Cartilha | Em defesa dos territórios: Tecendo memórias e saberes populares

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EM DEFESA DOS

TERRITÓRIOS:

TECENDO MEMÓRIAS E SABERES POPULARES

Estratégias de resistência e alternativas ao modelo de mineração predatória em Brumadinho (MG) e região

FICHA TÉCNICA

Texto:

Alexandre Gonçalves

Marco Antônio Moreira Cardoso

Rory Wesley

Valéria Antônia Silva Carneiro

Victória Taglialegna Salles

Revisão do texto:

Joice Valverde

Projeto gráfico e diagramação:

Wellington Oliveira

Fotografias:

Joice Valverde

Organização:

Apoio:

SUMÁRIO

Introdução

Brumadinho e a História que a história não conta

Alexandre Gonçalves (CPT)

Descolonização dos saberes/poderes e os territórios livres de mineração

Victória Taglialegna Salles

Territórios livres de mineração: Comunidades Quilombolas

Marco Antônio Moreira Cardoso

Territórios livres de mineração: Retomadas Indígenas

Rory Wesley (CIMI)

Territórios livres de mineração: Assentamentos da Reforma Agrária

Valéria Antônia Silva Carneiro

INTRODUÇÃO

Em razão do histórico processo de dominação pela colonização e pelo sistema econômico capitalista, Minas Gerais possui sua história marcada pela mineração enquanto atividade econômica central, uma forma de exploração da vida que não é natural, nem cultural. Nosso estado vivia economicamente da agricultura e da circulação de alimentos como milho, rapadura, farinha, cachaça, porco, galinha, gado, mexerica, jabuticaba e da pesca. É terra reconhecida também por suas festas tradicionais, religiosas, congados, folias de reis e ancestralidades. Território de rios, nascentes e cachoeiras.

É neste contexto que nasce Brumadinho, cidade localizada nas áreas montanhosas da porção sul da Serra do Espinhaço Meridional, no estado de Minas Gerais. Localizada na região metropolitana de Belo Horizonte, Brumadinho possui uma área territorial de 639,434 km² e faz divisa com outros 13 municípios. A região é banhada por muitos mananciais de água, sendo margeada pelo Rio Paraopeba, um dos principais afluentes do Rio São Francisco. A diversidade de fauna e flora é observada em biomas remanescentes de mata atlântica e de transição entre o cerrado. O município integra também o cinturão verde desta região, sendo responsável por grande parte da produção de hortaliças, legumes, verduras e frutas que abastecem os centros urbanos.

Entre as décadas de 1940 e 1950 empresas mineradoras, em sua maioria vindas do exterior, iniciaram a extração de minério de ferro e o controle das terras da região de Brumadinho. A atividade minerária gerou lucro para os países estrangeiros e colocou as comunidades como reféns na zona de sacrifício da extração, para sustentar parte da economia mundial do capitalismo industrial. A partir da década de 2000, com a compra das minas do Córrego do Feijão e da Jangada pela empresa mineradora Vale S.A., a situação de vulnerabilidade das comunidades provocada pela mineração aumentou, trazendo escassez de água, a compra e venda de terras e a insegurança no território. As minas são parte do

Sistema Sul do Complexo do Paraopeba, de propriedade da mineradora Vale S.A., e fazem fronteira com as lavras de outras empresas mineradoras presentes no território: Mineral do Brasil, Tejucana Mineração S.A., Mineração Ipê, Mineração Ibirité e Ferrous do Brasil. Em sua maioria, a exploração mineral é realizada nas áreas próximas às matas, sendo utilizadas as reservas hídricas da região, como o Rio Paraopeba, o qual abrange 48 municípios em sua bacia.

Às 12 horas e 28 minutos e 25 segundos do dia 25 de janeiro de 2019, a barragem B-I, juntamente com a B-IV e B-IVA, da mina Córrego do Feijão, sob responsabilidade da Vale S.A. colapsaram, ceifando a vida de 272 pessoas, em sua maioria, trabalhadores e trabalhadoras da mina. Com o rompimento das barragens, 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos foram despejados no Ribeirão Ferro-Carvão, afluente do Rio Paraopeba, atingindo 26 municípios, incluindo comunidades urbanas e rurais por 220 quilômetros. Além da contaminação do rio, mais de 130 hectares de vegetação de mata atlântica, animais domésticos e silvestres foram devastados.

