

Diz o ditado popular que “Quem nunca viu Lisboa, não viu coisa boa”. Lisboa é, por isso, o artista principal na presente edição da RESSONÂNCIA.
É tempo de elogiar a cidade que nos acolhe, com os seus braços sempre abertos e a sua alma que não desanima. Se é verdade que a azáfama de Lisboa nos submerge nas vidas apressadas de cada um, não podemos descurar todos os grandes artistas que dela emergiram e que para sempre ficaram guardados nas pedras da calçada portuguesa que todos os dias temos a honra de pisar.
Reza a lenda que o herói grego Ulisses, após vencer a Guerra de Tróia, navegou pelo Mediterrâneo, além das Colunas de Hércules em Gibraltar, até à foz do Tejo, quando deslumbrado encontrou o reino de Ofiúsa , onde desejava fundar a cidade mais bela do mundo que batizaria de Ulisseia. Os locais, tal como hoje, não se deixavam vencer, mas Ulisses insistia. A rainha, apaixonada, cedeu e permitiu a construção da cidade, desde que ficasse ali para sempre. Ao perceber que Ulisses planeava voltar para a sua esposa e a tinha enganado, gritou com uma raiva tal que a única montanha do local se modelou nas sete colinas de Lisboa, morrendo após tal esforço. Os homens de Ulisses permaneceram e batizaram a cidade de Olissipo.
Passando pela Ulishbona dos visigodos e a Alusbuna dos muçulmanos, que nela criam também o bairro de Alfama e, do outro lado do rio, Almada. Com a chegada de D. Afonso Henriques e das Cruzadas Cristãs este local passa, em 1179, a chamar-se Lisboa como hoje a conhecemos.
Por cá passaram muitos outros povos, como os franceses que, surpreendendo a população local com o estilo de vida opulento do seu general Junot, deram origem à expressão “À grande e à francesa”. Outros, subiam ao Alto de Santa Catarina na esperança do regresso de São Sebastião num navio, sendo acusados de ali “Ficar a ver navios”.
Muito mais há para dizer sobre esta cidade milenar que, não se subjugando a ninguém, mantém os braços abertos para todos os que veem nela o seu encanto, para os que se apaixonam pela tradição que dela transborda e até para os que, de forma indiferente, cá vêm parar por decisão do acaso. Mas nesta nossa Lisboa, nada acontece por acaso.
Juntamos os vários Grupos Culturais da AEFML, contamos com a inspiração dos Colaboradores da RESSONÂNCIA, levamos os mais audazes num percurso noturno pelas ruas de Lisboa e fomos conhecer monumentos e tradições - poder-se-ia dizer que esta revista tem, também, as suas sete colinas.
Diogo Vianez Oliveira & Raquel Julião Coordenação-Geral da Revista RESSONÂNCIALisboa é… (um devaneio) & Conta-me, calçada
Lisboa: uma obra de Ulisses
Memórias Perpétuas
Alguém a quem Lisboa pertenceu
Passeio Dos Apressados
Harmonias da Noite
Lisboa é uma cidade muito humana, é quase uma pessoa no seu todo, com as suas cores e padrões, curvas e contracurvas, altos e baixos, sinuosidades inesperadas, escondidas. É diversificada, barulhenta e desorganizada, chata e sem calma. Tem padrões altos, tem vida, tem línguas, tem segredos. Há quem goste e desgoste dela, há quem lhe tenha muito amor num dia e desdém no outro, há quem dela tenha nascido, há quem nela vá morrer.
Lisboa é mulher e homem, é menina e moço, é criança e idoso, é mãe, é madrinha, é pessoa, é minha, é tua, é de ninguém, é nossa.
Lisboa é imperfeita, é choro (e lágrimas), é riso (e dentes), é amor (e ódio), é olá (e adeus).
Lisboa é Lissabon, mas também é Lisbon, Lisbonne, Lisbono, Lisbona, リスボン e Лісабон.
Lisboa é Lisboa, mas já foi Olissippo, Olisipona, Ulisseia e “ocidental praia lvsitana”.
Omeu
prédio não tem elevador, mas não faço questão porque descer é mais fácil do que subir. Quero-me sentir mais em casa, por isso saio à rua todos os dias sem motivo nenhum. Caminho pela cidade à procura de barulho, que desde que cheguei aqui só ouço silêncio.
Em Lisboa, o silêncio nunca vem só, está sempre rodeado de algazarra terrestre, vozearia alheia e alarido aéreo. Pergunto-me se alguma vez nesta cidade o silêncio caminhou sozinho. Talvez nos tempos antigos, quando os prédios ainda eram árvores, as ruas eram prados com cheiro a alecrim e os pés não eram separados da terra por camadas de pedra esbranquiçada. Ninguém acredita quando digo que Lisboa é silenciosa, olham para mim como se não pisássemos o mesmo chão, mas a verdade é que o som que ouvimos da civilização moderna não passa de um silêncio bem acompanhado.
Já estudo aqui há 3 anos, mas adaptar-me à imprevisibilidade do dia-a-dia na capital ainda é um desafio. Todos os dias procuro uma resposta - um murmúrio basta - que a cidade me possa dar. Até hoje não me diz nada.
Decido então descer as escadas do meu prédio e caminhar até ao Terreiro do Paço, onde a praça é mais amarela que o sol e o Tejo a beija delicadamente. Digo baixinho: Fala comigo, Lisboa.
Nada, nem uma resposta. Caminho noutra direção, desta vez subo até não poder mais. Paro num miradouro, nunca tinha estado ali. Caminho em frente e a brisa torna-se mais forte, as árvores agitam-se e as folhas voam em todas as direções. À beira do miradouro vejo a cidade que se estende diante de mim: uma beleza cega aos olhos dos citadinos impacientes e cansados das suas vidas corriqueiras. Lisboa pode não falar comigo, mas naquele momento sou eu que falo com ela:
Podes não me dizer nada, mas eu consigo ouvir-te.
Passarei o resto da tarde a caminhar pela calçada, a pedir-lhe que me conte os segredos de quem ali passa, não há quem me possa dizer mais sobre Lisboa do que a pedra que nos separa os pés da terra:
Conta-me, calçada, que já te ouço bem. O silêncio foi embora e chegou o som. O som de uma cidade com vida.
AHistória da fundação da Cidade de Lisboa, como todo o prezado conto português, encontra-se envolta por uma nuvem de precioso simbolismo e apetecível mistério, elevando este histórico local à qualidade de mito
O famoso herói helénico, Ulisses, tal como foi descrito por Homero, findada a Guerra de Tróia (1250 a.C.), terá embarcado numa viagem de uma década com o objetivo de retornar à Ilha sobre a qual reinava, Ítaca, à sua fiel esposa, Penélope, e ao seu jovem filho, Telémaco.
Como nos é relatado na Odisseia, é nesta morosa viagem de volta que o valoroso herói se depara com ciclopes colossais, com o canto enganador das sereias, com fúrias divinas, entre outros variadíssimos obstáculos que grandemente dificultam a sua chegada a casa, mas que simultaneamente conferem a esta viagem um valor enaltecido e ao seu herói um carácter inabalavelmente estoico e condigno.
Na mesma linha de raciocínio, reza a lenda, terá sido Ulisses quem, na sua perigosa travessia, terá aportado na Península Ibérica e fundado a cidade de Lisboa, designando-a Vlissipo , em honra de si próprio (sendo Vlixes a tradução latina do nome Ulisses) 1
Historicamente falando, o nome Olissipo derivará do Fenício “Allis Ubbo”, ou Porto Seguro . Esta teoria baseia-se na possibilidade de os povos Fenícios terem utilizado esta região como ponto de comércio na era préromana 2 . Contudo, a origem deste distinto nome da cidade é ainda fonte de desacordo entre historiadores, não havendo certezas acerca do famoso apelido dos Lisboetas ou, neste caso, dos Olissiponenses.
