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paticumbum
Aluísio MAChAdo, sAMBisTA de FATo, reBelde Por direiTo
Quem vê de longe o seu Alcides Aluísio Machado, o sambista de fato imperiano nascido há quase 80 anos à beira do Rio Paraíba do sul, lá em Campos, não logra imaginar o quanto de arte e fabulação habita aquele personagem. A figura franzina, de expressão ora maliciosa, ora entediada, que se move sempre de um “jeito teatralmente correto”, conforme retratou com raro engenho seu compadre Nei Lopes, guarda na bagagem um currículo que raros artistas do século XXi sonham em exibir.
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Por: luiz ricardo leitão mente por conta de uma aventura com uma formosa paulistana, que resultou em enorme dor de cabeça para o libidinoso Aluísio. vale a pena relembrar o causo... tudo começou no concorrido baile do “som de Cristal”, que o campista com manha de carioca quis conhecer para espairecer um pouco – e só terminou na manhã seguinte, com um desfecho digno de comédia pastelão. Ao final do arrasta-pé, o casal foi para o quartinho onde a moça, empregada em um casarão de sampa, se alojava. A madrugada prometia, mas um vizinho xereta flagrou a visita “indesejada” e avisou o dono da casa, um Juiz de Menor em são Paulo – que, obviamente, expulsou os dois pombinhos do ninho...
Para início de conversa, com menos de 18 anos o então aprendiz de estofador iniciou-se na dança com a Companhia de solano trindade, o saudoso ator, poeta e dramaturgo pernambucano. solano, nos anos 50, dirigia o teatro Popular Brasileiro (tPB), difundindo os ritmos do folclore brasileiro ao lado de sua companheira Margarida trindade e do sociólogo Édison Carneiro – e foi com ele que o moleque pé de valsa pôde desenvolver seus dotes de dançarino.
Quem vê o mestre-sala de perto durante suas entradas literalmente coreográficas em cena, logo se dá conta de que, assim como o samba, a dança sempre foi uma paixão avassaladora de Aluísio. Nas aulas ministradas no tPB, ele pôde travar contato com os ritmos mais expressivos da cultura popular brasileira, sobretudo aqueles de forte tradição no Nordeste, terra natal de solano. E, assim, conheceu a fundo uma infinita gama de sons e coreografias, como o bumba-meu-boi, o frevo, o maracatu, o coco, o jongo e o candomblé.
Não fossem as inesperadas presepadas em que o próprio sambista se enredava, ainda bem jovem, seu aprendizado teria sido concluído nos palcos africanos e europeus, onde o grupo de solano, ao final da década de 50, se exibiu em grande estilo. Que o diga a temporada em são Paulo com a companhia, abreviada brusca-
O Brasil e o mundo perderam um dançarino, mas o império serrano e o samba ganharam um de seus maiores compositores. O “vestibular” do calouro se deu enquanto ele prestava serviço militar em um quartel de Campinho. O recruta serelepe arrumava um jeito de driblar a marcação do oficial para não perder os pagodes que os mestres organizavam, como os célebres piqueniques em Paquetá, que o seu império serrano, a Aprendizes de Lucas e a turma do quitandeiro-sambista samuel realizavam uma vez por ano. tempos românticos do samba... Às sete horas da matina, a barca já saía da Praça Xv lotada de bambas, que não paravam de cantar e jogar o “samba duro”, tratando de esquivar-se da pernada que o outro lhe pretendia desferir. Acompanhando a ruidosa caravana, havia ainda um conjunto de baile, que dividia os passageiros em dois grupos: quem gostava de samba ficava de um lado da embarcação; já quem não gostava... Embalados pelo suave balanço das ondas, os músicos seguiam tocando do Rio até Paquetá, onde, ao desembarcar, a turma ia a pé até a Praia da Moreninha, com os instrumentos a todo vapor.
SambiSta De fato, rebelDe por Direito
Cumprido a “quarentena” na caserna, o samba mandou chamá-lo e ele estava pronto para assumir sua missão, mesmo sem vislumbrar àquela época qual seria a trilha mais indicada a tomar. Aos 19 anos, o recruta da batucada apanhava o ônibus 638 (Marechal Hermes – Saens Peña) em Madureira, dava a volta ao mundo pela Zona Norte e descia no ponto final, na Rua General Roca, na Tijuca, para subir o salgueiro, onde dançava de mestre-sala no ensaio de mestre Calça Larga e flertava com as cabrochas de alta linha.
Um compromisso mais sério, porém, logo se sobrepôs. Aluísio enrabichou-se por uma jovem cor de jambo que conheceu no trem, sem saber que a tal Matilde era dama de companhia de Alzira vargas do Amaral Peixoto, a filha de Getúlio Vargas, casada com outra figura de peso na política nacional, o cacique fluminense Ernâni do Amaral Peixoto. sem dinheiro sequer para o aluguel de uma meia água onde pudesse viver com a futura esposa, o destemido campista não pestanejou e disse sim ao padre. se o casamento não durou quase nada, o presente que a madrinha Alzira pediu ao marido Ernâni foi uma dádiva terrena: um emprego no serviço público, algo que raros sambistas puderam ter na vida.
