Revista Circular 8

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REVISTA No 8 - JUN/JUL 2021 ISSN: 2526-4354

OS INVISÍVEIS ENSAIO FOTOGRÁFICO POR PIU GIBSON

BAR DO SANTIAGO MEMÓRIA VIVA DA CAMPINA

LEI ALDIR BLANC PATRIMÔNIO CULTURAL E MAIS: FUMBEL - ENTREVISTA COM MICHEL PINHO l FÓRUM DE CULTURAS DO PARÁ - EMERGÊNCIA CULTURAL l CENA LITERÁRIA PARAENSE - O LIVRO l CRÔNICA - A MENINA DA VACARIA

FOTO: PIU GIBSON

INCENTIVO AO


PROJETO CIRCULAR

SUMÁRIO

BAR DO SANTIAGO: MEMÓRIA NO BAIRRO DA CAMPINA ....................................................................................... ACADEMIA PARAENSE DE LETRAS: RETOMADA AOS 121 ANOS .............................................................................

04 08 12 16 22 28 36 54

LITERATURA PARAENSE: A CENA DO LIVRO ................................................................................................................... ENTREVISTA: MICHEL PINHO, GESTÃO NA FUMBEL ................................................................................................. EMERGÊNCIA CULTURAL: AJUDA AOS FAZEDORES DE CULTURA .........................................................................

LEI ALDIR BLANC: OS PROJETOS DE PATRIMÔNIO .....................................................................................................

ENSAIO FOTOGRÁFICO: PIO GIBSON ............................................................................................................................... CRÔNICA: ANTONIO CARLOS PIMENTEL JR. .................................................................................................................


CULTURA EM TRANSE

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m 2021, o setor cultural ainda sofre com as restrições de uma pandemia que não tem prazo para acabar. A Revista Circular chega ao oitavo número falando sobre os diversos aspectos dessa cena cultural impactada por esse momento difícil e as principais discussões do meio sobre políticas públicas. A Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc (n. 14.017), que completou um ano em junho, foi fruto da intensa mobilização de parlamentares, artistas e fazedores de cultura de todo o país. No Pará, a lei fez chegar um pouco mais de R$ 67 milhões para investir na aplicação do inciso III, voltado para a realização de editais, chamadas públicas e prêmios para artistas e fazedores de cultura. Nesta edição ressaltamos, em especial, alguns dos projetos aprovados em editais voltados à cultura popular e ao patrimônio cultural material e imaterial. Também estamos falando de emergência cultural na reportagem com o Fórum de Culturas do Pará, que iniciou diálogo com gestores públicos em busca de soluções para o setor. Ouvimos o atual presidente da Fumbel, Michel Pinho, historiador e fotógrafo, que durante as programações do Projeto Circular, costumava arrastar uma multidão pelo Centro Histórico de Belém, contando as histórias dos prédios centenários e dos personagens históricos da capital paraense.

Mergulhamos no universo literário e constatamos que a crise do livro segue firme, não só pela falta de políticas públicas. A tecnologia é apontada também como um fator que tem afastado dos livros seus leitores. Estivemos na Academia Paraense de Letras que passou por um período difícil, mas está com novos projetos e nova gestão. A revista traz ainda a crônica de Antonio Carlos Pimentel Jr. sobre as antigas vacarias que existiam no centro histórico de Belém. Descobrimos o Bar do Santiago, onde ouvimos as histórias de um lugar que tem atravessado os tempos. É patrimônio cultural do bairro da Campina. Outro patrimônio do mesmo bairro passa despercebido. É o que o ensaio fotográfico de Piu Gbison nos convida a desvendar. Assim como a arquitetura antiga escondida atrás de placas e outras gambiarras, alguns profissionais, misturados à multidão que transita pelo comércio, acabam se tornando invisíveis. Boa leitura!

Luciana Medeiros Editora

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PROJETO CIRCULAR

Santiago, em frente ao Grêmio Português

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DIGA, FREGUÊS! CENTENÁRIO, BAR DO SANTIAGO, SITUADO EM PLENO BAIRRO DA CAMPINA/ COMÉRCIO, CARREGA UMA HISTÓRIA VIVA PARA SE GUARDAR NA MEMÓRIA

Por CAMILA BARROS Fotos: CLÁUDIO FERREIRA

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ma foto na tela do celular e a história dela na ponta da língua pra contar. Foi assim que o filho de portugueses, Paulo Garcia, 51, nos recebeu em seu bar, num sábado quente e úmido em Belém. A imagem está salva em uma pasta no aparelho, junto com outras tantas, que ele faz questão de colecionar. Foi no perfil Nostalgia Belém - página nas redes sociais, que mostra, por meio de fotos, os tempos idos da capital paraense - que o empresário encontrou também um pouco da história do estabelecimento da família. A imagem tão mostrada por Paulo retrata o dia da inauguração do Grêmio Literário Português, há quase 154 anos. Hoje, além da famosa biblioteca e do salão com piso de madeira impecavelmente lustrado no andar superior, o prédio também abriga uma loja de instrumentos musicais no térreo. Na foto que mostra uma Belém nostálgica, aparecem os trilhos do bondinho que cortava a rua. Dessa época, só restaram as pedras portuguesas, que edificam as calçadas por onde pedes-

Este ano, vai fazer 44 anos que meu pai comprou aqui. O primeiro dono passou 18 anos. Só ai, são 62 anos. O Bar do Santiago já tem mais de cem anos”. — PAULO GARCIA, PROPRIETÁRIO

tres transitam até hoje e o principal: mostra que na esquina da Travessa Frutuoso Guimarães com a Rua Senador Manoel Barata, o Bar do Santiago já estava de portas abertas. O “bar” no nome é recente, já que na época, ali funcionava, de fato, uma taberna. Era na Casa Santiago que se comprava arroz, açúcar, café, dentre outros produtos alimentícios ‘a retalho’, tudo anotado no caderninho. O bairro da Campina, hoje popularmente conhecido como “Comércio” ou “lá em baixo”, como nossas avós falavam, deixou de ser um ambiente residencial para dar espaço para

a frenética movimentação do abrir e fechar das portas das lojas. Santiago era o nome do antigo dono? Não se sabe ao certo. Dizem que o primeiro dono era um espanhol chamado Lineu Santiago, que ficou por ali uns 18 anos, passando o ponto comercial para o português João Amador Madorra. Esse, por sua vez, resolveu negociar o estabelecimento com Seu João Garcia, compatrício, fornecedor de garapa, e seu cliente fiel, que assumiu o posto de Madorra na administração em 1977. Conta-se à boca miúda que a motivação do velho português para se desfazer do estabelecimento, foi não suportar mais a boêmia dos filhos, que se ‘encegueiravam’ com os clientes e sumiam no mundo durante dias. Uma curiosidade sobre a transação é revelada pelo unigênito de Seu João. “Na época, meu pai disse que não tinha dinheiro para pagar, mas o português insistiu e disse que facilitaria o pagamento, ‘arranja o sinal como entrada, que eu te passo o ponto’. E assim foi. Com a proposta, o papai juntou umas economias acumuladas em dez anos de trabalho e mais um valor doado pelo tio dele para poder comprar de forma parcelada o bar. Na verdade, podemos dizer que comprou fiado”, conta, bem-humorado, Paulo.

ANTIQUÁRIO NO CENTRO COMERCIAL A estrutura original do bar sofreu alterações com o passar dos anos. As várias portas centenárias de madeira deram espaço para duas portas de enrolar. As paredes de lá têm muita história. Nelas estão objetos, que mais parecem peças possíveis de serem encontradas em antiquários. Paulo tem de cabeça o ano exato e a quem pertenciam aquelas peças do lugar. “Este ano, vai fazer 44 anos que meu pai comprou aqui. O primeiro dono passou 18 anos. Só aí, são 62 anos. O Bar do Santiago já tem mais de cem anos”, contabiliza. “E com a mesma calçada”, completa orgulhoso, o ex-estudante de matemática. Sim, Paulo até tentou cursar uma faculdade e não seguir os passos do pai, mas prestes a completar exatas três décadas trabalhando no local, diz que não se arrepende da decisão, na verdade, acha que nem tinha escolha. Foi em meados de outubro de 1991, que ele oficialmente passou a cuidar do bar. Antes, no período das férias escolares, o pai o levava pra lá para ajudar no atendimento. “Quando eu estava de férias, ele me trazia para evitar que eu andasse em má-companhia na rua. Sempre vim pra cá como ‘convidado especial’ e agora vou fazer 30 anos”, diverte-se.

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MEMÓRIAS DO PASTOR DE CABRAS O português João Brito Garcia, 88 anos, chegou ao Brasil em 1959, ainda jovem, com 24 anos. Natural do povoado de Valezim, na Serra da Estrela. Lá, ele trabalhava com vacaria (leite) e recebeu o convite de um tio que já estava estabelecido no Pará, na capital, com quem ele trabalhou durante dez anos e depois montou um quiosque, nos chamados “clipes”, na Praça do Relógio. Seu João Garcia já não reconhece o lugar. Hoje, ele sofre com os efeitos da idade e da memória, já debilitada pelo seu estado de saúde. “Ele passou 40 anos aqui e não lembra. Já tirei fotos daqui, mostrei, conto as histórias, mas ele não reconhece; diz que nunca foi nesse lugar. Quando eu saio pra trabalhar, ele acha que eu vou pra um lugar chamado Chão do Rêgo, uma cidadezinha em que ele morava lá em Portugal. O pai dele, meu avô, criava cabras e ovelhas. Ele acha que eu trabalho com isso e me pergunta sempre: “vais levar as cabras lá pra cima?”, diz. Mesmo não lembrando da sua origem, Seu João Garcia fez questão de deixar registrada a memória do lugar onde viveu. Na parede do bar estão dois quadros, com as fotos da cidadezinha de Chão do Rêgo, que ele mesmo fez e mandou ampliar.

