Jornal Plástico Bolha #29

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plástico bolha

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Distribuição Gratuita

Ano 6° - Número 29

é involuntário uma grande nuvem rosa roça a testa do cristo redentor neste exato instante agora a revolução sutil silenciosa que jamais se pôde supor Dado Amaral

www.angeloabu.com.br

DESTAQUES Entrevista com Zélia Duncan, por Aline Miranda Luisa Noronha investiga Rousseau na coluna Puzzles Coluna Oráculo, com texto de Antonio Mattoso sobre Adriana Partimpim Eduardo Lacerda e os hinos das torcidas de futebol na coluna Por dentro do tom Poemas de Roberto Corrêa dos Santos, Fred Coelho, Andityas Soares de Moura, Flávia Iriarte, Dênis Rubra, Ismar Tirelli Neto, Ana Salek, Marina V. Medeiros, Victor Heringer, Tiago Rattes de Andrade, Carolina Sims, Domingos Guimaraens & Isabel Wilker Textos de Carlos Eduardo Varella Pinheiro Motta, Ivan Cunha, Chiara di Axox, Miguel Del Castillo & Dimitri Rebello


BOLHETIM EDITORIAL

Plástico Bolha: O Livro

bobinas de plástico bolha obtidas do processo de extrusão do polietileno utilizadas nos produtos que necessitam de proteção contra impactos, riscos e rupturas, com propriedades de resistência a choques, umidade, poeira e vapores; isolante térmico; não poluente e reutilizável, inodoro, atóxico, reciclável com transparência de 75%, consolidam sua aplicação em diversos segmentos, de embalagens a poesias

Em novembro de 2010, foi lançada pela Editora Oito e meio a Antologia de prosa Plástico Bolha, uma cuidadosa seleção de 35 textos representativos dos primeiros cinco anos do jornal. Um livro reunindo o melhor da nossa prosa, entre contos, minicontos e prosas poéticas, nos quais o leitor poderá conferir, também, algumas das tendências que se apresentam na literatura contemporânea brasileira deste início de século. Com 112 páginas, orelha de Marília Rothier e prefácio de Pina Coco, a Antologia se encontra à venda nas melhores livrarias ou pelo site da editora: https://editoraoitoemeio.wordpress.com.

Heinz Langer

Os autores da Antologia de prosa Plástico Bolha:

Caixa Postal Caros, Quero agradecer o prestígio da publicação no Blog do Bolha e não posso deixar de parabenizar o jornal e o site de vocês. Vejo esse trabalho como peça-chave de consolidação cultural, uma consolidação livre que circunda os infinitos limites da internet — seja pelo livre acesso dos escritores ao jornal, seja pelo livre acesso dos leitores ao jornal (que é gratuito). Vejo que ele vem crescendo e, de fato, por ter sido prestigiado, me vejo instigado a continuar a escrever e a construir o meu olhar e desenvolver a minha poética, que não é minha mas reflexo do meio e tecido social de que faço parte. O jornal, então, por consolidar essa poética em si, contribui para desenhar um cenário, que é identidade cultural e que, na sua construção e forma, ganha unidade cultural, dentro da pluralidade que é o Rio de Janeiro. Obrigado. Em breve disponibilizo outros escritos. Ricardo Fernandes

Adriano Espínola, Alice Sant´Anna, Augusto de Guimaraens Cavalcanti, Camila Justino, Carlos Andreas, Carlos Santana Jr., Chiara de Axox, Constanza de Córdova, Domingos Guimaraens, Fábio Reis Vianna, Greco Blue, Gregorio Duvivier, Henrique Meirelles, Isabel Diegues, Isabel Wilker, João Francisco da Costa Ribeiro, Laila Melchior, Leonardo Vieira de Almeida, Léo Torres, Lucas Viriato de Medeiros, Luciano Prado da Silva, Marcela Sperandio Rosa, Marcelo dos Santos, Marilena Moraes, Miguel Del Castillo, Paola Ghetti, Paulo Vitor Grossi, Raïssa Degoes, Rodrigo N.C., Tatiana Salem Levy, Tiago Maviero, Yuri Amorim.

ENVIE SEUS TEXTOS PARA textos@jornalplasticobolha.com.br

EDIçÃo Lucas Viriato Conselho Editorial Alice Sant`Anna | Gabriel Matos | Marilena Moraes DIAGRAMAÇão Mariana Castro Dias Revisão Gabriel Matos | Marilena Moraes | Rafael Anselmé Equipe Beatriz Pedras | Fernando Fernandes | Gisele Lemos webdesign Henrique Silveira Em memória da professora Claudia Castro. Edição Março/Abril de 2011 DISTRIBUÍDO no estado do Rio de Janeiro e nas cidades de Belo Horizonte, Vitória, Brasília, Salvador, Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre. TIRAGEM 13.000 | IMPRESSO na ZM Notícias

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o jornal da geração pós-contemporânea


Poetizando Tragos

Poema zero

segredo

Cama:

Entre o cálculo perfeito e a concretude áspera do cimento e dos tijolos

Carrego comigo um segredo maior que o mundo, Mudo, amassado e perfeito, Meu segredo em silêncio Eu carrego comigo.

eu, você, o Marlboro light em box, as cinzas no cinzeiro seguindo a harmonia do nosso suor. fumo a vida com você até o ultimo trago. Dênis Rubra

a nossa mais completa ignorância de que a qualquer momento este mundo pode desabar sobre nós e seus limites de asfalto e céu de cal planejados pela ciência do homem sempre aquém do movimento das placas que sob o magma colidem sem pulsão, sem função, por acaso por descaso por tudo que há

Acaso Antes era um livro fechado Um telefone desligado Agora é vento na árvore Varrendo toda a ilusão Dos olhos acostumados

de amparado por essa ilusão falível mas suficiente que sustenta os prédios que aterra os mares que domestica átomos que esvazia os cemitérios

É poema perdido, Lançado ao mar Como a tarrafa Que vai sem saber Que recolhe o ouro do mar

das engenharias e das linguagens as verdadeiras armas que limitam o vazio com as paredes tangíveis

E cumprem seu papel Como os papéis do livro fechado Na ânsia de serem lidos e entendidos Nem que seja por uma tarrafa Lançada sem saber

Um segredo cerzido sabe lá por que linhas, Amarrado atrás da cabeça, apertado No meio dos dentes, Meu segredo borbulha calado, Nublando meus dias quando lembro que sim, Mesmo abafado, Sopro sem ar, Carrego um segredo em mim. E nos dias de sol e azul, Nas horas em que a vida confessa e chora, Meu segredo me pede e embora Eu nem mesmo saiba sobre o que ele canta, Meu segredo destrava a garganta e pede um trago Faz um charme, eu o afago, E assim meu segredo se abre Estende suas asas em voo de nave E proclama seu fim

conferindo à paisagem a mudança enganadora que movimenta a engrenagem

Preocupação não há Os peixes hão de vir Caminham cegos Ao seu destino quiçá Que não sabem

Quando vejo a pedra da gávea Meu segredo se agita aqui dentro Um segredo sem norte, Sem rima, Eu carrego comigo em segredo Um segredo até mesmo para mim.

Frederico Coelho

que nos protegem de escorrermos pelos sonhos mais do que pela morte — que só ficam intactas as arestas do mundo. Flávia Iriarte