Importante informar que das 272 pessoas, existem três vítimas que ainda não foram encontradas. Este desastre-crime deixou danos à natureza e violações de direitos humanos sistemáticas para o território de Brumadinho, para a bacia do Rio Paraopeba e a represa Três Marias.

Mesmo após o rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão, a atividade minerária avançou no território de Brumadinho e região, sendo ampliado o domínio das terras e das comunidades, não só pela empresa Vale S.A., mas também com a chegada de outros empreendimentos. Houve aumento de solicitações de pesquisas de lavra, concessões e ampliação das plantas já existentes, como no caso das empresas Mineral do Brasil, Tejucana, MIB, LARF, Alaska, MIT, M&C e AVG, abrangendo os municípios de Ibirité, Brumadinho, Mário Campos, São Joaquim de Bicas e Bonfim. Esse aumento significativo é notável entre o período de 1985 a 2021, com a

ampliação das áreas mineradas em 2.000 hectares. Além da exploração de minério de ferro, o ouro vem sendo extraído desde 2021. O período com a maior curva crescente da exploração mineral ocorreu entre os anos de 2019 a 2021. Logo, mesmo com um desastre-crime dessa magnitude, como o ocorrido em 2019, com o rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão, de responsabilidade da empresa Vale S.A., nota-se uma flexibilização da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Brumadinho e da Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Estado de Minas Gerais em conceder licenças para a ampliação da mineração em territórios atingidos, agindo de forma contrária à preservação da vida¹.

A realidade imposta a Brumadinho nos aponta para as alarmantes consequências da crise climática que acomete o planeta, causada pela ação predatória humana e do modelo capitalista em que estamos inseridos. Diante deste cenário, é preciso reconhecer e refletir sobre as alternativas de manutenção da vida nos territórios impactados pela atividade minerária que, de forma centenária, configuram-se como resistências dos povos originários e das comunidades tradicionais.

¹ Esses dados estão comprovados no mapa “Em Defesa dos Territórios: desastre-crime e o avanço da mineração em Brumadinho.” https://issuu.com/redeigrejasmineracaomg/docs/mapa_do_avan_o_da_minera_o-carit as-digital

A Rede Igrejas e Mineração Minas Gerais², a partir de sua atuação na bacia do Rio Paraopeba, tem como principal compromisso ativo a defesa da Casa Comum. Desde 2019, vêm apoiando as comunidades por meio da formação popular, comunicação estratégica e fortalecimento das iniciativas de lutas coletivas, além de ampliar o diálogo com as instituições eclesiais, movimentos da sociedade civil e coletivos que atuam em defesa da vida e das comunidades atingidas pela mineração.

Entre os meses de maio a agosto de 2024, a Rede Igrejas e Mineração Minas Gerais promoveu o ciclo de formação popular “Em defesa dos territórios: tecendo memórias e saberes populares”, voltado para pessoas atingidas pelo desastre-crime em Brumadinho e região. Durante cinco módulos, os participantes foram convidados a refletir sobre a temática central de territórios livres de mineração³, a partir das trocas de saberes nas comunidades do Tejuco, Aroucas, no Quilombo de Ribeirão, na retomada indígena Kamakã

² A Rede Igrejas e Mineração Minas Gerais é um espaço ecumênico, formado por pastorais sociais e organismos de luta contra violações de direitos socioambientais provocados pelas empresas mineradoras nos territórios. Mais informações sobre a organização da Rede são encontradas no fim deste documento.

Mongoió e no Assentamento Pastorinhas, respectivamente. Esses encontros resultaram em momentos de partilhas de experiências de resistência na região e de reflexão sobre outras alternativas econômicas possíveis, sobretudo a partir do horizonte das comunidades quilombolas, retomadas indígenas e dos assentamentos de reforma agrária.

Esta cartilha é fruto das trocas de saberes que ocorreram entre as pessoas que participaram da formação popular nos cinco encontros. É um instrumento popular de apropriação destinado para a luta das comunidades, construído a partir das partilhas coletivas, da escuta ativa, dos afetos e das resistências à preservação da vida frente ao avanço da mineração.