Após a invasão romana da Península Ibérica (cerca de 140 a.C.), no contexto da segunda Guerra Púnica, a região adotou os costumes da população latina, passando Lisboa a designarse Felicitas Julia. Após a queda do Império Romano do Ocidente, a 476 d.C., a cidade sofreu três séculos de pilhagens e destruição por parte dos povos bárbaros, sendo depois conquistada por tropas Mouras, em 711 2 . Só em 1179, após a reconquista cristã, é que o Rei D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, concedeu o foral à cidade .
E o resto é História… novecentos anos de História, para sermos precisos. Lisboa resistiu
à fome e à peste, foi cercada e invadida, não esquecendo o terramoto de 1755, no qual foi quase integralmente destruída. Lisboa também passou por momentos auspiciosos, recebeu ouro e riquezas de todo o mundo, foi um grande centro económico e intelectual. Olhando com atenção para as voltas e reviravoltas da fundação de Lisboa, e escapando da apetecível ofuscação dos contos Homéricos, resta-nos perceber como este mito do “sábio grego” (citando Camões) na cidade das sete colinas chega vivo e fundamentalmente presente à Lisboa moderna e progressista do século XXI.
Ora, analisando sob um ponto de vista global o carácter português, a resposta torna-se bastante clara. Nós somos o povo descendente da resistência lusitana, o povo que expandiu os limites do mundo conhecido, que chegou à Índia pelo ignoto mar, que aportou no Brasil e o tornou seu, e que, por entre árduos desafios conseguiu manter-se íntegro e singular durante quase um milénio. Entre tradição e inovação, fomos resistindo e brilhando na memória dos tempos, por isso é apenas popularmente natural que a nossa capital, a nossa Lisboa, tenha sido fundada por um bravo guerreiro mítico. Desta forma, usamos a nossa origem simbólica com uma honra desmedida, como
espelho do orgulho que sentimos por sermos portugueses e por sermos Lisboetas.
Já Fernando Pessoa dizia, no seu patriótico compêndio Mensagem, “O mito é o nada que é tudo”. Esta afirmação reflete o facto de o carácter irrealmente heroico desta personagem mitológica servir como um meio de glorificar a essência da nossa nação e dos feitos que esta tem a possibilidade de atingir, alcançando “mais do que prometia a força humana”, como já dizia Camões na nossa Epopeia. Assim, “Este, que aqui aportou, // Foi por não ser existindo. // Sem existir nos bastou. // Por não ter vindo foi vindo // E nos criou” 3 .
Com efeito, a lenda da origem Odisseica da cidade tem sido inúmeras vezes utilizada como inspiração para diversas obras alicerçais da língua portuguesa, das quais são exemplo Os Lusíadas , de Luís de Camões, A Cidade de Ulisses , de Teolinda Gersão e A Mensagem , de Fernando Pessoa , como referido anteriormente. Este facto serve-nos como prova de que a lenda reside embebida na nossa cultura e persiste indissociavelmente em cada um de nós, que representamos o passado, o presente, mas também o futuro desta “ocidental praia lusitana”.
Mais que um enaltecimento ao passado, esta ideia deve servir de base para a atualidade, como forma de construirmos uma nação tão justa, humana e sonhadora, como o herói que honradamente nomeou a nossa cidade capital e para, desta forma, darmos continuidade a este mito de resiliência e bravura que nos torna tão distintamente portugueses.
Referências
[1] Viana, M. M. (n.d.). Figuras do Mito . Tinta da China. [2] João, M. (2023, September 21). História de Lisboa: a cidade que nasceu de um porto seguro.https://www.nacionalidadeportuguesa.com.br/historia-de-lisboa [3] Arquivo Pessoa: Obra édita - Primeiro: ULISSES -. (n.d.). http://arquivopessoa.net/textos/1274
Lisboa é a própria personificação das “Obras de Santa Engrácia” : uma cidade inacabada, que não se conclui a si própria e que, na sua constante mudança e metamorfose, vai honrando os que foram construindo a sua identidade e hoje jazem nas capelinhas espalhadas pelas suas colinas. Um verdadeiro retrato de todos os que por ela passaram, cidade marcada pelos passos de tantos cuja História não é capaz de relembrar.
Os quatrocentos anos de construção da Igreja de Santa Engrácia, atualmente Panteão Nacional, resultaram da complexidade própria dos tempos, embora, na verdade, não se pudessem adequar melhor à Cidade de Lisboa: que, numa intemporalidade única, funde o passado, o presente e o futuro, arrastando-se eternamente no tempo. De Igreja a fábrica de armamento, passando por oficina de calçado e culminando em Panteão, tudo começou com a morte de um inocente - Simão Solis - que, acusado de ter profanado o sacrário da Igreja em construção, lança
a maldição de que as obras jamais seriam concluídas. Embora não se tenha concretizado a maldição, a verdade é que só no século XX, em 1966, é inaugurado o Panteão Nacional, no mesmo ano em que a ponte passa a ligar Lisboa e Almada, em comemoração dos 40 anos do Estado Novo, tendo-se servido o regime desta finalização para provar a sua alegada capacidade de resolução eficaz de desafios. 1
Na nave central apenas se encontram túmulos de corpo ausente, em homenagem, sem que as respectivas personalidades lá estejam sepultadas. Um passado imperial e colonial, controverso na forma como é recontado, do qual fazem parte Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque, o Infante D. Henrique ou Luís Vaz de Camões, figuras homenageadas logo à entrada do monumento. Na passagem pelas salas tumulares encontramos escritos retalhos da história da cidade nas sepulturas de figuras ilustres nacionais que, de alguma forma, marcaram a identidade de Lisboa :
Aquilino Ribeiro, republicano fervoroso marcado pelo seu envolvimento político, chegando a estar exilado em Paris, foi professor do Liceu Camões e, na sua obra “Mónica”, descreve a cidade e as suas silhuetas: “Da Costa do Castelo e Graça sentia-se como que a rajada sísmica no ato de varrer para a Baixa as agulhas estroncadas e os arcaboiços rotos das igrejas e palácios. Raro esta e aquela silhueta – as torres da Sé, as volutas brancas do Carmo, o corpanzil verde de D. José em cima do cavalo (...)”. Quando questionado sobre o brilhantismo da sua escrita, confessa que a língua portuguesa e a beleza que dela advém tem como autor único e merecedor o povo português, responsável pela sua perpetuação. 2
O açoriano Manuel de Arriaga, faz companhia a Teófilo Braga, Sidónio Pais e ao Marechal Óscar Carmona, numa das salas tumulares. Primeiro Presidente constitucional da República Portuguesa, Lisboa foi o palco dos seus anos de maior envolvimento político.
Era na Rua de São Bento, no coração de Lisboa, que se passavam as famosas tertúlias que juntavam amigos da fadista, poetas e músicos. Eram serões em livre pensamento num país enclausurado, que fazem chegar, pela voz de Amália, o fado como canção popular, aos palcos mais badalados do século XX. Se em vida a fadista Amália Rodrigues vivia na mesma rua que a democracia, o destino ditaria que repousaria junto de nomes que por ela lutaram até à morte.
