as memórias do outro, quase como duas pessoas completamente distintas que habitam o mesmo corpo.

28

Uma das características mais marcantes é a narrativa não linear. Através destes saltos temporais, consegue dar vislumbres das histórias que levaram as personagens a procurar a Lumen Industries. Esta técnica permite que a série mantenha a sua atmosfera enigmática e o público cativado e, assim como as personagens, a tentar montar o quebracabeças sem ter todas as peças. Isso torna a série um enigma envolvente do qual é difícil escapar.

A música escrita por Theodore Shapiro é um elemento crucial para a criação dessa atmosfera de suspense e mistério. A utilização de elementos electrónicos e orquestrais que trabalham sinergicamente permite criar a sensação de tensão e inquietação. É especialmente admirável, pois, quando combinada com a restante banda sonora, reforça o tom sombrio e perturbador que permeia a trama.

UM THRILLER EMPRESARIAL

No entanto, o trabalho do roteiro é o elemento mais marcante da série. Através do enredo, a série apresenta uma crítica afiada contra a sociedade contemporânea. São abordados temas como a cultura de trabalho, a identidade pessoal e o impacto da tecnologia nas relações humanas.

como uma impossibilidade. Portanto, a nossa procura não deveria estar focada apenas na nossa capacidade de produzir e de compartimentalizar, mas sim na busca de equilíbrio. Alimentando uma cultura que não despreze a produtividade, mas não à custa do bem-estar físico, mental e emocional.

A crítica mais incisiva é contra o espírito capitalista que aflige a sociedade contemporânea, criticando a cultura que tem a produtividade como o valor mais alto, desconsiderando o bem-estar e a qualidade de vida. Esta visão redutora da importância do trabalho na vida é um reflexo da cultura tóxica da qual muitos de nós somos familiares.

Em suma, Severance é uma série que entrega aquilo que promete. Uma história enigmática que não conseguimos largar e ao mesmo tempo uma crítica social que não conseguimos ignorar. Com uma temporada tão emocionante não podemos evitar ficar ansiosos por ver o que é que a próxima reserva.

A cultura de produtividade tóxica é, infelizmente, algo muito presente em muitos setores da sociedade atual. Embora em Severance possamos ver a idealização de uma vida profissional completamente segregada da vida pessoal, vemos como isto é retratado

Severance Realizador: Ben Stiller, Aoife McArdle Data de estreia: 18/02/2022 Duração: 40–57 min Nº de espisódios: 9

29

CULTURA

Ana Fagundes

AFTERSUN | QUANDO SE PÕE O SOL DA INFÂNCIA E

scrito e realizado por Charlotte Wells, Aftersun, de 2022, da produtora A24, que, mais uma vez, nos traz um filme para nos enterrar na cadeira, ou no sofá, e nos deixa uma indisposição que se teima a ir embora.

Depois de nos ter apaixonado em Normal People, Paul Mescal é agora pai de Sophie (Frankie Corio), num filme que nos faz querer vasculhar os álbuns de fotografias e vídeos em cassete, poeirentos, no fundo do baú da sala de estar, para garantir que não são impostores os nossos pais.

O enredo decorre 20 anos antes do tempo presente, numas férias de Sophie com o pai na Turquia, cujos fragmentos vão sendo entrelaçados com o tempo presente, que fecha a película. É um filme que se nos abre uma porta para uma mente perturbada, mas sabe a tarde no sofá a reviver memórias de família, num antagonismo desafiante, tecido com mestria por Wells.

Em pouco mais do que uma hora e meia, vamos navegar por uma sucessão de gravações caseiras, memórias imaginárias e reais, ao som de uma banda sonora perfeitamente inebriante de Jovan Ajder. A música vem com mãos doces mergulharnos na colorida melancolia claro-escuro, com a tristeza ruidosa de navegar no tempo à procura do pai que se conheceu à luz do sol e que anoiteceu num homem que terá de se dar por perdido antes de rolarem os créditos.