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No Santiago, até a máquina de café tem história. A primeira máquina foi herdada do Seu Madorra. A segunda foi comprada já usada, de segunda mão. Depois de tanto trabalhar, ela furou. Então, a terceira máquina entrou em cena. Ela era a reserva da antiga, e no auge da movimentação, servia até 12 litros de café quentinho aos fregueses. Hoje, por causa da pandemia, essa quantidade caiu bastante, mas a máquina continua firme e forte. “Tem caras muito conhecidas que frequentam aqui há muitos anos. Com a pandemia, não sei mais se eles estão presos em casa ou se já morreram por causa do vírus”, conclui, num misto de incerteza e reflexão sobre os atuais tempos.

HISTÓRIAS EMBRULHADAS EM PAPEL DE PÃO Apesar de carregar no nome Bar Santiago, o espaço é voltado para lanches rápidos. Salgados, sucos, café e cervejas estão no cardápio do estabelecimento. O misto-quente é um dos carros-chefe do lugar. Quem pede pra levar, recebe um delicado embrulho de papel, com dobraduras que dão espaço para colocar o lencinho. Tudo feito à mão. Segundo Paulo, desde os tempos de Seu Madorra já se embalava desse jeito e assim ficou. n

CONHEÇA BAR SANTIAGO Travessa Frutuoso Guimarães, 449, esquina com a Rua Manoel Barata, Campina Funcionamento: horário comercial. NOSTALGIA BELÉM Acesse no Instagram ou Facebook: @nostalgiabelem

Cafeteira que serve até 12 litros

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PROJETO CIRCULAR

ACADEMIA PARAENSE DE LETRAS FECHADA DESDE 2020, POR CONTA DA PANDEMIA, MUITAS VEZES, A APL PASSA DESPERCEBIDA PELA POPULAÇÃO DA CIDADE QUE TAMBÉM PARECE NÃO SE DAR CONTA QUE, ASSIM COMO NO PRÉDIO, OUTRAS PORTAS ESTÃO SE FECHANDO PARA A LITERATURA PRODUZIDA NO PARÁ.

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Por WANDERSON LOBATO Fotos: CLÁUDIO FERREIRA

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ocalizado na Rua João Diogo, 235, no bairro da Cidade Velha, o prédio da Academia Paraense de Letras (APL) guarda na sua arquitetura a memória das construções com traços clássicos que marcou a construção dos prédios da capital na metade do século XIX. Foi fundada por João Marques de Carvalho, escritor, diplomata e jornalista paraense, em 3 de maio de 1900, uma das mais antigas do Brasil, posterior apenas à Academia Cearense de Letras e à Academia Brasileira de Letras.

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Em maio, com uma sessão solene on-line, foi eleita a Diretoria para o biênio 2021 - 2023. A Academia Paraense de Letras (APL) comemorou também, na ocasião, os seus 121 anos. A data da criação da APL coincide com a do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP), e ambos ocuparam o mesmo local para suas sessões e seu expediente. A reunião de criação das duas entidades foi conjunta. O professor do curso de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Unama, e atual presidente da Academia Paraense de Letras, Ivanildo Alves, acredita que é um processo sem volta e que cada vez mais o livro físico vai dar espaço para o virtual. “Não podemos ficar vinculados a um passado quando o presente se descortina para o ambiente virtual. Por razões ambientais e tecnológicas, o aprendizado vai ser desenvolvido pela máquina. É um processo inexorável”, determina. Há um mês à frente da APL, Ivanildo Alves tem planos para expandir as ações da Academia para todo o estado, promovendo o prazer da leitura,

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Não podemos ficar vinculados a um passado quando o presente se descortina para o ambiente virtual. Por razões ambientais e tecnológicas, o aprendizado vai ser desenvolvido pela máquina. É um processo inexorável”. — IVANILDO ALVES, PRESIDENTE DA ACADEMIA PARAENSE DE LETRAS.

em busca de novos escritores. Aguarda apenas a melhoria das condições sanitárias da pandemia para a retomada dos nove concursos literários e de novas atividades. “Queremos realizar um encontro reunindo as

16 Academias Municipais de Letras. Um encontro nacional com as Academias Estaduais de Letras, a ser realizado em Belém. Um encontro estadual de Academias de Letras e, ainda, a mobilização para montar uma Academia Nacional de Letras”, enumera. Uma outra iniciativa é montar uma biblioteca virtual para abrigar a biblioteca da APL que hoje está encaixotada desde as obras de recuperação do prédio-sede, realizadas alguns anos atrás. “Temos planos de incentivar a leitura, abrir a Academia e sua biblioteca para a população. Queremos levar a APL para todos os rincões do estado”. Sobre a crise literária, o imortal acredita que o Estado deveria exercer um papel de incentivador da literatura na região. Cita como exemplo o fato de muitos integrantes da Academia, “profissionais de um nível intelectual incrível”, terem de exercer outra profissão para além de escritor para poder se sustentar. “Deveria existir uma compensação para o escritor produzir, para que o intelectual possa meditar e produzir para a população”, defende e conclui. n


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Academia Paraense de Letras: fachada e ambiente interno

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A CENA LITERÁRIA PARAENSE QUANTOS LIVROS VOCÊ LEU NESTA PANDEMIA? O USO DAS REDES SOCIAIS ALIADO À FALTA DE POLÍTICAS PÚBLICAS E INCENTIVO À LEITURA TEM AGRAVADO A SITUAÇÃO NO SETOR LIVREIRO E AFASTADO OS LEITORES DOS SEBOS E DAS LIVRARIAS.

Por WANDERSON LOBATO Fotos: DIVULGAÇÃO

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Banca do Escritor Paraense e os sebistas que comercializam na Praça da República, em Belém, são exemplos de iniciativas que aproximam o escritor, o livro e o leitor. “É importante ter um espaço, em que todo final de semana que a pessoa for levar o filho pra passear, o livro esteja nesse momento de lazer, isso é fundamental no sentido pedagógico. No sentido de estimular que o livro seja uma prática cotidiana ligada ao prazer”, diz Dhara Alhadef Cardoso. Ao lado do saudoso marido, o poeta, cordelista e grande incentivador da literatura paraense, Cláudio Cardoso, Dhara sempre esteve presente nos eventos literários do estado. Na editora do companheiro, trabalhava na revisão das publicações. “No trabalho, fui me apaixonando pelos livros. Hoje, sigo lendo e incentivando nossa literatura”, conta. Depois da morte de Cláudio, ocorrida em maio do ano passado, Dhara ficou responsável pela Banca do Escritor Paraense, montada aos domingos na Praça da República. Espaço único da literatura local, ela conta que a manutenção do espaço tem sido cada vez mais difícil.

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CRÉDITO: LUCIANA MEDEIROS

Dhara Alhadef Cardoso, da Banca do Escritor Paraense

“Não tenho nenhum tipo de apoio. Saio de minha casa às 6 da manhã, monto a banca, mas em relação à ajuda eu não tenho. Inclusive, eu pago um aluguel de R$ 500,00 para guardar os livros. Tô levando até onde der”, conta. Hoje, ela aguarda um contato do prefeito Edmilson Rodrigues que, em visita ao espaço, prometeu chamá-la para uma conversa sobre a compra de livros. “Tenho esperança que nessa conversa as coisas melhorem”, concluiu Dhara.

EM CRISE HÁ ANOS A crise de leitura ou literária é um fenômeno que já se arrasta no Brasil por anos e envolve vários aspectos, como o avanço das compras virtuais, dominadas por multinacionais, sobre o mercado das livrarias físicas. Recentemente, o pedido de recuperação judicial e o fechamento dos pontos das redes Saraiva e Cultura em todo o país chamou a atenção para a crise no setor. “O livro está em crise desde 2014. Primeiro, disseram que era o avanço do livro virtual, mas nunca cresceu o número de leitores dele”, destaca Débora Miranda, sócia-fundadora da Livraria Fox, a única livraria genuinamente paraense em atividade. Para a empresária, há um outro motivo para o número cada vez menor de leitores.

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PROJETO CIRCULAR

“O que acontece é que houve avanço tecnológico absurdo nos últimos anos e com a pandemia isso teve uma aceleração absurda. Quem não usava passou a usar, passou a aprender. As pessoas passaram a comprar o título, mas em maior intensidade é o tempo das pessoas, que hoje é totalmente direcionado para as redes sociais”, explica. A chegada da pandemia só veio aprofundar a crise que se reflete também no número cada vez menor de leitores. Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, entre 2015 e 2019, o país perdeu cerca de 4,6 milhões de leitores. Na metodologia, um leitor é aquele que leu um livro (inteiro ou em partes) nos últimos três meses do levantamento. A sócia-proprietária da Livraria Fox viveu um turbilhão de emoções em meio à crise no setor. Recentemente, a livraria, que ameaçava fechar logo após o lockdown decretado em março pelo Governo do Estado para conter o avanço do contágio pelo coronavírus, viu surgir de maneira espontânea uma campanha de mobilização nas redes sociais em favor do empreendimento. “Era uma quarta-feira e começou a aparecer gente e a gente viveu um Natal no meio do ano”, conta Débora, emocionada. O retorno das pessoas garantiu um fôlego para a livraria continuar aberta, mas a crise ainda está

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A literatura é o escritor e o público. Se você não consegue criar uma rede que coloque este escritor em contato com o público e a obra, fica difícil”. — CLEI DE SOUZA, ESCRITOR

presente. “Acima de tudo é um compromisso moral com as pessoas que estiveram aqui. Saber que estamos lutando. Eu quero lutar enquanto eu puder. Até em resposta ao abração que a cidade nos deu”, afirma. Débora também chama a atenção para o fato da Fox ser uma livraria que sempre destacou a literatura paraense, não só nas estantes, mas também realizando eventos de aproximação do escritor e dos leitores. “Somos a única livraria papa-xibé. As outras redes de fora não estão preocupadas em valorizar literatura de lugar nenhum. Querem vender best-seller”, destaca.

