Jornal Plástico Bolha #35

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plástico bolha

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Distribuição Gratuita

Ano 9 - Número 35

leve literatura

Capivara queria que meu signo fosse de capivara do zodíaco da beira do rio até a calçada. força na terra e leveza na água. Matheus José Mineiro

DESTAQUES ENTREVISTA EXCLUSIVA COM CLEONICE BERARDINELLI UMA LEITURA DE CHICO BUARQUE POR ANTONIO MATTOSO NA COLUNA ORÁCULO UMA DOBRADINHA POÉTICA ENTRE ALICE SANT’ANNA E DOMINGOS GUIMARAENS ILUSTRAÇÕES DE PEDRO ZYLBERSZTAJN, ANGELO ABU, HEINZ LANGER E RAÏSSA DEGOES A PALAVRA ACESA DE JOSÉ CHAGAS NA COLUNA NOTAS NO PLÁSTICO, POR MAURO FERREIRA PALÍNDROMOS DE GREGÓRIO DUVIVIER, SOFIA MARIUTTI, TOMÉ LAVIGNE, MARINA WISNIK E PAULO HENRIQUES BRITTO POEMAS DE NICOLAS BEHR, CLARA DE GÓES, PEDRO LAGO, OTÁVIO CAMPOS, LEONARDO FERRARI, LAURA ASSIS, MARILIA KUBOTA, ANDERSON PIRES DA SILVA, ADIRON MARCOS, LARISSA ANDRIOLLI, CARLOS FREDERICO MANES, MARIA DE ANDRADE E MAÍRA F.


BOLHETIM Alegria pura...

Chegou a Antologia de poesia É com muita alegria que anunciamos a chegada da Antologia de poesia Plástico Bolha! São 73 poemas, 73 autores e oito anos de história reunidos em um belíssimo livro. Depois de um dificílimo — mas prazeroso — processo de seleção, em que voltamos à cada edição buscando os textos que melhor comporiam esse projeto, chegamos aos poemas mais representativos da história do jornal. O lançamento da Antologia de poesia Plástico Bolha marca também a chegada da editora OrganoGrama Livros, e, com isso, outras antologias e projetos irrompem em horizontes próximos: esse é apenas o começo! Quer adquirir seu exemplar? Entre em contato conosco.

Heinz Langer

Essa edição está mais do que especial! Além de celebrar a chegada da Antologia de poesia Plástico Bolha, estas páginas estão recheadas de uma saborosa entrevista com d. Cleonice Berardinelli, mestre nos estudos da Literatura Portuguêsa; além de textos vencedores do Prêmio Paulo Britto de Prosa e Poesia; uma seleção insólita de palíndromos no desafio poético e muitos outros versos! Aprecie as delícias de nosso cardápio: sanduíches de lagartixa ou capivara, Moby Dick ao molho de ostras, gato preto batido com centauro, peixe de aquário com asas de borboletas e muito mais. É muita tentação? Não sabe qual escolher? Prove todos, essa edição está o bicho!

EDIÇÃO Lucas Viriato | Tomé Lavigne CONSELHO EDITORIAL Augusto Guimaraens Cavalcanti | Maria de Andrade | Marilena Moraes DIAGRAMAÇÃO Tomás Bastos | Mariana Castro Dias REVISÃO Marilena Moraes EQUIPE Mariana Salim | Rodrigo Leite Pinto WEBDESIGN Henrique Silveira

Plástico Bolha agora com ISSN Isso significa que todos os textos publicados no jornal, desde a sua primeira edição, podem ser inseridos de modo mais formal no currículo de cada autor. Além disso, a aplicação do ISSN auxilia o controle da produção editorial do país, promove a identificação de títulos, a recuperação e transmissão de dados, além de melhorar a organização de acervos e bibliotecas. Nos catálogos coletivos nacionais e regionais, o ISSN facilita as operações de identificação, localização e indexação de títulos, transferência de dados e fusão de acervos. ISSN: 2318-972X

EDIÇÃO de maio de 2014

DISTRIBUIÇÃO Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Espírito Santo, Bahia, Piauí, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Distrito Federal.

Ajude o Plástico Bolha

TIRAGEM 13.000 | IMPRESSO na ZM Notícias ISSN: 2318-972X

Envie seus textos através do nosso site ANUNCIE NO PLÁSTICO BOLHA contato@jornalplasticobolha.com.br

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pra quem guarda papel


não tente gostar de Brasília tão rápido assim

blocos de verdade sobrevoam superquadras imaginárias

superquadras à procura de uma cidade Nicolas Behr

Pedro Zylbersztajn

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ANARQUISTAS COROADOS

Rondó da lagartixa

Welcome to Brazil

E lá fomos nós.

no meio do sanduíche

If you want be a poet today

Percorrer os arredores

o rabo da lagartixa

You must be clean

do cinema Odeon.

encolhe espicha

& talk bad brazilian english

Lá onde um velho

picles de linguiça.

pedia água no botequim

Brazil is rich powerfool

e o batalhão silenciava

no meio do sanduíche

Everybody speak english in Leblon

em segredos.

o rabo da lagartixa

& planet music too

Lá onde a luxúria escorria

encolhe e espicha

pelas mesas do hotel para

nacos de bochecha.

solteiros e a Lapa começava

One day you will know The law is white

a ferver em utopias. Lá fomos nós.

o rabo da lagartixa

Na gênese de pequenos universos

estica, recolhe,

que se entreabriam nos detalhes.

como o dedo da bruxa

Passo a passo pela madrugada, que nos oferecia um gosto amargo

no meio do sanduíche

e era bom e crescia.

— um carnaval de sabor!

Lá onde as imperfeições

comido com piche.

junto aos odores das calçadas formavam uma ópera de espantos,

Marilia Kubota

um drama da desgraça e da beleza das vísceras. Seguimos entre sons e rutilamentos, pelas luzes das barracas e os bares cheios. Tropeçamos nos meios-fios, rindo dos problemas, como quem se liberta das masmorras. E nos embebedamos como dois bárbaros exaustos, trincando copos, fora do veneno, dentro do grito, na coroação da nossa anarquia.

Pedro Lago

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But the judge is dark. Anderson Pires da Silva


Jogos

Despacho para Thiago Florêncio

Acendo devoto

Paladino ou mago? O garoto hesita

invoco no vento

entre espada flamejante

o olho do fogo

ou bastão transformador.

chama que chama. Mundos esquivos estendem florestas

Fogo na vela

bytes

navega amarela a onda pequena caravela ao vento.

tijolos amarelos. Pais, assustados, convidam-no a passear na cidade

Levanta bate

de cimento e sujo. Inútil.

míngua.

O bracinho ágil não quer o sal da terra.

Balança ginga

Quer desenhar com o mouse

esquiva.

místicos, traiçoeiros anéis. Com um clic mapeia o universo.

Zoa um raio

Com dois destrói tudo;

raiz riscado

cria e recria

grito rascado

polígonos de mistério e graça.

faísca das mãos. Já o tempo, hábil jogador, Azuis amarelos

num único lance

brancos vermelhos

rouba-lhe decisivos,

negros.

inadiáveis pontos. Carlos Frederico Manes

Maria de Andrade

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XIII

Petrékio

Chão à memória de Antonio Petrek

um gato preto cruza uma rua preta de um mundo

Cidade dos homens: vi as horas

inexistente

andarem ruas inteiras

O silêncio não é o melhor meio de conter acidentes.

querendo aboio dos pássaros, um mundo preto

Corpo escolha luz sorte

atrás de espelhos - Mistério.

detalhe perda relógio tudo

tão/tal que não há qualquer negativação ou superstição

sendo o gato um gato apenas sem uma luz que o ofenda e o rebata em parede vizinha

existe além da linguagem

Nuvens cambonam raios, falam trovões sobre os ouvidos

(seu nome:

já fartos de politices,

serial de rumores

desabam tardes sobre edifícios

que nada diz sobre seus gestos).

de tamanho superior à sua figura

e sobre os carros despidos de seus cavalos. Vi centauros e peixes

uma criança não chora com a imagem do monstro no seu quarto o gato não se arrepia

o livro do mundo

apagando o sol, deixando a sala

seja também

(em silêncio), a própria música

saber perdê-lo.