Fernando Brum

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PUZZLES

por luisa noronha

Rousseau: o obreiro e sua obra Qual a relação entre o estilo adotado por Rousseau em sua obra Ele não vê a educação como uma correção, mas como uma Emílio ou da educação e a proposta pedagógica nesta apresen- descoberta das habilidades naturais, em um processo de dentro tada? Ao constatar que a maneira de escrever legitima e elucida para fora. Se na ordem social ensina-se ao homem uma vocação, aquilo que foi escrito, como um componente ativo do texto, na ordem natural ensina-se a ser homem. percebe-se a singularidade do estilo de Rousseau, convergindo para a afirmação do homem tanto no âmbito do discurso, isto Daí a importância da figura do preceptor no processo educacional. é, da universalidade, quanto no âmbito da vida prática em suas Este não é um modelo de retidão nem um modelador de caráter. diversas situações. Se fora do contexto pode parecer desconcer- Se por um lado ele é quase um coadjuvante no processo educatante e paradoxal, o discurso rousseauniano ganha vida no texto cional, na medida em que deve deixar por conta do fluxo natural a ao mesmo tempo que o sustenta, em um movimento dialético tarefa educativa, sua participação é fundamental, já que a natureza recíproco e coerente. Sobre a obra finalmente conclui-se que não conseguiria levar a bom termo seu trabalho sem a ajuda dele: suas disposições físicas e metafísicas são instrumentais, que a “Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos desprovidos cultura e o artifício devem buscar a realização plena da natu- de tudo, temos necessidade de assistência; nascemos estúpidos, reza humana e que a formação do homem tal qual Rousseau precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer, e de que concebeu em Emílio tem grande influência sobre as aspirações precisamos adultos, é nos dado pela educação” (Emílio, p.10). educacionais vigentes até nossos dias. Cabe esclarecer que Rousseau concebe três tipos de educação: a Emílio ou da educação, de Jean-Jacques Rousseau, trata de temas da natureza, a dos homens e a das coisas. A educação da natureza políticos e filosóficos quanto à relação entre a sociedade e o aborda o desenvolvimento interno do homem, a educação dos indivíduo, explicando como este pode conservar sua bondade homens faz uso desse desenvolvimento contínuo e a educação natural enquanto atua em uma sociedade inevitavelmente cor- das coisas aborda o ganho sobre nossas experiências. A combirupta. Nessa obra, Rousseau elabora sua proposta pedagógica nação dessas três formas seria o ideal, mas só a educação dos em torno da história romanceada de um jovem pupilo, Emílio, e homens está sob nossa responsabilidade e possibilidade. Ainda seu tutor, o facilitador no processo de desenvolvimento do aluno. assim, deve-se tentar aproximar a educação da natureza. As plantas, por exemplo, podem precisar de um melhor encaminhamenA educação deve levar o homem a agir por interesses naturais, e to para que se desenvolvam melhor e deem frutos mais saborosos. não por imposição de regras exteriores e artificiais, pois só assim ele pode ser dono de si. Para Rousseau, a educação deve respei- A criança recém-nascida não pensa, logo está mais próxima do tar o indivíduo, sem institucionalizar um aprendizado moldado conceito de homem ideal, natural. A partir do momento em que ao padrão social vigente. Sua didática é inédita porque confere à começa a se questionar, ela se desvirtua e perde seu estado de criança uma posição central no processo de educação, tal como natureza. O que é exatamente essa natureza ideal, Rousseau nunca antes concebido. Repudiando a ideia do homem-cidadão, habilmente se esquiva de elucidar. Contenta-se em concebê-la a proposta do autor é a educação do homem enquanto tal, pelo pela oposição àquilo que é social. O sentido da palavra natureza seu retorno à natureza, ou seja, ao cerne das necessidades mais assume três possíveis significados ao longo de sua obra: o priprofundas da criança, respeitando seu ritmo de crescimento e meiro opõe-se àquilo que é social; o segundo é a valorização das valorizando suas características específicas. Assim é educado necessidades espontâneas das crianças e dos processos livres de crescimento; o terceiro refere-se à exigência de um contato Emílio, seu pupilo ideal, em meio à natureza, o cenário ideal. com um ambiente físico não urbano e por isso mais genuíno, Enquanto seus contemporâneos acreditavam que a criança sem as corrupções próprias da cidade. limitava-se a um adulto em potencial, Rousseau valorizava as próprias propensões e vontades da criança, considerando-a Outro aspecto da educação natural é não aceitar uma educação digna de investigação científica. Ela não vem ao mundo como intelectualizada, que leva ao ensino formal e livresco. O homem uma tela em branco; tem sua subjetividade latente, embora não é constituído apenas por intelecto, pois suas disposições seja desejável o acompanhamento de um mestre competente. primitivas, tais como os sentidos, os instintos, as emoções e os Segundo Rousseau, a primeira educação cabe, por natureza, às sentimentos, são dimensões mais dignas de confiança. Rousseau mulheres (mães), daí a importância de bem instruí-las para que introduz ideias que o distanciam do pensamento racional cartesiano próprio do Iluminismo de sua época: “Transformemos não mimem e estraguem seus filhos. nossas sensações em ideias, mas não pulemos de repente dos Na medida em que problematiza a figura da criança como indi- objetos sensíveis aos objetos intelectuais. É pelos primeiros que vidual e positiva em si, Rousseau acredita que a mãe já não pode devemos chegar aos outros. Que os sentidos sejam sempre os dar conta de educá-la adequadamente e que um preceptor se guias em nossas primeiras operações do espírito: nenhum outro livro senão o do mundo, nenhuma outra instrução senão os faz necessário. fatos” (Emílio, livro III, p.175). Rousseau lança mão de novas ideias para combater as que prevaleciam em sua época, principalmente a de que a educação Ao afirmar que a educação não vem de fora, mas da expressão da criança deveria ser voltada aos interesses do adulto e da vida livre da criança no seu contato com a natureza, Rousseau, ao adulta. Introduz a concepção da criança como um ser com ca- mesmo tempo que valoriza o papel do preceptor no processo racterísticas próprias; desse modo, ela não podia ser vista como educacional, evidencia uma ideia aparentemente paradoxal, mas que se revela coerente no contexto da obra. Outra contraum adulto, um ser pensante.

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dição diz respeito à liberdade. Se por vezes é um entusiasta do livre pensar e agir, por outras afirma que o homem natural não precisa ser livre, porque ele não pensa na liberdade. O estado de liberdade seria a condição social do homem. A única formação possível é aquela que aproxima ao máximo esse estado de liberdade do estado de natureza. Mas ao afirmar que criança não é um ser passivo às determinações da sociedade, Rousseau defenderá como eixo da educação infantil o respeito à liberdade desse ser. Emílio será livre, porém não desamparado. Não por acaso esses conceitos escorregadios se materializam em uma escrita igualmente fugidia e complexa. É como se o estilo de Rousseau reafirmasse suas ideias, tornando-as um pouco mais palpáveis e acessíveis. Sua escrita dá voltas, envolvendo e conduzindo o leitor a um túnel giratório de raciocínio que parece cercá-lo e atraí-lo ao fundo — sem luz. Mas ele já o prevenira no prefácio sobre esse aspecto nebuloso de suas ideias: “No que diz respeito ao que chamamos a parte sistemática, que aqui não é senão a marcha da natureza, é ela que mais desconcertará o leitor; será também por aí, sem dívida, que me atacarão, e talvez com alguma razão” (Emílio, p. 3). Além de a educação de Emílio não ser sistematicamente elaborada, a escrita de Rousseau denuncia essa complexidade; seu raciocínio parece descer em espiral, a um sentido profundo e indefinido. Ele ardilosamente se esquiva da imagem do autor uno que tudo sabe, intencionado como o ponto de produção da linguagem, libertando sua escrita de um caráter estático e pré-estabelecido, assim como espera que seu pupilo esteja livre das tiranias da sociedade. O leitor é convidado para saborear suas palavras com a ótica de uma criança que se deixa guiar sem pré-tensões, uma criança movida pela emoção. Seu apelo é visceral, pois exalta a autoconstituição subjetiva, totalmente íntima. Rousseau se expõe de tal forma que beira o narcisismo doentio, camuflado sob uma humildade introspectiva. Ele desarma o leitor, estabelecendo uma relação de parceria e abrindo a possibilidade de uma autoria coletiva. No contexto de sua época, Rousseau formulou princípios educacionais que permanecem até os nossos dias, principalmente quando afirmava que a verdadeira finalidade da educação era ensinar a criança a viver e aprender a exercer a liberdade. Suas ideias influenciaram diferentes correntes pedagógicas, principalmente as tendências não diretivas, no século XX. Com sua escrita elaborada e de difícil compreensão, Rousseau é, ao mesmo tempo, amado e temido: sua obra e mesmo sua pessoa são fascinantes para uma época em que um novo homem se abria para novos tempos. Ele não apresenta respostas pragmáticas à pedagogia, mas antes levanta questões e sonda respostas, instigando a investigação e a produção do conhecimento. Seu maior mérito é problematizar a criança e lançar-lhe uma nova luz, como um ser dotado de identidade própria, além de propor o aperfeiçoamento humano pela reconciliação entre a natureza e a cultura numa espécie de retorno ao paraíso perdido, sem abrir mão dos atributos da ciência e da reflexão.


Foi o mordomo para Os Sete Novos e Pedro Costa não seria legal se pudéssemos assistir a um filme sem saber de antemão do que se trata? mas está cada vez mais difícil. não bastasse toda a propaganda do lançamento, tem os artigos, as críticas. pior ainda: tem o youtube e tweets e blogs e o mural do facebook e os portais de notícias — eu só queria abrir meu email ver a previsão do tempo ver os horários de exibição do filme mas aí, antes que você perceba, já sabe o enredo, o fim, o começo, o meio, já sabe do diretor, dos atores, dos outros filmes que fizeram, dos filmes que vão fazer, de suas vidas privadas, e todos sabem da sua vida privada também, pelo facebook pelo twitter pelo blog (pelo orkut não mais), as mesmas pessoas (amigos?) que, sem você pedir e sem que ninguém pague nada pra elas, fazem de graça propaganda do filme, te contam tudo. você fecha os olhos elas entram pelos ouvidos, você tapa os ouvidos elas entram pela pele, quando você senta na sala de cinema nem adianta, foi o mordomo, é tarde demais. e tem ainda os trailers: pra cada filme visto você perde cinco, dez, que trailer é o pior de tudo, é o ápice do estraga-prazerismo — quer dizer, isso sem contar os clichês, o gênero, o problema com o tempo e o fato de que os filmes são todos iguais, começou você já sabe como acaba (se não souber é porque é bem daquele tipo que é feito pra acabar exatamente como você não achava que ia acabar , só que esse tipo você também já conhece, então dá na mesma), e não é que você seja esperto, não é mérito seu, é culpa dos filmes, que são todos iguais. mas o problema com o tempo, o problema com o tempo é que ele passa. mesmo o tempo do filme passa, apesar das interrupções, dos celulares que tocam, das pessoas que atendem, das pessoas que conversam dentro da sala mesmo com o som ensurdecedor da projeção (que hoje em dia as pessoas só não falam se não conseguirem, qualquer silenciozinho elas falam em cima, se o som titubear elas gritam, berram), mas também pra que prestar atenção se todo mundo já sabe como vai ser o filme — que perda de tempo. mas então o tempo: quando você já está na sala há uma hora, uma hora e pouco, começa a sentir que aquilo não pode durar muito mais (o cinema tem que ter outra sessão, o orçamento do filme acabou, a produtora cortou, extras só no dvd), se for mais longo que isso é pouco, e é exceção, mas não importa, porque do mesmo jeito, lá pelos dois terços do filme você sente, você sabe que não tem mais dois terços pela frente, só um terço, e isso é totalmente absurdo, na vida não tem nada disso, um terço, dois terços, três terços, quatro, não seria legal entrar num filme e ele não acabar nunca mais de passar? e não ter história, e não ter imagem nem som nem personagens nem tela nem cinema, e ninguém mais saber que é um filme a não ser você, você e eu? mas faz tempo que não dá, está cada vez mais difícil — esse é o problema com os trailers. Dimitri Rebello