Embora através de um filtro do que é ser filho, esta é a história de um homem a tentar ser pai, num idealismo que lhe escapa entre os

30

dedos, que o entorpece e, em última instância, o compromete. E os olhares cúmplices que se trocam na infância, em que ser “papá” basta, vão dar lugar a uma re-leitura do passado com um olhar que falha em reconhecer laços que não passaram de parentescos, até se desvanecerem na precariedade dos meros títulos.

O ritmo do filme simultaneamente dói e agarra-nos ao ecrã, inquietos pelo pai herói que só precisava de ser pai, nos sapatos de uma criança que percebe a sua realidade falhada. As cores claras tornam-se fluorescentes, quando o sol da infância se põe, dos dias em que um gelado e praia nas férias é sinónimo de dia perfeito, para dar lugar a uma noite que quer disfarçar a irresponsabilidade errante com as suas luzes epiléticas. É sob a forma de uma festa ruidosa, quando os flashes nos invadem o olhar, que a névoa de beleza cai, restando o frio de uma noite solitária, no olhar de uma criança que, amadurecendo, vai esmagar a pequenez mesquinha de um pai que não quer crescer.

O clímax vai-se construindo até às lágrimas desarmadas e desencantadas do espectador sensível.

Ao menos sensível, recomenda-se pomada para as cãibras miocárdicas. Pede-se baixa para ficar sentado a olhar para o teto do quarto.

Aftersun Realizador: Charlotte Wells Data de estreia: 09/02/2023 Duração: 1h 41min Género: Dramaditora

CULTURA

Beatriz Veríssimo

JUVENTUDE NA ATUALIDADE E OS SEUS DESAFIOS NA LITERATURA Q

uando foi proposto escrever uma crítica literária sobre o tema “Juventude na atualidade”, não pude deixar de me lembrar do livro “Ontem à noite no Telegraph Club”, de Malinda Lo. Apesar de ter sido publicado em 2021, o enredo deste romance decorre nos anos 50, em São… é necessária uma pausa no texto.

Neste momento, o leitor mais atento poderá estar a questionar-se como é que uma história passada a meio do século XX poderá adequar-se ao tema acima referido. É uma questão válida, uma questão que também coloquei. No final desta crítica retomarei este aparente paradoxo.

O enredo deste romance decorre nos anos 50, em São Francisco. Acompanha uma jovem de 17 anos, de ascendência chinesa, na descoberta da sua identidade nas suas várias vertentes, como a sua sexualidade, cultura e objetivos de vida. A ação principal debruça-se sobre as idas de Lily ao Telegraph Club, um bar lésbico, com Kathleen, uma colega de escola pela qual a protagonista se apaixona. Por esta breve descrição, pode parecer mais um romance adolescente banal. Do meu ponto de vista, é muito mais que isso.

Primeiro, este amor proibido toca-nos profundamente. Pessoas apaixonadas, urjo que leiam este livro. Certamente empatizarão com a personagem principal. Sentirão, por um lado, o amor que ela tem por Kathleen e, por outro, a dor que ambas sentem por não poderem estar juntas publicamente. Apenas conseguirão pensar “e se fosse comigo?”.

Por outro lado, considero que estas duas personagens são um símbolo feminista. Mostram-se ambiciosas numa época em que a sociedade

não espera tal de uma mulher. Ambas desejam enveredar por áreas dominadas por homens, como a matemática ou a pilotagem de aviões e, ao longo da obra, de forma por vezes subtil, estes sonhos vão sendo desvalorizados.

Neste ponto da crítica, diria que podemos perguntar “e no presente, esta história ainda poderia ser contada?”. Não e sim. Apesar da discriminação já não ser sentida da forma gritante que é descrita nesta narrativa, ela ainda existe. O assédio de jovens casais LGBTQ+ ainda existe.

O machismo também. Para além disso, outras experiências vividas por Lily, narradas sempre perspicazmente, são desafios intemporais da adolescência, que todos enfrentamos. É uma época de procura, como a procura de amizades verdadeiras, a procura de harmonia na relação com os pais, e até a procura de pessoas que possam ser uma referência para o seu futuro e para quem ela deseja ser.