³ A temática surgiu a partir das pautas dos encontros do Coletivo das Pessoas Atingidas pelo Crime em Brumadinho com a equipe da Rede Igrejas e Mineração MG, considerando as experiências locais. Teve como referência política e metodológica os acúmulos do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração (CDTM), da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale (AIAAVs), da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA) e do Movimento Nacional pela Soberania Popular na Mineração (MAM) expressos na obra Territórios Livres de Mineração: construindo alternativas ao extrativismo, 2022.

NOSSAS VIDAS VALEM MAIS DO QUE MINÉRIO, POR MAIS TERRITÓRIOS LIVRES DE MINERAÇÃO!

BRUMADINHO E A HISTÓRIA

QUE A HISTÓRIA NÃO CONTA

Quem tem a autorização de remontar (ou re-contar) o passado? Ou ainda, como as interpretações do passado tornam-se “realidade”? Como as histórias das pessoas e dos lugares se tornam histórias “verdadeiras”? Como são construídos os “mitos” que distorcem a história para que o povo tenha um certo “tipo” de informação? Essa reconstrução de uma “história manipulada” beneficia quais grupos econômicos e políticos?

São essas provocações que devemos fazer junto às comunidades e povoados de Brumadinho sobre a história que nos é contada. Sejam aquelas que remontam 300 anos atrás, sejam aquelas mais recentes. A manipulação da história é uma técnica usada pelos “poderosos” para constantemente impor ideias, conceitos e valores entre nós.

Foi disseminada uma interpretação que Brumadinho (como também boa parte da região central de Minas Gerais) teve seu início com a chegada dos Bandeirantes, como se fossem herois que conquistaram e desbravaram regiões “selvagens”, herois que foram responsáveis pela civilização do “sertão”. Entretanto, podemos nos perguntar: qual era o projeto dos paulistas bandeirantes? Era construir o bem-estar das pessoas? Não. Era escravizar indígenas e explorar pedras preciosas. Ou seja, enriquecer super explorando pessoas e natureza. Escravizar e matar indígenas. Destruir a natureza para levar o ouro. Ou seja, exportar minerais, destruir a natureza e fazer um enriquecimento rápido à custa de qualquer coisa. Os Bandeirantes não construíam povoados, eles implantavam acampamentos militares para garantir a exploração de minério e a escravidão dos indígenas.

Então aqui viviam indígenas antes de chegar os Bandeirantes? Sim. E continuaram a viver, mas nas margens do sistema, sem serem auto identificados como indígenas. Ou seja, o projeto dos Bandeirantes é igual ao das mineradoras que aqui se implantaram a partir das décadas de 1940 para explorar e exportar o minério de ferro. Enriquecer, destruir a

natureza para arrancar o minério e explorar mão de obra barata.

Em Brumadinho a exploração de ouro e as fazendas rurais utilizaram mão de obra escrava para enriquecer um pequeno grupo da região. Esse processo de escravização sumiu da história. Quando o heroi é o conquistador, os donos das minas, os donos das terras, os descendentes dos troncos familiares que foram escravizados desaparecem da história e também, do presente. E eles estão reaparecendo agora, pois descobriram seus direitos enquanto povos étnicos e povos tradicionais.

Outra parte da história que trouxe “progresso” ao município, como contam aqueles que manipulam o passado, é a construção da linha férrea. Ela foi um dos aspectos que viabilizou a exportação do minério de ferro para outros países, na qual as grandes e médias mineradoras ampliaram a exploração, espremendo as comunidades e criando uma série de problemas, como com relação à água, saúde e a dificuldade de produzir alimentos.

A história que nos é contada usa esses dois pontos: a “civilização” trazida pelas mãos - manchadas de sangue - dos Bandeirantes paulistas e o progresso dos grupos mineradores

(todos de fora de Brumadinho) que exportam através da linha férrea. O avanço das mineradoras - mesmo depois do rompimento da barragem da Vale, que assassinou 272 pessoas no dia 25 de janeiro de 2019 e causou milhares de danos - vai espremendo as outras formas de vida e de economia, como por exemplo a agricultura, o turismo, a gastronomia e o artesanato, que recheiam as festas e feiras de Brumadinho.