O artista ele é dos pés à cabeça pinceladas sem nexo & está todo mundo olhando

PÃES ANTEPASTOS MASSAS MOLHOS PIZZAS SALGADOS DOCES TORTAS

Ismar Tirelli Neto

De volta ao Leblon! www.ettore.com.br

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Brincadeira Quando se observa a vida de cada indivíduo, de modo geral, destacando apenas seus traços mais significativos, percebe-se que ela não passa de uma tragédia; porém, se examinada em seus detalhes, tem o caráter da comédia. Arthur Schopenhauer Você sai do trabalho com o corpo dolorido, mas não sente a mínima vontade de ir para casa. Como todos os dias, você resolve ficar um tempo a mais na rua, ignorando os apelos de seus músculos e ossos, que clamam por descanso. Você sabe que já está velho e não deveria travar esta batalha contra o seu organismo, mas o faz mesmo assim. Faz de tudo para não ter que retornar ao inferno que um dia foi chamado de lar. Mas, ultimamente, o que não tem sido um inferno para você? Você senta num bar, mas não tem sede nem fome. Você pensa na sua casa, no seu emprego, na sua família, mas só distingue lugares e rostos estranhos. Lugares e rostos que ainda há pouco tempo você enxergava com afeto. Agora tornaram-se todos cinzentos, descoloridos. Como a sua vida. O jogo está para terminar. A derrota é inevitável. Você percebe, a cada segundo, o efeito do tempo que te destroça sem qualquer piedade. Logo não restará qualquer vestígio físico nem lembrança sua. Você deseja apenas que aconteça rápido e não cause uma dor ainda maior do que esta que te assola agora. Você aprendeu a desejar pouco. Você só queria viver a sua velhice em paz. Paz? Que grande piada! Você sabe que a paz não existe. A vida é um eterno estado de guerra. Os inimigos estão em toda parte, sempre à espreita. Você é capaz de percebê-los pela respiração e tem certeza de que eles também identificam a sua. Eles se multiplicam como protozoários, a cada instante surgem milhares. Mas... você nunca quis fazer inimigos. Não importa. Se você não os fizer, eles se fazem mesmo assim. Você se recorda da época em que foi jovem. Existiam os ideais, as certezas, a esperança e o amor. Ilusões. Antes elas do que o agora, este simulacro de existência, embrutecida e acinzentada, que você há pouco chamava de vida. Você não é mais o mesmo. Mas não foi só você que se transformou. As outras pessoas também. Não são mais as mesmas. Elas te olham diferente, agem de maneira estranha. Por quê? O que pode ter acontecido a elas? E a você? E a mulher que um dia você amou e que, de repente, cedeu lugar a uma estranha, disforme e insuportável? E os seus filhos, que, a cada dia, vão se tornando mais estranhos, agressivos e, sobretudo, mais feios? Neste exato momento, sentado num bar no meio da rua, você já não consegue reconhecer ninguém, nem mesmo a si próprio. Quando você para em frente ao espelho, não enxerga mais do que um espectro. Perfeita cópia da realidade. Há tempos você era. O quê? Será que você, de fato, já foi algo em algum momento?

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Você procura motivos e só encontra malogros. Mas foi tão repentino. Era tudo de um jeito e, de repente, tornou-se diferente. Onde está a beleza? Sumiu dos seus olhos, como num passe de mágica. Negra. O horizonte já não existe. Tiraram tudo de você. Até mesmo a dignidade. A sua existência, o simples fato de respirar, converteu-se em bruto, monolítico desespero. Mas nem sempre foi assim. Ou será que foi e você não percebeu?

Você levanta da cadeira e se dirige à criança. A dor é insuportável. Um estalo. Em instantes você se vê rodeado por uma pequena poça de líquido escarlate que escorre em direção à beira da calçada. O riso parou. Acabou a brincadeira? Ou é só por enquanto?

Silêncio. Mas não por muito tempo. Logo, você começa a distinguir alguns ruídos, que não são exatamente os habituais. Um risinho, a princípio discreto, vai, aos poucos, O que te incomoda? Será a falta de sentido? Mas já aumentando de volume, até se tornar ensurdecedor. A houve um dia algum sentido? Será que só você não o ele junta-se outro, ainda mais potente e terrível. Agora já compreendeu? Ou o sentido, como tudo o mais, não são muitos. Uma sinfonia de risos. Tão desafinada quanpassa de criação? Será você apenas mais uma criação? to diabólica. Sua cabeça está prestes a explodir, mas ninÉ quase certo. Mas quem será o criador? Alguém que guém parece interessado em atenuar o seu sofrimento, cria para se divertir? Alguém que se diverte à custa dos pelo contrário. Continuam rindo de você. Por que fazem teus infortúnios? Olha para cima e busca esse manipu- isso? Você só queria paz. Mas quem é você para querer lador de marionetes, esse histrião perverso. Corta esse alguma coisa? fio que te prende. Mas onde está o fio? Você já o busca Você está cercado por uma multidão. Estranhos. Todos há muito tempo. Em vão. estranhos. Seus inimigos. Uma matilha de bestas sanguiVocê sente falta da verdade. Onde foi parar a maldi- nárias aguardando apenas o momento ideal para o bote. ta verdade? É provável que não esteja ao seu alcance, Você não tem outra saída senão se antecipar. Mas há a pois você não seria capaz de suportá-la. Aquela outra dor que te impede. Essa maldita dor. Não importa. Você era mentira. Mas se tudo é mentira, deve haver algum deve superar a dor! Você deve superar tudo! Ataque! É grande mentiroso por trás. Você ainda não o conhece necessário se defender! de verdade, o que não impede que ele conheça você. Consciente do perigo, você ataca com ferocidade, como Mesmo sabendo que seus apelos jamais voltarão a ser um animal acuado. Apesar de tudo, você ainda é um atendidos, você ainda insiste em clamar por justiça. guerreiro bravo e não vai se entregar tão facilmente. Mas Que justiça? O que significa isso? Apenas um concei- eles são muitos. Parecem milhares. E possuem uma feroto vago, assim como você e sua vida. Absurdo. Você cidade ainda maior do que a sua. Legião. Emissários do vive para ele. É o motor que te anima e te condena. teu único e real inimigo. Uma massa disforme de braços, Nada parece real, apenas a dor. A dor que, neste exato pernas, troncos e cabeças se amontoa sobre você sem momento, trespassa todos os seus músculos e ossos. lhe conceder qualquer possibilidade de reação. E o coro Você clama ao vácuo para que ela cesse. Não deseja de gargalhadas continua, cada vez mais ensurdecedor. É mais do que isso. Quando a maldita dor acaba? Se aca- impossível resistir. Você sabe que nunca será páreo para bar, decerto, acaba junto com a brincadeira. Mas que eles. A dor aumenta ainda mais. Será possível? Dor! Dor! brincadeira? Para você, a brincadeira já terminou. Há Dor! Lanças afiadas perfurando cada milímetro do seu muito tempo. Porém, alguém, em algum lugar, ainda velho e cansado corpo. continua brincando. Alguém que faz você de palhaço. Alguém que faz de tudo para se divertir. Será que é Aos poucos, tudo vai ficando escuro. Você não enxerga, não sente mais nada. A dor cessou. O fio de consciência apenas você o alvo dessa brincadeira? que ainda se manifesta não tardará a te abandonar. DenVocê continua sentado no mesmo lugar, imóvel, numa tro de poucos instantes, graças, tudo estará acabado. cadeira encardida de um botequim infecto. Você enxerga demais. Mesmo com os olhos fechados. O mes- Todas as luzes já se apagaram, todos os risos já silenciamo de sempre. Chega! Você não suporta mais. Você ram e você está, enfim, contente, aguardando a redentora comunhão com o nada. Você não faz ideia da grande deseja a escuridão. surpresa que lhe foi reservada e reage com assombro no Você observa, indignado, a vida que brota de todos momento em que o maior dos risos se revela. Um riso os cantos e não cessa de proliferar. Para que tanta que você nunca tinha ouvido antes. Mais terrível do que vida? E que vida é essa? Apenas transição e sofrimen- a soma de todos os risos anteriores. Um riso que permato. E a dor segue aumentando. Um garoto. Você vê nece. Como num sonho mau. Certamente é um aviso. um garoto. Ou garota? Um sorriso. Para você. Um Um aviso dele. Daquele que te criou. Que te manipula anjo? Não há sorriso. Apenas escárnio. Você virou e te faz sofrer. Apenas para se divertir. Ainda não é o fim motivo de galhofa. Inimigos. São todos seus inimigos. da linha para você. O fio não foi cortado. E nunca será. A Você nunca quis fazê-los. Eles que declararam guerra brincadeira está apenas começando. A dor é... a você. Manipulados. Como você. Tudo por diversão. Carlos Eduardo Varella Pinheiro Motta Você precisa reagir.


CONTOS INSÓLITOS O amanhã não me pertencerá

I love you is really a question

O amanhã não me pertencerá, por isso preciso falar como outro. Dias nublados em que a TV, desligada às três da tarde, reflete meus vícios, a sujeira, aquela, um apartamento pequeno onde caibam todos os meus sonhos, ou pelo menos cabiam quando ainda existiam. Tinta, paredes em mil cores, luzes, instrumentos musicais, canetas, papéis, uma máquina de escrever, um roteiro engordurado de trinta e nove míseras páginas. Sacolas, maços de cigarro, latas de cerveja e refrigerante, um tapete, uma mesa de centro. Um calibre doze, remédios pra insônia, dor de cabeça e depressão e é claro a fotografia de uma mulher que nem sequer se lembra da minha existência, mas que durante toda a minha vida foi meu grande amor. Só lamento não poder ter visto o quão poética ficou a mancha de sangue na parede e o quão enigmático soou não ter deixado nenhuma justificativa além de todas as óbvias. Só lamento não ter podido assinar à beira de todas as fotos do legista. Será que ele entendeu as moedas que eu segurei na mão esquerda?