não se permite

Antes do ruído,

dormir no fundo dos Mares,

não se fragmenta

Talvez ler

a vida é.

na cidade dos homens. é sua própria sombra

Laura Assis ser poeta é desentender.

cruzando a madrugada

Otávio Campos

Adiron Marcos

www.leonardodavinci.com.br Av. Rio Branco, 185 – Subsolo – Ed. Marquês do Herval Centro – Rio de Janeiro/RJ Tel.: (21) 2533-2237

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NOTAS NO PLÁSTICO

miopia

por MAURO FERREIRA

Baleiro acende a palavra do poeta José Chagas nunca entendi quem diz que o amor é cego o amor é lente grossa põe o mundo em foco e me faz ver tudo que nunca vi ajeito a armação no rosto e vejo: o porta-retrato ao lado da cama a sombra clara do futuro a palavra nova por trás do poema já gasto tal qual vista mal-acostumada estranho ficar sem você nos olhos

Larissa Andriolli

Há uma aurora desnorteada em minha cama. Teima em amanhecer. Os horizontes estão cansados e o tempo adormeceu. Ela, no entanto, semeia cores rubras em meu corpo branco e farto duna inacabada Moby Dick ferida anoitecer.

Clara de Góes

Nascido em Paiancó (PB) em 29 de outubro de 1924, o poeta paraibano José Chagas passou por Teresina (PI) antes de se radicar em São Luís, no Maranhão, a partir de 1948. Foi no Maranhão que Chagas abriu caminho para sua escrita em prosa e verso. E foi por essa vivência maranhense que o cantor e compositor Zeca Baleiro — ilustre filho da terra do tambor de crioula — decidiu celebrar os 90 anos que o poeta vai completar neste ano de 2014, mais precisamente em 29 de outubro, com a produção do disco intitulado A palavra acesa de José Chagas. Editado pelo selo de Baleiro, Saravá Discos, o CD foi produzido pelo cantor juntamente com Celso Borges. A dupla selecionou 12 poemas de Chagas para serem musicados e interpretados por um time de cantores e compositores que soma mais de 20 nomes, a maioria da Nação Nordestina. Outros dois poemas — A palafita (do livro Maré memória, de 1973) e Palavra acesa (do livro Os telhados, de 1965) — completam as 14 faixas do tributo, mas já tinham melodias preexistentes, feitas por Fernando Filizola e Toinho Alves (1943 - 2008) para o álbum Até a Amazônia?! (1978), do grupo pernambucano Quinteto Violado. A versão musicada do poema A palafita é ouvida no CD A palavra acesa de José Chagas nas vozes de Lula Queiroga e Silvério Pessoa. Já Palavra acesa ganhou a interpretação do próprio Baleiro, que musicou o poema Noturno nº 2 (do livro Canção da expectativa, de 1955), cantado por Fagner com Susana Travassos. Também da produção feita para o disco, A vida é ciranda ganhou melodia de Josias Sobrinho e a voz de Marcia Castro. Este poema é do livro Os canhões do silêncio (1979), no qual Chagas também apresentou Sobrado, cujos versos foram musicados por seu conterrâneo paraibano Chico César, também o intérprete do tema (em dueto com o cearense Ednardo). Detalhe: o próprio José Chagas recita três poemas no CD ao som de trilhas incidentais compostas por Zeca Baleiro. Suas palavras poéticas continuam acesas. Confira mais textos em blognotasmusicais.blogspot.com

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Último desejo Há pouco mais de duas semanas, Aurora recebeu e-mail das irmãs, em que reconheciam o imenso valor psicológico de sua dedicação no decorrer dos anos, desistindo assim da parte que lhes cabe no apartamento. A voz grave e forte lia a mensagem alto, para as paredes, como se fosse um político em campanha. E se alguém ouvisse? O que é que iam pensar dela? A mãe esticada, ainda quente, olhos encovados, no quarto ao lado. Aurora estudava a mensagem impressa. Entendia-se melhor com papéis do que com a tela de computador. As irmãs não haviam chegado, ocupadas com as respectivas famílias. Ela é que teve de enfrentar sozinha a situação. O principal da herança lhe fora concedido. A divisão entre as três se daria apenas quanto ao dinheiro aplicado no banco. No passado, chegou a pensar que o pai fosse capaz de perder no jogo o segundo andar da cobertura. Morreu antes. Já refletiu muito sobre isso e concluiu ter sido melhor. Do contrário, a mãe não suportaria, terminando por se matar ainda mais cedo. Sim. Porque só pode ser suicídio, uma lenta agonia, o que ela resolveu fazer consigo, desde que tiveram de demitir o motorista, a governanta, deixar de receber em jantares, e nunca mais degustar um Veuve Clicquot. Pelo menos, foi possível conservar a cobertura. A mãe não teria morrido dignamente num apartamento menor e Aurora... Bem, como poderia agora receber as visitas de pêsames e hospedar as irmãs, sobrinhos, os cunhados que são uns queridos? Tudo isso sem um sofá para quatro lugares num living que não comportasse três ambientes? Não daria certo. Além do mais, apesar do trânsito crescente na avenida ou do excesso de turistas estrangeiros acompanhados de moças brasileiras... Apesar disso, convenhamos, ela e a mãe moravam bem. Indevassáveis. Com vista para o mar. Sentiam-se seguras com as comunidades recém-pacificadas a algumas quadras. Mas nada disso interessa agora. O importante é que tinha achado linda a mãe morta. A primeira providência foi escolher o vestido com o qual seria enterrada. Optou por um tom beterraba. Que valorizasse a cor da pele. E um modelo com acabamento de laço no pescoço. Que escondesse o colo magro. Delicadamente aplicou a maquiagem. Mas elogios, esperava recebê-los por conta da peruca, perfeitamente apropriada, segundo suas próprias palavras: Minhas irmãs não estão habituadas e achariam a coisa mais diferente eu vestir mamãe pela última vez. Sendo que a notícia desse ato,

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tão nobre, tão puro, das irmãs em relação ao apartamento, superara todas as expectativas. O e-mail ela imprimiu, leu e relê agora, não muito certa se as irmãs viriam. Deixou as malas arrumadas, no chão, ao pé da cama: vou sair por algumas semanas. Com parte do dinheiro que está no banco. Será que vão achar um absurdo eu passear em pleno luto? Só eu sei o quanto mereço descansar depois do que tenho vivido e de tudo o que fiz por elas e por mamãe.

