A escravidão sob a terra

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Pesquisa FAPESP dezembro de 2011

dezembro de 2011 . www.revistapesquisa.fapesp.br

muriqui

Sexo é democrático nos bandos do macaco brasileiro

coração

Uma enzima pode causar insuficiência cardíaca

Obesidade e câncer

Atacar vasos sanguíneos pode ser alternativa contra gordura e tumores

ano da química

Compreensão molecular de doenças dá suporte ao avanço da medicina

cosméticos

Nanotecnologia e extratos de plantas ganham mercado

personagem

n.190

A última entrevista de Ricardo Brentani

A escravidão sob a terra Ossos e objetos achados no Rio de Janeiro dão materialidade ao tráfico negreiro


Centro de Microscopia da UFMG, coloração por Wesller Schmidt

fotolab

Paisagem aquática Parece uma geleira, mas o olhar do biólogo Arnaldo Nakamura, da Fundação Centro Tecnológico de Minas Gerais (Cetec), está voltado para águas mais quentes. E em outra escala: a imagem, registrada por um microscópio eletrônico de varredura, mostra um fragmento de concha de mexilhão-dourado, com a espessura da metade de um fio de cabelo, coletada no vale do rio Paranaíba. O objetivo do projeto é conhecer o revestimento desse molusco invasor, que costuma entupir tubulações de usinas hidrelétricas, para combater sua proliferação.

Centro de Microscopia da UFMG e Cetec Se você tiver uma imagem relacionada a pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. PESQUISA FAPESP 190 | 3


dezembro 2011

n.

190

Política científica e tecnológica 30 Homenagem

Com independência e ousadia, Ricardo Brentani promoveu a biologia molecular e fortaleceu a pesquisa sobre câncer no Brasil

34 Em sua última entrevista, o

pesquisador mostrou o que há 50 anos conferia porte internacional à Faculdade de Medicina da USP

24 CAPA Escavações na zona portuária do Rio de Janeiro revela retrato pouco conhecido da escravidão Imagens da capa  Cachimbo e brinco encontrados em sítio do Cais do Valongo Crédito  Leo Ramos

entrevista 20 Cora Marret Diretora adjunta da National Science Foundation quer ampliar a cooperação com o Brasil

seçÕes 3 Fotolab 6 Cartas 7 Carta da editora 8 Memória 10 On-line 11 Wiki 12 Dados e projetos 13 Boas práticas 14 Estratégias 16 Tecnociência 84 Resenhas 86 Arte 88 Conto 90 Classificados 4 | dezembro DE 2011

38 Datafolha

Pesquisa de opinião indica leitores satisfeitos com Pesquisa FAPESP

ciÊncia 42 Vida de primata

Convivência com a mãe aumenta o sucesso reprodutivo dos muriquis machos

48 Hipertrofia

Uma enzima faz as células se expandirem e abre caminho para a insuficiência cardíaca

24

54 Obesidade e câncer

Drogas guiadas pelos vasos sanguíneos fazem macacos emagrecer e podem ser uma forma seletiva de tratar tumores

58 Ano Internacional da Química

Celebrada nas comemorações, Marie Curie é uma das poucas químicas de destaque

62 Substâncias e análises moleculares inovam em tratamentos e diagnósticos 66 Formacão da Terra

Rochas indicam que oxigênio só passou a se acumular na atmosfera há 2,5 bilhões de anos

68 Centro da galáxia

Disco de gás ao redor de buraco negro acende a cada sete dias

tecnologia 70 Cosmética

Extratos feitos a partir de plantas e ativos nanoencapsulados são tendência entre pequenas empresas brasileiras

76 Indústria química

Polímeros substituem tijolos de argila e dormentes de ferrovias

80 Protótipos orgânicos

Objetivo de novas máquinas é economizar energia em todas as frentes possíveis


Aeronáutica

Antropologia

Arqueologia

30

astrofísica

Bioenergia

Biomecânica

bioquímica

Cardiologia

76

42 Ecologia

Engenharia

Etologia

Evolução

Farmácia

Genética

geologia

Genômica

62 História

Inovação

70

58 Medicina

Nanotecnologia

Química PESQUISA FAPESP 189 | 5


cartas cartas@fapesp.br fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo Celso Lafer Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, Horácio Lafer Piva, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, Maria José Soares Mendes Giannini, José de Souza Martins, José Tadeu Jorge, Luiz Gonzaga Belluzzo, Sedi Hirano, Suely Vilela Sampaio, Vahan Agopyan, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo

Shakespeare

Minhas congratulações ao Furio Lonza (“Aventura em Stratford-on-Avon”, edição 189). Além do belo microconto teve a coragem de dizer que acha Shakespeare um chato. Embora localize essa opinião nos seus tempos de escolar, a frase inicial “nunca gostei de Shakespeare” indica que a mantém até hoje. Como eu!

Empresa que apoia a ciência brasileira

Maurizio Ferrante UFSCar, São Carlos, SP issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Arana Varela, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Mariza Corrêa, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Cylon Gonçalves da Silva, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, João Furtado, Joaquim J. de Camargo Engler, José Roberto Parra, Luís Augusto Barbosa Cortez, Luis Fernandez Lopez, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Sérgio Queiroz, Wagner do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos Diretora de redação Mariluce Moura editor chefe Neldson Marcolin Editores executivos Carlos Haag (Humanidades), Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Maria Guimarães (Edição on-line), Ricardo Zorzetto (Ciência) editores especiais Carlos Fioravanti, Marcos Pivetta Editoras assistentes Dinorah Ereno, Isis Nóbile Diniz (Edição on-line) revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro

Umbanda

Sobre a reportagem “A força social da umbanda” (edição 188), penso que a razão para a diminuição do número de adeptos às várias religiões talvez esteja na própria condição do brasileiro em não revelar algo por causa do preconceito. Convivo numa casa umbandista há 20 anos e tenho percebido a necessidade de as pessoas ocultarem as suas práticas porque trabalham num determinado meio que não aceita a umbanda como religião. No dia em que as pessoas puderem assumir os seus gostos, talvez isso melhore e passe a fornecer subsídios mais reais para as pesquisas.
 Ricardo Góes São Paulo, SP

editora de arte Laura Daviña e Mayumi Okuyama (coordenação) ARTE Ana Paula Campos, Maria Cecilia Felli fotógrafos Eduardo Cesar, Leo Ramos Colaboradores Ana Lima, André Serradas (Banco de imagens), Daniel Bueno, Drüm, Ernesto Kohler, Evanildo da Silveira, Gabriel Bitar, João Furtado, João Marcos Coelho, Mônica Teixeira, Nana Lahoz, Paula Gabbai, Peter Schulz, Salvador Nogueira, Tony Monti, Tiago Cirillo, Yuri Vasconcelos É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar (11) 3087-4212 mpiliadis@fapesp.br Para assinar (11) 3038-1434 fapesp@acsolucoes.com.br Tiragem 39.200 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, n o 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, n o 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

Revista

Comunicamos que temos utilizado artigos de Pesquisa FAPESP como instrumento para avaliação de expressões linguísticas e habilidades cognitivas de candidatos ao Programa de Pós-Graduação em Tocoginecologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Os textos usados em uma prova do dia 16 de novembro, por exemplo, foram “Leitores esquivos”, de Mariluce Moura, e “Intercâmbio entre culturas”, de Fabrício Marques, ambos da edição 188. Aarão Mendes Pinto Neto e José Guilherme Cecatti FCM/Unicamp, Campinas, SP

Frederico Hoehne

Parabéns pela reportagem sobre Frederico Carlos Hoehne (“Observador das cidades”, edição 187). Membro da legendária 6 | dezembro DE 2011

Comissão Rondon, em 23 de janeiro de 1914, juntamente com outros três companheiros, desligou-se da Expedição Roosevelt-Rondon, pois não aceitava o tratamento diferenciado que Candido Rondon dava aos expedicionários norte-americanos em detrimento, às vezes de risco, do mínimo oferecido aos brasileiros (fonte: Expedição Scientifica RooseveltRondon, de Amilcar Armando Botelho de Magalhães). Tal documento mereceria ser divulgado na íntegra, nesses tempos de sabujices e competição acirrada. Bons exemplos, como o acima mencionado, devem ser, por raros, rememorados.
 João Luiz Cardoso
 Hospital Vital Brazil/Instituto Butantan, São Paulo, SP

Correções

Dublin foi incorretamente situada na Inglaterra, em vez de na Irlanda, na reportagem “Os artigos quentes do Brasil” (edição 187). Na reportagem “O mapa das hepatites” (edição 187), no quadro “Os vírus e suas características” a última coluna à direita está incorreta. O que aparece como hepatite F na verdade é G.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10o andar - CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.