O LIVRO INDEPENDENTE Recentemente, os editais da Lei Aldir Blanc injetaram pouco mais de R$ 2,8 milhões na área de Livro e Leitura no estado. Contemplando propostas em duas modalidades - Bibliotecas Comunitárias e Literatura Paraense - a premiação aqueceu o mercado. O escritor Clei Souza chama a atenção para o fato de que, mesmo com a entrada de recursos, os escritores ainda têm dificuldade em fazer circular as suas publicações. “A grande dificuldade nossa é fazer a obra circular. Já escrevo há 20 anos e a alternativa que encontrei de divulgar minha escrita é confeccionar meus próprios livros e lançá-los. E tenho que vender a preço simbólico”, conta. Para ele, a falta de circulação é a pedra no meio do caminho entre o livro e o leitor. “Quem é do estado não tem ainda a percepção de que a literatura não é o escritor. A literatura é o escritor e o público. Se você não consegue criar uma rede que coloque este escritor em contato com o público e a obra, fica difícil”. Ele lembra do escritor Rubem Fonseca que, quando indagado sobre o possível fim da literatura, respondeu que ela nunca acaba, porque o escrever é uma necessidade para o escritor. “O que pode acabar e está acabando é o público leitor”, lamenta.


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FOTOS: DIVULGAÇÃO

Livraria Fox

Clei de Souza

CENA DE MARABÁ Se Belém abraçou a Fox, garantindo um espaço para a divulgação da literatura paraense, em outros centros urbanos do estado a situação ainda é pior. Com quase 300 mil habitantes, Marabá, no Sudeste do Pará, não possui nenhuma livraria. “O que acontece é que a gente mesmo tem que ficar vendendo os livros. Em eventos ou nas redes sociais”, explica Airton Souza. Marabaense que já possui 40 livros publicados, Airton é um ativista da literatura e do livro. Ajudou a criar a Associação dos Escritores do Sul e Sudeste do Pará e coordena dois projetos importantes para o setor, a publicação do Anuário da Poesia Paraense, que deve chegar a sua oitava edição ano que vem e a realização do Prêmio Amazônia de Literatura, em sua terceira edição. Ele explica que o acesso ao livro é muito difícil na região e que sente falta de políticas públicas contundentes voltadas para a publicação e incentivo à leitura. “E a gente fica à mercê. Sente a falta, como se fosse uma orfandade, órfão desse aparato dos órgãos públicos que tem como investir na publicação, no patrocínio”, lamenta. “O estado do Pará carece de uma política pública séria. O que é uma política pública séria? Que de fato dê conta de alcançar as regiões do estado, de contribuir com o processo de produção”.

▲ Airton Souza

CAMPANHA DE FINANCIAMENTO COLETIVO Como reflexo desta falta de política para o setor, Airton conta que, pela primeira vez, está fazendo uma campanha de financiamento coletivo na plataforma CATARSE. O projeto consiste na publicação do livro infantil A menina que plantava corações, obra vencedora do prêmio ABRAMES 2019, promovido pela Academia Brasileira de Letras de Médicos Escritores. O livro narra a história de uma menina catadora. Ela e sua mãe todos os dias atravessam as ruas da cidade catando materiais descartados para vender e sobreviver. O orçamento para a impressão dos 300 exemplares custa R$ 3.500,00 mais alguns custos para a entrega via Correios. n

LINK PARA CONTRIBUIR:

https://www.catarse.me/livro_infantil_a_menina_ que_plantava_coracoes_8258?ref=project_link Editais e resistência

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ENTREVISTA

FUMBEL: DESAFIOS PARA UMA POLÍTICA CULTURAL DEPOIS DE 16 ANOS DE INSATISFAÇÃO, A ÁREA CULTURAL APLAUDIU A INDICAÇÃO DE EDMILSON RODRIGUES À PRESIDÊNCIA DA FUNDAÇÃO CULTURAL DO MUNICÍPIO DE BELÉM, ÓRGÃO RESPONSÁVEL PELA POLÍTICA CULTURAL E DE PATRIMÔNIO DA CAPITAL PARAENSE. Por WANDERSON LOBATO Fotos: CLÁUDIO FERREIRA

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le tem uma paixão declarada por Belém em suas atividades de pesquisa e compartilhamento de informações e afetos, como costuma dizer. Além de se manter sempre ativo nas redes sociais, com milhares de seguidores, que muitas vezes também acompanhavam suas caminhadas históricas pela cidade. Michel Pinho é bacharel e licenciado pleno pela UFPA. Começou a fotografar nas oficinas da Associação Fotoativa entre 2006 e 2011, período em que também fez parte da diretoria do lugar, como secretário executivo, vice-presidente e presidente. Desenvolveu e coordenou jornadas fotográficas, cursos, criou editais de incentivo ao audiovisual, planejou e executou o projeto

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Ver-te Belém Histórica, premiado em edital do antigo Ministério da Cultura. Há seis meses à frente da Fumbel, Michel Pinho, como gestor público, precisa fortalecer as políticas públicas da cultura da cidade, negligenciadas nos últimos 16 anos, além de cuidar do patrimônio cultural material e imaterial que ele sempre defendeu ao longo de sua jornada como cidadão. “Rapaz, eu imaginava que ia enfrentar “x”, estou encarando “5x”, brinca logo que nos encontra para este bate-papo numa manhã movimentada na sede da Fundação, que permanece ocupando o Memorial dos Povos Imigrantes. Na entrevista a seguir, o historiador, fotógrafo e professor, mestre em Comunicação, Linguagens e Cultura, nos falou dos desafios e planos para sua gestão.

MICHEL PINHO


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PROJETO CIRCULAR

COMO TEM SIDO O TRABALHO NESTES PRIMEIROS MESES À FRENTE DA FUMBEL? Michel Pinho: Muito importante falar que foram meses de aprendizado. Nos últimos 16 anos, ela foi uma Fundação que se preocupou muito pontualmente com as questões da cultura da cidade. A ideia desses trabalhos nos últimos seis meses foi tirá-la do que habitualmente ela pensava. Nós demos uma atenção muito especial às festas tradicionais, como o Carnaval, estamos dando às festas juninas, aos pássaros, às toadas, aos bois e também é preciso pensar a cidade. Como é possível pensar a cidade? Por meio dos projetos que estão saindo do forno no sentido de pensar o Centro Histórico, que é nossa atribuição, para que ele seja de todos. Para que a gente olhe para ele também e veja nele um espaço de identidade social. A Fumbel, nesta gestão, assume a condição de mecanismo público e sua atuação no Centro Histórico de Belém. Projetos que desenvolvam ações no campo da cultura, da moradia, da mobilidade e saneamento, segurança e urbanismo voltados para a população que devolva à cidade parte da orla da Cidade Velha.

UMA DAS SUAS PRIMEIRAS AÇÕES AO ASSUMIR A GESTÃO FOI VISITAR ALGUNS ESPAÇOS CULTURAIS COMO O MUSEU DE ARTE DE BELÉM, O MUSEU DE ARTE DE BELÉM, O CINEMA OLYMPIA, ENTRE OUTROS. FALE UM POUCO SOBRE ESSE TRABALHO DE RECONHECIMENTO. MP: A primeira tomada de ação foi visitar os espaços de competência da Fumbel e fazer um relatório para a equipe de transição. E o Mabe ganhou especial atenção da Fumbel e do prefeito porque nele está a maior representação da identidade administrativa da cidade de Belém desde o final do século XIX. Isso se dá com uma reforma completa do Mabe. Essa reforma está andando, mas é mais curioso dizer também que as ações do Museu não deixaram de ser feitas. Porque o Museu também já fez ação mesmo passando por reforma.

COMO ESTÁ SENDO O OLHAR DA FUMBEL PARA A PERIFERIA? MP: Essa é a mais grata surpresa desses últimos seis meses. A possibilidade da gente trazer a cultura para ações fora do centro de Belém. Para áreas que são fundamentais e importantes que merecem esse olhar. Vou citar

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A Fumbel nesta gestão assume a condição de mecanismo público e sua atuação no Centro Histórico de Belém. Projetos que desenvolvam ações no campo da cultura, da moradia, da mobilidade e saneamento, segurança e urbanismo voltados para a população que devolva à cidade parte da orla da Cidade Velha”.

três: as visitas monitoradas que continuamos a fazer à biblioteca Avertano Rocha em Icoaraci, para que lá seja um polo de cultura ligado à educação, ligado ao livro e à leitura. A ação que fechamos com a Semec (Secretaria Municipal de Educação e Cultura), para que a biblioteca do Tapanã seja um polo de cultura também com teatro, cinema, e que vai atender a escolas municipais; o projeto da Guarda Municipal chamado Anjo da Guarda e o projeto, também, de apoio às bibliotecas comunitárias. É um acordo entre a UEPA (Universidade do Estado do Pará), UFPA (Universidade Federal do Pará) e o IPHAN (Instituto de Patrimônio Histórico Artístico Nacional), que leva livros para bibliotecas comunitárias.