faltam na casa. Desde que a mãe adoeceu, um dos cunhados, o clínico, vem cuidando dela com a dedicação de um filho. Isto do ponto de vista médico. Porque o cuidado de todos os dias, aquele imenso trabalho inerente aos males crônicos, este ficou a cargo da filha-enfermeira. Modéstia à parte! O cunhado receita uma série de medicamentos, segundo ele, de última geração e que — diz com aquele seu jeito empostado de doutor: “proporcionam o bem-estar do paciente”. Ela achava meio sem sentido o bem-estar para E pensar que ainda ontem, como todos os dias, morrer. Precavida como sempre, mantinha na tal a mãe tomara a sopa que ela mesma serviu maleta analgésicos tradicionais, antitérmicos e conforme todas as noites. Recostou seu corpo até mesmo antigases. Mamãe deu para ter dores nos travesseiros e, nessa posição que julgou a terríveis após a sopa. Só podem ser os gases, ela melhor, foi instigante, entre uma colherada e apostava. Ontem à noite, distraída, esqueceu-se outra, observá-la. Os olhos da mãe percorreram de retornar ao quarto da mãe. Debruçada sobre o quarto e ela, dando-se por satisfeita, levantou as caixas de remédios, todas de uma semelhança timidamente uma das mãos. Até sorriu. Nessa insuportável, adormeceu sem concluir a tarefa. posição, doente, manteve-se boa parte da segunda metade da vida. Aurora se lembra de que Vou me recostar um pouco antes do velório. uma vez, após a morte do pai, a mãe começou Estou cada vez mais curvada de tanto dar banho, com umas ânsias de vômito, umas queimações a sopa, trocar fralda. Creio que assim seja feita no estômago. Foi mais ou menos à época em a vontade de Deus. Não tenho do que reclamar. que fizeram as contas, desesperadas, chegaram a Fiquei sozinha para realizar os mínimos desejos considerar a possibilidade de procurar emprego, de mamãe. Havia um remédio que o cunhadocoisa a que nenhuma das duas estava acostuma- clínico naturalmente não aprovara, mas que era da. Sentiu-se bastante triste, ela se lembra, mas um santo elixir para as azias da mãe, o picolé de foi necessário recorrer aos cunhados e aceitar abacaxi. Um bálsamo, o picolé tinha a vantagem sua ajuda para que mantivessem ao menos a dia- de acalmá-la durante horas. Até uma soneca rista duas vezes por semana. Passou a cozinhar ela tirava após as lambidas de todas as tardes, para a mãe. Passaram a viver sem testemunhas. especialmente na última semana. Não digo que Preciso sair uns dias, espairecer. E o dinheiro de o quadro tenha piorado muito neste período. que posso dispor é exatamente a conta daquele Mas a verdade é que a mãe caiu em silêncio. pacote para Buenos Aires em baixa temporada: Como assim? Perguntou a vizinha de cobertura, ah, o outono em Buenos Aires! Uma das irmãs quando conversavam através da mureta, vai reformar a casa porque dá preferência a essas enquanto esta tomava sol e Aurora observava coisas. A outra vai guardar na poupança. Tem o movimento, o corre-corre de seus netos atrás medo de o marido largá-la a qualquer momen- de um bichinho de estimação por entre as to! Eis o que diriam aos filhos em pensamento, folhagens que cercam a piscina. Como assim? olhando-os com satisfação vingativa: o quê? Não, mamãe não entrou em coma. Apenas fica Dividir com vocês o dinheiro? Como não ceder à me observando, sob os meus cuidados. tentação de gastá-lo ou simplesmente guardá-lo, como se fosse uma recompensa pelos sacrifícios E foi na manhã seguinte à tal conversa com a da maternidade? vizinha, sem ninguém por perto como era de costume e sem saber ao certo o quanto de Ontem à noite, depois da sopa, Aurora endirei- morte dispunha o corpo da mãe, que Aurora tou a mãe na cama, verificou a dobra do lençol entrou no quarto doente. A filha estava um sob seus braços e notou que ela mordeu com pouco mais descansada. Por um lado, conseguira as mãos o cobertor de lã. Infelizmente aquela dormir melhor aquela noite. Por outro, a cabeça era hora de tomar banho e teve de deixá-la. completamente aérea. Tinha nos ouvidos ainda Mais tarde, distraiu-se organizando a maleta de o vinil de Dolores Duran da noite passada. No remédios, que guarda trancada na gaveta da momento em que se curvou finalmente para ver, cômoda em seu quarto. Remédios, aliás, não a mãe se debatia, ofegante. Tentou suspender-


-lhe a cabeça, ensaiou algum movimento com os lábios como se fosse revelar um segredo. Aurora inclinou-se para ouvir. Parecia finalmente a despedida. Mamãe, o que quer afinal? Então as maçãs cadavéricas de seu rosto azulado momentaneamente inflaram e, até meio coradas, junto com o nariz adunco e os olhos fundos: se me ama tanto, como sei que ama... Se é tão boa filha, como sempre foi... Não faria mal se preparasse hoje, em vez da maldita sopa, um coelho ao vinho, como nos bons tempos. Hein? Não teve como pensar. Ocorreu-lhe imediatamente a cena do coelho de estimação dos netos da vizinha de cobertura. Num salto, alcançou o terraço, noutro a mureta, avançou sobre o apartamento ao lado, até agora não sabe como. Se acaso a tivessem pegado... Aurora se considerava valente o necessário. E na verdade foi. Capturou o animal enquanto ele saboreava morangos rasteiros em um vaso comprido que margeava o muro. O ar ficou rarefeito, embora fossem apenas oito os andares do edifício. Talvez por isso ou qualquer pretexto, o coelho não ofereceu resistência. Talvez. Ou porque lhe fora conveniente se abrigar das perseguições desenfreadas das crianças travessas nos braços de Aurora. Com o coelho espremido nas mãos, ela desceu à cozinha de seu apartamento. Mas a dificuldade maior estava por vir. Preparar a receita. Primeiro foi ao quarto avisar a mãe que esperasse, o banquete chegaria a tempo. Perguntava-se como liquidar o bicho. Não poderia usar a coleção de armas do pai. Um descalabro, além do estrondo que despertaria a atenção. Naturalmente passou pelo estômago a ideia do tanque. Alguns segundos submersos seriam suficientes, e assim foi feito. Um, dois... quatro, cinco... oito... dez... dezesseis... Aurora segurava firme com uma das mãos a cabeça do coelho debaixo d’água; com a outra apalpava o peito, e não conseguia mais parar de contar... vinte... e dois... e três... Ela ainda tem diante dos olhos os traços sarcásticos do animal. Durante esta etapa do preparo, encarava-o, e depois, já sobre a pia, aquelas pupilas transpareceram a morte. Uma baba espessa e restos de morangos saíram da boca. Melhor do que tudo isso, porém, foi levá-lo de bandeja à mãe. Assado, ao vinho, conforme desejara. Alguns não entenderiam, se a vissem. Esse foi o último desejo. Tão bem satisfeito que a mãe se contentou em continuar tomando a maldita sopa pelos dias que lhe restaram. Beatriz Castanheira

Ostracismo Abandonada à oclusão submarina, Na imutável e resignante sina, Sua exterior e pétrea cortina Cobrindo a interna e líquida ruína.

Disforme e impenetrável armadura, O esconderijo da amorfa feiura. Era impensável que esta sepultura Desenvolvesse a pérola mais pura.

Leonardo Ferrari

Pedro Zylbersztajn

PÃES ANTEPASTOS MASSAS MOLHOS PIZZAS SALGADOS DOCES TORTAS www.ettore.com.br | @EttoreCucinaIT | facebook.com/ettorecucinaitaliana Av. Armando Lombardi, 800 - lojas C/D/E Condado de Cascais, Barra da Tijuca - Tel.: 2493-5611 / 2493-8939 Av. Vice Presidente José Alencar, 1350 - loja F - Cidade Jardim - Tel.: 2512-2226 / 2540-0036

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DESAFIO POÉTICO Preparamos para esta edição uma seleção de palíndromos — aquelas frases que, lidas de traz pra frente ou da frente pra trás, dizem a mesma coisa! Vamos juntos subir no ônibus em Marrocos, sem pedir socorro, e curtir esse desafio poético! Ora, Elena, anel é raro!

o -me Soluçóculos sem ier Duviv o i r ó g Gre

Paulo Henriques Britto Amar dá drama.

é pesado? foda-se, pé.

Gregório Duvivier

aja ir, co Oda

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SIM aé adu boc bo e a ar (aca é a bab ba, a b - ov o no abaca) vo a cab bab aaca a ba , ba é a co eo Bud bra, aé amo Mis sa é r... assi m . Tom é La vign e

sa ca? A ca ada, sa l ci r ice é l vivie ’A u d D ório Greg

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só n Odilon Sued ataca Ecila, e Alice acata Deus no Lido. Paulo Henriques Britto

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Ando seleto: hotel é só DNA Gregório Duvivier

E até cu buceta é. Gregório Duvivier

No último mês de abril aconteceu o evento Plástico Bolha contra o golpe: a poesia e o silêncio, na Biblioteca Popular da Tijuca, Rio de Janeiro, relembrando os 50 anos do golpe militar no Brasil. A partir desse mote, propomos o desafio poético da próxima edição do jornal. Escreva seus versos sobre esse triste período da nossa história e mande pra gente. Não existe censura no PB! Envie seus poemas para desafio@jornalplasticobolha.com.br