Os grupos Indígenas, Quilombolas, trabalhadores migrantes, pobres, trabalhadores rurais, empregados da mineração, famílias que perderam parentes nas minas, a luta das mulheres e de muitos outros grupos excluídos do “progresso”, não ocupavam um lugar na história “oficial”. Intencionalmente foram esquecidos para que as formas utilizadas para a exploração e a dominação por parte dos grupos dos “poderosos” não sejam reveladas. Desta forma, deixamos aqui a nossa provocação para que o povo de Brumadinho possa olhar para o passado, remontar suas trajetórias, desmascarar os falsos discursos, como a vocação natural minerária da região, o progresso e superioridade dos grupos empresariais – com suas máquinas, discursos e valores.

DESCOLONIZAÇÃO DOS SABERES/PODERES

E OS TERRITÓRIOS LIVRES DE MINERAÇÃO

Compreendemos a mineração como a maior herança contínua da atividade extrativista iniciada pela colonização e praticada pelos países imperialistas sobre o Brasil. Essa atividade econômica tem como método de operação a estratégia de ocultar os modos de vida e ancestrais característicos dos territórios que pretendem explorar, desconsiderando os conhecimentos e as práticas empíricas das comunidades tradicionais, em nome do imaginário discurso de que a mineração traz progresso. Este discurso é construído pelas empresas mineradoras para chegar a um território por meio de promessas financeiras e do princípio do desenvolvimento, modo silencioso e violento que disfarça os danos que um empreendimento é capaz de reproduzir nas populações.

Sob essa perspectiva, somos vistos como “os outros” pelas empresas mineradoras. Nossos conhecimentos são encobertos e desacreditados por esses projetos que tentam nos apagar diante das suas propostas capitalistas, sobrepondo e impondo seus conhecimentos técnicos. As empresas têm como finalidade desconstruir a nossa identidade coletiva com os territórios, no objetivo de nos vulnerabilizar para dominar as nossas terras. Inicialmente, tentam ocultar os nossos saberes e a nossa autonomia no espaço e no tempo onde vivemos.

Descolonizar o saber e o poder são fundamentais para seguir na luta e resistir aos empreendimentos minerários. É acreditar nos nossos modos de vida e nas nossas alternativas econômicas a partir dos nossos territórios. É valorizar os conhecimentos empíricos, nossos costumes e as formas de organização social própria. Além disso, é poder ter escolha e dizer não aos empreendimentos, reconhecendo nosso poder de decisão sobre a instalação de uma empresa no território que historicamente nos pertence. Dizer não, é também reconhecer que a mineração extrai as nossas vidas para sustentar a vida de quem reside fora do nosso país, um sistema de economia mundial que beneficia somente a elite, que é

minoria, nos deixando com o passivo ambiental, cidades devastadas, violando nossos direitos e a natureza. Portanto, descolonizar nossos saberes e poderes são os primeiros passos para nos enxergarmos como sujeitos de direitos e, sobretudo, valorizarmos as alternativas para a manutenção e reprodução da vida, a partir das nossas relações culturais e socioeconômicas com a terra.

Nessa perspectiva, os territórios livres de mineração são “espaços ambientalmente protegidos, bacias de captação de água, locais de importância histórica, florestas primárias e territórios onde as atividades econômicas e as dinâmicas socioprodutivas e culturais sejam incompatíveis com a atividade mineradora e os impactos a ela associados”4. Sua

4 MALERBA, Juliana et al. Territórios Livres de Mineração: construindo alternativas ao extrativismo. Brasília: Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente À Mineração, 2022, p. 10-11. Disponível em: https://emdefesadosterritorios.org/wp-content/uploads/ 2022/02/Livro-TLM.pdf. Acesso em: 25 ago. 2024.

garantia contempla ferramentas políticas e jurídicas que direcionam para o direito de resistir às investidas agressivas de mineradoras adentrarem às comunidades. Para tanto, apontam alternativas já existentes nos territórios em contraposição à mineração, como no caso de Brumadinho e região.