Eu te amo na verdade é uma pergunta.

Ivan Cunha

Como eu quisesse saber deste acúmulo de coisas, você foi caindo a largo passo em falso: este calor, logo frio, este time de futebol e o estranho gosto pelo tango argentino. O rosto verde (lhe falta vitamina D; a casa é insularidade). Os olhos verdes (lhe faltou um clichê a menos). As unhas verdes (um a mais). O mar, do qual você não gosta. A odontologia possível para arquitetar a chegada. Os ventiladores que assustam e os que nunca despencam. Os poemas conhecidos de cor numa sala de escola. Tudo o que você sabe é de cor. Verde os olhos, este acúmulo de coisas. Os inconfidentes, mas Minas Gerais é muito até lá. Você não sabe que Julio Cortázar já morreu. O esforço da afabilidade. A fórmula possível para a torção e o tornozelo nus. Havana. As linhas retas e os últimos centímetros da cintura que você quer perder. Eu como sua imagem no café da manhã. Soluço silêncios. Você gosta. O brilho fosco do rosto, da ressaca, da voz ao telefone. O abajur, a meia-luz, os peixes, aquele dia em que escrevi suas mãos sem as mãos. A solução salina o suficiente para desquitar o mapa da volta. Eu menti, e você sabe; este acúmulo me incomoda.

Verdade! Diga eu te amo e aguarde... Tudo faz sentido se ele responde ‘Eu te amo’ (e você vê sinceridade) Eu te amo na verdade é uma indagação. (e aí reside a perversidade) Eu te amo na verdade é uma intimação. Luiza Vilela

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Victor Heringer Antologia da prosa

Plástico Bolha

Promessa é dividida Juro que não jurarei, que nenhum significante estará intrinsecamente amarrado a um significado, que os pontos finais derivarão interrogações, que farei da minha docência uma discência diária, que farei da tradução uma fiel constelação, que comerei o pão que o divino amassou.

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Também é involuntário!

Gabriel Matos

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POR DENTRO DO TOM

por Santuza Cambraia Naves

Sobre o canto de torcida no Rio de Janeiro Convidado Eduardo Lacerda Mourão1 Abertura O futebol, praticado aqui nos mais diversos espaços e condições, é também um fértil campo de pesquisas científicas para variadas áreas acadêmicas, das ciências médicas às humanas. Um tema multidisciplinar e central, a se falar no e também para se falar do Brasil. Já se provou ser proveitoso enxergar o Brasil através do futebol, em suas relações, por exemplo, com a sociedade, a violência, as torcidas organizadas, a cultura de massa ou as questões de gênero e raça. A música no Brasil, principalmente a popular, tem forte ligação com o futebol. Assim, é curioso que pouco estudo ou interesse tenha sido empreendido neste fenômeno potente que é o canto de torcida, protagonista nas arquibancadas, mas ainda sem um lugar de destaque na produção acadêmica. Pausa para alguns compassos históricos A história do canto de torcida no contexto carioca ainda está por ser estudada, inclusive no que toca à sua fase germinal, pré-Maracanã, do começo a meados do século XX. Os modos de torcer mudaram bastante nestes primeiros cinquenta anos, da época em que era um lazer “aristocrático” até quando começa a ganhar contornos de atividade de massa, à medida que o futebol se populariza, mudando definitivamente com a construção do Maior da Terra – estádio anfitrião da Copa de 1950. Pouco antes, porém, um fato casual começa a modificar todo o contexto da torcida no Rio de Janeiro: o desafio do radialista Héber de Bôscoli ao gênio Lamartine Babo a fazer um hino para cada clube de futebol carioca. Provocação aceita com bravura por Lamartine, que a cada terça-feira apresentava os hinos no programa Trem da alegria, da Rádio Mayrink Veiga. Será que ele tinha noção de que estava mudando a história do futebol carioca e, por que não arriscar, da música popular brasileira? O fato é que seus hinos se consagraram na “boca do povo”, as melodias e letras fascinantes eternizadas pelas vozes da arquibancada. Daí para 1950 foi um pulo; a torcida no futebol já era então uma atividade cultural de multidões, bastante ligada à musicalidade popular. No Maracanã, a música popular marcava presença, fossem os sucessos da época nos alto-falantes, as marchas militares da banda do Corpo de Fuzileiros Navais, os hinos nacionais ou a Charanga de Jaime de Carvalho, que chefiava a torcida organizada brasileira. O campeonato ficou marcado por nossa derrota na final (o maracanazzo), mas o que me parece ter marcado definitivamente a atividade da torcida no Brasil ocorreu na semifinal, em que a seleção massacrou a Espanha por 6 x 1. Naquele 13 de julho, sucedeu-se o que alguns dos maiores cronistas e estudiosos do futebol brasileiro – dentre eles, Teixeira Heizer, Luis Mendes e João Máximo – definiram como “o maior coral já ouvido em uma partida de futebol”; mais de 150 mil vozes cantaram (já com a letra adaptada, notem) as “Touradas em Madri”, marchinha de João de Barro que parecia

ter sido feita por encomenda: Caramba, carambola / Sou do Rio, não me amola / Pro Brasil eu vou fugir / Isto é conversa mole para boi dormir. O Brasil inteiro ali tomava um súbito conhecimento do fenômeno do canto de torcida. No fim, a paródia à clássica canção Cielito Lindo embalava os lenços brancos de despedida à “Fúria espanhola”: Ai, ai, ai, ai / Está chegando a hora / O dia já vem, raiando meu bem / Eu tenho que ir embora.

e vêm ampliando suas fileiras incentivadoras. As influências que sofrem de outras torcidas são muitas, notadamente das Barras Bravas latino-americanas com seus torcedores hinchas, que têm na Argentina seus mais conhecidos exemplos, mas também das brasileiras, italianas e inglesas. E as influências são de todo tipo: comportamentais, musicais, coreográficas, ideológicas, e até no vestuário.

Na história recente, outros episódios atestam a força e a per- Mas todas estas influências são deglutidas e se misturam, manência do canto de torcida no contexto carioca: a torcida ganhando contornos originais. Seus cantos de torcida vêm do Fluminense cantando “A Benção João de Deus” na final do tendo enorme receptividade junto ao público de futebol em Carioca de 1980; a torcida do Vasco cantando Nada mais gos- geral; neles, a “rivalidade cantada” não foi esquecida, mas toso que cair da arquibancada / Raça-fla já caiu de lá, em alusão reformulada, se centrando talvez menos na agressão frontal ao acontecimento da final do Brasileiro de 1992 – a paródia era ou no baixo-calão, e mais na criatividade, na ironia sutil. da canção “Banana boat”, cântico popular do folclore jamaicano, que fora tema da propaganda dos chicletes Bubbaloo A grande novidade (não exatamente nova), no entanto, é o banana na TV; e também o “chororô botafoguense”, na final renascimento de uma tradição de “cantos-exaltação”, destinado Carioca de 2007, que desencadeou uma onda de paródias dos ao apoio incondicional e apaixonado aos times de coração. entre suas quatro grandes torcidas. A repercussão foi tamanha Daí as palavras como “amor”, “paixão”, “orgulho”, “raça” e que o termo foi oficializado e virou verbete da nova edição do “sentimento”. Se, para falar da emoção ou do amor, se recorre à metáfora do coração, é que estes sentimentos são como dicionário Houaiss! formas de experiência incorporada – um coração não pode, de fato, ser preto e branco, assim como não pode a vida, mas Retorno Os modos de torcer no futebol continuam em transformação, ambos podem ser sentidos como “eternamente alvinegros”. acompanhando mudanças no esporte e na própria sociedade, e também os cantos de torcida vêm nesta esteira. Na década Da mesma forma, um tricolor diz que é “por orgulho” que ele de 90, a violência nos estádios pôs em xeque, no âmbito do canta e veste o manto, é por “essa paixão que vem de dentro, debate público, a instituição das torcidas organizadas, estig- um sentimento verde, branco e grená”. Um rubro-negro diz matizadas como responsáveis por tais índices galopantes. A ao seu time que sempre o amará e onde este estiver, ele estaviolência nas/das torcidas acabou? É claro que não, vide o rá. São os sentimentos que movem os cantos, e como todos ocorrido na última rodada do Brasileirão 2009, com a “batalha sabem, “o sentimento não para”, como diz um refrão vascaíno. campal” do Couto Pereira (PR). A violência se reposicionou; O sentimento, para o torcedor, não precisa ser explicado, ou por um lado, há um clamor tanto da sociedade civil quanto não tem explicação; não se tem paixão pelo Botafogo, porque do poder público para controlá-la legalmente, e punir seus simplesmente “ser Botafogo é paixão”. Os cantos dão forma ao responsáveis – o surgimento do novo Estatuto do Torcedor, sentimento humano, se pensarmos que a música, enquanto em 2010, indica o processo vivo de mutação e a disputa por obra de arte, não simboliza, carrega, veicula ou representa um que passa a atividade de torcer no Brasil. Por outro lado, as sentimento. Ela é o sentimento em si. próprias torcidas têm dado suas respostas. Coda Nesta última década, assistimos a uma espécie de guinada Se a Copa de 2010 revelou ao mundo as ressonantes Vuvuzelas, comportamental no contexto carioca, proposta por novas os berrantes africanos made in China, rapidamente apontados torcidas, que parece ter como principal espaço de elaboração como “a morte do canto de torcidas”, essa ameaça não parece justamente seus cantos, renovados semântica, estética e poli- ter ecoado aqui. Aliás, os cantos continuam vivos em todas as ticamente. Como e por que a “torcida cantada” teria passado a culturas musicais em que o futebol é praticado profissionalter novo significado nos últimos anos? Apesar de não ser uma mente. No Brasil, o que eles sofrem não é um desprestígio, pelo modalidade de torcer exatamente nova no futebol brasileiro, contrário, é uma verdadeira ascensão no gosto popular – estão tem sido entendida como uma característica distintiva de um nas TVs, rádios, filmes, CDs, e claro, nos estádios, ruas e casas. novo, arriscarei dizê-lo, ethos torcedor, encarnado nas práticas de novas torcidas que pregam uma atuação pacífica, mas não O contexto carioca aponta para o potencial do fenômeno social do canto de torcida, que vale uma agenda de pesquisa menos engajada, nos estádios. multidisciplinar, dada sua complexidade, atualidade e permaAlgumas notas sobre os cantos de torcida no Rio de Janeiro nência em nossa sociedade. Em sua profundidade, articula Loucos pelo Botafogo, Guerreiros do Almirante (GDA), Uru- práticas e concepções artísticas, políticas, econômicas, jurídibuzada, Movimento Popular Legião Tricolor: são coletivos cas, estéticas, emocionais, tanto em aspectos objetivos quanto surgidos há menos de 10 anos, que apesar de novatos no subjetivos, em um amplo horizonte de conhecimento em que circuito dos estádios, despontaram no cenário das torcidas, ainda há muito, ou quase tudo, a ser dito.