A SOCIEDADE CIVIL, POR MEIO DO FÓRUM DE CULTURAS DO PARÁ, TEM FEITO SUGESTÕES PARA O DESENVOLVIMENTO DAS AÇÕES DA FUMBEL. QUAIS OS AVANÇOS DESSE DIÁLOGO? MP: Acho que a Fumbel respira o que a cidade respira. A Fumbel respira arte, a Fumbel respira patrimônio, a Fumbel respira a possibilidade de diálogo, então esses acordos e esses apoios, eles vão acontecer de forma absolutamente natural. E são importantes para fortalecer o que Belém tem, que é uma cultura muito pulsante. E que as pessoas se identificam com ela. E o Fórum apresentou suas demandas para a Prefeitura e estamos analisando sua viabilidade.


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SOBRE A CRIAÇÃO DO SISTEMA MUNICIPAL DE CULTURA, COMO ESTÁ O ANDAMENTO DESSA PAUTA IMPORTANTE PARA O SETOR EM BELÉM? MP: O Sistema Municipal de Cultura é a concretização do sonho mais evidente da democratização do acesso por parte da população fazedora de artes e ofícios, o atual Conselho vai encerrar seu mandato e teremos novas eleições neste segundo semestre.

HÁ INÚMEROS IMÓVEIS ABANDONADOS NO CENTRO HISTÓRICO E O IPHAN ESTAVA EM DIÁLOGO COM A COMPANHIA DE HABITAÇÃO (COHAB) PARA A UTILIZAÇÃO DESTES COMO MORADIA SOCIAL. A FUMBEL ESTÁ ACOMPANHANDO ESTA QUESTÃO? MP: Grande parte desses imóveis está ligada a particulares. O que nós percebemos e acho que isso é uma grande discussão. O interesse ou a falta de interesse desses particulares no sentido de preservar e cuidar de seus bens. E aí

é uma política pública mesmo, mas aí a gente não pode deixar de entender que esse indivíduo, que é portador desse bem, precisa zelar por ele. O telhado, a pintura, os azulejos fazem parte de sua propriedade e o que a Prefeitura pode fazer é desenvolver políticas públicas, como o IPTU progressivo, para que essa pessoa pague um valor cada vez menor se ele cuidar mais desse bem.

A CRIAÇÃO DE UM TEATRO MUNICIPAL É UM DOS ANSEIOS DA CLASSE ARTÍSTICA. POUCOS SABEM, MAS HÁ UM PRÉDIO DESTINADO PARA ISSO AO LADO DO ANTIGO COLÉGIO DO CARMO, O PAÇO MUNICIPAL. VAI SER POSSÍVEL REALIZAR ESSA OBRA? MP: Esta é uma questão delicada. Por quê? O Paço Municipal, que tem um projeto para ser o teatro municipal, está sob a guarda da nova associação religiosa que cuida do Colégio do Carmo (Sementes do Verbo). E fiquei muito feliz com a ligação das responsáveis me perguntando

quais medidas ela deveria tomar para preservar o espaço. Então, nesse momento em que a gente não tem aporte financeiro, uma instituição da sociedade civil preocupada em preservar um bem, a gente tem que tirar o chapéu.

COMO ESTÃO AS REFORMAS QUE ESTAVAM PREVISTAS DENTRO DO PAC CIDADES HISTÓRICAS? ACOMPANHANDO O SISTEMA ELETRÔNICO DE INFORMAÇÕES (SEI), DO IPHAN, É POSSÍVEL SABER QUE ALGUMAS DESSAS OBRAS TIVERAM SUAS PRESTAÇÕES DE CONTAS PARCIALMENTE APROVADAS. VOCÊ ESTÁ SABENDO DESTA SITUAÇÃO? MP: Ainda não. O que a gente está fazendo é vendo outras rubricas, outros tipos de financiamento para tocar essas obras. Mas é muito difícil porque a gente vive num momento da própria Prefeitura em que a pandemia trouxe gargalos econômicos impensáveis, mas isso não quer dizer que a gente vá baixar a cabeça. A gente tá

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PROJETO CIRCULAR

tentando aí toda sorte de financiamento para que essas obras saiam num tempo que seja possível, que a gente consiga desenvolver ações culturais nelas.

DESDE 2016 QUE A FUMBEL ESTÁ SEM SEDE PRÓPRIA, OCUPANDO O MEMORIAL DOS POVOS, ENQUANTO O PRÉDIO ANTIGO ESTÁ PRATICAMENTE DESMORONANDO NO COMPLEXO FELIZ LUSITÂNIA. O ÓRGÃO PERMANECERÁ AQUI NESTA GESTÃO TAMBÉM? MP: Aquele prédio é da Funpapa. Foi cedido para Fumbel e, após o incêndio, a Fundação foi transferida para o Memorial dos Povos Imigrantes. Isso não quer dizer que a gente esteja feliz. Entre os meses de fevereiro e março, eu visitei muitos imóveis que podem abrigar a Fumbel para que a gente devolva à sociedade civil esse espaço expositivo. Por que isso é importante? Porque o município não tem espaço expositivo, o município não tem espaço em que possa desenvolver a fotografia, as artes visuais, a projeção de um modo mais contemporâneo e esse espaço foi pensado para isso. Aqui vai ser reativado (falando sobre o anfiteatro). As programações já estão todas prontinhas. Tá ‘tudo na agulha’. Só falta esperar a mudança do bandeiramento, porque tem uma questão ligada à saúde pública.

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COMO A FUMBEL ESTÁ OLHANDO PARA A REGIÃO DAS ILHAS?

O Sistema Municipal de Cultura é a concretização do sonho mais evidente da democratização do acesso por parte da população fazedora de artes e ofícios, o atual Conselho vai encerrar seu mandato e teremos novas eleições no segundo semestre.”

MP: Temos um diálogo muito intenso com a Funbosque, que tem nove unidades nas ilhas. Por que isso brilha meus olhos? Porque, pela Funbosque, podemos levar nossas ações culturais para essas pessoas. Nós já levamos para Caratateua, já levamos livros pro Mestre Apolo, lá na biblioteca comunitária dele. Imagina que nós podemos levar música, levar teatro, contação de história pra Cotijuba, Mosqueiro. Para as ilhas de uma maneira geral. Porque aí você atende a um dos objetivos da Fumbel, que é atingir ao público final, identificar que aquelas pessoas efetivamente não têm acesso a bens culturais.


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NOSSAS FEIRAS E MERCADOS TÊM UM APELO CULTURAL MUITO FORTE. O VER-O-PESO É O MAIOR EXEMPLO. A FUMBEL PENSA ALGO ESPECÍFICO PARA ESSAS ÁREAS E POPULAÇÕES? MP: O que nós fazemos nas feiras e mercados do Centro Histórico são ações culturais. Nós temos feito, nos últimos seis meses, ações aqui no Solar da Beira. Nós tivemos uma atrocidade cometida contra um indígena Tembé (o assassinato de Isac Tembé, dia 12 de fevereiro, na Terra Indígena do Alto Rio Guamá, em Capitão Poço) e, então, nós armamos uma exposição. Recebemos objetos (cocar, braçadeiras, maracás e arco e flecha) e nós anexamos os itens que pertenciam à jovem liderança indígena entregues à PMB e ao acervo do MABE. Por que estou falando isso? Porque essa relação aconteceu no Ver-o-Peso, dentro do Solar da Beira, mas essa ação poderia ser feita em qualquer feira de Belém. Porque nós entendemos que os nossos elementos culturais ricos de nossa existência estão lá. O cheiro, a comida, a fala, o homem da periferia, a mulher da periferia estão produzindo cultura a mais espontânea possível. Então, dá pra gente pensar muitas ações ao longo dos anos.

HISTORIADOR, FOTÓGRAFO, PROFESSOR, GESTOR PÚBLICO. COMO VOCÊ SE IDENTIFICA HOJE? MP: Se alguém me perguntasse hoje não sou fotógrafo, não sou professor, não sou historiador. Hoje sou um apaixonado por Belém. Se não tivesse essa entrevista aqui eu ficaria até às duas horas da tarde conversando sobre as características culturais e como é que a cidade nasceu. E existe um desafio. Que é pegar essa paixão, pegar esse desejo de conhecer Belém e divulgar para a maior quantidade de pessoas. E isso já está sendo

feito. Nós temos uma comunicação muito ativa aqui, trilíngue. E fazer com que isso se adapte ao mundo da burocracia. Porque entre o exercício do pensamento e a finalidade, os trâmites burocráticos, os procedimentos que devem salvaguardar a administração pública devem ser respeitados. Isso demora um pouco. Isso é diferente quando você tá na ponta e quer fazer uma coisa, você pega um megafone, quatro pilhas e você vai pra rua e reúne 600 pessoas. É um pouco diferente quando você está na Fumbel, mas você tem a potencialidade de atingir uma cidade inteira. E isso é muito bonito. n

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EMERGÊNCIA CULTURAL EM TEMPOS DE PANDEMIA, A CULTURA TEM PROPORCIONADO UM POUCO DE ALEGRIA E LEVEZA EM UM COTIDIANO PESADO DE SOFRIMENTO E ANGÚSTIA, MAS PARA A CULTURA NOS SALVAR, É NECESSÁRIO SALVAR QUEM FAZ CULTURA. NESSE SENTIDO, O FÓRUM DE CULTURAS DO PARÁ BUSCA DIÁLOGOS E DÁ SUGESTÕES À GESTÃO MUNICIPAL PARA A ELABORAÇÃO DE UM PLANO DE CULTURA EMERGENCIAL PARA BELÉM.

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Por CAMILA BARROS Fotos: DIVULGAÇÃO

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novo normal para quem produz e consome cultura é doloroso. O setor cultural vem sofrendo com os efeitos da pandemia, principalmente quando se trata de economia. Em meados do ano passado, 48,88% dos fazedores de cultura afirmaram ter perdido totalmente suas receitas entre os meses de maio a julho de 2020, enquanto 21,34% tiveram a renda reduzida em mais da metade no mesmo período. Os dados são da Pesquisa de Percepção dos Impactos da Covid-19 nos Setores Culturais e Criativos do Brasil, realizada pela Unesco. Omisso, o Governo Federal não se dispôs a formular soluções para a crise que a área artística sofre no país. Agora, atendendo ao pleito da sociedade, o Congresso Nacional tenta criar uma possibilidade para que a classe artística receba mais recursos emergenciais e consiga enfrentar este difícil momento. Trata-se de Projeto de Lei (PL) batizado de Paulo Gustavo, de iniciativa do Senado, que deve injetar R$ 4,4 bilhões no setor cultural. Do valor total, o PL prevê que a União repasse aos estados e municípios R$ 3,8 bilhões, fruto do superávit financeiro do Fundo Nacional de Cultura (FNC). Outros recursos viriam de editais, chamadas públicas e apoios a iniciativas culturais. Estados e municípios também destinariam verbas como contrapartida ao montante de origem federal.

MOBILIZAÇÃO PARAENSE Poder público e sociedade civil precisam estar de mãos dadas para mudar a realidade em que o setor cultural se encontra no Pará. Os esforços são grandes. A fim de discutir mecanismos de sustentabilidade e fomento ao setor na capital paraense, o Fórum de Culturas do Pará, coletivo organizado desde 2007, realizou inúmeras reuniões abertas para mobilizar fazedores, gestores e parlamentares que atuam na área. O objetivo maior é buscar alternativas para se obter recursos que possam ser destinados a um plano de emergência cultural para Belém. Dentre as alternativas estudadas pelo Fórum estão o remanejamento de recursos do orçamento da Fundação Cultural do Município de Belém (Fumbel). Foi sugerido também que ela verifique a possibilidade do uso de recursos do Fundo Municipal de Cultura (FMC) que já teve uma parte usada para o segmento do Carnaval. O Fórum entende que a Prefeitura de Belém deve disponibilizar auxílio emergencial aos fazedores e fazedoras de cultura como subsídio fiscal, social ou econômico para os atingidos pela pandemia do coronavírus, visto que o setor cultural foi o primeiro a paralisar suas atividades e será o último setor a retornar ao “normal”.

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EMERGÊNCIA CULTURAL Diante da demanda, foi criado um Grupo de Trabalho (GT) da Emergência Cultural para a realização de lives pelo auxílio de emergência cultural, com participação de vários convidados de diferentes segmentos culturais. Uma audiência com o prefeito de Belém, Edmilson Rodrigues, foi solicitada e os fazedores de cultura aguardam uma data. Até a data de fechamento dessa edição, o encontro ainda não estava agendado. Parlamentares municipais, estaduais e federais apoiam o pleito, inclusive com a possibilidade de aporte financeiro por meio de emendas parlamentares, pois entendem que é justa a demanda, e em tempo de pandemia o auxílio é um direito. Por meio da Fumbel, a Prefeitura de Belém apresentou uma contraproposta ao pleito do Fórum, no entanto, ela foi rejeitada por ampla maioria dos segmentos e coletivos culturais. O grupo de 78 pessoas presentes à reunião sugeriu um valor diferente para o auxílio emergencial ofertado pelo município e que fossem contemplados todos os inscritos no mapa cultural da Fumbel. O Fórum de Culturas do Pará também escreveu recentemente um manifesto para a Semana do Meio Ambiente da Câmara Federal. Intitulado Manifesto pela Cultura (na) e (da) Amazônia, o documento elenca algumas questões importantes para um programa de incentivo à cultura no município de Belém, como a convocação imediata de eleição para o Conselho Municipal de Cultura (CMC); alteração da lei que dispõe sobre isenções tributárias no município a fim de incluir os Pontos de Cultura e os espaços culturais; a alteração da Lei Tó Teixeira e da Lei Valmir Bispo do Santos e a efetivação do Sistema Municipal de Cultura (SMC), dentre outras demandas dos diferentes segmentos culturais.

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O ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA O cenário que já não era bom, ficou pior com a crise pandêmica. A maioria dos fazedores de cultura não consegue se manter com a mesma qualidade de vida que tinha antes da chegada do novo Coronavírus. Muitos estão desempregados, não conseguiram auxílio emergencial e alguns passam por necessidades. Voltar à normalidade deve demorar. Durante a pandemia, nos grupos de WhatsApp e nas redes sociais, os relatos mais recorrentes eram, e ainda são, de pedidos de ajuda para comprar comida ou realização de rifas para angariar recurso financeiro. Mestres de cultura morreram de Covid-19 sem assistência social ou financeira na capital e nos outros municípios do estado. Muitos dos mestres estão em situação calamitosa, alguns estão vivendo com ajuda de parentes e amigos, e outros aguardam ainda a liberação de recursos de editais passados. “Isso é inaceitável, pois entendemos que há dinheiro. Por que a Fumbel fez um edital específico para as escolas de samba e pagou R$ 1,8 milhão somente para um segmento? Por que não pode ajudar os mais de 2 mil cadastrados no mapa cultural do município? Continuamos em pandemia, ainda não foram disponibilizadas vacinas para todos. O auxílio emergencial cultural é fundamental para os fazedores de cultura, mestres e mestras de Belém”, afirma a documentarista e representante do Fórum de Culturas do Pará, Eliana Pires. No setor da Dança, muitas escolas fecharam suas portas, o que, consequentemente, impactou diretamente na vida dos seus profissionais. O auxílio emergencial para o setor cultural é um respiro. “A nossa expectativa é grande, já que recentemente começaram a pensar em incentivos para os artistas. Esperamos que não demore tanto e não haja tanta burocracia. E que o orçamento seja pensado de forma mais igualitária possível e não apenas privilegiando um segmento da cultura. Esperamos que seja realmente uma ação democrática para ajudar os artistas a sobreviver e seguir com suas produções on-line”, diz a professora e bailarina Waldete Brito, do Colegiado de Dança do Pará. “O auxílio que o Governo deu teve poucas parcelas e muita gente continua sem poder trabalhar. A pandemia levou a todos buscarem saídas passageiras que não suprem nossas necessidades. Falo de necessidades de sobrevivência, porque nossas necessidades artísticas, de produção e criação, elas, de certa forma, foram atingidas contundentemente, porque, muitas vezes, as nossas cabeças nem funcionam direito de tanta preocupação”, relata a produtora cultural Fafá Sobrinho, que representa artistas e produtores do Casarão do Boneco, fechado desde 14 de março de 2020. Se a gestão municipal atender a demanda da emergência cultural para Belém pleiteada pelo Fórum de Culturas do Pará, cerca de 2 mil agentes culturais e mais de 250 espaços culturais e mestre e mestras serão contemplados, e vão poder respirar durante cerca de três meses. “O auxílio é um ato de respeito para quem faz arte e cultura na cidade”, finaliza Fafá.

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ACESSE A PLATAFORMA TÁ SELADO: HTTPS://DECIDE.BELEM.PA.GOV.BR

Para além da demanda do auxílio emergencial para Belém, o Fórum de Culturas do Pará organiza, em parceria com a plataforma Tá Selado, da Prefeitura de Belém, o calendário de plenárias setoriais autoconvocadas da Cultura. Ao todo, são 23 plenárias de diferentes segmentos culturais que já estão sendo realizadas de forma remota pela plataforma da Prefeitura. Essas plenárias pretendem eleger delegados e conselheiros que vão defender propostas do setor para o Plano Plurianual (PPA) e outros importantes mecanismos de gestão de recursos para Belém, em diversas áreas. n


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O auxílio é um ato de respeito para quem faz arte e cultura na cidade”. — FAFÁ SOBRINHO, REPRESENTANTE DE ARTISTAS E PRODUTORES DO CASARÃO DO BONECO, FECHADO DESDE 14 DE MARÇO DE 2020.

A nossa expectativa é grande, já que recentemente começaram a pensar em incentivos para os artistas. Esperamos que não demore tanto e não haja tanta burocracia. E que o orçamento seja pensado de forma mais igualitária possível e não apenas privilegiando um segmento da cultura”. — WALDETE BRITO, PROFESSORA E BAILARINA, REPRESENTANTE DO COLEGIADO DE DANÇA DO PARÁ.

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UM ANO DE LEI ALDIR BLANC FRUTO DA INTENSA MOBILIZAÇÃO DE ARTISTAS E FAZEDORES DE CULTURA DE TODO O PAÍS, A LEI DE EMERGÊNCIA CULTURAL ALDIR BLANC (N. 14.017) COMPLETOU UM ANO NO MÊS DE JUNHO, COM INVESTIMENTO EM PROJETOS CULTURAIS, MUITOS DE PATRIMÔNIO E CULTURA POPULAR.