A partir da centralidade da temática dos territórios livres de mineração e do contexto sociopolítico da localidade de Brumadinho e região, apresentamos nesta cartilha exemplos de experiências concretas das comunidades quilombolas, indígenas e dos assentamentos de reforma agrária como modos de vida e organização social que de fato transcendem os limites territoriais e geográficos enquanto territórios livres de mineração. São modelos sistêmicos e orgânicos de resistência frente ao avanço da mineração predatória que há tantos anos assola a sobrevivência dessa região.

TERRITÓRIOS LIVRES DE MINERAÇÃO:

COMUNIDADES QUILOMBOLAS

As comunidades quilombolas de Brumadinho são exemplos de luta e de resistência contra a opressão há muito tempo. No município, encontram-se as comunidades quilombolas de Sapé, Marinhos, Ribeirão, Rodrigues e Sanhudo, atualmente certificadas pela Fundação Palmares. Existem, ainda, outras dezenas de comunidades em processo de reconhecimento. Ou seja, Brumadinho é território quilombola, da diversidade e de resistência!

No passado, o povo negro e quilombola resistiu à escravidão imposta pelo sistema capitalista colonial. A chegada de pessoas nascidas no continente Africano (especialmente das regiões hoje conhecidas como Angola e Moçambique) foi realizada dentro de um processo de comercialização de pessoas. Ao longo dos séculos, muitos foram os desafios e os enfrentamentos. Apesar das conquistas, ainda hoje as comunidades vivem ameaçadas pela mineração predatória e resistem.

Durante mais de um século, apesar do fim do regime de escravidão jurídica, o povo quilombola da região enfrentou diversas tentativas de encurralamento. Ausência de políticas públicas, negação absoluta da tão importante reparação histórica ou, ainda, um cenário de violências e de exclusão causado pela atuação racista de governantes e de empresas privadas.

Há muitos anos, a mineração ameaça as comunidades quilombolas de Marinhos, Sapé, Ribeirão e Rodrigues, todas no caminho entre Brumadinho e Moeda. Tentativas de instalação de grandes mineradoras, a linha férrea que atravessa os territórios quilombolas, a existência de outras barragens próximas ao Rio Paraopeba em Congonhas e em Belo Vale, e um programa de Regularização Fundiária executado pela própria Vale são algumas das violências que atingem, ainda, as famílias quilombolas da região. Com o crime de 2019, centenas de pessoas ficaram ilhadas e membros das comunidades

tradicionais tiveram suas vidas terminadas devido ao crime em Brumadinho.

Todavia, o povo quilombola dessas quatro comunidadesas quais destacam que são todos um mesmo povo, uma grande família – está organizado e vem, utilizando de sua força e de seu conhecimento ancestral, defendendo seu território e, tendo evitado, assim, que um crime como o da Vale ocorresse primeiro naquela região. Nas quatro comunidades, há a produção de alimentos saudáveis, turismo de base comunitária, quintais produtivos, guardas de congado e diversas celebrações religiosas acontecem todos os anos. Essas comunidades são exemplos de territórios livres da mineração, um lembrete de que é possível construir uma sociedade do bem viver, com respeito à mãe natureza e a partir de outras alternativas econômicas viáveis.

Já a comunidade de Sanhudo, localizada na região do Tejuco, foi cercada pelas mineradoras desde meados do século passado. Todavia, a comunidade preservou seu modo de

reprodução cultural conservando as suas nascentes e tradições. Na comunidade, acontecem celebrações como o congado e o Jubileu de Nossa Senhora das Mercês. Atualmente, o Tejuco resiste ao avanço de outras empresas na região, tendo como alternativa a preservação de modos de economia alternativos como a agricultura familiar, os quintais produtivos e o trabalho das quitandeiras.

Nos últimos anos, as comunidades conquistaram a sua certificação e vêm mantendo a sua autonomia. Resistindo, os povos quilombolas de Brumadinho conseguiram garantir a preservação de modo de vida tradicional e fazem de seu território um território livre da mineração, preservando terras, matas, nascentes e a sua qualidade de vida. Desta maneira, são um exemplo de resistência em Minas Gerais. No entanto, a luta ainda continua.