1- Graduado em Ciências Sociais pela UFRJ, e mestrando no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA), no IFCS/UFRJ.

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NOTAS NO PLÁSTICO Meu Samba Quando aportou na cidade de São Sebastião o samba, em companhia das Ciatas, ficou mais dolente em seu compasso, mais sinuoso em seu traço, Rio de Janeiro.

por MAURO FERREIRA

Personalidade de Sandroni valoriza o álbum Gota pura Clara Sandroni é cantora de personalidade. Com sua cortante voz aguda, que conjuga força e delicadeza, a intérprete imprime essa personalidade em seu quinto álbum solo, Gota pura, já o décimo primeiro de sua discografia, uma vez contabiliza-

Dou-me ao samba, tristeza que balança, quando queima o couro dos tamborins, quando geme a cuíca Seu Casemiro, quando chora um sete cordas. Da Praça Onze tomou pé pro subúrbio. Plantou a jaqueira na Portela, subiu o Prazer da Serrinha. Quebra nas cadeiras, diz no pé, Rio de Janeiro. Dou-me ao samba, se ouço um bamba. Versos Silas, samba-enredo. Melodias Lara, samba de terreiro. Axé de Candeia, samba de caboclo.

dos os CDs gravados com Marcos Sacramento e Paulo Baiano ao longo dos anos 2000. No caso, sua voz em forma interage com o piano de Paulo Malaguti Pauleira, ao abordar repertório de excelente nível. Bela faixa de abertura, “Laser” (José Miguel Wisnik e Ricardo Breim) brilha no registro da cantora. Gota pura também alcança bons momentos em “Quase” (Luiz Tatit), “Iracema voou” (na melhor interpretação dessa música de Chico Buarque), “Aos pés da cruz” (Marino Pinto e Zé da Zilda), “Ladeira da memória” (Zé Carlos Ribeiro) e “Linda Flor (Iaiá)”, o tristonho samba-canção de Henrique Vogeler, Cândido Costa, Luiz Peixoto e Marques Porto. Em outras faixas, como a nordestina “Cajuína” (Caetano Veloso) e o samba “Carioca” (Chico Buarque), o formato de voz e piano se revela limitador. Ainda assim, a leveza com que Sandroni canta “Rosa morena” (Dorival Caymmi) — outro samba que pedia outro molde instrumental — sinaliza que sua voz e sua personalidade são marcas expressivas que valorizam Gota pura, CD coerente com sua obra fonográfica. Para ler mais notas musicais, acesse http://blogdomauroferreira.blogspot.com

Dou-me ao samba, nosso samba. Antonio Mattoso

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O caçador de sombras Esgotaram-se os pássaros e seus cantos fiaram-se num silêncio entrecortado por uma brisa vacilante que lamentava de vez em vez as vidas perdidas no campo de batalha. Misturado ao som ritualístico da Morte, abria-se para a plateia de um só espectador uma cortina de cheiro de sangue, que tingia o ar com notícias que chegariam desesperadoras aos ouvidos ansiosos e distantes dali. Ele andava pelo palco formado por cadáveres e, por mais que seus passos estivessem tão pesados quanto sua cabeça, seguia o roteiro, segurando a respiração e com a espada ainda empunhada na mão. No entanto, a espada tinha a ponta virada para a terra, desenhando nela, através do sangue de outrem que escorria por sua lâmina, seu próprio caminho. Acompanhavam-no ainda as risadas dos amigos e as carícias da mulher sonhada, que em mais uma noite alentou suas esperanças de um futuro calmo. Assombrações da noite passada, tão vivas e presentes em sua mente que o faziam não esquecer do que era feita a dor. Seus passos eram ritmados por uma música de câmara, tocada pelo órgão interno em seu peito, segundo as batidas de seu desespero seco e entalado. Assim foi seguindo, até virar trapo e tombar no chão. A boca ficou cheia de terra e sangue, que entravam também pelos seus poros. Isso não mais o incomodava. Por favor, que abaixassem os holofotes agora. Queria morrer na escuridão do último ato e se tornar eterno nas bocas dos jovens atores que viessem depois dele. A Morte, contudo, não tem dono. Ela vem quando quer e não quando é convocada. Então, vendo-se ainda vivo, abriu os olhos. Ali era o Inferno e em breve o demônio cantaria seu nome. E pôde ouvi-lo, numa graça de Ave Maria, que arrepiou-lhe por debaixo da armadura, outrora tão brilhante quanto o próprio escudo de Aquiles. Levantou-se, apoiando-se na espada, e seguiu o chamado que mais parecia um choro baixo, quase miado, no meio dos sons da Morte, que lhe estalava a língua como se para seduzi-lo. Revirou alguns corpos, ou eram sacos de farinha trajados de pessoas?, até deparar-se com um homem que vestia o uniforme rasgado do inimigo. Os olhos do ator coadjuvante, numa emocionante interpretação, estavam voltados para o céu como se, por entre as roldanas, cabos de ferro, passadiços e contrarregras, ele pudesse ver um véu de estrelas cobrindo-lhe o túmulo. O ator principal, aqui se faz necessária a explicação por questão de créditos e egos, notou que no peito rasgado do homem havia uma ferida feita por sua espada. Há incontáveis dias, num tempo perdido no espaço, seu mestre ensinou-lhe a arte de matar e assinar a presa ao mesmo tempo. E, pela primeira vez, ele se arrependeu de ver ali, inegavelmente, a sua marca no último homem vivo.

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Caiu de joelhos ante a dor. Sabia matematicamente que o homem morreria, pois era o melhor soldado de seu batalhão e, quando ele empunhava uma espada, era para matar. Apesar da situação, teve que congratular o homem por ser bravo e continuar acorrentado à sua vida até o fim. Remorso misturou-se à admiração e inveja, criando uma mélange que o fez segurar forte o cabo da espada.

não o suficiente para encontrá-la. E eles estavam mais próximos do que qualquer um poderia imaginar. Ela, a mulher por ele sonhada incontáveis vezes, estava ali, com ele, em suas mãos, sorrindo tristemente no retrato dado a outro homem.

Ele olhou para as estrelas como se tivesse entendido seu sussurro e contemplou o retrato manchado de sangue. A imagem dela queimou seus olhos por um Antes que qualquer ato pudesse ser criado, alongando momento. Então ela existia de fato. Não eram sonhos mais essa cena, seu punho foi agarrado pelo homem numa imensa cama fria. Ele acariciou o rosto gelado com uma força de quem ainda tinha vida e que não se dela. Era sua última visão da vida antes da Morte. entregaria antes da hora. Reverenciou-se com despeito, Agora seres mortos faziam seu caminho por onde afinal era ele o personagem principal. passava, prontos para ajudá-lo a não mais ser. Não poderia nunca mais voltar à sua velha vida, ao seu O homem encarava-o como se o céu estivesse traçado velho eu de atorzinho desconhecido. Ele também nas linhas de seu rosto. Veio à mente a possibilidade estava morto, apenas seu corpo é que não sabia disso, de ter sido reconhecido como o invocador da Morte pois era regularmente possuído por outros que não calada. E essa já vinha cheirando o cangote do homem, ele. Não se diria um sobrevivente. Era apenas uma bebericando a sua vida em pequenos e saborosos go- besta vivente caçando sombras, perseguindo a Morte, les, que também iam deixando-o zonzo. Um balbucio até ela dele se encantar e resolver entregar-se a ele vazio, quase bêbado, tentava se equilibrar nos lábios como a um amante, deixando-se entrelaçarem numa do homem, mas caíram por terra antes de chegarem explosão definitiva. aos seus ouvidos. Esperar-se-iam ainda séculos de atos e desatados desNão demorou muito. Nem para ele notar que em sua tinos para que esse dia acordasse na memória de um mão fora colocado o retrato de uma mulher. Nem para autor. Um grito de esperanças e sonhos quebrantados, o homem ver Deus em seus olhos e não inspirar mais. começado muitos séculos antes, quando os seres nem nome tinham e o título ainda não era O Caçador de Sob os aplausos surdos de uma plateia fantasma morria Sombras. Por enquanto, não havia mais texto nas páo último homem vivo. ginas do roteiro. Tudo em branco. As luzes desse ato foram apagadas. O palco verteu-se em escuridão. As Um grito despertou o tempo e sacudiu os pássaros, que cortinas foram fechadas e por fim retiradas para lavavoltaram a tecer seu luto. gem. Mesmo assim, ainda ouvia uma espécie de ovação ao longe. E o guerreiro, de volta à sua imensa cama Enquanto o sol ia se pondo, ele via as marcas de san- fria, com lençóis de áspero cetim cor de sangue e terra, gue seco em suas mãos transformarem-se em negras. caçava mais uma sombra dentro de si. Esgotaram-se os Negras como o abismo diante de si, como o cheiro do sonhos com a mulher amada. Estava apenas à espera seu futuro. Fechou os olhos e apertou firme os punhos da Morte, pronto para enlaçar-lhe por entre as pernas doloridos e marcados. Quebraria a própria vida com e domá-la definitivamente, fazendo-a sua em meio às aquele aperto se pudesse, mas a Morte era uma pa- sombras com as quais ela tanto gostava de provocá-lo. queradora que seguia suas próprias regras e, às vezes, O que pareceu ter acontecido por ínfimos segundos. parecia partidária apenas do amor platônico. Soltou A Morte chegou perto de dar-se por vencida, mas era a própria força sobre si, querendo sentir vida antes apenas um truque para requentar a relação. de morrer. Suas unhas sujas entravam-lhe na carne, fazendo-o sangrar, pela primeira vez, seu próprio san- Chamou-lhe o nome para que abrisse os olhos e emergue. Apertou mais a mão e voltou-a para o solo. Seu gisse de si desembocando num clarão branco que quase sangue era uma oferenda à Morte. Doce ou amargo, o cegou. Foi penetrando nessa branquidão dolorosa, fosse qual fosse o sabor, que a Morte decidisse dele caçando sombras que sobre ele se inclinavam, e paexperimentar agora e o resto que sumisse no turbilhão cientemente deixando que as assombrações se transfordas horas, engolfado pelos bicos dos críticos abutres, massem, ganhando os contornos de uma enfermeira a que nos céus já desfilavam, ao som de asas tamborins, lhe sorrir numa triste alegria, coisa que só boas atrizes a sua plumagem de falso luto. eram capazes de fazer. Era um sorriso extremamente fotogênico, notou. As estrelas observavam aquela criatura sentada à beira Chiara di Axox do palco, provavelmente pensando se ele duraria ou