carta da editora

O humor rasgado de um fino cientista Mariluce Moura  Diretora de Redação

À

exceção de uma única reportagem, esta edição da revista não passou pela leitura do professor Ricardo Brentani. O diretor-presidente da FAPESP (2004–2011) morreu de infarto na noite da terça-feira, 29 de novembro. Até então, a cada final de mês, desde dezembro de 2004, seu olhar percorria o produto pré-impresso que encaminhamos rotineiramente à aprovação do presidente e dos diretores da Fundação antes de enviarmos os arquivos para a gráfica, concentrava-se um tanto sobre reportagens ligadas às suas áreas de interesse científico, examinava as ilustrações que escolhêramos, atento ao que lhe pareciam ambiguidades perigosas e, curiosamente, detinha-se em páginas que para outros seriam de escasso interesse: as das cartas dos leitores e as dos poucos anúncios publicitários. O professor Brentani tinha suas razões para isso. Pela revisão das cartas, queria evitar problemas desnecessários para a FAPESP – de fato, tínhamos o antecedente de uma missiva enorme e irada de um pesquisador sobre a não citação de seu nome numa reportagem a respeito do desenvolvimento de determinado produto por uma pequena empresa, e que insistia na publicação integral da epístola na revista, sem a retirada sequer das palavras, digamos, pouco gentis que distribuía como flores do mal a torto e a direito. Brentani sabiamente concluiu que a carta era uma peça mais para o departamento jurídico do que para as páginas de Pesquisa FAPESP. Quanto à atenção aos anúncios, seu propósito era a observação estrita dos critérios para publicidade na revista, aprovados em reunião do Conselho Superior da Fundação (CS) em 21 de novembro de 2001. Administrador experiente, sem o mais leve traço de ingenuidade, o professor Brentani sabia que “o diabo está nos detalhes” e que as artes da copiosa retórica publicitária sempre podiam encontrar brechas para driblar as determinações do CS quanto às categorias de anúncio que podemos veicular. Mas devo destacar que fosse lá o que ele tivesse a nos dizer ao final da leitura de cada nova edição (e com muita frequência era simplesmente um “está tudo bem”), quando o fazia diretamente, do lado de cá da linha, na redação, o usual era ouvirmos os risos, mesmo as gargalhadas, de quem recolhia sua apreciação. Porque o professor

Brentani, o respeitado e influente cientista que formou tantos outros pesquisadores, em especial nas investigações do câncer, em paralelo à comunicação séria que faria, tinha sempre uma história engraçada, uma piada para lá de irreverente, uma saudável maledicência na ponta da língua para nos contar e assim estimular nosso humor e alegria. Tudo com seu jeito expansivo, grandalhão, sem muitas papas na língua, do qual sentiremos falta. Assim, além de um relato jornalisticamente importante e necessário, o texto do editor especial Carlos Fioravanti sobre o professor Ricardo Renzo Brentani e mais os trechos inéditos da entrevista recente que a jornalista Mônica Teixeira fez com ele – por conta do livro que está preparando sobre os 50 anos da FAPESP –, e que publicamos a partir da página 30 com o suporte editorial do editor de política, Fabrício Marques, têm o sentido de uma homenagem da revista a uma bela personagem da pesquisa científica brasileira. É claro que endereçamos essas páginas a todos os leitores de Pesquisa FAPESP, mas a dedicamos em especial às cientistas Maria Mitzi e Helena Brentani, respectivamente mulher e filha do professor Brentani, à sua família e aos seus discípulos. A propósito, a única reportagem desta edição que foi lida – e aprovada – por Brentani, elaborada pelo editor especial Marcos Pivetta (página 56), trata de uma pesquisa sobre drogas com potencial para tratar tanto tumores cancerígenos quanto obesidade. Seus autores são o casal de cientistas brasileiros Renata Pasqualini e Wadih Arap, chefes de um laboratório no respeitado MD Anderson Cancer Center da Universidade do Texas, em Houston, antigos discípulos com quem ele se encontrou justamente na terça-feira, poucas horas antes do infarto que o levou. Neste exíguo espaço restante, gostaria de recomendar a leitura da reportagem de capa sobre achados científicos no Rio de Janeiro que materializam com ossos o crime da escravidão em nosso país, da lavra do editor de humanidades, Carlos Haag (página 24). E ainda a reportagem do editor de ciência, Ricardo Zorzetto, sobre novas evidências do intrigante matriarcado dos muriquis, o grande primata brasileiro (página 44). A todos, uma boa celebração do final do ano, com um brinde às vidas bem vividas. PESQUISA FAPESP 190 | 7


memória

No front da infecção Há 95 anos o médico Rocha Lima descobria a origem do tifo exantemático na Alemanha

1

Neldson Marcolin

N

os seus primeiros dias em Berlim, na Alemanha, o médico Henrique da Rocha Lima (1879-1956) achou o clima “detestável”, teve dificuldade para entender a língua, seu único conhecido estava acabrunhado pela morte do pai e ele mesmo se sentia angustiado diante da falta de notícias da família. Naquele ano de 1901 o jovem recém-formado se encontrava na Europa para se aprimorar em microbiologia, cirurgia clínica e anatomia patológica. Ele passou a alternar anos de estudo de especialidades em instituições germânicas com o trabalho no Instituto Oswaldo Cruz (IOC), no Rio de Janeiro, até se estabelecer na Alemanha, em 1909. Quando voltou definitivamente ao Brasil em 1928, os dias de mal-estar pareciam ter sido recompensados – o cientista construiu uma sólida carreira internacional cujo ápice foi a descoberta do causador do tifo exantemático, em 1916. Foi também um importante promotor de intercâmbio entre cientistas dos dois países e o gestor que consolidou o Instituto Biológico de São Paulo. Rocha Lima passou apenas oito meses no Instituto de Anatomia Patológica da Universidade de Jena antes de mudar-se para o Instituto de Doenças Marítimas e Tropicais de Hamburgo a convite do protozoologista tcheco Stanislas von Prowazek. Lá continuou a estudar a anatomia patológica da febre amarela, 8 | dezembro DE 2011

como fazia no IOC, e trabalhou com a doença de Chagas. Pesquisou a formação de nódulos da verruga-peruana e comprovou que o causador da histoplasmose, uma infecção pulmonar, era fungo, e não protozoário. Durante a Primeira Guerra Mundial, Rocha Lima e Prowazek foram destacados para investigar a epidemia de tifo exantemático que ameaçava as tropas alemãs. A doença tem sintomas semelhantes aos da gripe, com erupções cutâneas (exantemas). Nos casos favoráveis o paciente fica curado, mas quando a doença afeta o sistema nervoso a morte é quase sempre certa. Associado à miséria e às más condições de higiene o tifo é altamente infeccioso.

Rocha Lima com uniforme militar alemão, em 1914, no início da investigação sobre o tifo exantemático


Fotos  1. e 2. Fundo Rocha Lima, Centro de Memória do Instituto Biológico de São Paulo reproduções eduardo cesar  3. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz

Em 1909, Charles Nicolle, do Instituto Pasteur de Túnis, na Tunísia, anunciou que a transmissão se dava por meio do piolho-do-corpo. Em 1910, Howard Ricketts, da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, realizou pesquisas na Cidade do México que apontavam para um microrganismo semelhante a bacilos como o agente patológico. Ricketts foi infectado e morreu no mesmo ano. Rocha Lima e Prowazek entraram nessa corrida em 1914. Um ano depois, Prowazek morreu contaminado. O brasileiro também foi infectado, mas sobreviveu e continuou o trabalho. Em 1916 Rocha Lima apresentou, em Berlim, seus resultados sobre o microrganismo que batizou de Ricketsia prowazek – em homenagem a Ricketts e Prowazek –, que ele defendia como o real causador do tifo exantemático, encontrado no piolho-do-corpo. “Naquele período havia mais de 30 patógenos de outros cientistas disputando essa primazia”, diz André Felipe Cândido da Silva, 2

3

autor da tese de doutorado sobre a trajetória do brasileiro, defendida em outubro na Casa de Oswaldo Cruz, na Fiocruz, no Rio. Rocha Lima afirmava também que ainda não era possível determinar se de fato se tratava de bactéria ou de outro tipo de microrganismo. Anos depois, outras pesquisas confirmaram que a R. prowazek é mesmo a causadora do tifo, pertencente a uma nova categoria de microrganismos, chamada de riquétsias. “Ele sempre reafirmou sua prioridade nessas descobertas, que ainda hoje são, às vezes, atribuídas apenas a Ricketts”, conta André Felipe.

Cartão-postal de Oswaldo Cruz, de 1906. Rocha Lima está em pé ao lado de Carlos Chagas, ao microscópio

Reunião para discussão de artigos científicos no Biológico (foto feita entre 1928 e 1932). Rocha Lima está de costas, lendo

O pesquisador voltou para o Brasil para ser uma das lideranças do Instituto Biológico, criado em 1927, e foi importante para sua consolidação. Uma das rotinas instituídas por ele ficou famosa: as reuniões que ocorriam às sextas-feiras, conhecidas como “sextaferinas”, para discutir artigos científicos relevantes e que eram frequentadas também por pesquisadores de outras instituições. “Em 1948 eu era estudante de medicina e ia às reuniões levada por um pesquisador importante, o José Ribeiro do Valle, para ouvir os resumos e discussões sobre os mais recentes avanços na nossa área”, conta Alda de Campos Lavras, de 84 anos, pesquisadora aposentada do Instituto Butantan. Em São Paulo, Rocha Lima manteve suas ligações com a Alemanha. Durante o nazismo empregou no Biológico alguns pesquisadores judeu-alemães perseguidos e indicou outros para instituições do exterior. Ainda assim, sua admiração pela cultura germânica o levou a aceitar e receber, em 1938, das mãos de Adolf Hitler, a ordem da Águia Alemã de Segunda Ordem por suas contribuições científicas à nação durante o período em que lá viveu. PESQUISA FAPESP 190 | 9


on-line

Nas redes Flávia Campos_ Fabiana Nunes, recebi ontem a minha terceira revista Pesquisa Fapesp, uma delícia ler. Ela chegou, tava aquela chuva deliciosa e fiquei lendo.

