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Vozes do Arquipélago: Um Olhar Histórico sobre a Poesia Açoriana
de Almeida
(aula dada pela poeta Ângela de Almeida nos cursos de língua e cultura portuguesas na Universidade do Estado da Califórnia em Fresno, em março de 2024)
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A poesia açoriana pode ser analisada a três níveis que são o espaço natural onde vivemos, feito de «terra-líquida» e «marsólido», essa dualidade que nos enforma em cada instante, a par de toda a natureza e que constitui uma energia psíquica ou um universo subtextual que povoa toda e qualquer escrita insular. Num segundo nível, as condicionantes da insularidade, ou seja, até que ponto a ilha e o mar ampliam ou reduzem o nosso sentimento de liberdade, até que ponto condicionam também a nossa sociabilidade, uma vez que o isolamento tem sido, ao longo dos séculos, um tema recorrente em alguns autores- veja-se, a título de exemplo, Roberto de Mesquita.? Num terceiro nível, a interação entre o mundo e o espaço ilhéu, através das viagens, dos livros que foram chegando, mesmo quando ainda não havia imprensa nos Açores, dos meios de comunicação sociala imprensa chegou às ilhas no século XIX-, da vinda de outros povos para as ilhas, enriquecendo sobremaneira o nosso mundo interior e poético. Por exemplo, apesar de ser insular e viver numa ilha, escrevo imenso sobre o estado do mundo, surgindo o mundo natural e, sobretudo o mar, como lugar de regeneração vital.
Os três níveis, acima mencionados, são importantes para percebermos a evolução da poesia nos Açores, ao longo dos séculos. Nos séculos XVI e XVII, é escasso o registo de poesia nas ilhas, o que é compreensível, uma vez que o povoamento teve início a meio do século XV. Deste modo, quem encontramos , no século XVI, é Gaspar Frutuoso , que se destacou não como poeta, mas sim como historiador indispensável dos Açores, conhecido pelos volumes de Saudades da Terra
Quanto ao século XVII, existem duas referências: Catarina de Cristo e D. Fradique da Câmara e Toledo. Quanto à primeira, não obstante as inúmeras referências em algumas enciclopédias e monografias, a verdade é que não foi possível encontrar algum poema sequer. Chamava-se Catarina Bettencourt e foi freira no Convento de S. Gonçalo em Angra do Heroísmo, tendo passado a usar o nome de Catarina de Cristo. Quanto a D. Fradique da Câmara e Toledo, a sua poesia é de menor qualidade, todavia distinguiu-se, entre outros, pela tradução de tradução dos seis primeiros livros da Eneida, de Virgílio. Antes de avançarmos, convém referir que ,até à chegada da imprensa nos Açores em 1830, muitas obras literárias ficaram perdidas. Por outro lado, no que diz respeito às mulheres, muitas vezes enviadas pela família para os conventos, estavam, como sabemos, entregues ao ostracismo. Deste modo, quase sempre , os poemas, de autoria feminina, eram destruídos. Outras vezes, conforme sabemos, e falando já das publicações na imprensa , a partir de 1830. assinavam com nomes masculinos. Neste século, e também no início do século XX, para se protegerem, algumas poetisas publicavam em almanaques , fora dos Açores. Outras, mais afoitas, viam a sua poesia acolhida em almanaques açorianos que abriam as portas à poesia de autoria feminina.
No século XVIII, e apesar de ainda não haver imprensa-o que levou à perda irreparável de imensos poemas, conforme se lê nos relatos da época -, graças ao empreendimento pessoal dos poetas, também auxiliado pelos valiosos livros que chegavam nos navios e por outros tantos que se liam nos conventos e que lhes chegavam através dos frades que davam aulas particulares – a escola pública só chegou aos Açores por volta de 1850 -, houve poetas que se notabilizaram pela qualidade surpreendente da sua poesia – a que não se perdeu, graças á dedicação dos jornais e dos críticos no século seguinte. Importa afirmar, a propósito destes e também de toda a poesia do século XIX e até do início do século XX, prevaleciam o soneto e as odes, notando-se uma leitura bastante consistente dos clássicos, de Camões e, já no século XIX e depois deste, de Antero de Quental. Devo ainda acrescentar que os sonetos são maioritariamente uma revelação e distinguem-se muito das outras formas (de menor qualidade). Apenas na ilha do Faial, D. Frei Alexandre da Sagrada Família, Francisco Vieira Goulart, João Pereira de la Cerda, Manuel Inácio de Sousa e Vitaliano Brum da Silveira são poetas de primeira linha na História da Poesia Açoriana. Juntamse a eles Francisca Cordélia de Sousa, embora não possuamos qualquer registo de um único poema, todavia as referências ao seu talento literário são muitas e unânimes. Era filha do conceituado poeta Manuel Inácio de Sousa, de quem deixamos aqui um belíssimo soneto, inserido na edição crítica que oinvestigador Francisco Topa dedicou ao poeta:
Vem ver-me, amado bem, neste retiro, Onde rios de lágrimas derramo; Ouvirás o som triste com que clamo, Quando o teu doce nome aqui profiro.