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ORÁCULO

por ANTONIO MATTOSO

Choro bandido, uma leitura ou a poesia fala grego A coluna Oráculo participa das comemorações dos setenta anos de Chico Buarque de Holanda, cinquenta dos quais dedicados à cultura brasileira. “Resumo de três anos de música”, escrevia Chico na contracapa de seu primeiro disco (1966). Essa data, além de memorável para um artista genial como Chico, permite tanto uma visão retrospectiva quanto prospectiva de sua obra. Para uma leitura possível, a coluna elegeu a canção Choro Bandido, parceria com Edu Lobo, composta originalmente para O Corsário do Rei, peça escrita e dirigida por Augusto Boal, e registrada por Edu Lobo e Tom Jobim no disco homônimo (1985). Coincidentemente, em 1993 seus autores viriam a gravá-la em seus discos Paratodos e Corrupião. Acreditamos a canção subsistir por si mesma, independentemente da peça e de seus 29 anos de existência, pela universalidade de sua temática e pelo primor de sua melodia, da qual, perdoe-nos Edu, cujos setenta anos foram festejados ano passado, pouco falaremos. Os gregos denominavam a música pelo vocábulo mousiké, a arte das Musas, que se compunha de verso, épos, e canto e acompanhamento musical, mélos, melodia. Originalmente, as composições gregas integravam manifestações culturais vivas e potentes em que se verificava a presença do divino, fossem as Musas, nos cantos épicos, Dioniso e Eros (entre outros deuses), nas canções de banquete, ou apenas Dioniso no teatro. Tal fato as torna únicas a cada performance. Se abstraíssemos esse vínculo com o sagrado, a MPB seria talvez um exemplo plausível. Na mitologia grega, excetuando o trácio Orfeu, detêm o monopólio da música três filhos de Zeus: as Musas e Apolo, relacionando-se com inspiração poética e o canto, e Hermes, com poíesis dos instrumentos musicais. Na impossibilidade de ouvir a canção que o maestro soberano Antonio Brasileiro lamentava não ter composto, transcrevêmo-la abaixo como consta no livro Chico Buarque Letra e Música 1 (Companhia das Letras, 1989), meditando sobre seus versos, sem considerar, no entanto, como estes se inserem na ação dramática da peça. Mesmo que os cantores sejam falsos como eu Serão bonitas, não importa São bonitas as canções Mesmo miseráveis os poetas Os seus versos serão bons Mesmo porque as notas eram surdas Quando um deus sonso e ladrão Fez das tripas a primeira lira Que animou todos os sons E daí nasceram as baladas E os arroubos de bandidos como eu Cantando assim: Você nasceu para mim Você nasceu para mim

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A primeira estrofe é composta por 14 versos e se estrutura a partir da tensão entre cantores e poetas por meio das concessivas mesmo que (1) e mesmo (4) e sua produção, canções e versos, enfatizados pela propriedade

atribuída a cada um, cantores falsos e poetas miseráveis em antítese a bonitas canções e a versos bons. Perpassa também nesses versos a tensão entre o gênero poético e o particular, o eu da canção a quem está consagrada a primeira estrofe, e também a canção entoada pelo eu. No início havia o cantor, aoidós. Os aedos, inspirados pelas Musas, recriavam os versos a cada audição, acompanhados por instrumento de corda. A ideia de poeta como aquele que faz versos ou um poema de acordo com o sentido original do verbo poieîn, isto é, fazer e fabricar, é posterior. Na sequência, o vocábulo mesmo (6) ganha uma nova significação como um denotador de inclusão, possibilitando uma clara referência ao Hino Homérico a Hermes. Conta o narrador do hino que Hermes, após o seu nascimento, deixa o berço e, ao encontrar uma tartaruga, pensa no melhor proveito que poderia tirar dela: um antídoto contra a magia, já que na antiguidade o animal era capaz de repelir poderes mágicos, ou um instrumento musical, a lira. Portanto, para Hermes, a tartaruga se relaciona a um kairós, uma oportunidade, momento oportuno, e à sua tékhne. Chico selecionou justamente o sacrifício e a morte ritual da tartaruga que gera a lira e a música, atualizando-a com canção entoada pelo “eu” do poema em que manifesta pela primeira vez o “você”. Você nasceu para mim / Você nasceu para mim (13 / 14). Mesmo que você feche os ouvidos E as janelas do vestido Minha musa vai cair em tentação Mesmo porque estou falando grego Com sua imaginação Mesmo que você fuja de mim Por labirintos e alçapões Saiba que os poetas como cegos Podem ver na escuridão E eis que, menos sábios do que antes Os seus lábios ofegantes Hão de se entregar assim: Me leve até o fim Me leve até o fim

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A segunda estrofe, também com 14 versos, apresenta o “eu” e o “você” em relação, e se estrutura formal e especularmente à primeira, com a inversão, porém, de alguns signos. Agora a tensão se dá entre a canção entoada pelo eu por meio da concessiva mesmo que (15) e a musa em tentação. O sema musa adquire uma ambivalência. Na cultura grega, pelo fato de elas conhecerem o que é, o que será e o que era antes, isto é, serem todo sapientes, presidem à memória sem a qual o cantor não consegue imprimir eficácia a seu canto. As Musas inspiram, como um sopro, mas são os cantores quem as ouvem, no caso a musa da poesia lírica e do amor, Erato, que etimologicamente se liga ao verbo érasthai, amar. Ademais, a musa se torna não só um particular, a mulher amada, mas também objeto de inspiração e ainda ávida de

ouvir a canção. Repete-se o vocábulo mesmo também como um denotador de inclusão, introduzindo-se dois versos que, a nosso ver, sintetizam toda a canção Mesmo porque estou falando grego / Com sua imaginação (18/19). Chico desfaz o sentido conotativo de falar grego em português, ser ininteligível. Está, em verdade, falando grego, mas com a imaginação, isto é, com a possibilidade de o pensamento em seu modus cogitandi pôr em movimento imagens e símbolos cujo conjunto constitui o imaginário de um povo, no caso, o grego. Não dissentimos de nosso cantor, a poesia fala grego. Entre as escolhas lexicais, encontramos em toda a canção cinco palavras de origem grega: poeta, repetida duas vezes, lira, musa e labirinto. Se a primeira inversão se dá pelo sentido da audição, a musa ouvinte, agora a concessiva mesmo que (20) instaura o da visão, o poeta como um cego vidente, segundo a tradição. Chico resgata o mito cretense do rei Minos, desejoso de esconder o Minotauro, fruto do amor da rainha Pasifae e do touro divino, que Posídon fizera emergir do mar. O rei ordenou ao tekhnítes Dédalo a construção do labirinto para ocultá-lo. O labirinto é, por excelência, um espaço de desorientação e aporia. Essa imagem se duplica na armadilha dos caçadores, o alçapão. A fuga se transforma, então, em captura, acrescida do fato de que o poeta, segundo um tópos da cultura clássica, é mántis e vate. Reza a tradição que o príncipe dos poetas, Homero, era cego. Capturada enfim, só resta à musa se entregar. Se por um lado a primeira estrofe se fecha com a canção entoada pelo eu, a segunda, por outro, termina com a fala da musa entregue Me leve até o fim / Me leve até o fim (27/ 28). Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso Serão bonitas, não importa 30 São bonitas as canções Mesmo sendo errados os amantes Seus amores serão bons. A última estrofe se fecha como um círculo, apresentando o mesmo esquema formal do início da canção, introduzindo-se, no entanto, a primeira pessoa do plural, nosso, i. e. o cantor-poeta, em uníssono com sua musa e a ideia de Eros, por meio do nome de agente, amantes, e de ação, amores, com seus respectivos atributos, “errados” e “bons” (32 / 33). Ao subtrair da canção o que lhe é essencial, sua melodia, fizemos uma experiência radical de leitura, que evidenciou a excelência de seus versos. Poderíamos considerá-la poesia? Em seu depoimento para o documentário Palavra Encantada (Helena Solberg, 2008), Chico recusa a alcunha de poeta, justificando que as palavras em suas canções estão a serviço da melodia. Reconhece, contudo, o valor poético de algumas de suas letras. Choro Bandido apresenta uma reflexão sobre a universalidade da canção, servindo-se da própria canção a partir de sua arkhé na Grécia, mas inserida magistralmente em um gênero de música popular brasileira, o choro, ou choro canção, talvez. Evoé, Edu. Evoé, Chico.