TERRITÓRIOS LIVRES DE MINERAÇÃO:

RETOMADAS INDÍGENAS

As retomadas indígenas em Brumadinho têm sido fundamentais não apenas para revitalizar os costumes e tradições dos povos originários, mas também para enfrentar a mineração predatória que assola o território. Os grupos indígenas Kamakã Mongoió e Xucuru Kariri reivindicam as terras ocupadas em Brumadinho, trazendo consigo uma longa trajetória de busca por um lugar onde possam viver, produzir e preservar suas tradições. Desde suas terras ancestrais na Bahia e em Alagoas, migraram pelo país em busca de um local que pudessem chamar de seu.

Ao chegarem a Brumadinho, guiados por suas lideranças espirituais, esses povos se depararam com as consequências devastadoras da mineração na região, que culminaram na destruição da Bacia Hidrográfica do Rio Paraopeba, uma fonte vital de água para a comunidade. O crime ambiental cometido pela Vale S/A em 25 de janeiro de 2019 não apenas devastou o rio, mas também deixou a Aldeia Naô Xohã, dos povos Pataxó e Pataxó Hã Hã Hãe, às margens do Paraopeba, com a água contaminada, impossibilitando a produção de alimentos e a realização de rituais sagrados. A aldeia, localizada no limite entre São Joaquim de Bicas e Brumadinho, havia sido criada há pouco mais de um ano, após finalmente romper com a lógica de ocupar as periferias de Belo Horizonte, e se abastecia essencialmente pelas águas do Paraopeba.

Desde o rompimento, contudo, o processo de tentativa de reparação na área legitimou a presença da mineradora e as relações entre os indígenas foram permanentemente danificadas, a ponto de hoje aquele grupo se dividir em três comunidades indígenas independentes que ainda buscam, cada uma à sua maneira, um território sustentável. Os indígenas Pataxós e Pataxó Hã Hã Hãe foram atingidos desde o primeiro momento do rompimento e assim reconhecidos. Outros povos que estavam na região afetada, por outro lado, ainda não têm sequer assegurado seu direito à reparação integral.

Apesar da clara responsabilidade da Vale S/A pelo rompimento da barragem de rejeitos da Mina do Córrego do Feijão, até hoje, cinco anos depois, a empresa não reparou os danos sofridos por esses povos indígenas. Pelo contrário, a resposta da Vale foi criar conflitos internos, atrasar o processo de reparação integral e forçar os indígenas a encontrar, por conta própria, um lugar para viver.

A situação desses grupos, que antes do crime da Vale formavam uma única aldeia, piorou ainda mais com o encerramento da Assessoria Técnica Independente, que auxiliava na busca por reparação integral. Hoje, os indígenas estão sem qualquer reparação da empresa e sem o apoio de assessoria estatal, contando apenas com a solidariedade de entidades parceiras.

Enquanto isso, a Vale S/A adquiriu diversos imóveis na cidade para criar espaços de compensação ambiental pelo crime que cometeu. Esses imóveis são áreas que atualmente os indígenas ocupam e passam por processos judiciais de reintegração de posse. Embora a mineradora afirme que a área

foi adquirida para ser transformada em uma reserva de preservação ambiental, as áreas sempre estiveram completamente abandonadas. Hoje, com a presença indígena, é possível observar a vida e a esperança que esses povos trouxeram para esses locais, preservando as matas e nascentes. Ainda assim, enfrentamos a morosidade do Estado e a resistência da mineradora, que insiste em afirmar que a compensação ambiental deve ser conduzida por ela.

Se a ONU reconhece que os povos indígenas são os melhores guardiões da natureza, por que a Vale, que tem a obrigação de reparar integralmente o meio ambiente, não permite nossa permanência nesta área? Essas são questões com as quais o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) se depara na proteção dos direitos indígenas e na garantia da reparação integral dos atingidos e das comunidades em retomadas de terra na região metropolitana de Belo Horizonte, e que ainda permanecem sem resposta nos diversos espaços jurídicos e sociais em que os indígenas estão em evidência.