Podcast O paleontólogo Herculano Alvarenga fala sobre a origem da ave cigana, cujo parente mais próximo parece estar na África

Células-tronco embrionárias humanas com anomalia genética (ponto verde)

Exclusivo no site Descoberta pode ajudar a desenvolver terapias a partir de células-tronco humanas, que têm o potencial de originar qualquer tecido do corpo. Divulgada na Nature Biotechnology, a análise de que participa Lygia da Veiga Pereira, da USP, mostrou que a maioria das mutações que afetam a cultura de células em laboratório está no cromossomo 20 (foto).

Grupo de brasileiros estudou a principal causa de infertilidade masculina: a varicocele (dilatação das veias dos testículos). A pesquisa do médico da USP Marcello Cocuzza, que será publicada no The Journal of Urology, mostra que radicais livres podem servir como marcadores para diagnóstico em homens previamente férteis.

Tornar visível ao público externo os projetos realizados dentro da Universidade de São Paulo (USP) e motivar a cultura de inovação e empreendedorismo na instituição foram alguns dos objetivos da 2a Olimpíada USP de Inovação. Dos 641 projetos inscritos, 17 foram premiados em novembro. Conheça no site os vencedores.

Química ensinada_ Matéria muito importante! (Fazedor de neurônios). Museu da Amazônia_ Olha aí os pesquisadores fazendo importantes descobertas graças às samambaias (O revestimento das samambaias). @stivalAndrea_Sentimos muito, Deus abençoe a família neste momento de dor. Fundação de Amparo à Pesquisa do Tocantins (sobre o falecimento de Ricardo Brentani). @marcia454rs_ Não conhecia a abrangência do trabalho de Aracy de Carvalho Guimarães Rosa (A guerra dos Rosas). @gusfil_ Discordo do físico Marcelo Guzzo, porque, se os neutrinos estão a uma velocidade maior que a da luz, então as leis que regem tanto a mecânica clássica como a relatividade são inaplicáveis a eles, pois foge do “nível de atuação” dessas duas partes da física. Então dizer que eles chegariam à Terra quatro anos antes naquele caso de 1987 não é, fisicamente, coerente (opinião minha).

Vídeo do mês Conheça o laboratório de Henning Ulrich (USP), onde se estuda uma molécula que induz à formação de neurônios 10 | dezembro DE 2011

Assista ao vídeo:

Para ler o código ao lado faça o download do leitor de QR CODE no seu smartphonE

D. Baker, Sheffield Diagnostic Genetic Services, Sheffield Children ‘s NHS Trust

w w w . r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r


wiki

o que é, o que é? Funções complexas

Pergunte aos pesquisadores Quando poderemos ter dentes feitos com células-tronco? Lacy Barca [via facebook]

ilustração daniel bueno  foto Aguinaldo Robinson de Souza

Mônica Duailibi e Silvio Duailibi Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) As pesquisas são promissoras. Já foram produzidos dentes provenientes de células-tronco adultas, mas só será possível usá-los como terapia depois que testes validarem sua segurança biológica. O primeiro passo foi desenvolver tecidos dentários a partir de células de germes de dentes (dentes que ainda não emergiram) de porcos inseridas em ratos sem imunidade. O resultado positivo permitiu avançar para um segundo modelo experimental, em que um indivíduo (rato) doa para si mesmo. Foram obtidas estruturas dentárias organizadas, como dentina, esmalte, polpa, cemento (camada que recobre a raiz) e ligamento periodontal. Agora os estudos chegaram às células humanas. Células de germes de dentes humanos foram

implantadas em animais imunossuprimidos. Os pesquisadores estudam qual o melhor meio de cultura para que não haja mutação, os locais mais adequados para a retirada de células-tronco e o melhor material para desenvolver o dente. Eles pretendem semear as células num molde sob medida, que poderá ser feito de um polímero biodegradável com auxílio de técnicas computacionais para definir a forma de canino, incisivo ou molar. Na medida em que as células se diferenciarem a partir de sinalizações moleculares, o molde será absorvido. Depois de todas essas etapas concluídas, virá a fase das normas regulatórias para colocar em prática essa tecnologia. Quando? Ainda não se arrisca uma previsão.

Mande sua pergunta para o e-mail guimaraes@fapesp.br, pelo facebook ou pelo twitter @PesquisaFapesp

Os números complexos estão presentes no dia a dia de uma maneira tão sutil que dificilmente nos damos conta. O motivo é que eles, também chamados de números imaginários, pertencem a um conjunto numérico diferente daquele dos números a que estamos acostumados quando, por exemplo, somamos o preço dos itens de uma compra num supermercado. Os números complexos têm aplicações em várias áreas da ciência, como no estudo de fluxo de fluidos para o entendimento do comportamento aerodinâmico em automóveis e aeronaves e na mecânica quântica, no estudo das propriedades energéticas dos átomos e das moléculas. Um grande estudioso do tema, o médico e matemático Girolamo Cardano, publicou no ano de 1545 o seu livro Ars magna (A grande arte), em que apresentava a solução das equações cúbicas, propiciando assim o desenvolvimento desta área que é uma das mais antigas da matemática. Um número complexo, z, é definido pelos números reais a, b e pela unidade imaginária i, e pode ser escrito na forma z = a + bi. O número complexo z = 4 + 5i tem os valores de a = 4, b = 5 e i = √-1. A figura abaixo, chamada de Domínio de Cores, é obtida pela função f(z) = cos-1(z3) e mostra a correspondência entre as cores e os números complexos. A análise da função no plano complexo pode nos dar informações valiosas sobre fenômenos físicos e químicos invisíveis aos nossos olhos, mas mostra que a sutileza pode ser revelada e compreendida. Aguinaldo Robinson de Souza e Emília de Mendonça Rosa Marques, professores da Unesp Bauru (Departamentos de Química e Matemática)

Você pode baixar o programa e fazer outras imagens:

PESQUISA FAPESP 190 | 11


Dados e projetos Temáticos recentes Projetos contratados entre setembro e novembro de 2011  Caracterização e aplicações de materiais dosimétricos utilizando a luminescência opticamente estimulada e técnicas complementares Pesquisador responsável: Linda Viola Ehlin Caldas Instituição: Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares Processo: 2010/16437-0 Vigência: 01/09/2011 a 31/08/2016

 Solução eficiente de problemas

de programação linear e quadrática de grande porte Pesquisador responsável: Aurelio Ribeiro Leite de Oliveira Instituição: Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica/ Unicamp Processo: 2010/06822-4 Vigência: 01/10/2011 a 30/09/2015

 Células B-1: biologia, relações com outras células do sistema imune e participação em diferentes modelos experimentais Pesquisador responsável: José Daniel Lopes Instituição: Escola Paulista de Medicina/Unifesp Processo: 2011/50256-6 Vigência: 01/11/11 a 31/10/14

 Instituições políticas, padrões

 Aplicações de pulsos de

 Fisiopatologia e regeneração

de interação executivo-legislativo e capacidade governativa Pesquisador responsável: Fernando de Magalhães Papaterra Limongi Instituição: FFLCH/USP Processo: 2011/08536-1 Vigência: 01/09/2011 a 31/08/2016

femtossegundos em óptica não linear: espectroscopia, formatação de pulsos e microfabricação Pesquisador responsável: Cleber Renato Mendonça Instituição: Instituto de Física de São Carlos/USP Processo: 2011/12399-0 Vigência: 01/11/2011 a 31/10/2015

das lesões renais Pesquisador responsável: Nestor Schor Instituição: Escola Paulista de Medicina/Unifesp Processo: 2010/52180-4 Vigência: 01/10/2011 a 30/09/2015

 Dynamical phenomena in complex networks: fundamentals and applications Pesquisador responsável: Elbert Einstein Nehrer Macau Instituição: Instituto Nacional de Pesquisas Especiais Processo: 2011/50151-0 Vigência: 01/09/2011 a 31/08/2016

 Assinaturas da receptividade

Pesquisador responsável: Mario Binelli Instituição: Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia/USP Processo: 2011/03226-4 Vigência: 01/10/2011 a 30/09/2015

 Análise e controle de sistemas elétricos de potência Pesquisador responsável: Newton Geraldo Bretas Instituição: Escola de Engenharia de São Carlos/USP Processo: 2011/01035-7 Vigência: 01/10/11 a 30/09/15  Metabolismo energético,

estado Redox e funcionalidade mi­to­­con­drial na morte celular e em desordens cardiometabólicas e neurodegenerativas Pesquisador responsável: Anibal Eugenio Vercesi Instituição: Faculdade de Ciências Médicas/Unicamp Processo: 2011/50400-0 Vigência: 01/10/2011 a 30/09/2015

 Avaliação de adutos AFB1-lisina e AFB1-N7-guanina como biomarcadores de exposição humana e animal às aflatoxinas Pesquisador responsável: Carlos Augusto Fernandes de Oliveira Instituição: FZEA/USP Processo: 2010/20895-4 Vigência: 01/11/2011 a 31/10/2015

 Sistemática de aranhas

Haplo­ginas Heotropicais (Arachnida, Araneae) Pesquisador responsável: Antonio Domingos Brescovit Instituição: Instituto Butantan Processo: 2011/50689-0 Vigência: 01/10/2011 a 30/09/2016

As 35 principais instituições de patentes depositadas no Brasil depositante

2004 2005 2006 2007 2008 total

depositante

2 004 2005 2 006 2 007 2 008 TOTAL

Petrobras S.A.