Assim, este é um livro que, apesar de ser direcionado para um público juvenil, tocará a todos. Tem descrições que, sem serem enfadonhas, nos fazem interiorizar as personagens e visualizar os locais. Sem ser de uma escrita complexa, consegue ser belo; sem ser extenso, consegue abordar questões polémicas com uma doçura muito característica. Consegue levar à reflexão, um grande poder da literatura.

Para concluir, apenas posso recomendar vivamente esta obra, cujo enredo decorre noutro período histórico e, ainda assim, continua a ter repercussões na juventude da atualidade.

Ontem à Noite no Telegraph Club Autor: Malinda Lo

Créditos de Ilustração: Mark Ryden

Edição: novembro de 2022, Desrotina Páginas: 392 Género: Romance

31

Poesia

POESIA

Lopes Matos

NOSSA SENHORA DOS REMÉDIOS Eu! desde a escola pré-primária Se interessou pelo meio e enamorou pelo estudo.

Aprendeu a usar o lápis e o acento agudo Mudou de caligrafia porque uma mais crescida era necessária Achou ser uma biblioteca uma meia secretária E pareceu-lhe um bibe rosa uma bata extraordinária.

Branquíssima. Branquíssima!, toda em veludo Como que se veste em paris esta medicina; usa sobretudo.

Eu!, encantado com as sístoles e o citosol, Com o Fleming, as órbitas e os frascos de formol Passou a chamar de forâmen até um buraco de agulha num cachecol.

São Eu!, o curandeiro entusiasmado, Doutor Eu!, especialista na aflição Procura por qualquer dor ou mau-olhado Cuida por igual os males que as bruxas dão, Onde o seu palpite não faça mal e seja escutado: Os do coração e a constipação Emplastros e água-pé nas feridas, ruim, E a si como aos seus doentes deixa a prescrição: Bálsamos e fé, assim-assim.

Ver luz bastante no sol e no candeeiro, Sangrias e hóstias para os humores, ruim, Sorrir enquanto não há cieiro Água com cloreto de sódio e a costumeira de rezar, assim-assim.

E tudo o mais vem nas flores: Lavar as mãos é que sim, não demora um credo.

Saramagos, amores-perfeitos e cravos. É deveras ou gozando?

Oiço vindo cavalgando, Não é zebra nem cavalo É a própria ou um vassalo Quem se vem aproximando?

Ah negra. negra! És a morte, com certeza Um deus só não pode tanto E, pelo tamanho da tristeza Não é só para um o manto.

Não mais eu, Santa Maria, agradeço a hospitalidade.

33

POESIA

Alexandra Agostinho

POR ENTRE A POEIRA DOS CENÁRIOS DA MINHA MENTE Por entre a poeira dos cenários da minha mente,

Navego curiosamente por histórias de fadas e de terror,

Voo por terras coloridas que observo como que através duma lente, Terras que escondem as profundezas do meu esplendor.

Enquanto eu escrevo livros com o meu subconsciente, A cama sente o calor do meu corpo relaxado,

O lençol conforta-me e transforma-se no pano de fundo da tela principal, Da cena teatral que decora o meu sono descansado.

O que me assombra durante o dia eu enfrento durante o luar, Perdida no escuro e na solidão fujo de monstros e vilões,

Travo batalhas a cavalo enquanto sinto a minha mente a flutuar, Por entre um labirinto verdejante de grandes dimensões.

Como que numa pintura de cores vibrantes em tempo real, O meu cérebro desenha a maior ilha do mundo,

Um casal à beira do oceano Ártico pisa o gelo da Gronelândia, Dois olhares que se trocam sob o teto da Aurora Boreal.

34

CULTURA POESIA

Abro os olhos delicadamente e tudo se esvai num compasso,

Um raio de Sol enche o meu quarto e retorno ao meu mundo,

Espreguiço-me desajeitadamente, toco o chão e dou um passo, Reflito nas aventuras noturnas porque passei a fundo.