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DOBRADINHAS por ALICE SANT’ANNA & DOMINGOS GUIMARAENS CARNAL

conversamos longamente sobre o calor

noite quente

depois caminhamos pelo bairro

onde nada te diz

apontando os prédios antigos

tudo te sente

que não têm espaço para instalar ar condicionado e mantêm a fachada

calor de lua

original enquanto os moradores esperam

temperatura

dias melhores e dormem

dourada de céu preto

Raïssa Degoes

na varanda ou não dormem

um corpo

nada virando de um lado para o outro

multidão siamesa

na cama com um ventilador que gira e que só

de milhares de cabeças

quando mira a cama dá um sossego

onde a borda de mim toca

e pensando bem é assim quase o tempo todo

o centro da tua alma

uma metáfora barata da vida: esperar

ocupando as ruas que já foram mar

o momento em que o ventilador aponta

e que no resto do ano

Anabela Mota Ribeiro

para si e quando está a ponto de dar um refresco

derretem saldos comerciais

já se sofre só de pensar que logo depois é mais um longo tempo no hálito quente sem trégua

hoje não

esse verão está ainda pior ou dizemos isso

noite quente

CLIQUE AQUI O site da renomada jornalista portuguesa Anabela Mota Ribeiro traz artigos, entrevistas e resenhas, abordando diversos tópicos nas áreas da cultura, sociedade, negócios e política. Entre muitos temas interessantes, destaque para a sessão duetos, onde Anabela nos apresenta entrevistas realizadas em forma de um bate-papo envolvente e muito bem conduzido, juntando sempre dois convidados unidos por temas de interesse comum.

cheia dessa sensação de dia

toda vez e no verão seguinte

te abraçando num contato

esquecemos e sentimos tudo de novo

segredos de pele

pela primeira vez aqui costumava se dizer

CBSS

que era a terra da garoa

O nome do projeto é a sigla para Contemporary Brazilian Short Stories; criado em 2011, tem como objetivo a divulgação de autores brasileiros entre falantes (e leitores) da língua inglesa, apresentando nos Estados Unidos e mundo afora uma pequena amostra da produção literária de contos tupiniquins de autores contemporâneos. Atualizado todo dia primeiro e quinze de cada mês, o site apresenta também pequenas biografias, com fotos e informações interessantes de cada autor. Ao final de cada ano, é produzida uma antologia com os contos publicados na página, contribuindo ainda mais para a difusão dos nomes brasileiros. Já são duas lançadas nessa belíssima iniciativa.

verão em todos os poros

agora o cabelo colado à testa a pele morna

cada lágrima de sal

sentamos de costas para o cemitério

suor do encontro

comentamos sobre os jogos de inverno

abraço coletivo

um esporte em que se plana no ar antes

multidão

de enfim aterrissar na neve

em êxtase

talvez o verão já esteja no fim e não precise mesmo comprar um ar condicionado

Domingos Guimaraens

dessa vez o ventilador quebra o galho vamos ver

Alice Sant’Anna

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ENTREVISTA

por BETE PEIXOTO e CONVIDADOS

Cleonice Berardinelli abre o jogo Para esta edição, o Plástico Bolha reuniu um time de professores, amigos e admiradores para entrevistar a professora Cleonice Berardinelli, grande mestre da Literatura Portuguesa, eleita em 2009 para a Academia Brasileira de Letras. A três meses de completar 98 anos de idade, 70 deles dedicados ao magistério, ela recebeu recentemente o título de Dra. Honoris Causa da Universidade de Coimbra. A defesa da primeira tese acadêmica no Brasil sobre Fernando Pessoa, a amizade com o poeta Manuel Bandeira, a infância, estas e muitas outras histórias estão neste bate-papo delicioso, repleto de entusiasmo pela vida e pelo saber. Adriana Calcanhotto: D. Cleo, conte da importância dos papos-de-anjo na sua relação com Manuel Bandeira e da primeira visita à Academia, ou melhor, à “confeitaria” da Academia. Manuel Bandeira foi um grande amigo meu, eu posso dizer é um grande amigo meu, porque, para mim, ele continua sendo um dos meus melhores amigos, uma pessoa encantadora, suave, gentil, generosa, inteligente, alguém de quem realmente eu gostava e de que gosto muito. Numa ocasião, tive uma ideia, e nós a executamos juntos. Comentei com ele: “Ó Manuel, eu ouvi na rádio MEC que vão fazer um programa sobre Shakespeare. Achei ótimo, pois, naturalmente, vão chamar alguém muito competente, como fizeram com o do Dante, mas e Camões, fica onde?” Ele virou-se para mim e perguntou: “Você o faria?” Eu respondi: “Claro que sim.” Ele acrescentou: “Pois então vou telefonar ao Murilo Miranda, que é meu amigo — e era o diretor da rádio — e vamos encontrá-lo muito brevemente.” No dia seguinte, Manuel me telefonou para combinar o encontro e indagou se eu tinha alguma ideia para o título do programa. “Não Manuel, respondi, eu não tenho essa prática de nomes de programas para rádio.” Ele então sugeriu: “Que tal ‘Camões, poeta de todos os tempos’?” Eu logo concordei. Naquele tempo, eu tinha um carrinho e era muito fácil encontrar vaga diante da porta da Rádio MEC, na Praça da República. Bete: Que tempo era esse? Já faz tempo, esse tempo. E uma coisa horrível é que eu não tenho os programas, se perderam. Fui redatora de programas literários com fundo musical durante 20 anos, de 1962 a 1982. Bem, voltando um pouco atrás: Manuel era meu colega na Faculdade Nacional de Filosofia, ele professor de Literatura Hispano-Americana, eu de Literatura Portuguesa, e ambos fazíamos sempre parte das bancas de Língua e Literatura Espanhola. Bete: E os papos-de-anjo? Ah! Os papos-de-anjo. Várias vezes, Manuel insistia: “Cleonice, você tem que conhecer a Academia Brasileira de Letras, eu quero levar você lá para fazer um lanche comigo, quero apresentá-la aos meus amigos, meus colegas.” Eu dizia: “Manuel, eu não tenho muito tempo, até que tenho curiosidade de ir, mas é tão complicado, tanta coisa para fazer, estou tão ocupada e lá eu não conheço ninguém.”“Mas vai conhecer” — ele assegurava. Eu achei graça, e fui empurrando, até o dia em que ele disse: “Ó Cleonice, na próxima quinta-feira você vai comigo e vai comer doces ótimos, há uma baba de moça maravilhosa feita pela cozinheira de lá.” Então concordei: “Está bom, com essa baba de moça você me convenceu.” Finalmente, lá fui eu um dia conhecer a ABL e comer a baba de moça,

que era realmente uma delícia. Nessa ocasião, descobri que ele gostava muito de doces e eu lhe disse que era uma boa doceira: “Faço muito bem papos-de-anjo, bons e batidos com a mão, pois não tenho máquina, não.” “Então você fica me devendo papos-de-anjo”, disse-me Manuel, e eu assenti. A partir de então, em todas as datas de seu aniversário — 19 de abril — eu levava papos-de-anjo para Manuel. Até o fim. Os últimos dias de Manuel foram muito duros, ele ficou desanimado, muito abatido. Ele era um homem alegre, animado, brincalhão, piadista; eu gostava tanto dele... Lembro-me de tê-lo visitado no hospital; ele estava sozinho, deitado, cheguei mais perto e disse: “Manuel.” Ele perguntou: “Você veio?” Eu disse: “Vim, você acha que eu não viria?” Ele respondeu: “Ah, que bom, eu estava tão sozinho!” Eu disse: “Pois é, mas agora já não está, tem aqui uma tagarela que veio para conversar com você; olha, Manuel, amanhã é o dia do meu programa, você liga o rádio para ouvir.” Ele disse: “Eu não tenho rádio aqui.” então afirmei: “Vou trazer um rádio para você.” Eu tinha um radiozinho pequeno com um som bastante eficiente e, no dia seguinte, mandei levá-lo a ele com um cartãozinho bem afetuoso. Ao final do programa, ele ligou para mim e disse: “Cleonice, muito obrigado, ouvir o seu programa aqui foi uma companhia especial.” Um dia eu soube que ele havia tido uma piora muito grande. Fui ao hospital e disse: “Manuel, você vai ter que me dar um beijo.” Ele respondeu: “Você não me esquece.” Logo depois veio a notícia da morte, e eu me lembrei da frase de um poema dele: “A dama branca levou meu pai.”