DESAFIO POÉTICO Nossos leitores-escritores foram convocados a escrever poemas com as palavras plástico e bolha. Já o desafio da trigésima edição será comemorativo: escrever um poema com 30 palavras. Esperando o quê? Bolhas de incenso corria na rua de ferrugens e gritava nas esquinas por que a chuva?

Distração

Viagem sonora

em tempos de verão, bons tempos eram aqueles que era preciso um pouco o bastante para distrair

No dilúvio de águas frias, Dançavam as medusas-da-lua, poetisas, Leves em simetria radial, Desiludidas em tamanho Transbordamento. A água longa que delas brotava, Como lágrima desgarrada dos olhos, Compunha poesias em meu mar infiltrado. Que vendaval aquático percorre seus corpos Transparentes; Suas coroas de tentáculos prateados? Somente sinos e estrelas cadentes, Perfuravam suas rimas aquáticas. Maré alta... As medusas rasas, profundas, líricas, Costuravam-se ao canto do mar, sem intento. Sozinhas no burburinho do mar, Entre peixes brilhosos e corais estrelados... Na demasia de meu pensamento.

bastava um copo plástico com água detergente caneta bic sem tampa algumas cargas vazias bastava o corpo e um pulmão, cheirando a verde-limão e quando me distraio hoje, às vezes me pego ainda

se uma gota pode adoçar o riso do palhaço, causar catarse, pode fazer minhas mãos jogarem búzios e arroz para o céu.

tentando capturar em vão as frágeis bolhas de sabão

Carolina Sims

Braulio Coelho

Bate teu corpo Bate teu corpo no meu,

se a bolha, bola de plástico da pele, na minha boca causa simples revogar de cheiros molhados, pode O úmido incenso em minha vida causar danos

Bolha-plástico Remodela-se [com plástico a casa, o rosto, a vida. Encabrunha-se na maleável e opaca bolha — que refaz em polímeros à semelhança a imagem de si mesmo. Pedro Vinícius do Valle Tayar

ao mármore. que desde ontem morre atrás de ferrugens mentais no mar. Otavio Ranzani

Envie seus poemas para jornalplasticobolha@gmail.com

brinda a vida esbarra teu corpo no meu sente a vida dorme e sonha conosco que o dia é implacável nas veias de quem sonha Tiago Rattes de Andrade

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ORÁCULO

por Antonio Mattoso

Partimpim de Calcanhotto ou Tem bicho na plateia? Na primeira década do século XXI, quando a canção teve sua morte anunciada, o mercado fonográfico entrou em crise e se criaram novos meios de adquirir música via internet, a música popular brasileira apresentou um fato inédito em sua história: a heteronímia Partimpim de Adriana Calcanhotto. O primeiro CD, Adriana Partimpim (BMG), lançado em 2004, trazia ironicamente a classificação livre e, no ano seguinte, o registro ao vivo do show em DVD. Já em 2009, Partimpim e Dé Palmeira produziram o CD Dois (Sony Music) e Dois é show, lançado recentemente. Algumas gravadoras tiveram em seu elenco cantores infanto-juvenis ou desenvolveram projetos visando esse mercado, porém o dado novo que Partimpim traz à questão é rever ludicamente esta taxonomia: o que é adulto, o que é infantil? A partir de 2005 tornou-se comum a presença de crianças nos shows do ortônimo.

é impossível estabelecer uma relação entre o vocábulo grego e o etrusco. Em português, a palavra máscara não é de origem grega tampouco latina, mas de origem árabe (mashara → bufão, personagem ridículo), através do italiano maschera, segundo alguns; outros, no entanto, atribuem a origem de máscara à forma do latim tardio masca (demônio ou a máscara que representa o demônio). Nas sociedades arcaicas, a máscara ritual funciona como uma representação do divino. Como símbolo, apresenta dupla valência: tanto diz respeito à possessão — isto é, o eu incorpora as potências divinas e demoníacas, apoderando-se da enérgeia do outro e restabelecendo um elo com o sagrado, o que faz que o portador da máscara se torne contemporâneo dos deuses — quanto se relaciona à proteção — ou seja, o eu possuído pela divindade corre o risco de não retornar a si, de permanecer sempre outro, em ékstasis, daí a necessidade de Uma vez que a voz é a mesma, que o rigor da es- proteção por meio do ocultamento para fazê-lo colha do repertório é o mesmo e que os músicos voltar a si. Podemos perceber que Calcanhotto dá que participam das gravações quase sempre são um tratamento estético a esse fundamento ritual. os mesmos, justificar-se-ia uma heteronímia? A nosso ver, mais do que necessária. Dois traços, um O universo temático de Partimpim também difere visual e outro temático, singularizam Partimpim. do de Calcanhotto. Considerados todos seus lançaVisualmente, a máscara seria o traço distintivo mentos até agora, seu tema mais recorrente seria fundamental que subsumiria os demais. A máscara o bestiário próprio do imaginário infantil. Uma das torna aparente o ser de Partimpim e projeta sua primeiras relações que as crianças estabelecem, identidade. Nos CDs, o rosto de Calcanhotto está ainda no berço, com o mundo ocorre por meio de oculto atrás da máscara. Em seu primeiro show, brinquedinhos sonoros, muitos deles em forma ela desce ao palco e desaparece maravilhosa- de animais. No primeiro show de Partimpim, os mente portando-a; portanto, enquanto durar o belíssimos origamis terimorfos do cenário de Hélio show, essa é a entidade. Em grego, máscara diz- Eichbauer, que evocam formas geométricas no pal-se prósopon, -ou (s.n.), forma que se compõe do co, foram apropriados pela cantora como objetos prevérbio prós (diante de, à face de) e se ajusta ao cênicos e musicais ao mesmo tempo. Há referências substantivo óps, (s.f. e s.m → olho, rosto face, cara); a seres híbridos como o Centauro, a animais que se portanto, etimologicamente prósopon significa metamorfoseiam como a lagarta borboleta-farfalla, ajustando-se ao rosto, diante da face. Podemos a animais domésticos como o gatinho na trilogia do perceber que o que está em questão é a ação poeta Ferreira Gullar, a insetos como a formiga — de esconder e ocultar. Além de máscara, pode enfim, a uma parte do mistério da natureza animal apresentar outras significações, tais como o papel que, tanto por animização quanto por metáfora, se atribuído ao que chamamos de máscara, perso- manifesta no discurso. Dada a universalidade dos nagem, pessoa, pessoa gramatical, bem como procedimentos vistos, acreditamos que os shows de face e figura. Em latim, denomina-se persona, -ae Partimpim não se restringiriam a países lusófonos, (s.f.), um empréstimo da forma etrusca φersu, que mas poderiam ser compreendidos e contemplados significa portador da máscara, homem mascarado. em qualquer lugar do mundo. O que está em jogo no vocábulo latino é o agente, aquele que se mascara. Os sentidos de persona Cinco anos após sua estreia, Partimpim começou a são os mesmos verificados em grego, exceto o compor assinando três canções no novo CD. Como de face e figura. Ernout e Meillet (Dictionnaire não pretende ser um puer aeternus, não só amplia Étimologique de la Langue Latine) asseveram que seu universo temático em duas destas canções —

