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Sheila Ortega
Manual de Sobrevivência
“Os objetos assim acariciados nascem realmente de uma luz íntima; chegam a um nível de realidade mais elevado que os objetos indiferentes, que os objetos definidos pela realidade geométrica. Propagam uma nova realidade de ser. Assumem não somente o seu lugar numa ordem, mas uma comunhão de ordem. Entre um objeto e outro, no aposento, os cuidados domésticos tecem vínculos que unem um passado muito antigo ao dia novo. A arrumadeira desperta os móveis adormecidos.” Gaston Bachelard, A Poética do espaço, 2008, p. 80
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52 Manual de sobrevivência é uma série de trabalhos que aqui apresento como desenvolvimento de um pensamento sustentado no conceito de natureza-morta e estudo da composição na tradição da pintura. O desdobramento que dela advém, busca refletir sobre o espaço que os objetos ocupam no mundo, tanto do ponto de vista da arquitetura e espacialidade (seu caráter material), quanto da subjetividade, memória e tempo (imaterial). Com este trabalho busco discutir como nos apropriamos das coisas do mundo, trazendo à tona seus vários sentidos, revelando possibilidades de manipulação e combinações. As relações entre os elementos que constituem os trabalhos se dão por meio de dois vieses: primeiramente a construção de um cenário afetivo1 entre os elementos; segundo, sua construção com objetos que não pertencem ao mesmo leque de utilidades ou ambientes. Como se pode observar na série Ao alcance da mão, a construção da composição é constituída por uma coleção de objetos: móveis, utensílios domésticos e ferramentas, somados à presença de comida, tais como frutas e legumes que estão embalados com filme de PVC. Para a instalação Pequenos cúmulos foi criada uma regra compositiva: todos os elementos devem estar necessariamente equilibrados uns sobre os outros. Desenvolve-se aqui, a construção e reconstrução do espaço até o momento em que o estudo da justaposição das partes se organiza e se estrutura por sua própria natureza material. Tal pesquisa-ação gerou a série de vídeos Habitações, para os quais convido pessoas a participarem do processo na medida em que oferecem espaços de suas residências, escolhem o ambiente e os elementos (de constituição orgânica ou não) que farão parte da composição do trabalho, o qual é registrado em vídeo. Consequentemente, os trabalhos constituem-se como testemunhos e registros residuais de ações geradas a partir da manipulação das coisas do mundo, visto que muitas vezes uma fração do ambiente doméstico é deslocada de sua situação original para adquirir um novo significado – poético. Com isso, ações simples se transformam em operações repetidas e circunstâncias são desenvolvidas a partir do manuseio
e envolvimento com o objeto em seus múltiplos sentidos. Sobressai a ideia de colecionar o que não se coleciona - a memória do acúmulo. É diante dessas considerações que se abrem as perguntas: Por que nos afeiçoamos às coisas? Por que guardamos objetos e os acumulamos? Quais sentidos os objetos nos reservam? Por que guardamos tanta memória em forma de objetos? Quais são as memórias que dispomos para compor nossos “manuais de sobrevivências”?
1 Cenário afetivo é tudo aquilo que compõe cada espaço; os objetos, utensílios, ferramentas, roupas, instrumentos, brinquedos, etc. São todos os elementos que carregam memória, dizem da afetividade, lembranças e histórias, sentidos dados a eles por uma pessoa.
Pequenos Cúmulos #2 (da série Ao alcance da mão), 2013 / mármore, ferro, alumínio, cerâmica, vidro, madeira, tecido, sisal, plástico, filme de PVC, frutas e legumes / aproximadamente 3,0m x 4,0m x 3,50m
Sheila Ortega (São Paulo, 1980) é graduada em Artes Plásticas (I.A. – UNESP) e Mestre em Artes Visuais (I.A. – UNESP). Desenvolve sua pesquisa poética a partir da escolha, organização e transformação de materiais presentes no cotidiano. Interessa-se pelo espaço, pela memória e pelo tempo. Participou de exposições individuais e coletivas em São Paulo e outros estados. Atualmente é docente dos cursos de Licenciatura em Educação Artística e Tecnólogos em Design Gráfico e Design de Interiores do Centro Universitário Metropolitano de São Paulo (2005-2014). Desenvolve um trabalho de integração de linguagens artísticas na Escola Municipal de Iniciação Artística / EMIA - Secretaria Municipal da Cultura de São Paulo (2007-2014). Vive e trabalha em São Paulo.
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