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o período, isso provocou um impacto positivo na geração de trabalho e renda para os profissionais da área, seriamente atingidos pelas restrições sanitárias com a chegada da pandemia do novo coronavírus. Em 2021, porém, ainda é instável a situação e não há confirmação de que haja uma segunda edição da lei, como vem sendo exigido pelo setor que continua seriamente comprometido. Ao Pará, segundo Júnior Soares, Diretor de Cultura, da Secretaria de Cultura (Secult) coube um pouco mais de R$ 67 milhões para investir na aplicação do inciso III, voltado para a realização de editais, chamadas públicas e prêmios para artistas, fazedores e fazedoras de cultura. Para operacionalizar a aplicação dos recursos que, quando liberados pelo governo federal no segundo semestre de 2020, previam ser aplicados em um curto espaço de tempo, a Secult realizou chamadas públicas para organizações da sociedade civil auxiliarem na organização dos editais.

“Desta forma nós conseguimos aplicar 28 editais e como premissa básica nós consolidamos um Comitê de Emergência Cultural formado pela sociedade civil para auxiliar na montagem dessa engrenagem pra chegar até os fazedores”, completa Diretor de Cultura. Em maio passado, o uso dos recursos por estados e municípios foi prorrogado para até 31 de dezembro deste ano, estendendo também o prazo para a prestação de contas dos projetos selecionados. O que, segundo nos conta Júnior Soares, impossibilita uma análise por parte da Secult sobre o impacto dos recursos nas regiões do estado e da organização futura para novos investimentos no setor. “Nossa analise ainda está aguardando a recepção desses relatórios para ver para onde apontar novos recursos. Não há ainda uma definição clara de editais nessa área ou outra área agora, imediatamente. Estamos aguardando essa execução para propor junto com esse comitê novos editais para área”, explica.

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PATRIMÔNIO CULTURAL E CULTURA POPULAR O certo é que os editais mobilizaram centenas de artistas e produtores no estado, garantindo recursos para setores que há muito não recebiam investimento do poder público, como é o caso do patrimônio cultural e culturas populares. “Há um déficit histórico em relação à promoção da cultura popular não só no Pará, mas no Brasil inteiro. Atualmente, o setor vem sofrendo muito mais do que antes, por motivos óbvios. Há um déficit e uma desatenção à cultura popular porque, na verdade, entendeu-se por muito tempo que isso não deveria ser fomentado pelo Estado”, explica Edgar Chagas, coordenador e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura (PPGCLC/UNAMA), que junto à Fundação Instituto para o Desenvolvimento da Amazônia (FIDESA), coordenou os editais nas áreas de “Patrimônio Cultural Imaterial” e “Culturas Populares”. “No primeiro momento, a procura foi tímida. Tivemos que fazer duas prorrogações”. Depois de uma intensa divulgação e busca ativa dos profissionais e mestres de cultura para que as informações sobre como participar pudessem chegar às comunidades mais distantes dos centros urbanos, a Fundação recebeu mais de mil propostas que disputaram 303 prêmios, nos dois editais. Mas a situação demonstrou que, para além da oportunidade de se realizar os editais, há a necessidade de se pensar como se fazer chegar a informação sobre os certames para os municípios do interior do estado. “Há no estado do Pará uma concentração de projetos na Região Metropolitana de Belém por conta de uma expertise relacionada com a capacidade de informação mais próxima, mas também o acesso à informação para a produção de projetos culturais ainda é uma realidade para poucos”, afirma. “Essa dificuldade, que é histórica, ainda precisa ser mais refinada no que tange a relação do Estado com os fazedores de cultura”, completa. Criado a partir da preocupação com grande demanda de comunidades em situação de risco e populações tradicionais que não possuem apoio técnico para o seu desenvolvimento sustentável, econômico e igualitário, o Instituto Inã coordena a execução dos editais nos segmentos de “Museus e Memoriais” e “Patrimônio Cultural Material”. Procurado pela Revista Circular, o Instituto preferiu se manifestar respondendo às perguntas de nossa equipe por escrito em nome da sua

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presidente, Ana Patrícia Reis. Ela explica que “a maioria dos projetos aprovados tratam da garantia de continuidade da memória dos espaços culturais e educacionais que já existiam, através de ações de formação, lives, oficinas e até mesmo pequenas reformas dos espaços”. Questionada sobre a importância da chegada de editais para as áreas como patrimônio e museus, Ana Patrícia Reis concorda que os recursos não são tão costumeiros e acredita “que vai depender muito da organização dos coletivos, artistas e pesquisadores que trabalham com patrimônio para que haja uma continuidade”. Ela lembra que a Lei demonstrou ser possível e necessário fazer o financiamento e que alguns setores necessitam de mais recursos, como o de museus, por exemplo. “O museu não é simplesmente você fazer um espaço e colocar peças, tem toda uma preparação tem que ter pesquisas, reserva técnica, então, isso demanda um certo recurso para a efetivação de um trabalho mais amplo e efetivo”.

Há no estado do Pará uma concentração de projetos na Região Metropolitana de Belém, por conta de uma expertise relacionada com a capacidade de informação mais próxima, mas também o acesso à informação para a produção de projetos culturais ainda é uma realidade para poucos” — EDGAR CHAGAS, COORDENADOR DOS EDITAIS NAS ÁREAS DE PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL E CULTURAS POPULARES.


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PARA CONHECER O CENTRO HISTÓRICO Conversamos com alguns proponentes de projetos aprovados. A maioria ainda está no período de preparação das atividades, à espera de uma melhoria no quadro de restrição sanitária por conta da pandemia. A situação fez com que muitos deles fossem organizados no formato de transmissão on-line, mas também há projetos presenciais, como as exposições. Nabila Pereira é mestre em Geografia e, atualmente, trabalha como professora do Ensino Básico para escolas particulares, em Belém. A partir de sua experiência com a disciplina Estudos Amazônicos, surgiu a ideia do projeto “Oficina de Educação Patrimonial - Memória, Patrimônio e Geografia no Centro Histórico de Belém”. “Nas aulas, tem o tema transversal que é patrimônio. E nessas aulas, a gente percebe que os alunos estão muito distantes, sobretudo, como eu trabalho na periferia, eles são muito

distantes da realidade patrimonial, do que é tombado”, completa. A experiência dos alunos é também parte da história da professora. Moradora da periferia, ela conta que só passou a gostar do Centro Histórico de Belém quando começou a pesquisá-lo. “Para mim não significava quase nada. Eu mal sabia onde ficava. E em resumo, é você conhecer um pouco mais, mas também conhecer a importância não só histórica, não só memorial. Mas, sobretudo, também enquanto cidadão saber o que é bem tombado, saber que tem instituto que protege. Também como uma organização cidadã, para além de memória e identidade”. No momento, o projeto está na fase de organização do roteiro da oficina, com previsão de gravação da oficina no mês de julho para apresentação nas redes sociais em outubro. Segundo a geógrafa, o projeto vai investir na simplicidade do discurso para envolver os participantes na importância do Centro Histórico para seus moradores, do centro e da periferia.

“Às vezes acho que é meio que uma imposição do pessoal que mora no centro que a gente tem que amar o patrimônio. Todas as vezes que eu penso no Centro Histórico eu penso assim: toma as informações, aí a pessoa vê o que faz com isso, se tu vai te apaixonar ou não, porque eu me apaixonei. Sou da Cabanagem e me apaixonei”.

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MESTRES DA FÉ “A Marujada pra mim é uma coisa inexplicável. Sempre digo que a Marujada é no meu sangue. Gosto muito da Marujada. Nesse ano que não teve foi muita tristeza pra mim”. O depoimento de Maria de Jesus, 63, capitoa da manifestação, diz muito sobre como as festas de santo no país extrapolam a condição de culto, alcançando um significado cultural mais amplo para quem o vivencia no cotidiano. Maria de Jesus é uma das mestras que integram o projeto “As danças, indumentárias e saberes da marujada de Bragança como ações educativas” que busca a salvaguarda da memória coletiva da Irmandade do Glorioso São Benedito. O projeto prevê a realização, nos meses de agosto e setembro, de conversas a serem realizadas no auditório da Casa de Cultura, de Bragança, com transmissão pelas redes sociais do projeto e a participação de mestres e mestras e suas narrativas sobre a Festividade de Glorioso São Benedito, que acontece neste período, no município da Região do Salgado Paraense. Há sete anos sendo a capitoa da Marujada, Maria de Jesus comemora a possibilidade de se apresentar no projeto, mesmo que ainda viva a incerteza se a manifestação ocorrerá este ano. “Eu achei uma coisa muito boa, esse projeto, muito importante. Porque é um ano que a gente tá parado. Com isso a gente vai tá se apresentando, a gente vai tá falando sobre a Marujada, sobre os mestres, sobre as marujas. Achei muito importante”. Lilian Cristina Souza, proponente do projeto em nome da Irmandade, conta que a participação no edital de Patrimônio Mate— MARIA DE JESUS, 63, CAPITOA rial se deu por meio de seu crescente envolDA MANIFESTAÇÃO. vimento com a manifestação cultural. “Eu conheci a Marujada em 2004, no mesmo período que entrei no Arraial do Pavulagem, em Belém. Então, pelo Arraial, eu conseguia a visualizar as outras manifestações. E toda vez que a Marujada vinha eu falava com eles, e a gente acaba se encantando pela manifestação”, afirma. Em 2010, o encantamento se fortaleceu na fé em São Benedito. Participando da festividade, foi à igreja do “santo preto” fazer um pedido: queria trabalhar com patrimônio cultural. Passados mais de dez anos, hoje ela integra a direção da Irmandade e construiu a programação das lives, juntamente com os mestres e mestras. “Para produzir a programação fui estudando, indo na fonte e chamando essas pessoas para construir junto. Falar do patrimônio, falar da memória e principalmente do imaterial neste momento. Eu acredito que é relevante para cena lá, até porque estão em processo de reconhecimento institucional como patrimônio imaterial pelo IPHAN”, lembra a maruja ao falar da construção do Inventário de Referências Culturais, cujo levantamento preliminar está sendo realizado pelo IPHAN em parceria com a Universidade Federal do Pará, por meio da Faculdade de História do Campus Bragança.