80

91

77

63

77

388

16

12

5

5

8

46

UNICAMP - Univ. Est. de Campinas

53

67

55

46

51

272

Grupo Seb do Brasil Produtos Domésticos Ltda.

USP - Univ. de São Paulo

33

41

35

79

76

264

UFRGS – Univ. Fed. do Rio Grande do Sul 12

6

9

9

10

46

Whirlpool S.A.

10

20

31

50

63

174

FIOCRUZ – Fundação Oswaldo Cruz 12

9

9

7

5

42

UFMG - Univ. Fed. de Minas Gerais

23

18

32

40

41

154

UFV – Universidade Federal de Viçosa 9

8

8

10

7

42

UFRJ – Univ. Fed. do Rio de Janeiro

31

26

18

32

34

141

Amanco do Brasil Ltda.

15

10

2

7

6

40

FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

32

28

21

17

31

129

Usiminas - Usinas Siderúrgicas de Minas Gerais S/A

8

9

7

6

10

40

Semeato S.A. Indústria e Comércio 49

27

15

7

16

114

Valeo Sistemas Automotivos Ltda. 9

13

5

2

7

36

CNEN – Comissão Nacional de Energia Nuclear

13

17

14

26

13

83

UBEA, mantenedora da PUC-RS

0

5

2

11

17

35

Fundação Universidade de Brasília 7

4

9

6

8

34

FAPEMIG – Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais

13

12

8

22

13

68

Marchesan Implementos e Máquinas Agrícolas Tatu S/A

12

6

1

3

11

33

Vale do Rio Doce S.A.

22

14

23

2

4

65

Multibrás S.A. Eletrodomésticos

18

11

2

0

0

31

UFPR – Univ. Fed. do Paraná

7

9

14

16

17

63

Duratex S.A.

2

4

15

1

9

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Electrolux do Brasil S.A.

11

5

9

6

27

58

UNESP - Univ. Est. Paulista

4

8

2

11

6

31

Máquinas Agrícolas Jacto S.A.

9

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10

3

6

57

Marcopolo S.A.

14

8

0

0

7

29

UFSC – Univ. Fed. de Santa Catarina 10

4

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10

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51

Fundação Univ. Est. de Maringá

5

9

7

6

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EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária

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16

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50

Tigre S.A. - Tubos e Conexões

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4

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4

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UFPE - Univ. Fed. de Pernambuco

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7

1

6

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Braskem S.A.

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Eletronorte S.A.

0

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18

3

4

27

9

9

15

9

47

Período de 2004 a 2008, com prioridade brasileira. Fonte: Base SINPI/INPI. Acesso: setembro de 2010

12 | dezembro DE 2011


Boas práticas Manual para detectar má conduta assistentes no que seria a coleta das informações. O relatório mostra que a fraude foi descoberta graças ao empenho de três jovens pesquisadores que o denunciaram à universidade em agosto. Outros três jovens já haviam dado o alarme anteriormente. Dois professores tinham suspeitas semelhantes, mas se calaram. “O comitê concluiu que os seis jovens denunciantes mostraram mais coragem, vigilância e curiosidade que os professores”, disse o relatório. Stapel declarou-se culpado por escrito. “Envergonho-me por isso e me arrependo muito”, disse.

daniel bueno

Um relatório preliminar sobre as fraudes praticadas por Diederik Stapel, professor de psicologia social demitido em setembro da Universidade de Tilburg, na Holanda, funciona como uma espécie de manual para detectar sinais de má conduta científica. Segundo a edição on-line do The Chronicle of Higher Education, a manipulação e a fabricação de dados afetaram pelo menos 30 publicações e Stapel conseguiu passar oito anos sem ser descoberto graças a um repertório de dissimulações. Uma de suas táticas era perguntar a colegas sobre o que estavam pesquisando e depois dizer que dispunha de dados talhados para o artigo deles. Os dados eram fraudulentos, mas os colegas não sabiam disso. Assim, Stapel colecionava papers como coautor, sem chamar muita atenção. Também se preocupava em inventar desculpas plausíveis para dar lastro a pesquisas fictícias. Quando colegas solicitavam o contato das escolas em que havia feito pesquisas, dizia não, alegando que queria poupar os estudantes do assédio, pois dependia deles para novos trabalhos de campo. Quando precisava explicitar o alvo da pesquisa, citava escolas de verdade, mas inventava até o nome de assistentes. Sabia cativar a mídia e usá-la como aliada – seu estudo mostrando como as pessoas que gostam de comer carne seriam mais egoístas que os vegetarianos fez sucesso na imprensa. E usava o prestígio para intimidar quem desconfiasse dele, como fez com pesquisadores que pediram acesso ao material bruto de suas pesquisas. Por fim, para manter os dados manipulados sob controle, dispensava a ajuda de

Políticas para conflito de interesses O Congresso do estado norte-americano do Texas pressiona as universidades estaduais a adotarem políticas explícitas de conflito de interesses na atuação dos conselhos de regentes, instâncias das instituições incumbidas de supervisionar seu funcionamento, fiscalizar a aplicação de recursos e nomear dirigentes. Em recente audiência de uma comissão de fiscalização de educação superior, a senadora Judith Zaffirini perguntou aos presidentes dos conselhos de regentes da Texas University e da Texas A&M University se existe “uma declaração estabelecendo as expectativas de conduta para seus membros”. Não houve resposta. O presidente do Congresso estadual, Joe Straus, promove estudos no comitê de ética da casa para avaliar se conselheiros nomeados pelo governador, incluindo-se aí os regentes,

devem ser obrigados a “assinar documentos de governança” antes de aceitar o cargo. A maioria dos seis sistemas universitários do Texas tem uma política específica para os regentes. Mas a Texas University, uma das maiores, é uma exceção. Recentemente, um grupo de ex-alunos da universidade expressou a preocupação com a perspectiva de os regentes adotarem políticas controversas propostas pela Texas Public Policy Foundation, uma organização conservadora. Os conselhos das duas universidades texanas têm membros que também participam de comitês dessa fundação. “Há dois tipos de conflito”, disse ao jornal The New York Times Gordon Appleman, advogado e membro do grupo de ex-alunos. “Um é o conflito de interesses clássico, de caráter financeiro. Outro é a participação cruzada em conselhos cujas propostas estão em conflito.” PESQUISA FAPESP 190 | 13


Estratégias

Três professores da USP levam Prêmio FCW

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A corrida para construir o supertelescópio Astrônomos dos Estados Unidos temem ficar para trás na corrida para construir megatelescópios capazes de captar as primeiras estrelas formadas no Universo. Dois projetos norte-americanos, o Thirty Meter Telescope (TMT) e o Giant Magellan Telescope (GMT), disputam o apoio da National Science Foundation (NSF), mas a agência alertou que não conseguirá financiar ambos antes de 2020. Com isso, é provável que o concorrente European Extremely Large Telescope (E-ELT) fique pronto anos antes. “O planejamento supunha que teríamos mais dinheiro do que teremos”, disse à revista Nature Jim Ulvestad, diretor da divisão de astronomia da NSF. A agência está sendo 14 | dezembro DE 2011

pressionada a escolher um dos dois telescópios. O consórcio do telescópio TMT aposta que tem chance de vencer o rival. Com custo de US$ 1 bilhão, seu espelho principal de 30 metros de diâmetro teria três vezes o tamanho dos maiores existentes hoje. O astrônomo Richard Ellis, do conselho do TMT, diz que o apoio da NSF poderia ajudar a atrair parceiros, como a China. A turma do GMT é contra a disputa. O telescópio, com espelho principal com resolução de 24,5 metros, será US$ 300 milhões mais barato do que o TMT. Com o incentivo de instituições de prestígio, como a Universidade Harvard, o consórcio acha que poderia ir adiante apenas com uma pequena participação da NSF.