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“Ringtone de amor” e o baião “Menina, menino” —, que tratam sobre amor mas também imprimem sonoridade diferente em relação ao primeiro CD. Dois se organiza conceitualmente pelo mote expresso no título. “Alexandre” e “Na massa”, bem como “O trenzinho do caipira” e “As borboletas”, articulam-se de modo dialógico. Em “Alexandre”, Caetano Veloso, à semelhança de um épico, traz à memória o maior de todos os seus heróis, Aquiles, e recria em terceira pessoa “as façanhas de reis e generais e as tristes guerras”, “res gestae regumque ducumque et tristia bella” (Hor., Ars poetica, p. 73), justapondo-as a um refrão altamente melodioso. A canção “Na massa”, de Davi Moraes e Arnaldo Antunes, possui a mesma configuração, alternando as ações de uma adolescente anônima que sai de casa em um domingo para retornar com toda sua liberdade e atitude no vestir-se com um refrão de característica semelhante. O poeta Arnaldo Antunes lança mão da ambiguidade dos verbos de movimento e de vestir-se. Nessa canção, Partimpim evidencia a presença do corpo nos seguintes versos: “Mostra a pele pelo rasgo da calça/ Nada debaixo do short/Derramando seu decote”. Os feitos e a historicidade do príncipe Alexandre, que expandiu-nos o mundo, contrapõem-se ao anonimato e à contemporaneidade da adolescente com roupa de princesa em pele de plebeu. Já em “Trenzinho do caipira”, Ferreira Gullar encontrou os versos para melodia pré-existente de Villa Lobos; do mesmo modo, em “As borboletas” (gravada na casa na floresta de Partimpim), Cid Campos descobriu a melodia para os versos do poeta Vinícius de Moraes, um raro encontro de voz e canto, verso e poesia, melodia e música em harmonia. Às imagens cromáticas iniciais, brancas, azuis, amarelas e pretas, que caracterizam as borboletas, acrescentam-se imagens sonoras nos dísticos, que as reduplicam como um eco. Diverso é o processo em “Bim bom” (João Gilberto), canção inaugural da bossa nova: Partimpim, ao fundi-la com o samba-reggae do Olodum e com um coro de vozes infantis, apresenta-nos um novo modo de ouvi-la. Heterônimo e ortônimo, alteridade e ipseidade, confundem-se, a nosso ver, no mesmo gosto pela poesia cantada. Para os que gostam de poesia cantada, Dois é imprescindível. Partimpim apresentou Dois é show em 2010, no Rio de Janeiro. Ficamos todos aguardando sua volta.


Versos eróticos

PAX ROMANA

In memoriam de Arnaldo V. Medeiros Dás à outra o que me pertence... Uma sombra de culpa Perpassou em teu olhar Enquanto sussurravas: “perdoa”. Tuas mãos em concha colhem meus seios E as brumas do ciúme e da mágoa Esvaindo-se deixam ver Teu membro hirto e fremente no qual monto E num coito a galope Tombo em teu peito arfante Balbuciando: “amor, eu lhe perdôo”.

Tu, deitada no templo, decifrando as escuras pilastras da casa, ouve minhas palavras metálicas. Ainda hoje saborearei teu corpo, quer m’ofereças, quer não. Jasmins tenho em minha carroça para impressionar teus gostos arrojados. Serei um afável salteador, roubando-te as mais pecaminosas excitações cerebrais. Ainda hoje tu te deitarás comigo no prado. Afastemo-nos da cidade. Então apresentar-te-ei vários elixires, temperos raríssimos.

Marina V. Medeiros Os milênios serão nossos confessores. Andityas Soares de Moura

romance n.2 juntos sentamos num lugar alto talvez no teto de alguma coisa coberto de flores e talvez alguns dentes — porque, afinal, as coisas se perdem — você me aperta feito um tostex e enquanto você olha lá pra baixo e pensa ainda dá tempo de morrer eu conto uma história pra dar um jeito na solidão

mascarado Fui ao doutor. E ele me disse que eu padecia de mal terrível E nada que eu fizesse adiantava. Aprendi a ser pessoa qualquer que existe E hoje aceito meu mal Como aceito: telefone, teleférico, alpiste e meditação transcendental.

Isabel Wilker

Blow-up Acordei naquele dia sem lembrar nada do dia anterior. Caminhei até a sala. Vi minha mãe por sobre um monte de papéis de bala rasgados, bolas estouradas e doces pisoteados. Sua leveza me encantava. Era linda minha mãe. Dedicada e carinhosa. Pensou em todos os detalhes. Não hesitara em acordar cedo e limpar a sujeira que mais um ano da minha vida, que se arrastava, fazia em sua sala pequena. Estava tudo desarrumado e as coisas, fora do seu lugar. Voltei meu olhar para o quarto, e meu pai ainda estava esparramado na cama. Olhei as fotos da noite passada por sobre a mesa. E chorei. Não consegui engolir o choro. Minha mãe encostou a vassoura na parede e alisou os meus cabelos, suave. Chorei de soluçar. Tentei respirar fundo para que o descontrole não rasgasse o silêncio da manhã. Mas meu pai despertou. Caminhou em minha direção. E me deu um tapa. Bem forte. A raiva que me atravessou o estômago não podia mais mudar a fotografia que eu tinha na mão. Ele seria para sempre a pessoa que ganhou o primeiro pedaço do meu bolo de aniversário. Paulo Henrique Motta

Não devia ter contado a ele Que vejo os bichos sem pele; As velhas com os dentes roxos E que todas as pessoas me parecem Ter um alicate cravado na maçã do rosto. Meu rosto não tem nem maçã. E minha pele cai, pendurada sobre o osso.

MASSAS - MOLHOS - PÃES - DOCES

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DOBRADINHAS

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por ALICE sANT’ANNA & Lucas Viriato Parada obrigatória A saída abrupta do Coffee Shop desestabiliza cones e bastonetes, fazendo do traçado pincelado da cidade um enorme quadro de Van Gogh Estruturas de tijolos vermelhos e letreiros luminosos andam ritmicamente para trás deixando o trem imóvel em seu lugar A solidão desoladora de uma bicicleta esquecida em frente à lanchonete em que se oferece lixo temperado em gavetas Três X em seu brasão antecipam seu filme pornô, seus disparates, suas garotas emolduradas em luz vermelha chamando com o dedo indicador Cruzo o museu com nome de espirro que um amigo jura já ter ido comigo, mas que só fui pela primeira vez dois anos depois

http://poesiasdobacamarte.blogspot.com/

o sono faz com que os turistas esbarrem nas bicicletas tanta gente que quase morre atropelada por aqui e a causa é a preguiça de olhar para os lados te encontro nessa mesa tirado de um sonho brincamos de pular no parque esse lugar não me convence até hoje tenho medo da prostituta que me ameaçou com uma garrafa em sonho eu corro mas ela é mais rápida, grita em uma língua que nunca vou aprender esses croquetes de parede não me atraem, essas flores cenográficas que enfeitam os canais me enchem de sono Alice Sant’Anna

O blog Poesias do Bacamarte tem como objetivo a livre escrita, algo parecido com uma parrhesia direcionada ao mundo, oralidade, histórias de vida e, por que não, poesias? Os autores são os frequentadores do CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) Simão Bacamarte, que fica em Santa Cruz, bairro da Zona Oeste do Rio: trabalhadores, familiares, todo e qualquer um que ache que possa produzir algo conectado com sua territorialidade: Santa Cruz, CAPS, mundo, abstrações, constatações, sentimentos, vida, saúde mental e loucura (essa que diz tanto e é tão nossa quanto do outro).

http://kikipeixoto.blogspot.com Kiki Peixoto é puro afeto: não tem profissão, não tem colegas de trabalho, nem filhos, nem marido, nem corpo, mas tem um blog onde publica seus fragmentos de pensamento-poesia. Kiki, uma subjetividade desejante...

http://www.trespontos.com O projeto Espaço Três Pontos (OOO), idealizado por Pedro Salim e desenvolvido com o apoio da Prefeitura de Juiz de Fora, pela Lei Murilo Mendes de Incentivo à Cultura, pretende oferecer um espaço neutro e virtual para a expressão de boas ideias. Fotografia, vídeo, escultura, pintura, intervenções artísticas, tirinhas, story-boards, conto, desenho, música, qualquer enigma ou coisa que passou despercebida.

http://cadernoencontrare.blogspot.com

Esse Vondelpark é vasto demais e as coisas que o Moacir Santos canta em meus ouvidos escondem a falta da companhia de algumas Índias Orientais

O Caderno Encontrare é uma publicação já conhecida em Juiz de Fora. No estilo do Plástico Bolha, a publicação divulga poemas e textos curtos dos poetas locais. Em seu blog, abre-se mais um canal de conversa com os leitores, escritores, consumidores de poesia, literatura e cultura.

Passeio errático por infinitas pontes arqueadas cruzando simpáticos barcos nos quais sei que nunca irei morar

http://www.youtube.com buscar por Rimanessência Rimanessência é o nome de um projeto ambicioso que buscou valorizar a originalidade e o spoken word, num formato televisivo, exibido na Internet. Participam do projeto nomes como Marechal, Shawlin, Max B.O., Paulo Napoli, Kamau, André Ramiro, entre outros.

Lucas Viriato

http://estilingues.wordpress.com Raïssa Degoes

Você já viu estilingue que atira livros? Conheça o projeto que propõe uma ciranda de livros, que não podem parar de circular.

Vale o clique!