A Marujada pra mim é uma coisa inexplicável. Sempre digo que a Marujada está no meu sangue. Gosto muito da Marujada. Nesse ano que não teve foi muita tristeza pra mim”.

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COMIDA E PATRIMÔNIO “Papa Xibé: Dos Sentidos aos Sabores” é projeto selecionado no Edital de Patrimônio Material que surgiu a partir do trabalho de conclusão de curso (TCC) em Museologia, da Universidade Federal do Pará, da graduanda Mailane Sampaio. Em sua pesquisa, ela investigou a musealização da cultura alimentar, em quais instituições museais a alimentação estava presente. E identificou no Museu do Círio um rico acervo que serviu de base para a exposição. “O projeto tem dois pilares. Um é a pesquisa e, a partir dela, a comunicação da pesquisa. Dentre as maneiras desta comunicação que eu encontrei foi fazer a exposição. A ideia é que a pesquisa chegue de outras formas e então vamos produzir pequenos vídeos e vai ser feito um catálogo com esta temática da cultura alimentar”, explica. A primeira temporada da exposição aconteceu no Solar da Beira, no Complexo do Ver-o-Peso, e deve seguir para outros locais, como Icoaraci e Ananindeua. Os vídeos serão publicados no perfil do Instagram @expo.papaxibe (https://www.instagram.com/expo.papaxibe/). O catálogo ainda está em preparação e será postado nas redes sociais e distribuído para escolas e bibliotecas. “O cheiro de tucupi me relembra o Círio, o afeto

e o aconchego que os paraenses exalam! Eu amo ser paraense e ter essa cultura rica em volta de mim.” “Comida é também afeto e me recordo feliz da primeira maniçoba que comi no Círio, ainda criança quando acompanhava com meu pai. Parabéns por trazer memória, afeto e cultura. O que seria Belém, se não isso?” As mensagens deixadas pelos visitantes da exposição no Solar da Beira demonstram a importância da alimentação como representação de nossa cultura. Mas apesar desse valor, a pesquisa de Mailane identificou esta contradição com a falta de espaços que destaquem esse aspecto de nossa cultural, fora dos locais de comer. “É uma contradição inclusive se pensares que Belém tem o selo da Cidade Criativa da Gastronomia, que é fornecido pela Unesco”, lembra. “Até mesmo nas instituições museais, nos pontos de cultura ou ponto de memória é bem escasso, por exemplo. Tu vais ter o ponto de cultura Iacitatá. Fora isso, só algumas exposições pontuais”. A graduanda ainda faz uma crítica para o uso político da nossa alimentação, uma vez que o caruru, o vatapá, a maniçoba, o pato no tucupi, o tacacá e o xibé são pratos que têm o reconhe-

cimento estadual como patrimônio cultural imaterial. Mas o título perde o sentido, uma vez que não há uma política patrimonial que preveja sua preservação. “Não existe nenhuma política para a maniçoba, por exemplo. Algo que promova a pesquisa. Alguma lei que não permita que se aumente demais o preço do pato no almoço do Círio para que realmente esse prato continue na nossa mesa. Esta é minha crítica, que você tem uma patrimonialização vazia mesmo.”

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A gente quer fazer um museu não só dos pertences, mas da fala também das pessoas. Os mais velhos têm a história do Seu Américo, o primeiro morador daqui. Muitos já faleceram e estão levando essa história junto”. — ROSETI ARAÚJO, DA ARQUIA, BRAGANÇA-PA.

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MEMÓRIA E RESISTÊNCIA QUILOMBOLAS Na comunidade quilombola de América, localizada a 07 km do município de Bragança, no Nordeste do Pará, vivem cerca de 500 pessoas. Ali, uma inquietação sobre a história da criação do lugar motivou a Associação da Comunidade Remanescente Quilombola do América (ARQUIA), formada em sua maioria por mulheres, a produzir o projeto “Guarda o que foi da minha Vó”, aprovado no Edital de Multilinguagens, no segmento Patrimônio Cultural Material. A intenção é criar um pequeno museu na sede da Associação com materiais antigos, como vasos de cerâmica, pilão de madeira ou outros utensílios domésticos para guardar as memórias da comunidade. Mas a principal questão é registrar o que se sabe sobre o Seu Américo, que deu nome à comunidade. “O projeto foi feito porque a gente quer retratar as coisas antigas do quilombo. A gente quer fazer um museu não só dos pertences, mas da fala também das pessoas. Os mais velhos têm a história do Seu Américo, o primeiro morador daqui. Muitos já faleceram e estão levando essa história junto”, explica Roseti Araújo, da Arquia. “A gente quer fazer igual um documentário, com cada um falando do Seu Américo da forma que os antigos contaram pra eles”, diz. A intenção é ouvir os mais velhos, mas também os mais novos, registrando em vídeos e fotos um levantamento etnográfico da comunidade. “A gente quer ter isso na Associação. As crianças que moram no quilombo não têm onde pesquisar, ver, saber como se deu. Se não registrar os mais velhos, nós vamos perder”, explica Roseti. Segundo a história oral da comunidade, Américo Pinheiro de Brito, ao lado de outros negros escravizados, veio fugido do Maranhão pelo mar. Mas a barca em que vinham naufragou próximo a Ajuruteua. Eles, então, se fixaram nas matas da região. Sendo que Américo foi o responsável em povoar o território da comunidade. Os antigos resolveram nomear o lugar com o nome do seu primeiro morador. De Américo, mais tarde, passou a se chamar América. Com mais de 200 anos de história, a comunidade só foi reconhecida pela Fundação Cultural Palmares como remanescente quilombola em 2015. “A energia foi conseguida por eles mesmos que puxaram os cabos e puxaram os postes de energia e depois que a companhia de energia fez algumas

▲ ligações, mas até uma parte. Na parte final da comunidade ainda tem os postes de varas que eles colocaram. A água foram eles que fizeram. Colocaram o poço, conseguiram a caixa d’água e fizeram a distribuição da água”, conta Pedro Olaia. Olaia, que conduziu junto a Roseti o processo de submissão do projeto, acredita que a pesquisa e a preservação da memória local ajude no fortalecimento comunitário, principalmente no que se refere às políticas públicas. Como exemplo, cita o fato de que até hoje a escola da comunidade não é reconhecida como quilombola, mesmo que a definição já tenha sido aprovada no Conselho Escolar do município. “Esse trabalho de levantamento histórico, de registro etnográfico vai fortalecer esse material teórico. Para que a gente aproxime mais essas políticas públicas e para que elas efetivamente aconteçam, também na prática”, finaliza Pedro. n

Associação da Comunidade Remanescente Quilombola do América (Arquia), formada em sua maioria por mulheres.

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ENSAIO FOTOGRÁFICO

PIU GIBSON

OS INVISÍVEIS Textos: CAMILA BARROS

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les estão por todos os lados, mas há quem não os enxergue no meio da frenética movimentação do comércio de Belém. Para o ensaio desta edição, o fotógrafo Piu Gibson foi convidado a compartilhar imagens e também outras histórias desses personagens invisíveis. Registrar e ouvir histórias é o que move Piu Gibson, que trabalha há mais de 12 anos com audiovisual. A movimentação das ruas instigou o morador do Centro Histórico e o levou a retratar as histórias das pessoas que trabalham por ali. “No Comércio, os manequins nas portas das lojas chamam mais a nossa atenção do que as pessoas. Muitas vezes, não enxergamos que elas estão ali. São vendedores, locutores, ambulantes, por quem passamos e não os vemos. Eles são invisíveis aos nossos olhos”, explica o fotógrafo, que escolheu retratar em preto e branco os invisíveis, deixando as cores para os manequins que dividem o espaço das ruas do comércio com os transeuntes.

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SEU JURACI OU SEU JURÁ: O ENGRAXATE DOS PREFEITOS

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e pequena estatura e corpo franzino, natural de Abaetetuba, seu Jurá diz que já engraxou sapatos de vários políticos paraenses, como Edmilson Rodrigues, Zenaldo Coutinho, Duciomar Costa, Coutinho Jorge, Hélio Gueiros, Sahid Xerfan, Almir Gabriel e até Jader Barbalho. Aos 74 anos, há mais de 50, ele trabalha em frente ao Palácio Antônio Lemos, prédio que já abrigou a sede da Prefeitura de Belém. “Antes da revolução de 64, eu já engraxava sapato de muito político. Entra prefeito e sai prefeito, entra e sai governador ou presidente e eu continuo por aqui. Chego às 7h da manhã e fico até início da tarde, porque já me aposentei, não tem mais precisão de trabalhar o dia todo. Aqui já chegamos a ter sete engraxates e hoje só restam cinco, porque dois morreram, mas não tem nada a ver com Covid, foi de doença normal mesmo”, conta. Seu Jurá desembarcou no Centro Histórico ainda jovem, aos 15 anos. “Meu pai era sapateiro e eu aprendi o ofício com ele. Antes de chegar aqui [Belém], eu trabalhava em uma fábrica de sapatos com meus irmãos, lá em Abaeté, mas só o patrão ficava rico e a gente cada vez mais pobre. Então, resolvi vir embora, vim sondar com o que eu poderia trabalhar na cidade e encontrei. Na época, os primeiros engraxates eram italianos, ficavam ali nos ‘clipes’, que eram umas estruturas de concreto onde paravam os ônibus. Naquele tempo, eles usavam tecido de guarda-chuva para lustrar os sapatos e eu ficava prestando atenção como eles faziam, conforme eles foram indo embora, os engraxates paraenses passaram a ocupar o espaço. Comecei como aprendiz e tô até hoje nessa profissão”, relata.