Representação artística do TMT, que terá um espelho de 30 metros, três vezes maior que o dos grandes telescópios atuais

Jairton Dupont, da Federal do Rio Grande do Sul,ganhou prêmio na área de química

A Fundação Conrado Wessel (FCW) anunciou os vencedores da nona edição do Prêmio FCW Ciência, Cultura e Medicina. O prêmio de Medicina coube a Miguel Srougi, professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). O médico de 62 anos de idade é um dos principais especialistas do país no estudo e no tratamento dos tumores urológicos e doenças da próstata. Jorge Elias Kalil Filho, professor titular de imunologia clínica e alergia da FMUSP, foi o vencedor na categoria Ciência. Nascido em Porto Alegre em 1953, Kalil é diretor do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da FMUSP e, desde fevereiro passado, diretor do Instituto Butantan. E Paulo Emilio Vanzolini, de 87 anos,

professor emérito do Instituto de Biociências da USP e compositor de clássicos como ”Ronda” e ”Volta por cima”, levou o prêmio na categoria Cultura. Cada vencedor receberá um prêmio de R$ 300 mil. A cerimônia de entrega dos prêmios será realizada em 25 de junho de 2012, na Sala São Paulo. O julgamento final para a escolha dos vencedores foi realizado nos dias 24 e 25 de novembro, por membros das 10 instituições parceiras da premiação, entre as quais a FAPESP. A Fundação Conrado Wessel (FCW) foi criada em 1994, após a morte do fotógrafo Ubaldo Augusto Conrado Wessel (1891-1993), que explicitou em testamento o desejo de criar uma fundação voltada para a filantropia, o fomento e apoio às atividades culturais, artísticas e científicas no Brasil.

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Incerteza na Unesco Programas científicos apoiados pela Unesco, braço das Nações Unidas para educação, ciência e cultura, enfrentam tempos de incerteza depois que os Estados Unidos cancelaram seus repasses para o órgão. A suspensão foi uma resposta à decisão da Unesco de admitir a Palestina como Estado membro – pleito ao qual a diplomacia norte-americana se opõe. Com o fim dos repasses, a Unesco termina 2011 com déficit de US$ 65 milhões e terá de cortar o orçamento de 2012, de US$ 653 milhões, em 22%. O impacto nos programas científicos não foi medido. Mas a área de ciências naturais, a que recebe mais recursos, deverá ser bastante afetada. A diretora da Unesco, Irina Bokova, afirmou à agência SciDev.Net que os gastos serão revistos. “Algumas atividades foram temporariamente interrompidas”, disse.

fotos  1. tmt  2. liane neves 3. Michel Ravassard / UNESCO  ilustraçãO  daniel bueno

Computação aplicada ao meio ambiente A FAPESP e a Microsoft Research, braço de pesquisa da Microsoft, lançaram uma nova chamada de propostas de pesquisa no âmbito do Instituto Virtual de Pesquisas FAPESPMicrosoft Research, mantido pelas instituições desde 2005. O objetivo da chamada é explorar a aplicação da ciência da computação aos desafios da pesquisa fundamental em áreas relacionadas às mudanças climáticas globais e outras disciplinas ligadas às ciências do meio

ambiente. Podem participar pesquisadores vinculados a instituições de ensino superior e de pesquisa, públicas e privadas, no estado de São Paulo. A chamada, que vai disponibilizar R$ 1,35 milhão para atender às propostas selecionadas, tem interesse particular na introdução de instrumentos e técnicas computacionais na aquisição, análise, elaboração e visualização de dados; aplicação e exploração de modelos computacionais

relacionados às mudanças climáticas e ao meio ambiente; promoção do avanço da ciência para que o conhecimento gerado possa ser utilizado de forma multi e interdisciplinar; e aplicação da ciência da computação nos desafios de banco de dados em larga escala em pesquisa científica. As propostas serão recebidas pela FAPESP até o dia 19 de dezembro. Mais informações estão disponíveis em www.fapesp.br/6675.

Irina Bokova, da Unesco, enfrenta o corte de recursos dos Estados Unidos

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Novos membros da academia A Academia de Ciências do Mundo em Desenvolvimento (TWAS) anunciou os nomes dos 45 novos membros eleitos para integrar a entidade, com sede em Trieste, na Itália, entre os quais sete são brasileiros. Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, e Glaucius Oliva, presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, são dois dos eleitos. A relação de

brasileiros inclui ainda Ohara Augusto, professora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo; Edgar Dutra Zanotto, da Universidade Federal de São Carlos; Hilário Alencar da Silva, da Universidade Federal de Alagoas; Sérgio Costa Oliveira, da Federal de Minas Gerais, e Thaisa Storchi-Bergmann, da Federal do Rio Grande do Sul. Os novos membros tomarão posse em 2012. A TWAS também anunciou

os vencedores de seu prêmios científicos. Um dos agraciados foi o brasileiro Jairton Dupont, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em reconhecimento à contribuição para a compreensão da síntese e da aplicação de líquidos iônicos. Ele vai dividir o prêmio na área de química com o chinês Jiang Lei, da Universidade Pequim de Aeronáutica e Astronáutica. A TWAS é presidida pelo matemático brasileiro Jacob Palis.

PESQUISA FAPESP 190 | 15


Tecnociência Parasita no balneário revelou que, apesar de na última década ter havido um declínio do número de casos e do percentual de sua forma aguda, a doença tornou-se endêmica na região (Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, novembro 2011). Atualmente, a forma crônica da enfermidade representa 76,7% do total de casos diagnosticados e a aguda apenas 23,6% das ocorrências. O principal motivo apontado pelos pesquisadores para a disseminação da esquistossomose é a ocupação acelerada e desordenada da região, o que tem propiciado a proliferação do vetor do parasita da doença, os caramujos de água doce do gênero Biomphalaria.

A incidência da paralisia do sono

Porto de Galinhas, em Pernambuco: doença causada pelo Schistosoma mansoni (detalhe) vira crônica

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16 | dezembro DE 2011

Pouco menos de 8% da população sofre de paralisia do sono, um distúrbio que ocorre pouco antes de dormir ou logo após o despertar, caracterizado por uma total imobilidade do corpo, exceto dos olhos, e que pode ser acompanhado por episódios de alucinação. A afirmação é de um estudo de revisão feito por uma equipe de pesquisadores da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, que constatou ser o distúrbio mais comum entre estudantes e pacientes psiquiátricos (Sleep Medicine Reviews, outubro de 2011). Para chegar a essas conclusões, os cientistas revisaram 35 trabalhos sobre o tema publicados nos últimos 50 anos. Desses estudos,

tinham participado 36.533 indivíduos. Cerca de 20% deles declararam ter tido pelo menos uma vez um episódio do distúrbio. Entre os pacientes psiquiátricos, o índice atingiu quase 32%. Os estudantes apresentaram uma taxa um pouco menor do problema, da ordem de 28%. Durante a paralisia do sono, as pessoas estão conscientes, porém imóveis. É comum o relato de alucinações associadas à presença de uma pessoa ou seres estranhos, além de sentir pressão no peito e ter a impressão de flutuar ou de sair do próprio corpo. Tais sensações podem ser confundidas com as experiências oníricas experimentadas durante os sonhos.

fotos  1. eduardo cesar 2. Andrevruas / Wikimedia Commons  2. fei  3. empa  ilustração daniel bueno

Importante destino turístico de Pernambuco, a praia de Porto de Galinhas, a cerca de 70 quilômetros de Recife, tornou-se área endêmica da esquistossomose, doença parasitária popularmente conhecida como barriga-d’àgua que atinge 200 milhões de pessoas em regiões tropicais do mundo. A origem do problema remonta ao ano 2000, quando a localidade foi atingida por um surto de esquistossomose aguda e 662 pessoas tiveram diagnóstico positivo para Schistosoma mansoni, o verme que causa a doença. Um estudo realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Universidade Federal de Sergipe (UFS)


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Aparelho revela dinâmica da água nas plantas Um equipamento inédito desenvolvido no Instituto Agronômico (IAC), de Campinas, poderá ajudar a melhorar a produtividade da agricultura brasileira. Trata-se do Micropulso IAC, aparelho portátil e móvel que realiza a medição direta do fluxo de seiva, por meio de sensores implantados nos caules das plantas, em seu ambiente natural. A aferição é importante para determinar o consumo hídrico na plantação e fornece base para o conhecimento da dinâmica da água na planta e a análise do estresse hídrico. A partir dessas informações, o agricultor pode compreender como as culturas agrícolas se

comportam em certos ambientes e obter o melhor rendimento econômico. A metodologia usada pelo aparelho baseia-se no “pulso de calor”, já conhecida. Agulhas de implantação com 0,5 mm de diâmetro funcionam como sensores. A seiva é marcada com calor em intervalos regulares de 15 minutos e o monitoramento é feito com base no deslocamento do calor, por meio de um programa computacional, que permite desenhar um gráfico de perda de água. Segundo o pesquisador Antônio Odair Santos, cada aparelho deverá custar R$ 20 mil.

Ilustração do nanoveículo: formado por uma molécula sintética dotada de quatro “rodinhas”

O menor carro elétrico Um carrinho nanométrico, cerca de 1 bilhão de vezes menor do que um Volkswagen Golf, circula por dentro do corpo humano, aplica medicamentos, coleta células de tumores e repara tecidos. O que parece ser uma cena de filme de ficção científica pode virar realidade dentro de alguns anos. Pesquisadores da Universidade de Groningen, na Holanda, desenvolveram, em parceria com colegas do centro de pesquisa suíço Empa, um nanoveículo formado por uma molécula sintética dotada de quatro “rodinhas” (Nature, 10 novembro). Essas “rodinhas” são, na verdade, motores de rotação que entram em funcionamento quando recebem uma corrente elétrica. Com isso, o menor carro elétrico do planeta pode se deslocar de um ponto a outro. Em testes laboratoriais, os cientistas conseguiram fazer com que a molécula se movimentasse seis nanômetros sobre uma superfície de cobre, num ambiente controlado – no vácuo e numa temperatura de 266 graus abaixo de zero. A pesquisa, segundo seus autores, é relevante por ter demonstrado que é possível movimentar algo controlável em nível molecular usando um motor no qual se aplica energia dirigida.