Questiono-me qual o verdadeiro planeta que habito,

Se a Terra, ou o meu hipocampo onde estão guardadas todas estas memórias, Duma noite cheia de episódios e lições sobre as quais medito,

Onde estão guardadas as mais belas histórias.

Entre o sono e o sonho vou viajando,

Das horas bem dormidas começo a duvidar, Será que vivo numa mentira disfarçada?

E o verdadeiro sonho começa com o acordar?

Créditos de Ilustração: TOSHIO EBINE 35

C

N

R

I

Ó

C

A

CRÓNICA

Inês Maia

VIDA EM CAIXA O

lho ao espelho que um dia, de hoje longe, contará aos meus olhos mais cansados a poesia de ter versos escritos na pele, e questiono por onde quero começar.

A verdade é que não tenho nada para dizer.

Tenho caminhado em frente só porque dizem para o fazer. Alguns ficaram pelo chão.

Começo pelo início ou pelo final? Quando não se tem nada para contar começa-se por onde?

Provavelmente, pela vida, para arranjarmos algo para contar… Então, vou começar mesmo por aí, pela vida. No início, no final ou no meio da vida?

No início que a definição “jovem” que me tatuam temporariamente assim o indica...

Afasto-me do espelho, decidida, sento-me na cama e ouço a voz da minha avó sussurrando, em tom de ensinamento, para aproveitar tudo aquilo que não vejo e a atribuir um valor à saúde das articulações que me parece quase metafórico.

Não é.

Temo que não seja possível começar no início.

Como descobrimos o início de algo que não começou? Então, pelo fim? Mas se algo não começou, como pode ter terminado? Pois bem, é mesmo por aí que quero começar, pela forma como tudo acabou muito antes de sequer ter começado.

Ou será que começou? Não me lembro…

Os meus dedos liam o cartão rasgado, seco, varrendo o pó vagarosa e pausadamente, como que pedindo autorização para o sentir, entranhando-se nas rugas dos dedos gretados, ressequidos, talvez numa tentativa de absorver a máxima porção de vida que jazia no que restava daquele objeto. Cada aresta pesava sobre o colo.

A arquitetura da caixa, vinda de não sei onde, na qual alguém que não conheço colocou um primeiro retalho de jornal, num dia que, não lhe pertencendo, integrará para sempre a minha história, é conhecida por cada célula nervosa que determina a minha existência. Serão eles a minha vida? Esses sentidos? Vivendo a vida pelos sentidos, ironicamente, não achando sentido em nada… No entanto, o conhecimento absoluto da sua arquitetura, cada ruga e cada som, cada rasgo e o rebordo acidentado, não torna a sua abertura mais simples, mas, de certa forma, mais dolorosa. Enquanto isso, o tempo cavalga à minha volta desafiando-me nessa corrida na qual não consigo alinhar. Porquê? Porque, assim que permito que a luz penetre as obscuras aberturas entre os papéis, entro num tempo que não é meu, algum que já foi, outro que, sendo dos meus avós, bisavós (e pela árvore genealógica acima) é meu sem nunca o vir a ser.

Nos meus dedos, as fotos que esmaecem e com a sua cor a intensidade dos momentos. A sonoridade daquela vida que agora me dizem ter pela frente, os risos que o papel canta e aquilo que, hipoteticamente, viveu e vive (ou existiu e talvez exista).

E a minha vida? Essa, bem espremida, não preenche uma caixinha de cartão, é-a! Um cartão rasgado, por vezes húmido, coberto de pó, esses segundos em grão, estratificados em anos que, imponentes como a maturidade que ouso dizer que estou a adquirir e o conhecimento que simulo haver alcançado, com um sopro, se desvanecem, cobrindo de cinza o chão da casa onde esta caixa for um dia aberta. Dessa próxima vez, já não por mim…

37

CRÓNICA

Ana Catarina Manaças

[INSERIR TÍTULO] U

ma página em branco… todas as grandes histórias tiveram o seu início da mesma maneira.

Os mais velhos dizem que nós, jovens, temos a sorte de o nosso futuro ser como uma página em branco. Contudo, aquilo de que as pessoas se esquecem é que algumas páginas acabam por ter um fim incontornavelmente triste, sendo precocemente amachucadas até ao esquecimento.