uma colina, num fim de tarde lindo, com vários matizes de verdes, eu comentei: “Álvaro, olhe que beleza, você tem razão de gostar de vir para cá.” Ao que ele respondeu: “Pois é, a natureza é isso, minha filha, sempre tem uma beleza para dar.” Ao fim dessa conversinha, fiz uns versos inspirados nessa situação; eu tenho pena porque acho que os perdi. De volta ao Rio, no primeiro encontro com Manuel, eu disse a ele: “Lembra-se daquela menina tal e tal?” “Lembro-me, bem vagamente” — respondeu ele. “Você gosta de menina bonita — brinquei com ele, porque ele gostava mesmo — pois é, ela mandou uns versinhos e pediu-me que eu os passasse a você porque tem vergonha de os entregar diretamente; para você me dizer o que acha.” Logo depois ele afirmou: “Olhe, Cleonice, os versos não são maus, estão bem feitos, são até bonitinhos, mas diga-lhe que se ela sente necessidade de escrever, que escreva à vontade, que não é uma coisa de todo má; ela pode chegar lá, que continue a praticar.” Eu disse que havia mandado o recado a ela. Bete: Eram os teus versos, Cleonice, que danada! Aí, a danada aqui acabou confessando a ele que, espantado, exclamou: “Cleonice! Como é que você faz uma coisa dessas comigo?” Eu disse: “Está vendo? Por isso mesmo, de outra forma, se você soubesse que eram meus, iria fazer um mingauzinho doce gostoso, com a babinha de moça, mas, meu querido, eu queria a sua opinião, e você a deu!” “Mas você é má, hein, Cleonice?” “Não sou má não, eu gosto da verdade!”

Sofia de Sousa Silva: A senhora poderia contar o Bete: E ele deixou de te chamar de “Cleonice poeta”? truque audacioso que utilizou para que Bandeira deixasse de se dirigir à senhora como “Cleonice poeta”? Ah, sim, deixou! Esse truque foi uma maldade da qual eu me arrependo. A história é a seguinte. Depois que eu traduzi as Cantigas Medievais para o português moderno, Manuel, que me mandava sempre seus livros, passou a me pôr dedicatórias assim: “a Cleonice poeta, lembranças de Manuel Bandeira”; “a Cleonice poeta, um beijo do Manuel Bandeira.” Eu refutava: “Manuel, eu não sou poeta; Manuel, eu sei fazer versos, mas isto é outra história, sou capaz de fazer versos bem rimados, bem metrificados, mas não têm a chama que se chama poesia!” Ele insistia: “Pois é, mas para mim, você é poeta porque estão muito boas as suas traduções.” Um dia decidi fazer uma brincadeira com ele. Nós tínhamos uma aluna que era uma mocinha muito bonita, muito inteligente, que certa vez me tinha dito que havia tentado fazer uns versos e que não conseguira, mas que gostaria que eu visse seus poemas, para ouvir uma opinião crítica e sincera. Eram os poemas uma coisinha toda certinha, toda arrumadinha, mas não tinha a tal chama, e eu disse isso a ela, que ficou grata com a minha franqueza. Um dia, em companhia de Álvaro, meu marido, em nossa casa em Mendes, que ficava no alto de

Jorge Fernandes da Silveira: Como se forma um bom leitor de poesia? Vou dar uma receita que foi a que me deram como leitora de poesia. Desde criança, tive injetada em minha memória e em meu gosto, em minha alegria e em minha satisfação, a poesia. Eu tinha quatro anos e já sabia de cor sonetos que nem fáceis eram, complicados mesmo, em ordem bem arrevesada, mas eu fui adorando aquilo tudo. Sempre que havia uma visita em nossa casa, meu pai perguntava — com grandes piscadelas de olho da minha mãe que achava que aquilo não se podia fazer, que era maçar o visitante: “Você gosta de poesia?” Se a pessoa respondia afirmativamente e com convicção, papai revelava: “Pois Cléo diz poesias muito direitinho, ela adora e tem uma memória formidável.” Então a visita, com certeza metade por gentileza e talvez metade por convicção própria, dizia que gostaria muito de ouvir e perguntava o que eu sabia. Eu respondia: “Eu sei uma porção de versos, sei sonetos.” As pessoas ficavam horrorizadas!