Vem ver-me como aflito aqui suspiro
Nos transportes d´amor em que m´inflamo;
C´o som da roca voz com que te chamo, Verás soltar-se o pranto em largo giro.
Vem ver-me; e quando vires a mudança
De meu rosto, já triste e macilento, Talvez que abrandes mais a tua esquivança;
Mas se tiveres dó do meu lamento, Com um suspiro teu e uma lembrança, Então farás ditoso o meu tormento.
Ainda no século XVIII, três outros poetas de excelência: ManuelAntónio de Vasconcelos, que publicou belíssimas odes e foi fundador do Jornal Açoriano Oriental, José Jácome Raposo e Bento Luís Viana, ambos naturais de Ribeira Grande, João Cabral de Melo Neto e João Miguel Coelho Borges, ambos da ilha Terceira. Quanto a Bento Luís Viana, os seus ideais liberais leram-no ao exílio em Paris, onde cursou Medicina e publicou alguma poesia. No que diz respeito a João Cabral de Melo Neto, estudou na Universidade de Coimbra. Apesar de quase toda a sua obra poética se ter extraviado, é possível ler sonetos de sua autoria nos Anais da Ilha Terceira e em algumas publicações periódicas.
O século XIX chegaria para a poesia açoriana com o prenúncio da imprensa e da escola pública: ambas viriam a desempenhar um papel central na vida literária, que também será enriquecida com a abertura das primeiras bibliotecas públicas em Angra, Ponta Delgada e Horta. Deste modo, o século XIX , também avivado pelo Liberalismo, abrir-se -á às tertúlias literárias, ao teatro, a uma vida cultural e a um contributo inestimável dos jornais e das revistas que então foram fundados e aos quais devemos uma divulgação ímpar da poesia nos Açores. Não é pois por acaso que o número de poetas aumenta substancialmente. Não apenas Antero de Quental (S. Miguel), Roberto de Mesquita (ilha das Flores), Carlos de Mesquita (ilha das Flores), Espínola de Mendonça, Teófilo Braga, Armando Cortes-Rodrigues, Raposo de Oliveira, Duarte de Viveiros, Rebelo de Bettencourt (S. Miguel), Fernando de Sousa, Osório Goulart, Miguel Street Arriaga, Manuel de Arriaga, Manuel Joaquim Dias(Horta), João de Matos Bettencourt (S. Jorge), Manuel António Lino, José Augusto Cabral de Melo, Ângelo Ribeiro (Terceira), Manuel Bernardo Maciel (Pico), Garcia Monteiro, Ernesto Rebelo (Faial), entre outros, mas também as mulheres que escrevem poesia, aquelas que têm a coragem de assinar o seu nome: Maria Adelina da Costa Nunes , Maria Alice Goulart, Maria Cristina Arriaga, Ema Noía de Medeiros.
Hermenegilda Lacerda(Horta), Filomena
Serpa, Mariana Belmira de Andrade, Maria Xavier Pinheiro (S. Jorge), Alice Moderno, Isabel Câmara Quental, Maria das Mercês do Canto Cardoso (S. Miguel), Amélia Ernestina d´Avelar (Pico), Helena Graça Rodrigues (Graciosa),Maria Palmira dos Santos Jorge (Corvo), Maria Guilhermina de Bettencourt Mesquita(Terceira), honraram a poesia e a Literatura . Deixo aqui, em jeito de homenagem a todas e a cada uma, um belíssimo soneto de Alice Goulart , que nasceu na cidade da Horta, em 1864, e publicou dois livros de poesia, tendo também publicado em alguns jornais e almanaques:
Quadros
É plena madrugada. A meiga Aurora
De rubra e nívea côr o céu colora: Doirada e branda nuvem passa e chora Límpidas gotas, que a florinha adora.
Desdobra as alvas folhas da campina
O débil lírio, que gentil se inclina:
E lá no império brilha a matutina, Argêntea estrela, celestial, divina.
Na selva trinam os febris cantores:
O oriente tem mais vivas côres: E espira a rosa virginais odores.