É também em Santa Engrácia que jazem Almeida Garrett, João de Deus, Guerra Junqueiro, Sophia de Mello Breyner Andersen e Eusébio da Silva Ferreira. Repousam na eternidade de uma cidade que os viu, em vida, transformarem-se naquilo pelo qual são recordados e enaltecidos por tantos que visitam diariamente o Panteão. São nomes que nos dizem tanto no presente e que aparentemente conhecemos tão bem, que provocam em quem os visita a curiosa sensação de proximidade a alguém com quem nunca convivemos e de quem nos vemos separados apenas por uma caixa de mármore branca polida.
Por fim, o imponente terraço a 40 metros de altura do Tejo: depois de 181 degraus, é possível contemplar a imensidão da Cidade de Lisboa perante a fraqueza e humanização geradas pelas sepulturas dos andares de baixo, que atentamente observam o desenvolver da nossa casa alfacinha. Ao olhar cada janela, cada carruagem de elétrico e os pequenos pontos que vagueiam pelos passeios, surge uma questão à qual se torna impossível escapar: não será cada Lisboeta responsável pela criação da identidade da sua cidade? Não terá mesmo Aquilino Ribeiro razão: a voz de Lisboa não será simples ou extraordinariamente a voz do povo? Sepultados nos Prazeres, no Panteão ou no Cemitério dos Olivais, quantos não serão os rostos invisíveis dos que carregaram e marcaram as pedras da calçada portuguesa. É o povo que lava no rio e que talha com o seu machado as tábuas do caixão de Lisboa.
Referências
[1] História. (n.d.). Panteão Nacional. https://www.panteaonacional.gov.pt/171-2/historia-2/ [2] Aquilino Ribeiro, o escritor das Terras do Demo. (n.d.). RTP Ensina. https://ensina.rtp. pt/artigo/aquilino-ribeiro/
Hánoventa anos atrás, enquanto Hitler se tornava ditador da Alemanha, em Portugal nascia um lisboeta, o último de três irmãos. Cresceu durante a maior parte da sua infância nas Amoreiras e frequentava uma escola primária em São Mamede, na qual descobriu o seu amor pela Matemática. Durante os tempos livres, brincava no parque das Amoreiras com os amigos. A família encontrava-se perto, uns na Praça das Flores e outros na rua da Quintinha; um dos tios trabalhava na rua da Escola Politécnica, na Imprensa Nacional. Conectando-se com Lisboa, a zona do Rato foi o ponto alto da sua paixão pela cidade – percorreu-a, auscultou-a em cada rua insinuada, dançou por entre as suas curvas aninhadas e animadas. Aquele era o universo microscópico que o tornou familiar a Lisboa, que o fazia voltar sempre e no qual se sentia seguro e confortável. O entusiasmo da exploração das ruas, da azáfama de pessoas e cheiros e a beleza das colinas fixaram-no nesta cidade instantaneamente – “Não há cidade mais bonita”, admitia.
Contudo, a beleza arquitetónica de Lisboa continha em si um bioma humano complexo. Sem ignorar a textura social nem a fragilidade socioeconómica, a vida de um lisboeta de classe baixa era desafiante.
Aos seis anos, acordava de madrugada para ir buscar o burro. Ia sozinho, pequenino, pelas ruas de Lisboa, atento ao frio e ao escuro das esquinas e das noites mal dormidas. A pobreza era pisada com os seus pés descalços enquanto se juntava timidamente a uma multidão madrugadora, frenética e ruidosa, no mercado
da Ribeira, na tentativa de vender as suas hortaliças com a mãe. A infância foi substituída por uma necessidade de sobrevivência. A inovação tardava em Portugal e a produção era maioritariamente do setor primário, à custa de muito desgaste físico e de poucas condições de vida. O labor infantil, muito comum na altura, era ritmado pela insustentabilidade precária de muitas famílias, realidade sustentada e perpetuada, em parte, pelo analfabetismo.
De qualquer modo, ele alegrava-se por poder explorar a geografia de Lisboa . A cidade era menos recatada do que os seus sonhos de criança, e isso fascinava-o. Poder confrontá-la com as suas formas e adultos deixava-o expectante quanto ao rumo de cada dia. Enquanto foi crescendo, tornou-se um jovem curioso, adepto do cinema, do teatro e do Fado. As artes visuais e a música foram um escape à realidade física e deserta da classe operária e uma tentativa de encontrar a identidade negligenciada em criança. De certo modo, a hostilidade de crescer antes do tempo abandonou a vulnerabilidade da sua singeleza de gaiato e despertou-o para a efervescência da juventude. Porquanto buscasse os anos perdidos conseguia apenas resgatar uma voz que agora o projetava em frente.
O primeiro emprego oficial foi na Central do Tejo. Duro e perigoso. Quebrante e ecúleo. Naquele calor e rodeado de máquinas, por entre braços possantes despojados, o jovem adulto despertava para as injustiças do proletariado.
O ambiente fabril era uma opção comum tomada pelas massas – as fábricas emergiam mais lacadas, megalómanas e potenciadas, oferecendo muitos postos de trabalho. Apesar disso, eram aperfeiçoadas para as máquinas, para a produção, e não para a humanização.
Para se sentir livre, visitava o Jardim Cinema, na avenida Álvares Cabral. Lá, refugiava-se no silêncio, e na familiaridade dos diálogos dos protagonistas. Perdido na plateia, por entre o fumo ardente de tabaco, imaginavase nos cenários do faroeste americano, a ser herói, a sacrificar-se pela atriz principal e a ser uma pessoa moralmente impunível.
Da mesma forma era cativado pela melodia do Fado Vadio, criado nas ruelas e tascas de Lisboa e lá improvisado. Este estilo clandestino e livre, deixava-o entregue à possibilidade da vida, de uma identidade. Independentemente dos anos que passaram, para ele, o Fado foi sempre um momento de respeito e reencontro com a alma portuguesa.
Naquela altura, Lisboa era uma cidade agressiva e nua, que ecoava os gritos dos negociantes. Trajava-se de terra e mar, e descobria o lustro da cosmopolitização. As pessoas cultivavam o fascínio pelo Fado e aprendiam o que era a saudade cantada noite adentro. Os cafés enchiam-se de gargalhadas
fartas e algumas injúrias proferidas peito a peito com a emoção. Havia vibração nas ruas, cheiros fervilhantes, e a multidão misturava-se entre si, absorta dos impasses que a interrompia. Os lisboetas forjavam um entendimento próprio, como ferramenta de navegação pela claustrofobia das ruas para encontrarem o seu destino. As crianças reuniam-se em parques para brincarem, independentemente do seu estatuto ou da sua origem. Lisboa partilhava um lado não conquistado, livre e selvagem, não só arquitetonicamente e socialmente, mas também artisticamente. A vida não era tranquila para a maioria dos habitantes, era rasante à sua pequenez e testava a criatividade dos mais curiosos. Ao fornecer a história e o espaço, a cidade era palco de vidas ansiosas por se desenrolarem.
E ele foi uma delas. Envergonhado com a forma como Lisboa é tomada por garantida, recorda os tempos em que a política e a liberdade não puderam ser cúmplices um do outro; e evoca o sofrimento do povo e a sua força na reconquista dos seus direitos. Apaixonado pela capital portuguesa, descreve-a como a casa que o acolheu por inteiro, e, intimamente, o deixou ser português de gema. Com a passagem dos anos, ele foi crescendo, e Lisboa, outrora enorme aos olhos de gaiato, pode agora ser embalada nos seus braços… no seu fado.