A partir daí, a carreira do recruta decolou. Ao final dos anos 60 e início dos 70, ele cantava na Churrascaria Belvedere do Méier, no teatro Opinião e em outras casas da Zona sul, entre elas as boates sucata, Degrau, Colt 45 e Cassino Royale. Além disso, Aluísio era atração constante da feijoada do clube Helênico, no Catumbi. E, claro, marcava sempre presença na “Casa de Bamba” da vila isabel, cujo Ala de Compositores o imperiano rebelde integrou depois de se recusar a “bater ponto” nas reuniões da verde e branca da serrinha. Essa veia libertária se tornaria deveras perigosa depois que ele assumiu tons bem “vermelhos” em suas composições. Odiado nos anos 70 pelos militares, a quem seus versos soavam como uma ‘heresia’, o rebelde por direito desconversava, dizendo, com boa dose de picardia, que seu partido era apenas o glorioso partido-alto. Na verdade, desde os tempos da “Noitada de samba” do teatro Opinião, ele tornou-se um cronista da história moderna do Brasil, cantando em seus sambas os “anos de chumbo”, a ambígua “abertura”, o fim da ditadura e a luta pela democracia plena em meio à onda neoliberal nos anos 90.
Para quem desconhece essa faceta de Aluísio, vale a pena conferir uma estrofe do samba “A Humanidade”, mais aguda e didática que muito ensaio sociológico da academia:

Quem tem muito quer ter mais
Quem não tem resta sonhar
Quem não estudou é escravo
De quem pode estudar
Os direitos humanos são iguais
Mas existem as classes sociais
Como diria mestre Nei Lopes, “quem é que disse que a vanguarda do protesto na música popular brasileira foi do rock’n roll?” A aura de subversivo tornou-se ainda mais lendária depois que um soldado, sambista da Portela, o viu entrar no quartel do DOi-CODi, na tijuca (aonde fora tratar de temas do serviço público), mas não o viu sair.
Pronto! Lá em Madureira, o boato de que os militares tinham grampeado Aluísio subiu e desceu os morros, sem que o marrento cidadão fizesse a menor questão de desmentir a prisão.
Do bumbum para o munDo
Já nos tempos da “distensão lenta e gradual”, na virada dos anos 80, os ares ficaram mais leves para o compositor. Em 1981, no histórico LP Na fonte, Beth Carvalho inclui “Escasseia”, música sua em parceria com Beto sem Braço e Zé do Maranhão; e nesse mesmo ano, Alcione registra “Minha filosofia”. Em 1982, Aluísio e Beto despontam para o Brasil e o mundo com a onomatopeia mais famosa dos sambas de enredo (“Bumbum Paticumbum Prugurundum”), denunciando o abandono da gente bamba, engolida pela hipertrofia visual e o gigantismo voraz das agremiações. Entre o lírico e o épico, os versos finais da canção são a súmula do “hino” que até hoje ecoa em nossa memória musical:
Superescolas de Samba S/A
Superalegorias
Escondendo gente bamba
Que covardia!
Após faturar o primeiro dos seis Estandartes de Ouro da carreira, ele seguiu arrepiando corações e mentes com sucessos como “Eu Quero” (1986), que vocalizava as esperanças populares após 21 anos de ditadura. E em 1996, emplacou, em parceria com Arlindo Cruz & Cia (Beto sem Braço falecera três anos antes), outro canto de lírica rebeldia – “E verás que um filho teu não foge à luta” –, samba dedicado ao guerreiro Betinho, “o irmão do Henfil”, cujo refrão marcou época na avenida:
Eu me embalei pra te embalar No balancê, balancear Vem na folia Chegou a hora de mudar O meu Império vem cobrar democracia
Mesmo declarando que não tinha filosofia ou ideologia e que tampouco pensava em “desafiar a política ao compor um samba”, Aluísio sabia que um gênero musical tão genuíno era um “espaço democrático para o registro dos costumes do povo”, conforme ele próprio expressou ao Museu do samba há alguns anos. Eleito Cidadão samba 2014, após uma acirrada disputa com bambas do naipe de Monarco e Nélson sargento, o sambista de fato continua a postos, sob a guarda de um anjo torto, o olhar cúmplice dos orixás e o sorriso carinhoso das musas.
sem dúvida, seu Alcides é mais um baluarte do nosso samba. Do alto dos seus quase 80 anos, ele nos prova que, mesmo bombardeada pelo pastiche sertanejo da mídia e outros gêneros da sociedade de consumo, a boa e velha batucada resiste. Para os mais pessimistas, vale lembrar que “o santo que faz milagre também castiga”; e tudo que dá em abundância, inclusive as pragas mais nefastas – desde o som pasteurizado desta era dita biocibernética até o pau de selfie –, um dia escasseia. Evoé, Aluísio!