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ENTREVISTA

por Aline Miranda

Zélia Duncan: Entre letras e canções Ela é mutante, transforma-se em outras, muitas e sempre. A música é a base onde cria e se recria. Nascida em Niterói (RJ), morou também em Brasília (DF), onde iniciou a carreira de cantora. Desde então são nove CDs lançados, três DVDs, além de projetos como Mutantes ao vivo e a parceria com a cantora Simone em Amigo é casa. Em setembro de 2010, recebeu o Prêmio da música brasileira (21.ª edição), pelo qual foi vencedora na categoria “Melhor cantora Pop/Rock/Reggae/Hip Hop/Funk”. Zélia Duncan é a doce surpresa que vive no Rio de Janeiro, onde, além de cantar, compõe, pratica corrida e cursa Letras na Universidade Cândido Mendes. Zélia, de onde veio a vontade de cursar Letras? Ler é uma herança familiar, algo cultivado em casa. Com o passar do tempo, a vontade de dirigir um pouco isso e aprender outros universos foi ficando forte. O que essa escolha lhe trouxe de enriquecimento pessoal e/ou profissional? É difícil conciliar a faculdade com a carreira? Não estou na faculdade para ser uma artista melhor, porque isso não existe — “ninguém aprende samba no colégio”. Mas é algo que me dá imenso prazer mesmo. É tudo confuso às vezes. Esta semana não consegui ir à aula, ontem foi a entrega do prêmio e cheguei tarde. Como demoro a dormir, de manhã precisei descansar. Você tem muitas parcerias em composições: como na poderosa “Pagu”, com Rita Lee, e na doce “Sinto encanto”, com o Moska. Como ocorre esse processo: existe alguma preferência em fazer letra ou música? Quase sempre faço as letras; é mais fluido pra mim. Mas minha parte em “Pagu” foi a música; acontece também. Você tem alguma música sua preferida, que a faça sorrir quando toca no rádio? Isso varia; tem a ver com fases. Me ouvir no rádio é bem legal, porque sei que estou ouvindo junto com um monte de gente; tem um sabor mais quente. O show Eu me transformo em outras (em que você interpreta grandes vozes e autores que marcaram sua vida) era um projeto antigo? Sim. Não tinha nome; só um desejo de imprimir essas influências. Posteriormente foi gravado o DVD desse trabalho, lindíssimo e muito bem cuidado, na noite silenciosa e nostálgica do centro do Rio. Como chegaram ao Centro Cultural Carioca?

O show nasceu ali. Gosto de rechear o que faço de significados, mesmo que só para mim; mas me alimento disso. Aquele lugar me recebeu, acolheu essa ideia e eu cismei de gravar ali. Oscar Rodrigues Alves foi muito feliz na direção. Nos extras desse DVD, você conta que gravaria a canção “O habitat da felicidade” mesmo se ela só contivesse o verso “Felicidade não precisa de culpa”. Por quê? Porque a gente carrega o peso do mundo! Porque eu ralo muito e sei das dificuldades. Por causa disso, muitas vezes não comemoro as coisas como deveria, porque sinto uma culpa de estar feliz de vez em quando. Mas isso é besteira; temos que vibrar com nossas vitórias. A felicidade é mais um caminho do que um fim.

essa porteira da diversificação, dos parceiros diferentes, produtores e músicos novos para mim, e acho que vou ser sempre assim. Isso me revigora, me dá frescor, me faz querer continuar. Quais seus autores preferidos? Clarice Lispector e Machado de Assis são meus clássicos. Amo poesia. Pessoa e Drummond, junto com Hilda Hilst, sempre me acompanham. Mas adoro Kafka, Rilke, Philip Roth, recentemente, e mais um tanto. Divulgação

Seu último CD, Pelo sabor do gesto (com produção delicada de John Ulhoa e Beto Villares) é uma riqueza de pequenos detalhes, com um zelo especial em cada parte da produção do disco. Como você participa das escolhas? O que lamento com o fim desse formato é que perdemos justamente o prazer do roteiro. Certamente não é por acaso; tudo ali é pensado em termos da ordem. Eu estou ali tentando contar uma história. Eu participo de tudo o que diz respeito a repertório, sempre. Meus trabalhos estão sempre impregnados dos meus pensamentos e das minhas escolhas. Como é para você, depois de tantos trabalhos, descobrir uma nova forma de expressar sua musicalidade, a libras (língua brasileira de sinais)? Como aprendeu? Foi uma ideia da minha querida diretora desse show, a superatriz Ana Beatriz Nogueira, que vibrou muito na criação do roteiro para o palco, que já é outra coisa. Eu aprendi só para esse momento, na música “Todos os verbos”, mas me enche de entusiasmo fazer aquilo. É muito importante olhar as coisas, valorizar o que não está no nosso mundo mas é o mundo do outro, que acaba nos completando também. Você já cantou Leminski (“Dor elegante”). Sente que agora esse poema também lhe pertence? Gosta do encontro entre as diversas manifestações artísticas? Foi meu mestre Itamar Assumpção que me convidou para cantar essa parceria dos dois pela primeira vez, no álbum intitulado Pretobrás. Depois regravei com Naná Vasconcelos no Pré pós tudo. Sempre me comove; tenho muitos motivos para ser grata a essa canção. Eu abri

No curso de Letras, o que você tem gostado mais de estudar e ler? Gosto de Teoria Literária. Adoraria ter tempo pra mergulhar nisso. Fico fascinada com certos textos; nunca pensei que me adaptaria aos mais acadêmicos, mas me pego delirando com muitos deles. Existe algum poema ou personagem da literatura que a tenha marcado de forma especial? Sim; Dom Quixote e os personagens das letras de Luiz Tatit. Se não fosse cantora, o que seria: poeta, atleta? Cantora frustrada!

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Novas sobras

Escreviver

quem-aqui-escreve supõe não ter emergido uma literatura contemporânea,

Se alguém pudesse ver tudo o que eu penso, provavelmente não acreditaria. É um parque de diversões sem bilhete pra entrar e assim fica lotado. Eu sou mais fraco que eu. Minha fragilidade se abre para um mundo que pouco conheço; escrevo para conhecê-lo melhor. Ao fim de cada frase, agradeço como no fim de uma oração.

tal como o termo contemporâneo tem sido visto segundo tantos saberes,

Na minha fragilidade o mundo entra em mim e é uma avalanche. Morrer seria desperdício. Sou a bola de neve que cresce quase que ao infinito e fica mais forte. Despenco pelas ladeiras. Viver me acumula tanto.

entre eles os das artes plásticas;

Queria dizer que escrever é como tirar leite de vaca. É a alma nua ajoelhada diante daquele animal sagrado e o cumprimento do ritual: espremer, puxar. Limito-me a um balde a cada dois dias.

no âmbito da literatura, essa atitude venha ocorrendo somente talvez e de modo raro na ordem do ensaio teórico-crítico-experimental, quase poema — poema expandido; o efeito de obras esplêndidas de certos escritores realizadas lá antes — e com o poder contemporâneo semelhante ao do efeito-duchamp em arte — não se manifestou em escritas mais próximas; logo, em literatura, não se construiu um campo de forças — em sua diferença brutal — capaz de, em embate-encontro com a literatura moderna, trazer uma massa distinta de audácias de recurso e de pensamento expressas; isso, ainda, talvez, talvez. Roberto Corrêa dos Santos

Há certos dias que parecem uma anunciação. É assim: você levanta da cama e se lembra de novo dos raios de sol. Escrever é colher esses raios de sol em dias de anunciação: inventam-se mundos. Aprecio as tatuagens, embora com certa distância. Mas é que queria ir escrevendo minha história em meu próprio corpo. Palavras escritas na carne. Palavra-corpo. O horizonte amarelo que esmaece vermelho no fim de tarde. As palavras formam jogos complicados em minha mente. Barulho de cartas espalhadas. Minha recusa em agir é um tanto consciente e irreal. É o portão que se fecha segundos antes do carro chegar e a frustração. O vaivém do balanço naquele fim de tarde. Tudo o que escrevo são jatos de tinta na parede, e não há ninguém com um pincel para alisá-los. São meus esforços incompletos que se estiram pelo chão gritando. Sinfonia. A lâmpada e, dentro dela, um inseto morto há algum tempo (já o havia visto antes). Estala e incandesce: viver e suas surpresas dentro. Não saber sobre o que escrever já se tornou constância. A parede lisa e os borrões de tinta. Total que — não achei expressão semelhante em português a esta em espanhol, que parece trazer tudo a um clímax e encerrar um resumo —, total que já não sei. Sinfonia, não — rapsódia. Por isso escrevo mundos e escrevo vida e vivo. Vivo porque escrevo — o absurdo. O clique do gatilho, prestes a explodir e o clique das teclas, uma após a outra, em ritmo descompassado. I’ve never loved nobody fully, always one foot on the ground. Custa escrever a palavra amor. A-mor. É que lembra morte. Amar é morrer-escrever, talvez. O teclado encharcado de lágrimas. Se escrever é só metaforizar, então melhor parar (bem como parar de rimar ar com ar). Amor, a morte, a continuação. Escrever é também citar, às vezes. Já duas em apenas dois parágrafos. E o coração, cheio de pulsação por vida mas a incapacidade. São mil citações de fora, palavras gestos continuações. Continuar vivo parece prescindir o esquecimento das citações. Mas quem sou eu, este conjunto de citações e um pouco de originalidade? Senão. Escrevo parecido com alguns escritores que admiro. Nada se cria, tudo se transforma (mais uma). Eu me transformando em mim.

Azul-mar Sinto muita saudade de você, tem dias que eu sinto que sou ilha perdida no meio de tanto mar como fui me separar? de um continente tão forte deixei pra trás muita terra segura passei por tempestades tormentas, chuvas imensas e agora uma calmaria em que paro tudo e observo do mirante o oceano, atlântico pacífico, gigante

Melhor escrever para crianças. A criança em mim. Infância e rancor. Palavras que ficaram contidas. Explosão. A pétala da flor que não conseguiu se abrir e murchou. A lagarta que nunca saiu do casulo, e as asas que não ruflaram de par em par. A pior das dores é aquela que não é sua. É entrar dentro de um filme e sentir-se personagem. Não quero escrever por identificação. Ser autobiográfico ou não, dane-se, não importa, importa enxergar. Venha ver o pôr do sol. Palavras-espelho. Palavras e paisagens e pores de sol. Escrevo porque me faltam as palavras e de repente aparecem. E o fim do texto. Imaginei que seria um happy end. Escrevo rápido e releio às vezes. Escreviver. Melhor deixar assim em aberto: a possibilidade: pisar no pedal e fixar a nota do piano: a flor que renasce: o reino que está por vir e a esperança: o dia que se chama hoje: meu caminho em direção ao mar.

Rafael Magalhães

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Miguel Del Castillo


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