Bonecos quase humanos Para entender o que acontece com o corpo infantil quando um carro bate e, assim, melhorar dispositivos de segurança como os airbags, a Ford dos Estados Unidos desenvolveu um boneco digital de uma criança. Cada parte do corpo infantil foi escaneada e foram feitos modelos anatômicos. Agora a empresa está construindo o boneco, peça por peça: cérebro, crânio, pescoço, caixa torácica, extremidades

superiores e inferiores. Chamados de dummies, esses manequins são usados no interior dos veículos para medir o efeito das forças de impacto nos passageiros durante testes de colisões. Por meio de cálculos e análises, combinados com dados sobre as propriedades dos tecidos humanos, os especialistas serão capazes de determinar os efeitos do impacto dos cintos de segurança em uma criança. PESQUISA FAPESP 190 | 17


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Júpiter pode ter roubado metais do Sol Um estudo dos astrônomos peruanos Iván Ramírez, dos Observatórios Carnegie, Estados Unidos, e Jorge Meléndez, da Universidade de São Paulo, indica que a formação de planetas gigantes gasosos, como Júpiter (imagem), pode causar uma diminuição do conteúdo de metais da estrela-mãe (The Astrophysical Journal, 20 de outubro). A hipótese se baseia no estudo do sistema múltiplo 16 Cyg, composto de duas estrelas muito similares entre si e parecidas com o Sol.

Um novo olhar sobre as alergias A pesquisa sobre alergia e asma tem trilhado um caminho equivocado há décadas, diz o pesquisador Stephen Holgate, da Faculdade de Medicina da Universidade de Southampton, Inglaterra. Para o médico, a ênfase dos estudos está excessivamente centrada em tentar entender o papel da imunoglobulina E (IgE), o anticorpo que parece ser o responsável pela sensibilidade exacerbada do sistema imunológico desses pacientes. Essa abordagem, na visão de Holgate, produziu poucos benefícios em termos de novos tratamentos para a asma e a alergia (Nature, 24 de novembro). Parte desse insucesso, diz o médico, deriva das limitações inerentes aos estudos feitos com os modelos animais dessas 18 | dezembro DE 2011

doenças. Essas pesquisas conduzidas em roedores e primatas têm sido o principal pilar dos esforços que buscam produzir novidades na área. Há, no entanto, um problema: o que parece funcionar nos animais não se revelou tão útil na hora de transferir esse conhecimento para a prática médica em seres humanos, segundo o cientista britânico. Por isso, ele defende que os novos trabalhos sobre alergia e asma tenham como foco prioritário estudar as manifestações dessas doenças nas próprias pessoas. “O modelo atual para descobrir grandes drogas é insustentável”, afirma Holgate. “É preciso também uma nova forma de colaboração, mais aberta e confiável, entre a academia e a indústria.“

A presença de metais na composição química de uma das estrelas, a 16 Cyg B, é cerca de 10% menor que na 16 Cyg A. A diferença parece se dever ao fato de a 16 Cyg B ter ao seu redor um planeta com quase o dobro da massa de Júpiter, que teria “roubado” parte de seus metais, enquanto a 16 Cyg A não tem planeta algum. “Se confirmada, essa descoberta poderia ser usada para prever a existência de planetas similares a Júpiter em sistemas múltiplos de estrelas”, diz Meléndez.

Latas conservam o azeite

Lata com azeite: melhor que vidro e PET para preservar o alimento

As latas ainda são a melhor opção de embalagem para o azeite de oliva extravirgem. Isso porque elas preservam os compostos nutricionais benéficos à saúde, como antioxidantes, clorofila e outros. A segunda melhor opção é o vidro escuro. As indicações resultam de uma pesquisa feita na Faculdade de Engenharia de Alimentos da

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Universidade Estadual de Campinas, que comparou a ação da luz em cinco tipos de embalagem: de lata, de vidro nas cores clara e escura e PET incolor e na cor âmbar. “As embalagens com amostras do produto foram colocadas em uma câmara de luz que simulava a gôndola de supermercado, com 12 horas sob a luz e 12 horas no escuro”, diz Renata Celeghini, coordenadora da pesquisa, feita em colaboração com a mestranda Simone Faria Silva e o pesquisador Carlos Anjos. As amostras ficaram estocadas durante seis meses, com análises mensais dos compostos funcionais. “Em seis meses, o antioxidante tocoferol já não era mais encontrado nas embalagens transparentes de vidro ou PET.” A degradação foi mais lenta no PET âmbar, porém significativa.


Um material peso-pluma

fotos  1. NASA / JPL / University of Arizona  2. Eduardo cesar  3. Dan Little / HRL Laboratories  ilustração daniel bueno

A pequena tela metálica que repousa na foto abaixo sobre o delicado dente-de-leão, sem desmanchá-lo, é feita do material mais leve já inventado pelo homem. Usando um inovador processo de fabricação, pesquisadores da Universidade da Califórnia, em Irvine, dos Laboratórios HRL e do Instituto de Tecnologia da Califórnia, EUA, criaram uma estrutura com densidade de apenas 0,9 micrograma por centímetro cúbico (mg/cm3), 100 vezes mais leve do que o Styrofoam, uma espuma de poliestireno considerada até então o material mais leve do mundo. As descobertas do grupo foram publicadas na edição de

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18 de novembro da revista Science. Chama atenção no material – uma grade de minúsculos tubos ocos de níquel-fósforo com espessura de 100 nanômetros – o fato de que 99,99% de seu volume é constituído de espaço vazio e 0,01 de parte sólida. Apesar de sua ínfima densidade, o material tem comportamentos mecânicos incomuns para um metal, como a completa recuperação após sofrer uma compressão superior a 50% e uma absorção de energia muito alta. Estima-se que o metal possa ser usado na fabricação de eletrodos de bateria, suporte de catalisadores e materiais projetados para absorver choques.

Cão se originou ao sul do rio Yangtzé

Material feito de minúsculos tubos ocos de níquel-fósforo: sem danificar o dente-de-leão

As origens do cachorro parecem ser mesmo a região da China meridional. Uma análise das sequências genéticas presentes no cromossomo Y, trecho de DNA herdado apenas da linhagem paterna, obtidas de uma amostra de 151 cães de todas as partes do mundo, indica que esse animal deve ter surgido a partir do processo de domesticação do lobo ocorrida na região asiática ao sul do rio Yangtzé, às vezes também chamado de rio Azul. Segundo o estudo, feito por pesquisadores chineses, europeus e americanos, praticamente toda a diversidade genética encontrada nos cachorros seria derivada de uma população ancestral de 13 a 24 lobos que foram domesticados nessa região asiática (Heredity, 23 de novembro). A contribuição de eventuais cruzamentos entre lobos e cachorros que possam ter ocorrido em

outras partes do globo foi mínima para a diversidade genética dos cães. Os resultados são similares aos dados produzidos por trabalhos semelhantes que analisaram o DNA mitocondrial, material genético originário da linhagem materna, dos cachorros. Ambas as abordagens indicam que cerca de 50% de toda a diversidade genética dos cachorros é partilhada por animais encontrados em qualquer parte do planeta. No entanto, os cachorros ao sul do rio Yangtzé são os únicos que concentram todas as linhagens de DNA da espécie, dado que corrobora a hipótese defendida no novo trabalho. A evidência arqueológica e alguns estudos genéticos apontam a Europa ou o sudoeste da Ásia como o berço do cão, mas esses trabalhos nem sempre levam em conta dados da região ao sul do Yangtzé, o que pode ter enviesado suas conclusões. PESQUISA FAPESP 190 | 19


entrevista: Cora marrett

Laços mais estreitos A diretora adjunta da National Science Foundation quer ampliar a cooperação com o Brasil Fabrício Marques

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a abertura da FAPESP Week, simpósio realizado em Washington entre os dias 24 e 26 de outubro, a diretora adjunta da National Science Foundation (NSF) Cora Marrett fez um discurso destacando os programas de cooperação já existentes entre a NSF e a FAPESP e expressou seu desejo de que essa cooperação se amplie. “A ciência não conhece fronteiras nacionais”, pontificou a socióloga, segunda na hierarquia da agência que é uma das principais fontes de financiamento nos Estados Unidos em pesquisa básica e educação nas ciências e engenharias. Cora Marrett ocupa o cargo desde maio, quando seu nome, indicado pelo presidente norte-americano, foi confirmado pelo Senado. Mas tem uma carreira extensa na fundação, onde já desempenhou as funções de diretora interina entre junho e outubro de 2010 (antes da nomeação do atual diretor Subra Suresh), diretora-assistente de educação e recursos humanos entre 2007 e 2009; e diretora-assistente de ciências sociais, comportamentais e econômicas de 1992 a 1997. A NSF foi uma das promotoras da FAPESP Week, em parceria com o Wilson Center, sede 20 | dezembro DE 2011

do simpósio, a Ohio State University e a FAPESP. Os laços entre pesquisadores brasileiros e norte-americanos, expressos nas diversas apresentações do simpósio, impressionaram a diretora adjunta do NSF, que vê o Brasil, e São Paulo em particular, como parceiro potencial em novas iniciativas. Ela cita, por exemplo, o Programa Piloto de Intercâmbio em Pesquisa para Bolsistas de Iniciação Científica da Área de Química, em que alunos de graduação de universidades paulistas fazem estágios em instituições norte-americanas, enquanto estudantes dos Estados Unidos vêm para São Paulo. Acredita que o programa tem potencial para ser estendido a outras áreas do conhecimento. Na entrevista a seguir, ela fala dessa iniciativa e de outras parcerias recentes com a FAPESP, no âmbito dos programas Catalyzing New International Collaborations (CNIC) e International Collaboration in Chemistry (ICC), além das perspectivas no campo da pesquisa em biodiversidade: Quais foram as suas impressões sobre a FAPESP Week e sobre as linhas de pesquisa produzidas por pesquisadores paulistas e apresentadas no simpósio em Washington?


Sam Kittner


Tive impressões muito favoráveis. Ficou claro que a Fundação teve um papel crítico na construção de uma comunidade científica vibrante. Por isso, o aniversário de 50 anos é tão significativo. Nós da NSF também ficamos interessados nas perspectivas internacionais das pesquisas que estão sendo realizadas. Não se trata apenas de pensar em São Paulo, no Brasil, mas de todo um contexto internacional envolvido. De maneira geral, achei extremamente interessante. A agenda reunia temas que iam da fotônica à biologia. E muitos dos pesquisadores brasileiros tinham contrapartes nos Estados Unidos, o que evidenciou boas interações entre a FAPESP e a National Science Foundation. Falando nas interações entre as duas agências, a FAPESP criou uma chamada paralela ao programa Catalyzing New International Collaborations (CNIC), da NSF, para estimular colaborações entre pesquisadores e estudantes de São Paulo e dos Estados Unidos. Qual é o impacto esperado da iniciativa? A FAPESP lançou esse programa paralelo em tempo recorde. Sabemos que leva algum tempo para colocar as coisas em funcionamento, mas a iniciativa é extremamente importante. O programa contempla atividades como visitas técnicas, workshops e coleta inicial de dados, com a expectativa de que gerem projetos de pesquisa robustos e competitivos posteriormente. O CNIC é um programa recente, que substituiu um outro programa de visitas e workshops. Tivemos uma forte demanda e o interesse do Brasil se destacou entre os outros países. Recebemos muitas propostas, que agora estão sendo avaliadas. Por isso ainda é prematuro falar sobre os benefícios para os dois países.

outros países. Qual é o potencial, na sua avaliação, das colaborações entre os EUA e o estado de São Paulo nesse campo? É uma área em que vemos um grande potencial para colaborações. E a ênfase em química voltada para a sustentabilidade é importante porque se trata de uma prioridade para o programa ICC. O Brasil tem investido nisso. Da mesma forma, essa vertente tem sido uma prioridade para os Estados Unidos e para a NSF em particular. Temos atividades envolvendo a sustentabilidade nos campos da ciência, das engenharias e da educação. A química sustentável é parte dessa iniciativa maior. O potencial é evidente. Ficamos surpresos de ter recebido poucas propostas. Foram apenas três propostas preliminares submetidas em setembro passado. Como acreditamos no

gios em instituições norte-americanas, enquanto estudantes dos Estados Unidos passam temporadas em São Paulo. Qual é a sua avaliação da participação do Brasil e dos Estados Unidos neste programa? Trata-se de um programa da NSF coordenado pela Universidade da Flórida extremamente importante para nós. Muitos dos programas que oferecemos para alunos de graduação são unidirecionais. Esse, contudo, tanto dá aos nossos estudantes a chance de ter uma expe­ riência em outro país quanto traz para os Estados Unidos alunos de fora. O programa da NSF busca envolver todas as disciplinas. Creio que podemos expandir essa iniciativa para biologia, física, matemática. Já houve algo no Rio de Janeiro, com alunos de matemática dos Estados Unidos participando de uma olimpía­ da, mas foi de mão única. Hoje a iniciativa conjunta en­­volve alunos de química, mas vemos o modelo como algo que pode se estender a outros campos de pesquisa. Fiz meus comentários, agora queria ter o retorno de vocês sobre o programa…

Estamos interessados na ligação entre o conhecimento criado pela pesquisa em biodiversidade e as políticas que ele pode gerar

Em setembro passado a FAPESP começou a participar do programa International Collaboration in Chemistry (ICC) da Divisão de Química da NSF, que busca estabelecer colaborações entre cientistas norte-americanos e de 22 | dezembro DE 2011

potencial, apostamos que o interesse vai crescer nos próximos anos. O programa começou na Europa e se disseminou por diversos países. A conexão com a FAPESP é recente. Foram poucas propostas, mas outros países enfrentaram o mesmo problema. Esse é um ponto de partida. E esperamos mais propostas. Uma iniciativa conjunta mais antiga, iniciada em 2008, é o Programa Piloto de Intercâmbio em Pesquisa para Bolsistas de Iniciação Científica da Área de Química, em que alunos de graduação de universidades paulistas fazem está-

Os estudantes paulistas que participaram do programa fazem relatos entusiasmados da experiência, que lhes dá uma vivência internacional importante, colocando-os em contato com projetos de pesquisa avançados. Um aluno que participou do programa, Ricardo Barroso Ferreira, de 21 anos, da Unicamp, foi coautor de um artigo na revista Science. Por conta do estágio que realizou na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, ele participou de um projeto que resultou na criação de um cristal sintético tridimensional capaz de capturar emissões de dióxido de carbono – tema do artigo da Science. Nossa experiência é semelhante. Como sabemos, faz diferença para os alunos de graduação terem uma experiência internacional. Isso é cada vez mais importante no contexto global em que a ciência opera. É importante que nossos alunos tenham uma experiência em outro país, mas é igualmente importante


JvInfante / wilson center

trazer jovens de outros países para nos ajudar a explorar questões fundamentais da ciência. É um programa de grande valor e, como disse, esperamos que seja expandido. De que forma a experiência do Programa Biota-FAPESP pode ser útil aos cientistas norte-americanos na coleta, análise e integração de dados sobre a biodiversidade? Isso é importante para os cientistas dos Estados Unidos por diversos motivos. O programa trata Cora Marrett na abertura da FAPESP Week, ao lado de Paulo Sotero, do Wilson Center, de assuntos que abordam do embaixador Mauro Vieira e do presidente da FAPESP, Celso Lafer perguntas fundamentais. A ideia de fazer um inA FAPESP foi pioneira instrumentos voltados para assegurar ventário abrangente da no Brasil no recente lan- o comportamento ético dos cientistas. biodiversidade é fundaçamento de um código de Como estamos interessados em conhecer mental para aquilo que boas práticas da ciência. quais são as consequências, serão muito precisamos fazer. E, para Qual a importância des­­se bem-vindas informações que a FAPESP além disso, há as implitipo de iniciativa e qual disponha sobre a experiência brasileira cações na formulação dos recursos foi o impacto da criação com códigos de boas práticas científicas. de políticas públicas. federais de códigos de regulação A sociedade espera que o conhecimento Estamos muito interesde condutas científicas seja gerado num ambiente com condutas sados ​​n a ligação entre investidos nos Estados Unidos a éticas de nível elevado. o conhecimento desenem pesquisa partir do início dos anos volvido pela pesquisa e O programa Small Business Innova2000? as políticas que ele pode básica nos Vou começar dizendo tion Research (SBIR) da NSF foi um gerar. Outro ponto é que EUA vêm que, sem dúvida, é algo dos inspiradores de um programa de a informação criada pelos muito importante. E há inovação em pequenas empresas, o Pipe, projetos tem que ser arda National muitas razões para ten- da FAPESP, criado em 1997. Na expe­ mazenada em bancos de Science tar introduzir códigos de riência da NSF, qual é a capacidade de dados públicos. Um dos boas práticas científicas. uma agência de estimular a inovação requisitos-chave estabeFoundation Mas quando perguntamos empresarial? lecidos em projetos de quais são as evidências e A pergunta é fascinante, mas não sei se várias partes do mundo qual é o impacto real, a sou capaz de respondê-la. O que posso é perguntar como tornar disponíveis as informações geradas pelos resposta é algo que ainda está sendo afirmar é que o programa Small Busipesquisadores, para que os dados primá- construído. A diretoria de ciências so- ness Innovation Research foi desenhado rios coletados possam ser submetidos a ciais, comportamentais e econômicas pensando nas possibilidades de trazer a análises secundárias. Por isso estamos do NSF está trabalhando num novo pro- inovação da ciência e das engenharias muito interessados em saber como com- grama sobre as condutas na ciência na para a geração de ideias, processos e pilar, armazenar e acessar esses dados, era da informação. As novas tecnologias produtos, algo que vai além da conceppara que eles sejam importantes para a digitais estão transformando a prática ção habitual de inovação empresarial. ciência em geral e para os estudos da bio- da ciência, proporcionando novas for- O programa se tornou muito popular e diversidade em particular. Temos mui- mas para o cientista identificar e con- inspirou outros semelhantes em outras tas lições a extrair desse programa. Há tatar parceiros para fazer colaborações agências norte-americanas. A National grupos brasileiros e norte-americanos e também para criar conhecimento e Science Foundation é vista como um trabalhando juntos no campo da bio- disseminá-lo. A partir disso, teremos motor da inovação nos Estados Unidos logia ambiental, como se viu numa das como avaliar melhor como a ciência e precisamos assegurar que seguireapresentações da FAPESP Week sobre está sendo conduzida e qual é o impac- mos sendo capazes de dar suporte a to de códigos de boas práticas e outros essa ideia. n o Biota-FAPESP.