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que há em si? De certo modo estou a perguntar pelo A primeira frustração. A segunda foi em São Paulo. Esque perseguiu a vida toda, pelo que a alimentou. E tudante do Liceu Nacional Rio Branco, depois do meu gostaria que me falasse dos seus sonhos que ficaram sonho de música desfeito, eu resolvi que ia ser engenheiBom, Mensagem faz 80 anos neste 2014, e, se eu pu- por cumprir. ra porque a matemática era a minha matéria predileta, desse escrever a Fernando Pessoa, diria uma coisa mais em que eu tirava invariavelmente nota 10. O diretor do ou menos como isto: meu caro Fernando, você sabe Você me faz uma pergunta inteligente, sem dúvida, mas colégio era o meu professor de português e literatura, que eu adoro Mensagem, ADORO, com todas as letras muito difícil de responder. Veja bem, em primeiro lugar, Professor Sales — de quem ouvi, pela primeira vez, o maiúsculas. Há quem considere Mensagem um livro é preciso supor que eu tenha tido todos os sonhos do nome de Gil Vicente —; e quando ele viu aquela aluna meio estereotipado, que parece manual de amor a Por- mundo, como Fernando Pessoa. Não os tive mesmo. Tive toda interessada, metida, escrevendo bem, corretamente, tugal; uma coisa muito nacionalista, meio tola, digamos, alguns, mas foram frustrados no meio do caminho, então se tomou de amores por mim. Um dia, eu ouço a sua nesse sentido de ser alguma coisa já muito explorada, vou lhe contar quais foram as frustrações de grandes voz no meio da sala de aula: “Dona Cleonice, ouvi dizer mas às pessoas que dizem isso, eu realmente gostaria sonhos que eu tive, aqueles que marcaram a minha que a senhora está pensando em estudar Engenharia. É de mandar também uma mensagem: mudem de ideia, vida, dos quais não me esqueço, mas, naturalmente, se verdade?” Após minha resposta afirmativa, ele retrucou: pensem melhor, Mensagem é uma joia; Mensagem é um eu andar um pouco mais para trás, um pouco mais para “Pois, nunca passarei numa ponte sua!” Eu revidei: “E eu livro da inteligência à flor da pele, o que não é comum minha meninice, terei tido outros, mas que ficaram perdi- o convidei a passar na minha ponte?” A turma de 45 na poesia. A poesia costuma tocar o íntimo de cada um, dos na estrada. Então, o primeiro sonho grande que tive alunos estourou em gargalhadas. Mas o professor Sales tocar o sentimento; mas neste caso, é um sentimento foi quando eu estudava música, nem mais nem menos tinha muita força e, depois do último exame, no final do pátrio, é o sentimento de um português nada piegas. do que com Oscar Lorenzo Fernandes, um dos grandes ano, fez questão de me acompanhar à secretaria e, no Fernando Pessoa, isto é, os Pessoas – porque o Fernando compositores brasileiros do século XX. Ele começou caminho, perguntou: “Então a senhora agora vai para Pessoa fala sozinho de vez em quando, mas em geral é por ser meu professor de teoria e solfejo. Fui uma aluna casa para esperar marido?” Eu respondi: “Professor Sales, um coro que nós ouvimos ao nosso lado – nada têm de bastante boa, parece que sim. Soube então que dava o senhor me acha mesmo com cara de esperar marido?” sentimentalismo exacerbado, pelo contrário. A ele eu aulas particulares de piano na casa dele, em Botafogo. Ele disse: “Não, não acho nada, mas sabe lá o que as diria que esse livro é, para mim, um prazer enorme. Perguntei à mamãe se ela me levaria, porque é claro que mulheres decidem.” Ele então fez o meu certificado de eu não andava sozinha, tinha 12 anos e só fui andar so- conclusão do curso e me disse, à porta da saída: “Pronto, Madalena Vaz Pinto: Mais de 40 anos depois da zinha mesmo com 19, não conte isso a ninguém. Alguns agora vá matricular-se em Letras.” E eu perguntei: “Em publicação do texto “Linhas mestras da Literatura anos depois, por volta dos meus 18 anos, eu tocava Bach, Letras? Existe isso?” “Ah, que bom saber!” Minha mãe, Portuguesa” (1971), em que a senhora defendia a Vivaldi, Beethoven — a Patética, de que eu gostava tanto, que não gostava da ideia da Engenharia, ficou contente criação de uma disciplina que permitisse ao aluno ter uma visão diacrônica e ao mesmo tempo sincrônica e, segundo o mestre, eu tocava muito bem —, Schubert, com a opção de Letras. A partir daí eu fiquei balançada, da Literatura Portuguesa, gostaria de saber como a Grieg, Sinding. Certo dia, Lorenzo Fernandes revelou-me porque as letras também me seduziam muito. E assim senhora pensa, hoje, a questão da legitimidade do que havia, finalmente, realizado seu sonho de fundar foi que me matriculei no curso recém-fundado de Letras ensino obrigatório da Literatura Portuguesa no Brasil, o Conservatório Brasileiro de Música e que me queria Neolatinas, na USP, para o qual os melhores professores suas implicações políticas e culturais. como assistente! Qual não foi minha enorme decepção, europeus haviam sido contratados. quando, após contar a maravilhosa novidade, em casa, Bete: Essa, então, foi uma frustração que se teria Eu acho legítimo, porque é o nosso antepassado mais as caras murchas e cabisbaixas dos pais anunciaram que transformado no maior prazer da sua vida? próximo, é a mesma língua, apesar das duas pronúncias — como dizia o mestre Hernani Cidade, com a sua comSem dúvida. Eu acho que entre ser professora de Letras petência e o tempo de serviço que já tinha: “Ó Cleonice, eu estou preocupado porque nós portugueses estamos e de Matemática, eu me enriqueci muito mais sendo cada vez mais vocalófagos!” Eu briguei por essa causa: professora de Letras, embora Matemática continue até nós criamos aquilo que se chamou o SEPESP - Seminário hoje a ser um assunto de que gosto imenso. Permanente de Estudos Portugueses, que era um grupo de discussão sobre a permanência da literatura portuBete: Qual o próximo sonho desfeito? guesa no nosso currículo, e tivemos o apoio de Antônio Gomes da Costa, do Real Gabinete Português de Leitura. O próximo e maior de todos foi com o professor Fidelino de Figueiredo. Não me lembro de nada que tenha me Bete: Poderíamos então considerar que a literatura traumatizado mais, me doído tanto. Eu o adorava, e os brasileira teve sua raiz na literatura portuguesa? colegas gostavam muito dele porque era ao mesmo tempo de uma seriedade enorme e brincalhão, tinha um Pode ser, mesmo que os brotos possam ter sido melhosorriso extremamente acolhedor. Ele e eu ficamos muito rados, mais desenvolvidos, no Brasil. Algumas escolas amigos. No final do curso me convidou para trabalhar literárias no Brasil têm uma significação que, por vários como sua assistente, com nomeação e tudo. Eu quase motivos, até políticos, não houve em Portugal. Por desmaiei. O convite do Lorenzo Fernandes havia sido exemplo, toda a poesia abolicionista e política de Castro uma coisa grande, mas o do Fidelino foi o máximo, porAlves. Uma poesia de defesa do homem, do cidadão, teve que eu aí já sabia qual era a minha profissão, sabia o que origem no Brasil que estava renegando a escravatura, queria realmente e tinha confiança no que poderia fazer. quando surge aquele menino de gênio e começa a escrever e dizer “Ó mar, porque não apagas / co’a esponja de Bete: Você respondeu naturalmente que sim? tuas vagas / do teu manto esse borrão? / Astros! Noites! meu pai, militar, havia sido transferido para São Paulo. Tempestades! / rolai das imensidades! / varrei os mares, O mundo despencou, e eu desabei. Eu estava no Rio de tufão!...” Uma poesia belíssima, apaixonadamente brasi- Janeiro, com 18 anos de idade, toda entusiasmada para Em êxtase, e em êxtase contei à minha família, em casa, leira. Além da figura jovem e bonita que tinha, ele ficou galgar postos na música, Lorenzo Fernandes dizia que eu o maior convite que recebi na minha vida. Minha mãe como ídolo popular no seu tempo, tendo conquistado poderia vir a ser uma grande virtuose, o que, para uma então me comunicou que meu pai havia sido transferido para o Rio de Janeiro. Aí, tive vontade de morrer, foi tão de todas as maneiras o seu público. garota boboca, é muita coisa, ouvir do mestre. Baixei as duro, tão definitivo, porque eu já tinha 22 anos, foi um minhas orelhinhas e me resignei. Nossa vida foi sempre baque total. No Rio, eu não tinha faculdade, não conhecia Anabela Mota Ribeiro: “Não sou nada. Nunca um verdadeiro zigue-zague entre o Rio e São Paulo. ninguém, não tinha mais colegas nem professores, nem serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, amigos. Fiquei descentrada, foi horrível, essa foi realmentenho em mim todos os sonhos do mundo”, verso de Bete: Foi este então o primeiro sonho frustrado? te uma pena cruel que me impôs o destino. Pessoa. Poderia falar de todos os sonhos do mundo Jorge Fernandes da Silveira: O que escreveria a Pessoa, felicitando-o pelos 80 anos da Mensagem?

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Bete: E os filhos? Bem, não foi agradável saber que eu não podia tê-los. Eu queria muito ter filhos, até hoje eu adoro crianças. Fiz vários tratamentos, mas não houve sucesso. Nilda, minha irmã, teve três filhos e eu transformei, afinal, meus sobrinhos em filhos, e os filhos deles são meus netos e há os bisnetos. Da mesma forma tenho netos, bisnetos e trinetos nos Estados Unidos, descendentes de uma de minhas duas enteadas, filhas do primeiro casamento de Álvaro, meu marido.

guês Moderno. Como foi a experiência da tradução? Reeditaria o livro, hoje? Traduziria outras cantigas? Sim, digo que é uma tentação que de vez em quando me aparece, mas agora estou sempre tão ocupada... Talvez mais adiante... Foi um trabalho que me deu imenso gosto fazer, traduzir tantas Cantigas. Bete: Você fez sozinha?

