3 minute read

Thiago Araújo

Next Article
Stephanie Gervais

Stephanie Gervais

Ferramenta para enterrar o mar

“Por que foi feito esse objeto? Mas para o que serve, digo-me, aquilo que os artistas produzem? Paul Valéry

Advertisement

O mundo artificial de coisas e os artefatos humanos, concentram não só utilidades, mas formas de fazer, viver e interagir com o mundo. Os objetos são como mediadores da nossa relação com o mundo, tanto podem condicionar, interferir, quanto transgredir a forma como compreendermos não só os objetos, mas o próprio mundo. O mundo, tal como o habitamos, é uma invenção humana artificial que se difere do mundo natural. Dessa invenção, provinda do pensamento e trabalho do Homo Faber, é que existe a possibilidade de vida humana da forma que a entendemos. Mas será que a entendemos ou apenas estamos habituados? Como interrogar o habitual, já nos dizia Georges Perec ao nos provocar a ver o infra-ordinário. “Nós vivemos, é claro, respiramos, é claro, nós caminhamos, nós abrimos portas, descemos escadas, sentamos em uma mesa para comer, deitamos em uma cama para dormir. Como? Onde? Quando? Por quê?”1 Mais que um método, filosofia poética para pensar o mundo, o escritor nos provoca a invenção de uma antropologia pessoal ou no mínimo, a partir dela, reinventa novas formas de estarmos no mundo. Talvez seja essa a maior das tarefas da arte da literatura. Reinventar uma pá é criar novas formas de uso, e com elas um manual de interferência naquilo que entendemos como realidade. Seguindo o Manual de Instruções de Julio Cortázar, ele nos convida à “tarefa de amolecer diariamente o tijolo, na tarefa de abrir caminho na massa pegajosa que se proclama mundo”.2 Isso se faz, observando e questionando a vida, reaprendendo entre outras, nas Instruções de como subir uma escada ou nas

58

Instruções de como dar corda ao relógio. É preciso reinventar a vida desafiando nossas certezas, nem que seja desaprendendo saberes, provocando novas experiências e com elas também uma consciência renovada do que chamamos de corpo. Foi o que o artista fez a partir da observação e experiência direta na paisagem da praia. Para o que serve um objeto impossível? Para reinventar o sentido. Uma interferência que está para além de sua utilidade ou impossibilidade funcional, coloca-se como uma crítica ao condicionamento humano. Ao criar Ferramenta para enterrar o mar, Thiago Araújo desenvolve uma ação artística paradoxal de enterrar o mar e nela invoca noções de limites e de infinitos, seja na resistência física do corpo ou na capacidade humana imaginária de compreender as extensões do mar, quanto na sua ligação entre rios e lagoas, na sua profundidade, volume e diversidade, como se existisse no interior do objeto uma geografia condensada. Ressalta nessa ação com o objeto na paisagem, o quanto este possui um devir humano, comprovando que todo o objeto possui em si uma capacidade, uma potência infinita, mas também o seu avesso, o esgotamento e o fracasso. O objeto reinventado passa a ser instrumento de análise e investigação do mundo em que, ao subverter a forma e a função, consegue explicar como é precária a estabilidade de tudo que acreditamos, como se a modificação de um simples objeto, tivesse a capacidade de fundar no mundo um espaço para as exceções, acasos ou improbabilidades. E foi o que aconteceu! O que se percebe é que nessa ligação acentuada entre arte e vida, criada pelo artista, a objetividade do mundo pôde ser questionada. Lá na paisagem, na mesma lagoa onde o artista executou a ação, aconteceu pouco tempo depois um súbito esvaziamento das águas através de um estranho fenômeno climático. Quem sabe a arte tenha mesmo a capacidade de criar antecipadamente um registro do futuro?

1 PEREC, Georges. L’infra-ordinaire. Paris: Éditions Seuil, 1989. 2 CORTÁZAR, Julio. Histórias de cronópios e de famas. Rio de Janeiro: BestBolso. 2013.

Helene Sacco

Thiago Araújo nasceu em São Paulo, SP, em 16 de fevereiro de 1985. Reside em Pelotas-RS. Sua prática artística não é pautada em uma préescolha de materiais e procedimentos específicos, essas decisões são feitas considerando diversos aspectos dentro de sua experiência criativa, levando em conta condições sociais e políticas do lugar do qual esteja imerso. Busca explorar várias mídias e linguagens artísticas para realizar seus trabalhos, que surgem de uma relação direta com o espaço, o lugar, como estrutura física e contextual.

Ferramenta para enterrar o mar, 2013 / técnica mista / dimensões variáveis 59 59

This article is from: