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Bruno Osório
Já faz um tempo que eu e o Bruno somos amigos. Tempo suficiente para ele dizer que eu sou chato, que não entendo ou não gosto ou fico azucrinando com uma porção de coisas. Inclusive quando o assunto das nossas discussões é arte contemporânea. Por isso, o convite do Bruno para que eu escrevesse o texto de apresentação dos dois primeiros trabalhos que ele expõe no Rio, além de ser uma honra para mim, diz muito sobre o artista que você vai conhecer. O Bruno não gosta do fácil, não está atrás de elogio, não busca atalho. Ele prefere o risco, a dúvida, o enfrentamento. Tanto que me fez o convite sem nunca ter me mostrado um trabalho da produção dele desde que voltou de Londres, onde cursou Fine Arts na Saint Martins. Tirando duas telas que ele pintou lá, e uma escultura (ou instalação?), não me mostrou mais nada. Quer dizer, e se agora eu não gostasse? E se o trabalho do Bruno, vá lá, essas coisas acontecem, não fizessem o menor sentido para mim? Mas ufa: quando vi pela primeira vez “Delay” e “4am”, foi uma mistura de emoção e de alívio. A emoção: porra, olha o que o Bruno tá fazendo. O alívio: não vou precisar medir palavras, usar eufemismos para falar o que eu penso. O que senti. Comecemos pelo vídeo “Delay, que me tocou bastante. As múltiplas imagens do próprio Bruno buscando-se e fugindo, uma indo atrás da outra sem descanso, poderiam falar da angústia pessoal do jovem artista (e, por que não, de todos os artistas), da busca da autoria, do caminho, da obra. Esse encontro-desencontro, esse tentar enxergar-se na produção. O problema é que “Delay” é muito maior. É das angústias do Bruno, mas é
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de todos nós. É a lembrança da falácia que é a ideia de identidade, de ser uma pessoa única, de ser o mesmo Bruno ou Reginaldo ontem, hoje, anteontem, amanhã, em todos os grupos e ocasiões. Portanto é também a lembrança da angústia que é perceber (consciente ou inconscientemente) que eu não sou. Eu somos. Eu fujo de mim, eu corro atrás de mim, num sísifo psíquico das nossas certezas e dúvidas e medos a respeito de nós mesmos, coisas que escondemos diariamente embaixo do tapete da consciência. Ser o que sou agora, o que quero ser, o que fui, ou o que o outro espera/deseja que eu seja? Não é fácil. E por isso, “Delay” incomoda e acalma. Incomoda porque lembra que a paz de espírito, o desejo de ser uno, a possibilidade de se autoconhecer é ficção. Me conheço hoje, já não me reconheço amanhã. Mas “Delay também acalma porque nos lembra ou avisa: ei, a coisa é assim mesmo. Lida com isso, rapaz. Vamos em frente. E vamos em frente e assistimos 4am. Ao assistir “4am” é importante saber de uma coisa: o primeiro endereço carioca do Bruno ficava em São Conrado. Aos pés da Rocinha. O que fez dele testemunha auricular da tomada da favela, da invasão pacificadora, chame como quiser as ações ocorridas em novembro de 2011 para instalação da UPP naquele morro. Preste atenção nesse detalhe: testemunha auricular. É que nessa madrugada o Bruno e muitos moradores do Rio – imagino que inclusive da Rocinha – viveram numa corda bamba entre o real e a representação, entre o próximo e o distante. As imagens quase abstratas e pacíficas das câmeras dos canais de notícias cobrindo os preparativos da ação eram invadidas pela violência do som dos helicópteros militares, que anunciavam uma sensação de guerra. E Bruno, ao retirar o áudio da TV e optar pelo som das ruas naquela madrugada, fundiu as duas experiências, a do confortável distanciamento da realidade mediada pela TV, que torna Rocinha e Bagdá equidistantes de nós, com o incômodo da proximidade quase epidérmica com o real. A lembrança de que se está no mundo. O ao-vivo versus o vivo, o em-tempo-real versus o real. De certo modo, o vídeo antecipa uma sensação que seria a de todos os brasileiros dois anos depois, durante as manifestações de junho e julho de 2013, quando as imagens distanciadas e apaziguadas dos protestos em todos os canais de TV disputavam nossa atenção e nosso medo com as hélices, as sirenes, que nos alertavam de que fazíamos de certo modo, ou de qualquer jeito, parte do que acontecia. Em um sentido mais amplo, faz pensar que a gente sabe que há assaltos, a gente sabe que há acidentes, que há tragédias. Mas é tudo narração, é tudo história contada, até o momento em que a vida nos dá um tapa na cara. E nos tira da condição de espectador, de plateia do dia a dia. Num mundo de relações tão mediadas, em que mais se consome a realidade do que se vive, “4am” parece resumir essa tensão que vivemos. Mas que na maior parte do tempo não sentimos. Talvez porque não passe na TV.
Reginaldo Pujol Filho
Bruno Osório nasceu em Porto Alegre em 1979. Vive e trabalha no Rio de Janeiro.
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