Sozinha, sozinha; eu não tinha ninguém, não tinha secretária, nada. Sou da primeira geração de professores forHelena Martins: Em O ano da morte de Ricardo Reis, mados em Letras, então, quando passei a ser professora de Saramago, lemos a certa altura: “Quis Fernando da faculdade, eu sabia mais do que o meu catedrático. Pessoa, na ocasião, recitar mentalmente aquele poema da Mensagem que está dedicado a Camões, Bete: E quando se meteu a traduzir, você tinha e levou tempo a perceber que não há na Mensagem convicção de que conseguiria fazer bem? Qual foi a nenhum poema dedicado a Camões, (...) e esta falta, motivação desse trabalho? omissão, ausência, fazem tremer as mãos de Fernando Pessoa, a consciência perguntou-lhe, Por quê? ...” Ah, é uma história até bonitinha. O Thiers Martins Moreira, Como interpreta a tão falada ausência de Camões da catedrático de quem eu era assistente, um dia lendo galeria dos heróis portugueses de Mensagem? cantigas trovadorescas para os alunos e traduzindo — lendo e explicando —, disse assim: “Pois é, elas são muito É uma resposta que me obriga a fazer um julgamento bonitas, o que é preciso é compreendê-las bem”. Eis um pouco negativo de Fernando Pessoa. Acho que ele que ele sugeriu uma ideia aos alunos: “Vocês são jovens, sempre experimentou no seu íntimo — ele preferia não gostam de poesia, deve haver aí uns poetas pelo meio revelar abertamente, mas de vez em quando deixava da sala; vamos combinar: na próxima aula, cada um vai escapar uma deixa — um sentimento de ser menor do fazer uma tradução de uma cantiga, vai trazer e ler aqui que Camões. Quando escreveu a primeira vez sobre a para todos nós ouvirmos, e eu e a Cleonice vamos julgar nova poesia portuguesa, estava escrevendo sobre a sua a qualidade do que vocês fizeram”. Na aula seguinte, poesia, sobre o que estava fazendo naquele momento — alguns trouxeram, mas muito pobrezinhas as traduções, uma excelente poesia inovadora, superando as escolas eles não tinham prática de trabalhar com poesia. Eu, por anteriores —, mas por outro lado diz, que é o momento minha vez, manejava desde sempre os versos com muita de surgir na língua portuguesa aquele que será o “super facilidade porque tinha um bom ouvido, isto é, a métrica Camões”, dizendo adiante “o supra Camões”. Vejam bem e o ritmo precisam do ouvido, você ouve e já sente uma que ele vai escolher as duas preposições que significam primeira aprovação ou não sente nada, vê que está bom posição superior — o super e o supra. Há nele, acho, ou não. Fui então para casa e me pus a traduzir umas aquilo que se chama popularmente de “dor de cotovelo”. cantigas, acho que as primeiras foram de Amor, as mais Ele sentia que acima dele, Fernando Pessoa, grandíssimo difíceis. O Thiers, quando viu, encantou-se e me disse: poeta, há outro que lhe faz ou pode fazer sombra: é um “Cleonice, vou mostrar a Manuel Bandeira!” Eu respondi: tal de Luís Vaz de Camões, que viveu no século XVI, cuja “Ah, não faça isso, eu vou morrer de vergonha”. Disso tudo biografia se conhece muito mal, sabe-se dele apenas resultou um livrinho, uma versão pirata que eu fiz para uma informaçãozinha aqui, outra ali. Há um dado que é mim mesma, mandei botar capinha azul com letrinhas absolutamente verídico, o de que ele foi preso pelo rei e douradas — Cantigas de Trovadores Medievais em Pordegredado para a Índia porque tinha ferido “no cabelo tuguês Moderno — dedicado a meus pais, editado em do toutiço” – a expressão é essa, está lá escrita no docu- 1953, com o apoio das Organizações Simões, uma editora mento do rei [“nuca, cabeça”] – a Gonçalo Vaz, escudeiro pequenina e pobre, cujo dono era amigo do Thiers. do rei; portanto, este Luís Vaz de Camões tem aí um dado biográfico com data e com indiscutível assinatura real. Na Bete: Traduzir, então, foi uma boa experiência? Índia ele permaneceu uma longa parte da sua vida e lá escreveu Os Lusíadas, lá sofreu, lá comeu tão mal que se Muito. Era uma descoberta a cada momento, eu ia pegandiz, em determinado momento, que era tão pobre que do macetes, maneiras de não repetir, usar um advérbio a “comia de amigos”, ou seja, comia aquilo que os amigos mais, um advérbio a menos, aumentar uma sílaba daqui, lhe davam ou lhe pagavam. É este o Luís Vaz de Camões outra de lá, acabou saindo bem bonzinho. triste, solitário, dolorosamente marcado pelo desprezo e pela falta de atenção do próprio rei para com o poeta que Maurício Matos: Como foi preparar sem orientador seria o maior do seu reinado, o maior poeta de Portugal a primeira tese sobre Fernando Pessoa em 1958? até que apareceu, no século XX, um tal Fernando Pessoa, cuja biografia é muito mais conhecida, ainda que não seja Acho que foi uma coisa extremamente difícil, eu nunca clara nem transparente. Fernando Pessoa é, portanto, um tinha visto uma tese na vida, nem sabia bem o que poeta do século XX, que sentiu pesar sobre si a sombra significava, o que era uma tese. Sabia que era uma coisa de Camões, que continua ainda a ser, este, o maior poeta que se escrevia em muitas folhas, quanto mais folhas da língua portuguesa, apesar de, digamos, à distância, melhor, ela seria mais importante, mais sonora, mais competir com Fernando Pessoa. significante, mas não sabia mais nada. Haveria regras para escrevê-la? Não encontrei ninguém que me quisesse Maurício Matos: Em 1953, a senhora publicou o orientar; o meu catedrático, Thiers Martins Moreira, me volume Cantigas de Trovadores Medievais em Portu- disse que seria muito estranho para ele orientar-me e

depois ser o presidente da banca que me examinaria;eu também achei que seria meio constrangedor para nós ambos. Naquela época ainda não havia cursos de pósgraduação, mas acabei descobrindo que podia fazer um concurso de Livre Docência, com cuja tese eu levaria não só o título de Livre Docente, como ganharia o título de Doutora. Eu havia recebido uma tese de Doutorado de Jacinto do Prado Coelho, professor de Literatura Portuguesa da Universidade de Lisboa, poucos anos mais novo do que eu, sobre Fernando Pessoa; foi a primeira no mundo, a minha foi a primeira no Brasil. Fiz a minha dividida em duas partes: uma se chama “Poesia” e a outra “Poética”. A “Poesia” era a substância poética que a poesia de Fernando Pessoa contém, e o que eu chamo de “Poética” eram todos os processos literários que ele utilizou para exprimir essa poesia. Eu estava impregnada de Estilística, que era a grande ciência defendida pelos professores linguistas Dámaso Alonso, Amado Alonso, espanhóis, e o alemão Leo Spitzer, isto é, procurava-se no texto o que o poeta dizia, a substância, e, depois, como dizia, como se exprimia esta substância, ou seja, matéria e forma. Quando eu acabei, mandei uma cópia para o professor Jacinto, que me fez elogios, mas discordava de alguns pontos de vista meus. Mostrei também ao professor José Carlos Lisboa, professor de Língua e Literatura Espanhola da Universidade de Minas Gerais, um homem extremamente inteligente e muito sensível e, por último, a Celso Cunha. Bete: E como foi a sua defesa? Encarniçada. A banca era composta por Thiers, Celso Cunha, José Carlos Lisboa, Roberto Alvim Correia e Casais Monteiro. Em pleno dezembro, dia 23, um calor do tamanho do mundo, sem ar condicionado, vestida de beca com colarinho branco e duro que, ao fim das perguntas e respostas, era mole e flexível, podendo ser enrolado. Lucas Viriato: Brincando de faz de conta, como a senhora imagina que teria sido sua vida se tivesse fugido com o circo e seguido carreira no teatro? A pergunta do Lucas é uma delícia, parecida com ele. É claro que eu nunca pensei em ir para o circo, nunca fui convidada a trabalhar no circo, mas, quando em São Paulo estava no primeiro ano da USP fazendo o meu curso de Letras Neolatinas, em que o francês era uma tônica e tínhamos um professor de literatura francesa excepcional, que se chamava Pierre Hourcade, um pessoano avant la lettre, e outro professor, também francês, Georges Raeders, este nos perguntou: “Vocês gostariam de fazer um espetáculo de teatro universitário?” Naturalmente que aceitamos, e ele quis então montar uma das primeiras peças de Molière, uma farsa chamada Les précieuses ridicules, uma peça pequenina para também ser mais fácil de decorar. Encenamos no Teatro Municipal de São Paulo, cheio até o teto e dirigidos pelo professor Raeders. Meus pais viram e ficaram orgulhosos da filha. Bete: Eles teriam deixado você ser uma atriz? Não. Deixar-me ser uma atriz, sair de casa sozinha com gente estranha, nem morta; eu sou do tempo em que os filhos obedeciam aos pais, não tinham a menor independência. Leia a entrevista completa em nosso site!

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A primeira morte quando era criança tinha um medo de borboletas como quem não suporta tamanha delicadeza desde sempre o sutil me assustou mais que todas as violências juntas mas eu com a minha crueldade extensa de criança também roubava os cigarros do meu pai para fumar escondida na cozinha e foi com a guimba adulta que maltratei muitas asas de insustentável leveza ruminando: essa é pela sua vida curta e essa é pelos voos possíveis e essa outra pelas cores que não posso ter. depois chorava um choro flácido com gosto de carlton pois era tudo demais para mim e a vida desde então já me ofendia muito.

Maíra F.

Pedro Zylbersztajn

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