Asituação atual da habitação em Lisboa é bastante crítica, marcada por uma crise habitacional significativa que afeta muitos moradores. Segundo um estudo recente, Lisboa lidera as capitais mais incomportáveis para se viver, sendo atualmente a cidade com a renda mais inacessível da Europa 1
E o que significa isto em termos práticos? Significa que o rácio renda/salário de um lisboeta é cerca de 0,88, ou seja, um lisboeta não consegue pagar um mês, mas sim apenas 26 dias de renda por um apartamento T1 . Colocando outro exemplo sobre a mesa, poderá ser interessante comparar Lisboa com outras cidades - na Alemanha, o ordenado mínimo ronda os 2 mil euros e em Berlim, a média de rendas para arrendamento urbano é de aproximadamente 1300 euros. Traçando o paralelismo para Lisboa, onde o salário mínimo nacional ronda os 820 euros (desde janeiro), a média de arrendamento urbano é igual à de Berlim 1,2
Todos sabemos que esta situação não é recente, não tem 1 ou 2 anos, nem remonta à Pandemia. Os dados mostram-nos que os preços da habitação em Lisboa aumentaram 120%, entre 2012 e 2022 , sendo a atual taxa de esforço 67%, a maior da península Ibérica, segundo dados recentes da Century 21. Os preços das rendas tiveram um incremento de cerca de 30% nos últimos cinco anos . Por outro lado, os salários não acompanharam, tendo-se mantido relativamente estáveis, prejudicando não apenas o poder de compra da população pobre mas também da classe média 1-4
E quais os culpados maiores de toda esta situação? Se o pensamento for em termos globais podemos apontar a inflação, as recentes guerras, as alterações climáticas, responsáveis por inúmeros fenómenos climáticos extremos, e a imigração (causada especialmente por estes 2 últimos) 1,2,4 . Por outro lado, se preferimos ver a perspectiva mais local, poderá estar entre o elenco, a falta de oferta habitacional disponível no mercado, absorvida quer pelo excesso de alojamentos locais (que ocupava em 2023 mais de vinte mil habitações, particularmente nos centros históricos da cidade), quer pela pressão provocada pelos expatriados, nómadas digitais e imigrantes (muitos destes últimos em casas partilhadas e condições de habitabilidade questionáveis); o pouco investimento e inexistência de políticas públicas de habitação; uma grande ineficiência do Sistema Judicial e uma infinita burocracia, onde vigoram incontornáveis e deficitárias medidas procedimentais (des)necessárias que se arrastam ad nauseum no tempo para a construção, reabilitação, compra/venda e/ou arrendamento de imóveis 2 .
É verdade que desde 2021, a autarquia de Lisboa tem procurado apostar em soluções de curto prazo e investimentos de médio-longo prazo, desde construção e renovação de mais de 1500 casas para pessoas com rendimentos médios e baixos à disponibilização de alojamentos a pessoas com funções-chave na cidade como professores, profissionais de saúde, entre outros 5 .
Contudo, a grande disparidade entre os preços de mercado, aliada à (in)capacidade financeira das famílias, torna todo este problema, um gigante desafio . Recorrendo a outro exemplo, é bastante improvável que um médico interno ou recém-formado consiga viver sozinho em Lisboa e pagar as suas próprias contas.
Em 1948, a Declaração dos Direitos Humanos consignou como um direito fundamental para cada ser humano, o direito a ter uma habitação condigna. Em 2019, entrou em vigor a Lei de Bases da Habitação que afirma, por exemplo, que “Todos têm direito à habitação, para si e para a sua família, independentemente da ascendência ou origem étnica, sexo, língua, território de origem, nacionalidade, religião, crença, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, género, orientação sexual, idade, deficiência ou condição de saúde”. Contudo, no ano de 2021, segundo dados do Ministério das Infraestruturas e da Habitação, (sobre) vivem mais de 38 mil famílias em Portugal em situação de habitação indigna, estando quase um terço a viver na região da Área Metropolitana de Lisboa (AML). Já dados mais recentes, de 2022, apontam que este número poderá ser tão elevado quanto 50 mil famílias apenas na AML 6-8
Urge encontrar medidas para que a situação atual melhore, não apenas paliativos para o presente, mas sim medidas que tornem Lisboa uma cidade melhor, mais atraente para qualquer pessoa no Mundo viver. A política da “terra queimada” esteve vigente até há um par de anos, tornando a cidade atrativa para os ricos e reformados virem passar os seus últimos anos à capital. Portugal não pode ser apenas um rectângulo melancólico à beira mar plantado, nem muito menos um banco de jardim Lisboeta onde se reúnem velhos do Restelo a discutir a política dos Descobrimentos. Que venham melhores tempos, mas acima de tudo, mais prósperos, que tragam a paixão que Jorge Sousa Braga cantou no seu poema “Portugal”.
Referências
[1] - https://lidermagazine.sapo.pt/habitacao-lisboa-tem-a-renda-mais-inacessivel-da-europa/ (consultado em 21/05/2024) [2] - https://observador.pt/opiniao/ lisboa-inacessivel-solucoes-para-a-crise-habitacional/ (consultado em 27/05/2024) [3] - https://www.idealista.pt/news/imobiliario/habitacao/2023/06/22/58366-acessoa-habitacao-em-lisboa-e-o-pior-da-peninsula-iberica (consultado em 21/05/2024) [4]https://expresso.pt/economia/economia_imobiliario/2024-03-15-Ciclo-de-valorizacaodos-precos-da-habitacao-em-Lisboa-pode-estar-a-esgotar-se-e8c0f7c6 (consultado em 27/05/2024) [5] - https://lidermagazine.sapo.pt/saiba-como-esta-lisboa-a-enfrentar-acrise-da-habitacao/ [6] - https://www.amnistia.pt/pelo-direito-habitacao/ (consultado em 24/05/2024) [7] - https://www.amnistia.pt/peticao/pelo-direito-de-todas-aspessoas-a-uma-habitacao-condigna/ (consultado em 24/05/2024) [8] - https://www. idealista.pt/news/imobiliario/habitacao/2022/11/16/54919-mais-de-50-mil-familiasna-grande-lisboa-vivem-em-condicoes-indignas (consultado em 02/06/2024)
Lisboa, a capital deste nosso belo Portugal é, inegavelmente, uma cidade maior do que o sonho. Entre as suas ruelas de guitarradas e vozes sofridas, as suas praças de folia e as suas largas avenidas prontas para alimentar toda a máquina trabalhadora que da nossa cidade se serve, encontramos todo um mundo a desvendar.
Mas e o Estudante? Onde é que esta imberbe criatura, recémchegada (ou não) à capital se insere e será que lhe é possível encontrar o lugar?
Desengane-se aquele que considera Lisboa uma cidade acolhedora para os jovens Estudantes que procuram não só um curso, uma possibilidade de um futuro melhor, conhecimento e, quem sabe, excelência, mas, acima de tudo, experiência e uma transição entre a adolescência e a vida adulta tão recheada quanto possível. Chegado a Lisboa e com o Tejo a servir de fundo, o Estudante deposita lágrimas douradas nos cofres dos senhorios para ter onde dormir . Isto quando os próprios senhorios não se recusam a ter esta ignóbil criatura a pernoitar na sua propriedade. É pois uma árdua tarefa, a de procurar um poiso, pois a oferta, ora com poucas condições de habitação, ora demasiado cara para o bolso da família, ora demasiado longe da Faculdade, revela-se insuficiente
para as dezenas de milhares de jovens que procuram um quarto, tendo estes de, muitas vezes, recorrer a casas de familiares, nas
Já um pouco mais habituado ao ritmo urbano e, como Estudante de Ensino Superior que é, decide comprar o uniforme característico desta classe, o Traje Académico, o qual tem incluído no preço de compra os olhares de desdém, os comentários desapropriados e acusatórios e, com um pouquinho de azar, até cuspidelas . Lisboa, a cidade que se recusa a facilitar a vida aos Estudantes, que se recusa a acolhê-los com a dignidade que merecem, seja pelas suas ambições de alcançar um estatuto superior na sociedade, seja pelo mérito da sua excelência, é a mesma que se alimenta destes e que, sem escrúpulos, os rói até ao osso, apenas para os cuspir para bem longe, enquanto se regozija com os restinhos presos nos dentes. Curioso será, com certeza, observar o impacto que o Estudante historicamente teve nesta cidade e perceber como também esta lhe deve muito. Basta-nos recuar ao ano de 1962 para perceber o seu poder e influência na sociedade,
tendo alimentado em larga escala a chama da luta contra o regime Salazarista. Com efeito, as ações tomadas na Cidade Universitária, a propósito do cancelamento, por parte do regime, dos festejos do Dia do Estudante, tomaram proporções tais que, para além da censura generalizada ao ocorrido, a polícia de choque entrou na Alameda da Universidade adentro, oferecendo cacetadas e prendendo os jovens reivindicadores. Estes eventos foram seguidos por uma greve de fome, na Cantina Velha, barricada por Estudantes, por ideia de Eurico Figueiredo, à data presidente da Comissão Pró-Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Será então evidente que, por mais que os lisboetas reneguem o facto, Lisboa é também feita de Estudantes e que esta bela cidade, que todos amamos, lhes pertence bastante.
Mas não é recente a imagem de arruaceiro folgado que os habitantes lisboetas têm do Estudante, e, em parte, a responsabilidade é deste último . Mas porque nem só da responsabilidade é construída a culpa, não o podemos culpar da impressão que aos vizinhos passa. Afinal, há que aproveitar os áureos anos de Faculdade e, nessa matéria, Lisboa revela-se na dianteira, estando provida de um infindável número de bares, discotecas e restaurantes. Desde o infame Bairro Alto, até à rua Cor de Rosa ou ao largo de Santos-o-Velho, há inúmeros locais, históricos ou a estrear, onde criar memórias únicas, com os colegas e amigos, quiçá, de uma (futura) vida inteira.
Lisboa, de facto, consegue alcançar tanto em pontos positivos como em negativos, ou até superá-los. É nesta belíssima cidade que o
Estudante pode visitar variados museus com coleções ricas e diversas; que pode ver os mais recentes filmes ou até os mais antigos em salas históricas; que pode passear por locais que tantas personagens icónicas pisaram; que pode assistir a concertos de todo o género e em salas para todos os gostos; que pode ouvir o Fado, pelas estreitas ruas de Alfama; que pode comer um Pastel de Belém, contemplando o local de onde tantas naus partiram rumo ao desconhecido; que pode sentar-se e imaginar o largo do Carmo cheio de militares; que pode envolver-se no associativismo, no ativismo, em grupos culturais, em tudo quanto quiser, porque Lisboa entrega-lhe tudo quanto o Estudante quiser. Onde mais se encontra tanto e ao mesmo tempo? Onde mais temos tantas oportunidades de coisas para fazer que o estudo quase que nos é secundário? Poderíamos passar um ano a fazer coisas diferentes todos os dias e nem por isso estaríamos sequer perto de vivenciar tudo o que esta nossa cidade tem para nos oferecer. E porque nem só de estudo o curso é feito, tudo isto contribui para a formação do Estudante, que, cada vez mais, se pretende multifacetado, humano e conhecedor do mundo que o rodeia.
Quando ouvirem que Lisboa não é boa para estudar, tenham em mente que, apesar de todos os desafios, não há cidade tão bonita, imponente e repleta de oportunidades, em Portugal, como a capital.
É com toda a certeza que digo que vou ter imensas saudades quando daqui partir, e que não poderia ter feito melhor escolha do que esta . A Lisboa, o meu coração.
Procuro por ti, por ele, por mim, no meio da multidão, ténue na luz fundida do Bairro. Ao tentar fluir pelo seu ritmo alucinante, acabamos algures num terraço palavroso, cheio e vertiginoso, reféns da corrente incontrolável de Lisboa. Nestes impasses que nos afastam do nosso destino, esqueço-me de tudo e só volto à realidade quando me falta o oxigénio. Nestes momentos de apneia, bato as pernas, arqueio os braços e por entre sorrisos alheios e cargas de ombro consigo lá chegar. Puxo a maçaneta e ponho-me a andar.
Simulando formas e cores, entre momentos de lucidez, mostra-se o miradouro, torto aos meus olhos. Finalmente o banco, o descanso, a brisa de Lisboa. Uns degraus descem-se de maneira cambaleante e, sentado na tinta fresca, junto às cabeças em pedestal, reflito. Elas lá devem ter muito tempo para o fazer, estão ali entaladas desde que me lembro, petrificadas. Lembram-me Lisboa, estagnada, as mesmas ruas, os mesmos problemas, as mesmas mágoas . Lisboa foi engolida pela grande onda de saudade que se infiltrou nas fissuras da calçada abertas pelo terramoto. Nunca mais secou e desde aí reduzse a isso. E a futebol…
Mas eu não estou sozinho nesta assombração. Do lado do rio está Carlos da Maia empoleirado, prestes a saltar, e do lado do quiosque verde, que cheira a urina diabética, vejo os pés de um sem abrigo a dormir. Cansado disto tudo esfrego os olhos e observo as gruas inclinadas que parecem chegar à lua, as ruelas esburacadas onde já caí várias vezes, as subidas tortuosas que me fazem cuspir o pulmão… A colina verde que suporta o castelo nunca rendido, e que, à direita, esconde o desembocar do Tejo, entre as margens conquistadas…
Do nada, a tela bruta torna-se surrealista. Carlos da Maia salta e, enquanto a cartola decide onde esmorecer, a gaivota decide até onde voar e o sem abrigo acorda, mas como um gato. E isto tudo faz-me sentir, e finalmente percebo que Lisboa não muda pelo simples facto de não haver nada a mudar. Se mudar significa correr com os copos esmigalhados, ladeados pelas portas coloridas do bairro, deixar de cheirar o mijo, de ouvir os berros, de sentir os empurrões e de saborear as morangoskas cirróticas - então não quero. Só assim faz sentido! E quando os ouvidos doerem, o nariz arder e as pernas pesarem, teremos sempre um miradouro à esquina para pensar no quão sortudos somos por ser Lisboa o nosso lar.
O céu enublado pelos meus pensamentos começa a abrir, descoberto pela plenitude que a imperfeição lisboeta me transmite. Levantome e sorrio para o banco cuja pintura arruinei, e preparo-me para regressar ao terraço, reaver o isqueiro roubado e ir para casa.
Lisboa, a tela disto tudo, és tu.
“ Lisboa foi engolida pela grande onda de saudade que se infiltrou nas fissuras da calçada abertas pelo terramoto “
Nanoite de 7 de maio tomou lugar o primeiro “Palavra a Passo” organizado pela Comissão Organizadora da RESSONÂNCIA, uma viagem literária pela Cidade das 7 Colinas sob o mote “A pequenez do indivíduo perante a grandeza da cidade de Lisboa”. Os participantes realizaram um percurso pela zona histórica da Cidade de Lisboa, numa mão a caneta e, na outra, o desafio de se atreverem a cruzar esquinas com as suas palavras. A calçada de Lisboa, que em si tem cravada a existência dos tantos “plurais de Vida”, pode, também, ser uma página em branco e, nesta página, os participantes do primeiro “Palavra a Passo”, deixam um pouco do que esta noite lhes trouxe.
Boa noite
Ou será só noite?
Talvez esteja a partir de um lugar de arrogância a definir fases do dia.
Que tal… recomeçar?
Que tal não seguir a mesma linha do costume?
Melhor seria deixar para trás uma árvore onde amadurecem maçãs.
Porque, inevitavelmente, uma noite chega
Fria e confusa, a ninguém dá trégua
Sem distinção, a todos nos seus braços acolhe.
Cega de onde, quem e porquê.
Apenas chega.
Chegar onde? Sem destino ou propósito; a lugar nenhum.
Será o destino o propósito ou a viagem torna-se o propósito?
Ou será antes despropositada esta busca por alocar o destino a um propósito?
Já chegámos! Chegámos onde um dia quisemos estar, mas não chega… e para onde vamos? Será que as pessoas do caminho eram o próprio destino
Ou quiseram as pessoas definir o caminho pela vivência de caminhar? Viemos sós, mas juntos, cada um no seu mundo infinito de caminhos que hoje partilhamos!
Porque o caminho só faz sentido se não estivermos sozinhos
De que vale chegar a um destino, ou encontrar um destino no próprio caminho, se não tivermos com quem o partilhar?
Ora aí está uma boa definição de ser vivo: aquele que partilha caminhos.
Caminhos físicos que se separam sem nunca permitir a solidão daquele que o é. Vivo.
Se sobe chega à rua da saudade, se desce vê a saudade no fim da rua.
Questiona com quantas letras se escreve um nó na garganta e verga 7 cestos de vime para carregar o
Sinto o cheiro a café
Alma e Sé de Lisboa
Sons e mensagens de fé Poemas de Pessoa
Sob a guarda do Cristo Rei Passo em passo lento
Pelo chão de vidas passadas
Vendo em cada monumento Novas vidas novas caras e sei que me vou apaixonar…
Cidade de Saudade
Amor de tenra idade
És eternidade
Arde forte o teu encanto
Tens vida em cada canto
Sou teu até ao fim
Sou teu até ao fim
Créditos:
Guitarra - João André Moreira
Voz - Ivo Fialho e Bea Nobre
Música e letra - Catarina Torres, João André Moreira, Ivo Fialho e Bea Nobre
Ouve Já Aqui
O livro de contos Casos do Beco das Sardinheiras, de Mário de Carvalho, passa-se em Lisboa, cidade de colinas e luz, formada por uma amálgama de bairros de típicas casinhas irmanadas, com parapeitos adornados de flores . É precisamente algures entre Alfama e a Mouraria que se localiza o Beco das Sardinheiras, assim conhecido pela multiplicidade de flores que alegram as suas janelas.
Este livro relata, de forma leve e em vários contos, o dia a dia dos moradores do Beco, que, dotados de um amor desmedido pelo seu bairro, utilizam o seu inerente raciocínio mágico para interpretar e resolver as dificuldades do quotidiano.
A maioria destes contos começa com um evento que altera o estado basal do Beco das Sardinheiras, estimulando os seus habitantes a raciocinar e deliberar acerca da melhor solução para o contratempo . Após várias propostas e conjecturas mirabolantes, o veredito final é, por norma, a simplicidade de coisa nenhuma. Felizmente, a altercação que acompanha a troca de ideias é passageira, até perfeitamente normal, e por isso os humores e a vida rapidamente retornam ao habitual.
Mas nem sempre as histórias seguem este padrão. Com efeito, o conto que mais apreciei relata o nascimento de um gato, de nome Gigas. O Gigas, filho único da gata da família dos donos, talvez por isso, cresceu de forma verdadeiramente extraordinária, tornando-se num felino anormalmente corpulento. Quando a família dos donos lhe permitiu que passeasse sozinho, começaram a surgir relatos de acidentes com vários polícias que teriam sido mordidos por um ser enorme com um vulto animalesco, que assombrava os moradores das
ruas de Lisboa. Desconfiados e receosos de que o culpado fosse Gigas, e das consequências que isso poderia trazer, a família decide livrar-se do animal, oferecendo-o a um primo, apesar dos laços fortes que já haviam criado com ele. Esta decisão foi especialmente angustiante para a mãe e para a avó, que, além de terem muita amizade, e portanto, muitas saudades, se preocupavam com a adaptação do pobre gatinho ao novo ambiente. O conto termina com a publicação de uma notícia nos jornais de que tinha havido mais dois ataques a guardas nas imediações do local onde haviam deixado Gigas. Essa notícia apaziguou os corações da família, que compreendeu os ataques como sinal de que Gigas estaria ambientadíssimo, tendo retomado as habituais atividades noturnas.
Como este animado relato, existem muitos outros neste livro encantador que Mário de Carvalho criou, no qual se reitera o dito “Não vamos confundir género humano com Manuel Germano”, tão frequentemente usado no Bairro, como uma filosofia transversal para aligeirar os ânimos a todos os seus habitantes.
Repleta de momentos cómicos marcados por formulações fantásticas de situações quotidianas, esta torna-se na compilação de contos ideal para qualquer pessoa interessada numa leitura agradável e divertida . Mário de Carvalho redigiu esta obra que retrata, na sua essência, o que é ser lisboeta: o orgulho e carinho inerentes pela sua cidade, vila ou beco e pelas pessoas que neles habitam.
Casos do Beco das Sardinheiras
Autor: Mário de Carvalho
Edição: novembro de 2013, Porto Editora
Páginas: 88
Género: Contos
“Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã”
Maria João MatosS anto António, Marquês de Pombal e um pé de alface entram num bar. Desencovam-se e entram num bar.
O Marquês é quem diz: – Oh. Que esta sala parece champanhe.
Santo António pergunta de si para siÉ luz que se chama a esta luz que vejo?
Talvez se estranhe que, dos três recém desenterrados, o pé de alface seja o mais modernizado, mas:
– Santo, debaixo da terra é noite até de dia, mas agora, dentro das casas e dos bares, pode ser dia, até de noite! É a eletricidade.
– Deixei esta cidade a homens que não fossem jesuítas e a mulheres que costurassem e tirassem o assado do forno sem se queimarem. Que me deem meio-dia para ver trilhar mulheres pálidas em vestidos vermelhos, e logo pensarei no que faria com a eletricidade.
– As pessoas estão de castigo? Estão proibidas de andar na rua respirando diretamente do pulmão de Deus? Quando Deus deu essa eletricidade e acabou com a noite, tirou aos homens, em troca, as pernas de andar?
– Acho que deu aos homens pernas com molenga. São carros, andam agora dentro dos carros.
– Oh. São carros. Os carros. Ocupam muito espaço os carros. Bem vês que a rua tem vinte passos de largo e somente dois passos de passeio para as pessoas passearem. Mais vês que a rua tem duzentos passos de comprido e que as pessoas passam numa passadeira de dez passos.
– Criar-se-ão em Lisboa novas praças e novos jardins, com novos caminhos e novas árvores.
– E as novas pessoas deixar-se-ão convencer de que são livres, se para serem livres têm de estar presos numa praça ou num jardim?
– Se eu tivesse eletricidade não acabava com a noite nem acelerava as pernas, fazia os pianos tocarem sozinhos as valsas e as sinfonias, sem um pianista para se cansar.
– As pessoas querem só chegar mais rápido onde têm de chegar, voltar mais rápido de onde têm de voltar e ter mais perto os sítios de longe que querem visitar. Enterraram até o elétrico e chamaram-lhe metropolitano só para o Chiado não distar do Jardim Zoológico mais que dez minutos, e mais linhas se farão para encurtar Lisboa.