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Pai de seis filhos, avô de 12 netos e quatro bisnetos, Seu Jurá diz que não arredou o pé do seu posto de trabalho durante a pandemia. “O trabalho diminuiu, mas não deixei de vir trabalhar. Os outros colegas correram, mas eu estava aqui todos os dias”. Ao final da conversa, quando perguntado qual o seu sobrenome, eis que ele então dispara: “Não, meu nome é Maximiano de Lima Oliveira, mais conhecido como Juraci”. Segundo ele, o apelido surgiu ainda quando criança, após sua irmã ouvir uma mulher chamar o filho para dentro de casa. “Ela achou bonito e até hoje me chamam de Jurá”, finaliza rindo. Seu Jurá ou Seu Juraci é a forma que seu Maximiano encontrou para se manter anônimo para os muitos clientes que passam por ali e não sabem do seu verdadeiro nome e da sua história de vida.


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SEVERINO: O PREGADOR NA PRAÇA DA BANDEIRA

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ma camisa de botão, calça social e uma sandália de dedo. Com uma bíblia debaixo do braço, sob um sol escaldante, um senhor de cabelos brancos grita versículos bíblicos para os que passam apressados por ele. Há 33 anos no Pará, o pernambucano aposentado Severino Lima, 70, tirou o sustento da sua família durante 11 anos trabalhando no Comércio. Hoje, ele distribui santinhos com a “palavra de Deus” pelas ruas do bairro. “Foi um chamado”, diz ele. Severino tira o dinheiro do seu próprio bolso e faz a distribuição em dias marcados: às terças, quintas e sábados. Segundo ele, mais de 200 mil panfletos já foram entregues.


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GROOVER GUEVARA: O CURANDEIRO NA 13 DE MAIO

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ma dor de cabeça, um resfriado, o estômago reclamando de uma comida que não caiu bem e até aquela indisposição típica de uma ressaca básica... Quem nunca? Mas pra quem trabalha por conta própria no Comércio, de sol a sol, largar sua barraquinha para ir até a farmácia e ainda ter que enfrentar uma fila significa perder tempo, e tempo é dinheiro. O peruano Groover Guevara, 59, é uma espécie de aviador de receitas do Comércio. “O pessoal [ambulantes] trabalha aqui o dia todo e não tem muito tempo para ir na farmácia aviar o remédio. Esse tempo é precioso e eles podem até perder uma venda. Ajudo eles por aqui indo na farmácia e trazendo o remédio. E foi pelo meu trabalho que criei meus quatro filhos”, relata com um portunhol ainda carregado da sua língua materna. Groover veio do Peru para passear no Brasil, de passagem pelo Pará, conheceu a atual esposa, parou e decidiu ficar.

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ALANDA: ESTETICISTA DE CALÇADA NA PADRE EUTÍQUIO

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m espelhinho laranja, um borrifador, uma navalha, pincéis, pinças, curvex, tudo milimetricamente arrumado numa simpática maletinha lilás aberta, dessas que maquiadores profissionais usam, imitando uma penteadeira. É o salão itinerante da esteticista Alanda Ramos, 25, que ficou desempregada e por meio de uma amiga descobriu que era possível continuar trabalhando na sua profissão, mas dessa vez, nas ruas de Belém. Ela monta sua banca na calçada, na esquina da Travessa Padre Eutíquio com a Rua João Alfredo e atende sua clientela. Alguns já são fiéis e há anos se embelezam com os serviços de Alanda. Elas sentam no banquinho e saem dali com sobrancelhas desenhadas com henna e cílios postiços. Tudo ao ar livre. “Atendo umas dez clientes por dia e ganho muito mais na rua do que trabalhando pra dona do salão. Já recebi proposta de emprego, mas só saio daqui quando for pro meu salão”, diz ela.

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NAZARENO: LOCUTOR DAS MULTIDÕES NA PRAÇA DO RELÓGIO

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archinha no Réveillon, Simone quando é Natal, forró na quadra junina. De Gonzagão a Alok, passando por Nelsinho Rodrigues, a trilha sonora do centro comercial pode variar tanto quanto as promoções nas vozes das caixas amplificadas. Munido apenas de um microfone na mão, Nazareno Cavalcante, 60, é uma dessas vozes, cuidadosamente empostada, para garantir que essas promoções ganhem a disputa do cliente. Locutor profissional há mais de 30 anos no Comércio, vindo de uma família de 11 filhos, veio de Abaetetuba,

junto com um irmão, para vender picolé. A profissão como locutor surgiu aos 16 anos, quando deram a ele a missão de entreter as pessoas que circulavam pela loja onde ele trabalhava como faz-tudo. “Num dia faltou luz, botaram pilha no microfone e ligaram num gravadorzinho. Meu chefe disse pra eu ficar falando e interagindo com as pessoas. Deu certo”, conta. Como locutor, ele já passou por lojas de roupas, açougue, farmácia, supermercado e até uma aparelhagem, a Globo de Ouro, no bairro onde mora, o Guamá.

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MANOEL BORGES: SONHO DE JOGADOR E SALADA DE FRUTAS NA JOÃO ALFREDO

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eite condensado, creme de leite e frutas variadas, sempre fresquinhas, cortadas em cubinhos, servidas geladas num copo descartável médio, a R$ 4,00; e grande, a R$ 5,00; quem decide é o freguês. Aos 20 anos, Manoel Borges deixou Peixe-Boi, no interior do estado, para fazer uma peneira (teste) no Clube do Remo. Porém, o sonho de ser jogador profissional foi frustrado por causa da sua idade. “Eu jogava muita bola, colocava esses jogadores de hoje aí no bolso, mas já tava velho para os juniores, eles queriam meninos de 16, 17 anos”. Sonho interrompido. Ele passou a trabalhar como vigilante, nas horas vagas complementava a renda vendendo lanches de rua. Quando se viu desempre-

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gado, teve a ideia de vender salada de frutas numa bicicleta cargueira, bem antes da modinha das bikes gourmets. A ideia deu tão certo, que Seu Manoel não parou mais até hoje. “Tenho clientes até do outro lado do rio, que aporta aí na Pedra e vem direto aqui toda semana”, diz orgulhoso. Todos os dias ele sai pedalando da Terra Firme até o Comércio, onde estaciona sua bicicleta e faz suas vendas. Na volta pra casa, já leva as frutas e insumos necessários para produzir a salada e vendê-la no dia seguinte, afirma que isso garante a boa forma para as peladas de fim de semana, onde faz os gols que não fez como profissional e deixa de ser invisível por alguns momentos.


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CRÔNICA

ANTONIO CARLOS PIMENTEL JR.

A MENINA DA VACARIA

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idade Velha era casa do vô e da vó. Carlos de Carvalho, 692, entre Cesário Alvim e Osvaldo de Caldas Brito. Endereço da infância, tempo do nunca mais. A rua, de terra batida, ficava bem atrás do presídio com nome de santo. Os pequenos, irmãos, primos, amigos, não sabiam bem o que era aquele lugar. Por trás dos muros altos, ouviam-se gritos. Dava medo. Era voz de bicho que ecoava, feras, a gente imaginava, com nove, dez anos. Por quê? Das ventanas separadas do mundo por grossas barras de ferro saltavam grandes córneas, montadas umas nas outras. Não eram como os olhos da janela da frente da casa do Carne Velha, dono da vacaria da rua. Sim, tinha uma vacaria na Cidade Velha, ali na Carlos de Carvalho. Uma espécie de fazendinha, com duas ou três vacas leiteiras de fama. Tomávamos café com leite pasteurizado comprado de manhã cedinho, gelado, na mer-

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cearia da esquina, sempre alagada por causa do antigo igarapé. Sei lá se era leite das vacas do Carne Velha, apelido esquisito. Ninguém queria saber. Da vacaria, só a menina interessava. Todas as tardes, com chuva ou com sol, ela espalhava sorrisos. Diziam que era sobrinha ou neta do Carne Velha. Sorria com gosto, os cabelos negros escorridos, esvoaçantes, o olhar asiático. Fitava e sumia, como na brincadeira de esconde-esconde. Nome, idade, de onde veio, dela nada se soube - até que desapareceu para sempre. O tempo revelou algumas histórias. Que Osvaldo de Caldas Brito fora vítima de um tiro no calor das disputas políticas do baratismo, que os muros guardavam homens condenados, que mulheres de portas abertas, estrangeiras (Com que olhos?), vendiam amor no vizinho bairro da Campina e arredores. Muitos mistérios se renderam ao tempo. Menos o da menina, sombra, névoa, paisagem, hiato da memória eterna - a menina da vacaria.


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​REVISTA CIRCULAR Edição 8

ISSN

2526-4354 Site www.projetocircular.org

EXPEDIENTE EDIÇÃO: Luciana REVISÃO: Léa

Medeiros

Fernandes

DESIGN: Márcio

Alvarenga

CONSELHO EDITORIAL

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Adelaide Oliveira Makiko Akao

PUBLICAÇÃO DIGITAL:

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