Talvez por falta de ideias para escrever, ou porventura por as parcas ideias que possuímos não se assemelharem àquelas que, em boa verdade, desejaríamos transmitir.

Uma página em branco... Sentei-me a escrever… Como terão sido as páginas em branco de “Os Maias”, de “Hamlet”, o que terá pensado Camões instantes antes de produzir “Os Lusíadas”… Trinta e dois minutos passados e a imaculada página fita-me com severidade.

Chegou a hora de domar o rebelde pedacinho de celulose. Num ímpeto de coragem levanto a caneta e, sem hesitar, devolvo-a ao seu estado de original horizontalidade.

Era certa a derrota, mas talvez tenha sido a página quem saiu a perder. Poderia ter sido transformada num poema, numa longa missiva, numa bela crónica, mas continuava simples, pura, inalterada à superfície, contendo em si todas as possibilidades do mundo.

Nas reviravoltas da mente, o dia passou fugidio e o sol vibrante foi-se transformando num ocaso suculento, que deu lugar à atmosfera sombria da noite. Acendi as luzes para conseguir ver melhor o trabalho que não tinha feito, ou talvez numa tentativa desesperada de inspiração.

38

Contudo, no pedaço de papel que outrora se via alvo e intocado, notavam-se agora informes manchas e profundos rasgões. Do dia para a noite, o olhar desafiante da folha transformara-se numa triste súplica, corroída pelos forçosos vincos do tempo.

Os mais velhos dizem que o nosso futuro é como uma página em branco, mas já não existem páginas em branco. Temos apenas páginas amarrotadas, sujas, páginas rasgadas pelo ódio da guerra e pela incerteza, com borrões que nos impedem de escrever as nossas histórias.

Já para não falar das páginas pré-feitas, aquelas que, eficazmente impressas em molde, vêm com espaços demarcados para serem ordeiramente preenchidos, correndo o risco de excluir aqueles que ousam traçar fora da predefinida limitação.

A verdade é que as nossas páginas já não nos pertencem, foram corrompidas nas roldanas da nova fábrica do mundo, desfeitas, conspurcadas pelos erros passados de quem viu a escuridão na brancura de uma folha de papel.

Mas entre guerras e fome, entre cheias e secas, entre políticas que põem em causa a verdadeira existência do mundo como o conhecemos, a história continuará a ser escrita nas entranhas do tempo e ela necessita de quem a escreva, ela implora humildemente por escritores que tenham a coragem de pegar no que nos foi displicentemente deixado e de criar novas frases.

Frases que simbolizem amor e lealdade, frases que sejam laços entre as nações e água para quem não tem que beber. Cabe-nos a nós, agora, desenhar por entre os borrões e escrever as nossas palavras nas curvas e contracurvas que vemos no mundo.

DIREÇÃO EDITORIAL

IMPRESSÃO E PROPRIEDADE

Alexandre Oliveira

Secção Editorial da Associação de Estudantes

Beatriz Francisco

da Faculdade de Medicina de Lisboa

Francisco Martins João Correia

editorial@aefml.pt

João Pereira Raquel Julião Rita Bernardo Silvana Cobeña

ressonanciaaefml ressonancia_aefml ressonancia.aefml.pt

REDAÇÃO Alexandra Agostinho Ana Catarina Manaças

Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa

Ana Fagundes

Avenida Professor Egas Moniz, Hospital Santa

Anamélia Almeida

Maria - Piso 01, 1649-035 Lisboa

André Amorim

217 818 890

Antonio Lopez

www.aefml.pt | ressonancia@aefml.pt

Augusta Parsotam

Depósito legal: 178455/02

Beatriz Veríssimo Carolina Afonso

Distribuição: gratuita

Filipa Dias Francisco Ganço Inês Maia Luiza Tonon Maria João Matos Raquel Morgado

DESIGN GRÁFICO João Pereira Silvana Cobeña

AVALIA A QUALIDADE DA REVISTA

XXXVII

JUN 2023