– E quem é que quer Lisboa curta? E quem é que para isso celebrou um enterro? Então querem ir depressa para de onde um santo, um marquês e um pé de alface fugiram?
– Santo, em verdade vos digo, se eu tivesse tido a eletricidade e o metro, também correria para ver num só dia o pôr-do-sol duas vezes. Mas dizme, pequena alface, um jardim zoológico, que é?
– Um sítio de guardar e visitar animais: girafas, cangurus, macacos e outros que tais.
– E estes grandes pássaros –perguntou o Marquês erguendo o queixo – fugiram desse jardim zoológico?
– São aviões, vão para o aeroporto, o velho. Dentro também levam pessoas.
– O aeroporto é um jardim zoológico para passarolas ? Ah. Se eu tivesse a eletricidade, o metro e ainda as passarolas , então só me caberia morrer, faltam-me ideias para viver assim.
– Lisboa tem girafas, as pessoas deixaram a terra, e é no céu ou enterradas que andam, o que era dia e noite pode ser só dia e dia, já nem o escuro serve ou é necessário. Tal desassossego . Preciso com urgência da Lisboa antiga e a provar o que digo , pregarei agora neste Tejo que parece ser um e meio.
– Escutemos então, Alfacinha e alfacinhas, o Sermão de Santo António só às Sardinhas.
E o santo começa dizendo: como foi só um dia mau e não um dia pior, alegremo-nos.
“E o santo começa dizendo: como foi só um dia mau e não um dia pior, alegremo-nos.”
São 7h da manhã.
Caminho apressadamente nas ruas do Chiado.
Tropeço novamente nas pedras da calçada, já soltas de tanto serem pisadas.
Vou sempre encostada às montras das lojas por onde passo,
Para não atrapalhar as bicicletas que, tal como eu, têm pressa em chegar ao trabalho.
No fundo da rua viro à direita, como faço todos os dias.
Tenho o mapa de Lisboa tatuado na mão
E a música que ecoa no ar marcada no coração.
Vou espreitando as ruas que cruzam a minha,
E cada esquina tem um brilho diferente.
As pedras antigas de mármore vão ruindo
E o meu olhar só alcança edifícios envidraçados.
Passo pelas Janelas Verdes que mudaram de cor, desbotadas pelo toque incessante do tempo.
Os pombos famintos de outrora deram lugar aos pássaros “mirones”, equipados com câmaras de alta resolução, que não perdem nenhum detalhe.
O comboio, agora, mal se ouve, e passa.
Passa e não espera por ninguém, tal como a vida.
Sento-me no meu café Nicola, que continua preservado desde o tempo de Bocage.
Peço o habitual café cheio e pastel de nata para acompanhar.
Olho ao meu redor e concluo que há coisas que são eternas. E Lisboa também o é.
O senhor com o saxofone brilhante continua a poli-lo todos os dias, sempre que toca.
A música ainda ressoa nas velhas casas de Alfama,
Que o turismo não deixa falir.
As ruelas ainda falam de fado e saudade, E os loucos de Lisboa continuam loucos. E continuam de Lisboa.
Sim, muita coisa mudou, é verdade,
Mas a beleza de Lisboa está na eternidade:
No coração de quem vê, nos olhos de quem ama.
Levanto-me para pagar, com um sorriso impresso nos lábios:
Vejo-te a ti, Lisboa, como sempre foste.
De braços estendidos para tudo o que ainda serás.
“ Oblisa”, Ano de 2075, relojoaria Momentum. Ouve-se o som dos relógios. Paredes revestidas de livros de memórias, com capas escuras e lombadas largas, empoeirados. Em cena, um Relojoeiro a limpar relógios, a arranjar o tempo. Entra em cena uma mãe e um filho. A mãe à frente, apressada, fria e de andar mecânico. O filho, mais reticente, apreensivo e olhando para tudo com incerteza, por ser a sua primeira vez neste espaço.
MÃE ( Apática ): Bom dia. Viemos purificar o tempo.
RELOJOEIRO : Nome?
Relojoeiro abre um livro volumoso, pesado, de capa dura, castanha, onde se lê “Oblisa Codex“ e prepara-se para escrever a resposta. Mãe incentiva o filho a aproximar-se.
MÃE : Martim Moniz.
RELOJOEIRO : Idade?
MÃE : Dezassete.
RELOJOEIRO : Memória?
FILHO ( Desconfortável e ansioso ): Calma, mas como é que isto funciona?
RELOJOEIRO ( Lendo o papel em cima da mesa, com desprezo, em modo automático ): Como sabe, chegou o momento em que o seu cérebro atingiu o máximo de armazenamento acessível. Nesta capital surgiu a necessidade de descartar memórias selecionadas, para libertar espaço a ser preenchido pelos futuros
estímulos diários, constantes e repetidos. O procedimento é rápido, pode ou não causar desconforto. Proceda à escolha da sua memória.
FILHO ( Pensativo ): Quero eliminar os longos três minutos que demorei em transportes públicos até aqui. Ah, não! Calma, isso seria parvo. Hmm, ah, o primeiro jogo que eu joguei! Mas será que isso ocupa assim muito espaço?
MÃE ( Fria ): Tira algo antigo e valioso para não teres que cá voltar tão cedo.
FILHO : Ah, já sei! Posso eliminar a primeira vez que conheci o meu melhor amigo. Já temos tantas memórias que não vale a pena guardar esta.
Relojoeiro aponta toda a informação necessária no Codex e prepara-se para escrever a da Mãe.
MÃE : Eu vou eliminar os primeiros passos do meu filho. Ele já sabe andar, não é preciso lembrar-me de como começou. Alfama, trinta e dois anos.
RELOJOEIRO : Certo. ( Levanta-se e aponta para a entrada da câmara de extração de memórias ) Por aqui, por favor.
Mãe e Filho dirigem-se à câmara de extração. Entra um casal. Sem emoções, afastados, frios. Os seus passos são coordenados e robóticos.
CASAL ( Em coro ): Bom dia. Viemos apagar memórias para poder criar memórias juntos. ( Sorriem )
RELOJOEIRO ( Sorri em tom de gozo ): Nome e idade?
CASAL : Bartolomeu Dias e Amália Rodrigues. ( Pausa ) Vinte.
RELOJOEIRO ( Começa a ler o papel em cima da mesa ): Como sabe, che gou o momento em que o seu cérebro atingiu o máximo -
O casal pega no Codex, sincronizada mente, de forma robó tica, e começa a escrever as memórias que quer ti rar. Mãe e filho saem da câmara de extração sem expressão, apáticos e, de pois, da loja.
RELOJOEIRO
uma que se perde.
Entra um casal de idosos conhecido pelo Relojoeiro, cúmplices, carinhosos. Lis boa, abraçada por um xaile, sorriso pesado e braço dado a Porto, homem alto, vestido de tons escuros, olhos rasgados e pele enrugada de quem sorriu à vida. O Relojoeiro antecede a entrada do casal, levantando a cabeça num gesto de familiaridade.
O Relojoeiro dirige-se ao Codex e prepara-se para começar o processo.
LISBOA ( Apreensiva ): Sebastião…
O Relojoeiro levanta o olhar.
PORTO : Hoje, não… Na verdade, hoje, trazemos-te um pedido diferente.
Porto e Lisboa trocam olhares e aproximam-se.
PORTO : Queremos sair de Oblisa.
RELOJOEIRO : Certo. Durante quanto tempo?
LISBOA : Desta vez, não é um passeio… Estamos fartos de aqui estar, desta cidade que nos ofusca e nos baralha. Bons eram os tempos em que a capital era a nossa casa, mas já nem disso me lembro. ( Entristecido ): De que vale viver numa cidade que nos faz respirar poesia, quando te asfixia de ganância, polui de ambição e frieza o calor que lhe é tão característico; que vive do sentir das pedras da calçada, mas morre a cada passo apressado.
LISBOA : Bom dia, Sebastião!
RELOJOEIRO : Que bom ver-vos!
Então, é o habitual?
LISBOA : Queremos a cidade de luz, do sol dos postais, que não nos chega, tapado pelas construções de solidão. Queremos deixar as visões de futuro traduzidas, manter uma saudade que
não seja de nós próprios.
PORTO : Queremos voltar aos pedaços de terra com vida, voltar a ser Lisboa e Porto pelo que somos e não pelo que querem que sejamos. Por isso, queremos voltar a recordar o que nos fez chegar aqui e pedimos-te, Sebastião, todas as memórias que aqui te deixámos, para que possamos levar connosco o que nos faz querer ir embora.
LISBOA : Para mudar é preciso recordar…
RELOJOEIRO : Eu percebo, mas tal decisão acarreta maiores consequências do que imaginam.
LISBOA ( Confusa ): Como assim? Não estou a entender.
RELOJOEIRO : Existe uma lei que o Conselho esconde da população em geral e só nos permite, a nós relojoeiros, conhecê-la. A lei indica que, quando alguém decide deixar a capital, não é só a pessoa que se esquece da cidade, a cidade tem de se esquecer dessa pessoa. Todo o vestígio da sua existência tem de ser eliminado. Isso implica purificar o tempo e a memória de todos aqueles que foram marcados por esta pessoa, seja conhecido, amigo, ou familiar.
LISBOA ( Pensativa, a tentar recordar ): Sempre nos aconselhaste a tirar memórias que são pouco relevantes, para preservar as nossas emoções. E se quisermos conservar as nossas emoções e levar as nossas memórias com a intensidade com que as vivemos?
RELOJOEIRO : Segundo as regras desta cidade, estando mais de quinze dias fora, não só não consigo devolver-vos as memórias como ainda sou
obrigado a eliminar todas as lembranças que têm desta cidade. Isso inclui a vossa casa, as vivências, os amigos…
LISBOA ( Emocionada ): E isso implica esquecermo-nos…
RELOJOEIRO ( Com a voz trémula ): De mim. Sim… Lisboa e Porto abraçam o Relojoeiro e entram na câmara. O Relojoeiro começa a escrever.
RELOJOEIRO : Espero que ainda estejam a tempo de encontrar algo melhor, de sair desta cidade que só apaga memórias, sonhos, esperanças, como se fossem um mero esboço que pode ser corrigido com uma borracha. Tenho saudades de quando as memórias guiavam, de quando moldavam e não estávamos destinados a cometer os mesmos erros. Era bom quando um pequeno cheiro era capaz de ativar uma memória que até então não tinha qualquer significado. É cansativa esta era do imediato em que um minuto vale uma hora e uma hora equivale a um dia. Quantos casais eu já vi partir, quantos amigos perdi e quantas vidas destruí?
Entra um novo cliente na Momentum.
CLIENTE : Bom dia. Eu vinha purificar o tempo.
O Relojoeiro recompõe-se, pega no Codex, e retoma a monotonia do seu dia a dia.
RELOJOEIRO : Nome?
Ouves o despertador a tocar, lá ao longe, como espada que corta a neblina em que dormias. Já estás atrasado. Vestes-te ao som do noticiário que te prepara para a cadência que te espera do outro lado da porta. A batida por minuto dos aviões mescla-se com o apitar das cancelas que reclama dos passes rotineiros e rapidamente se transforma nos teus batimentos por minuto. Dás por ti em taquicardia para acompanhar a demanda de circulação de outros . “Será que ela não se cansa?” é o teu pensamento cada vez que chegas ao teu destino ofegante.
São sete e cinco da tarde, perdeste o transporte. Sentas-te num banco a mirar o Tejo que reflete o lilás do céu. As luzes das esplanadas ligam, as pontes estão cheias e os últimos turnos laborais trocam. Há uma artista a tocar saxofone, um senhor de idade a polir sapatos e um casal sentado no jardim, possivelmente a conhecer-se verdadeiramente pela primeira vez.
Quando cais em ti, horas passaram e continuas no mesmo banco, com vista para as luzes nas janelas de casa a acender, os parques a esvaziar, o casal a dar o beijo de despedida e cada um a seguir o seu caminho. O quiosque vendeu o último maço, o sapateiro guardou metodicamente o seu ofício numa pasta de couro, o saxofone
já não toca e pela primeira vez desde que acordaste não estás em taquicardia. Já não respiras contra ou apesar dela - aos poucos vão-se tornando num só e sentes também ela finalmente a suspirar. O ruído do trânsito dá a vez à ondulação do rio, os cheiros tornam-se mais intensos mesmo sem uma possível origem funcionante que os emane. As pessoas andam devagar, de mãos nos bolsos ou ocupadas com trelas. Passa por ti um grupo de amigos cuja noite já vai longa, seguido de uma senhora completamente equipada contra o frio, a correr.
A tua atenção recai agora na luz vermelha intermitente no topo de uma grua . Afinal de contas, contemplas uma cidade em constante mudança, tal como Lisboa impulsiona as tuas. Porque Lisboa, quando suspira, é a tua fiel confidente, e é no silêncio da noite, quando os sentidos se apuram, que respiras com ela.
Sorris em descrença da tua ingenuidade, olhas para o relógio, são seis da manhã, e é nesse momento que percebes que, às sete e cinco da tarde, tinhas chegado ao teu destino enquanto esperavas que a última luz se apagasse. E finalmente te aconchegas, paras de observar o que te rodeia e, num suspiro em harmonia com a cidade, perguntas: “Então amiga, como tens estado?”
Créditos: reprodução da pintura Evgeny Lushpin por Lisboa de Vários artistas
Lisboa, 21 de maio de 2024
Minha Lisboa,
Escrever sobre ti sem ser em verso exigiu de mim mais reflexão. Demorou-me exatamente seis anos e, mesmo assim, tenho dúvidas se consegui.
Porque no início era o espanto, a agitação e a liberdade. Depois chegou o encanto, a par com as sete colinas da cidade, mas passou logo, entretanto, por já não ser novidade e reconhecer em ti cada canto.
Em poesia ou em prosa, os dias foram-se seguindo e tantas semanas formando, mês atrás de mês pelos anos fora. Hoje, apetece-me pegar no comando e voltar atrás para que não se acabe agora. Queria reviver os olhares, as festas, os silêncios e o barulho ensurdecedor; reviver os beijos, os abraços e qualquer outra forma de amor; queria reviver tudo, mesmo que para isso tivesse de reviver o estudo.
Tu que és a cidade dos azulejos e da calçada, de Santo António e São Vicente. Soubesse eu que tudo passava quase sem dar por nada… seguindo sempre igual, mas tão diferente.
Seis anos onde foste casa, Lisboa com boa luz. Onde pulei do ninho e bati a asa. Onde há sempre algo que me seduz.
Agora as fitas amarelas abanam-se com orgulho, porque também foste o berço da amizade. Lisboa, foi por teres visto nascer, viver e partir que chora o finalista com saudade, por mais que queira terminar a sorrir.
Nostalgia e estranheza marcam também este fim. Lisboa minha, como posso eu dizer-te adeus se existes marcada em mim?
Na saudade que não acaba, a despedida faz-se com cicatriz, porque hoje e sempre “faz-me falta Lisboa, para me sentir feliz”.
Da tua Finalista, Beatriz.
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XXXIX JUN 2024