Enquanto d´entre as côres do arrebo, Carmim e oiro e prata, qual farol, Surge o radiante o luminoso sol! (in Reflexos d´alma,p. 45)
E o século XX traz-nos poetas de referência, que graças ao aumento das editoras e à dinâmica da imprensa, até metade do século, além dos círculos literários que se formam e do destaque que a poesia merece quer em jornais quer em revistas, chegam até nós com a sua obra poética completa , pelo menos quase todos. Adelaide Sodré, Vitorino Nemésio, Emanuel Félix, Marcolino Candeias, Mário Cabral, Maduro Dias, Álamo Oliveira, Santos Barros, Ivone Xinita, Borges Martins, Rui Duarte Rodrigues(Terceira), Alfred Lewis, Pedro da Silveira (Flores), Eduíno de Jesus, Virgílio de Oliveira, Jacinto Soares de Albergaria, Natália Correia , Madalena Férin, Luís Francisco Bicudo, Adelaide Freitas, Carlos Wallenstein, Daniel de Sá(S. Miguel), Luiza de Mesquita, Oltília Fraião , Mário Machado Fraião, (Horta), Almeida Firmino, José Martins Garcia (Pico) , Norberto Ávila, Carlos Faria(S. Jorge), Frank Gaspar, José Luís da Silva (Califórnia)são alguns dos nomes que deixaram um legado muito importante de poesia. E há os poetas de ligação entre os dois séculos-XX e XXI, como sejam , entre outros, Eduíno de Jesus, Emanuel Jorge Botelho, Renata Botelho (S. Miguel), Eduardo Bettencourt Pinto (residente em Vancouver), Frank Gaspar, José Luís da Silva (residentes na Califórnia), Leocádia Regalo (residente em Coimbra), Henrique Levy, Urbano Bettencourt, Ângela de Almeida, (residentes em Ponta Delgada), Álamo Oliveira, Carlos Bessa, Luisa Ribeiro (Terceira), Daniel Gonçalves (residente em Santa Maria), Vasco Pereira da Costa (residente em Coimbra).
Não podemos também esquecer o papel fundamental que os suplementos literários desempenharam e têm desempenhado nos jornais, a partir da década de sessenta, nomeadamente , como tem acontecido também com a página literária «Maré Cheia», do jornal Tribuna Portuguesa, coordenado pelo Professor Doutor Diniz Borges, e recentemente, a revista
Filamentos, também com a sua coordenação. A revista Filamentos, os webinars, as entrevistas e as conferências desempenham um papel fundamental na agregação de uma Poesia Insular Açoriana que o mar não separa nem dissolve, antes, amplia e torna perene.
A concluir, um poema do grande e inesquecível poeta Emanuel Félix:
FIVE OCLOCK TEAR
Coisa tão triste aqui esta mulher com seus dedos pousados no deserto dos joelhos com seus olhos voando devagar sobre a mesa para pousar no talher
Coisa mais triste o seu vaivém macio pra não amachucar uma invisível flora que cresce na penumbra dos velhos corredores desta casa onde mora
Que triste o seu entrar de novo nesta sala que triste a sua chávena e o gesto de pegá-la
E que triste e que triste a cadeira amarela de onde se ergue um sossego um sossego infinito que é apenas de vê-la e por isso esquisito
E que tristes de súbito os seus pés nos sapatos seus seios seus cabelos o seu corpo inclinado o álbum a mesinha as manchas dos retratos
E que infinitamente triste triste o selo do silêncio do silêncio colado ao papel das paredes da sala digo cela em que comigo a vedes
Mas que infinitamente ainda mais triste triste a chávena pousada e o olhar confortando uma flor já esquecida do sol do ar lá de fora (da vida) numa jarra parada (In A Palavra O Açoite)
Ângela de Almeida, poeta, investigadora e ensaísta. Nasceu em 1959 na cidade da Horta e vive na cidade de Ponta Delgada, exercendo investigação científica na
Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada, onde está a concluir uma antologia de poesia de autores açorianos, dos séculos XVI a XX. Nasceu na cidade da Horta, onde viveu até aos 16 anos. Depois, foi para Lisboa estudar: é doutorada em Literatura Portuguesa e defendeu uma tese sobre a poesia de Natália Correia. Como ensaísta e poeta tem vários livros publicados, destacando os de poesia: sobre o rosto (1989 e 1994), manifesto (2005), a oriente (2006), caligrafia dos pássaros (2018), a janela de Matisse (2024). Também publicou dois livros de viagem e uma narrativa poética. Enquanto poeta, interessa-lhe a contemplação da palavra e a sua transfiguração no plano do imaginário, criando uma rêverie, lugar de utopia, por oposição ao mundo distópico onde vive a maior parte da humanidade. É uma honra imensa ver o meu livro Caligrafia dos Pássaros/Caligraphy of the Birds traduzido pelo Professor Doutor Diniz Borges, também autor da antologia de poesia açoriana, Into the Azorean Sea