TERRITÓRIOS LIVRES DE MINERAÇÃO:

ASSENTAMENTOS DA REFORMA AGRÁRIA

De acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) “reforma agrária é o conjunto de medidas para promover a melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social, desenvolvimento rural sustentável e aumento de produção”5. As garantias de democratização do acesso à terra, dos direitos territoriais e à criação de espaços ambientalmente protegidos foram concebidas pela Constituição Federal de 1988. São resultados das lutas coletivas de agricultores e agricultoras familiares pela manutenção da vida, seja na busca por segurança alimentar, por meio da produção econômica coletiva e solidária dos alimentos, através da ocupação e uso do solo, ou ainda pelo cumprimento da função social da propriedade rural, sobretudo em razão do contexto da grande concentração de propriedades nas mãos de uma elite agrária e do Estado.

Os assentamentos de reforma agrária são modos de vida que possibilitam a produção de alimentos básicos, a geração de renda, a democratização do acesso à terra, o combate à fome e a promoção da justiça socioambiental. Além disso, configuram-se como territórios livres de mineração, sendo modelos alternativos de organização socioeconômica frente à minério-dependência.

Situado em Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte, o Assentamento Pastorinhas fica localizado em uma área de 156 hectares, sendo 142 remanescentes de mata atlântica e 14 hectares de plantação de hortifrutigranjeiros. Sua história inicia-se em 25 de julho de 2001, contando com 151 famílias. A portaria de criação do assentamento foi publicada em maio de 2006, via processo de Reforma Agrária. Na atualidade, a maioria das famílias que residem no Assentamento são formadas por trabalhadores e trabalhadoras rurais, perfazendo um total de 20 famílias.

5 Estatuto da Terra (Lei nº 4504/64).

A área do Assentamento Pastorinhas está localizada em um território de fronteira com a atividade de exploração mineral em Brumadinho, sobretudo em razão da presença das empresas mineradoras instaladas nas comunidades do Tejuco e do Córrego do Feijão, as quais a partir da concessão do título de propriedade de direito mineral exploram o minério de ferro. Na comunidade do Tejuco está instalada a empresa Tejucana S.A. e, na comunidade de Córrego do Feijão, a mina Córrego do Feijão, da empresa Vale S.A.

Atualmente o Assentamento Pastorinhas produz hortaliças, legumes, folhosas, frutas de época como, banana, mexerica, mamão, melancias e desenvolvem um experimento com maçã. Além destes, possuem criação de peixes e aves para postura e corte. O adubo da produção provém da criação de gados e cavalos somente para essa finalidade. A comercialização das famílias é realizada por meio dos programas institucionais de caráter público, em sua maioria, e por meio da venda de cestas de hortifrutigranjeiro.

Com o rompimento das barragens B-I, B-IV e BIV-A, em 25 de janeiro de 2019, de responsabilidade da empresa Vale S.A., o Assentamento Pastorinhas tornou-se uma área pertencente à

Zona Quente, conforme definição da empresa mineradora Vale, em razão de ter sido atingida pelo desastre-crime. Apesar deste contexto, o Assentamento Pastorinhas vem se colocando como alternativa do bem viver, contrapondo-se ao avanço da mineração que, após o desastre-crime, vem se impondo violentamente no território de Brumadinho e região.

QUEM É A REDE IGREJAS E MINERAÇÃO MINAS GERAIS?

A Rede Igrejas e Mineração é um espaço ecumênico, formado por entidades cristãs, equipes pastorais, congregações religiosas, leigas e leigos, bispos e pastores latino-americanos, que enfrentam o desafio comum dos impactos e violações de direitos socioambientais provocados pelas empresas mineradoras nos territórios. Em 2019, criou-se em Minas Gerais o “Nó” da Rede, formada pela Pastorais Sociais e organismos, CPT (Comissão Pastoral da Terra), CPP (Conselho Pastoral dos Pescadores), Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais, CIMI (Conselho Indigenista Missionário), Comissão de Meio Ambiente da Província Eclesiástica de Mariana, Ação Franciscana de Ecologia e Solidariedade (ASES) e o Movimento Laudato Si. Portanto, a Rede Igrejas e Mineração Minas Gerais tem o compromisso de articular os trabalhos e iniciativas já existentes de organização, formação, comunicação e de assessoria técnica, ampliando o diálogo com as instituições eclesiais e movimentos da sociedade civil que atuam em defesa da vida e das comunidades atingidas pela mineração.

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