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Ossos que falam Escavações na zona portuária do Rio de Janeiro revelam retrato pouco conhecido da escravidão Carlos Haag

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Instituto Nacional de Criminalística estabelece uma série de procedimentos para se investigar um crime: o reconhecimento, que delimita a extensão da cena do crime e a preserva; a documentação cuidadosa e a observação científica do lugar; a procura de provas e evidências a serem coletadas; a análise científica num laboratório das provas recolhidas pelo perito. É na junção dessas áreas que se encontra a solução de, por exemplo, um assassinato. Seria possível usar os mesmos procedimentos para “desvendar” um crime cometido há vários séculos, com milhões de vítimas? Pesquisas recentes feitas em universidades brasileiras indicam que a adoção da mesma interdisciplinaridade, reunindo historiadores, arqueólogos, geneticistas (paleogenéticos) e patologistas, poderá, enfim, dar conta de um dos maiores crimes já cometidos: a escravidão. “Para se entender a realidade da escravidão é preciso devassar arquivos, desencavar o passado 24 | dezembro DE 2011

e submeter as evidências materiais aos analistas nos laboratórios. É preciso superar a mera historiografia documental ou a visão economicista que só vê o escravismo do ponto de vista dos modos de produção. A escravidão deve ser materializada”, diz Tânia Andrade Lima, arqueóloga do Museu Nacional, no Rio, e coordenadora do projeto de escavação do Cais do Valongo, porto por onde passaram, entre 1811 e 1831, 1 milhão de africanos. Foram as obras do Porto Maravilha, a revitalização da área portuária carioca iniciada neste ano tendo em vista as Olimpíadas de 2016, que permitiram aos arqueólogos reabrir a “cena do crime” oculta desde 1843, quando foi recoberta com 60 centímetros de pavimento e se transformou no Cais da Imperatriz, lugar de recepção para Teresa Cristina, a futura mulher de Pedro II. “Havia outros lugares, mas se optou pelo Valongo como forma de apagamento das manchas passadas da escravidão”, diz Tânia. Essas cercavam todo o cais, formando o complexo do Valongo. Casas próxi­ mas armazenavam e comercializavam os negros.

mercado de escravos na rua do valongo, debret, aquarela sobre papel, c. 1816-1828. reprodução do livro debret e o brasil – obra completa, ed. capivara, 2009

capa


Antropologia

Arqueologia

Quem ficava doente era levado ao lazareto vizinho, onde o tratamento se reduzia a “sangrias” feitas por barbeiros negros. Os que não resistiam eram enterrados, com total descaso, em valas comuns a poucos metros do cais. Logo, o sítio é o sonho de qualquer arqueólogo, trazendo à luz, diariamente, pilhas de objetos pessoais e rituais dos chamados “pretos novos”, cativos recém-chegados da África: contas, búzios, cachimbos, brincos com a “meia-lua” islâmica, miçangas e até “pedras de assentamento de orixás”. Sacerdotes e especialistas na cultura e religião africanas ajudam a reconhecer e catalogar os achados. “O complexo do Valongo foi criado para tirar os negros do centro do Rio, pois eles eram vistos como ameaça à saúde, ‘carregadores de doen­ças’ e um perigo à ordem pública”, explica o historiador Cláudio Honorato, autor do estudo Valongo: o mercado de escravos do Rio de Janeiro (Universidade Federal Fluminense, UFF, 2008). “O Valongo era parte do projeto ‘civilização nacional’, intensificado com a transformação do

Uma das “casas de carne” do mercado do Valongo na visão algo otimista de Debret ao mostrar poucos escravos vigiados pelo comerciante

História

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“Os escravos que não forem vendidos não sairão do Valongo nem mortos”, escreveu Lavradio Foto tirada em 1996 na casa em que pedreiros encontraram ossadas

Rio em sede do Império. Mas resultou de um paradoxo: criar uma Corte ‘europeia’ com multidões de negros soltos pelas ruas. Pensou-se que a solução seria usar os escravos para criar a cidade à altura do rei. Esse movimento, porém, aumentou a demanda por mais escravos e, assim, a cidade não conseguia perder as ‘feições do atraso’. Era preciso diminuir um pouco daquela promiscuidade e, assim, tirou-se o mercado escravista da região do Paço, levando-o para um lugar distante e desabitado: o Valongo, um porto natural na Gamboa”, construído por ordem do vice-rei, o Marquês de Lavradio. Em pouco tempo, o comércio de escravos atraiu a população e o local virou um dos mais movimentados do Rio. Além do cais, o complexo do Valongo abrigava 50 “casas de carne”, onde os negros recém-chegados eram negociados. “A primeira loja de carne em que entramos continha 300 crianças. O mais velho podia ter 12 anos e o mais novo, não mais de 6. Os coitadinhos ficavam agachados num armazém. O cheiro e o calor da sala eram repugnantes. O termômetro indicava 33ºC e estávamos no inverno!”, escreveu o inglês Charles Brand em 1822. 26 | dezembro DE 2011

A

pós 60 dias a bordo de um “tumbeiro”, os africanos, exauridos e doentes, enfrentavam a falta de alimentação, de roupas e moradias apropriadas. A combinação com os castigos os deixava propensos a contrair vírus, bacilos, bactérias e parasitas que floresciam na população densa do Rio. Mais de 4% dos escravos morriam no primeiro momento, entre o desembarque, a quarentena e a exposição no mercado. Era preciso um lugar para enterrar tantos mortos e assim criou-se nas proximidades o Cemitério dos Pretos Novos. “A mortalidade alta justificaria lugar na lógica de importação de mão de obra em números crescentes, onde mais mortes significava trazer mais escravos. Nos seus últimos seis anos, o cemitério superou uma média anual de mil enterros”, afirma o historiador Júlio César Pereira, da Fiocruz, autor de À flor da terra (Garamond, 2007). A vinda da Corte aumentou a chegada de cativos pelo porto do Rio: se em 1807 entraram menos de 10 mil, em 1828 foram 45 mil. O ano também marcou um recorde no cemitério com o enterro de mais de 2 mil pretos novos. “Sem esquife e sem a menor peça de roupa são atirados numa cova que nem

instituto pretos novos

tem dois pés de profundidade. Levam o morto e o atiram no buraco como a um cão morto, põem um pouco de terra em cima e se alguma parte do corpo fica descoberta, socam-no com tocos de madeiro, formando um mingau de terra, sangue e excrementos”, descreveu o viajante Carl Seidler em 1834. O lugar, porém, obedecia à lógica e às regras que engendraram o complexo: “Os escravos que não forem vendidos não sairão do Valongo nem depois de mortos”. Estima-se que o cemitério abrigou mais de 20 mil corpos até ser fechado em 1830, por causa de reclamações dos vizinhos, temerosos dos “miasmas” exalados pelos cadáveres “à flor da terra”, bem como da suspensão do tráfico, não obstante sua continuidade ilegal. O lugar caiu no esquecimento, vindo a ser coberto pela malha urbana que se expandiu na região portuária em fins do século XIX. Só foi redescoberto em 1996 durante uma reforma numa casa, quando operários abriram sondagens para alicerce e encontraram milhares de dentes e fragmentos de ossos humanos. Como uma “cena do crime” era preciso saber quem eram as vítimas. Determinar a origem geográfica dos 5 milhões de escravos forçados a vir ao Brasil é fundamental para várias áreas do conhecimento, já que dá pistas da constituição genética e cultural dos brasileiros, muito impactados pela mestiçagem. “O tráfico negreiro provocou um dos maiores deslocamentos populacionais da humanidade. Entre os séculos XVI e XIX mais de 12,5 milhões de africanos foram escravizados e levados para a América e Europa. Desses, cerca de 10,7 milhões chegaram vivos ao fim da travessia”, afirma o historiador Manolo Florentino, da UFF, autor de Em costas negras (Companhia das Letras, 1997). “Os registros dos navios negreiros não são confiáveis sobre a origem dos africanos, porque o porto de embarcação, registrado nos arquivos, nem sempre refletia a origem geográfica dos negros, por vezes capturados no interior, a quilômetros do litoral”, observa.


leo ramos

Nessa tarefa os historiadores recebem grandes contribuições dos geneticistas, como mostra a reportagem “A África nos genes do povo brasileiro” (Pesquisa FAPESP, n o 134) sobre a pesquisa do geneticista Sérgio Danilo Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que comparou o padrão de alterações genéticas compartilhado por africanos e brasileiros. Com isso, Pena ajudou a revisar a versão histórica de que a maior Obelisco do Cais da Imperatriz: a seta verde indica vestígios do cais de Teresa Cristina e a vermelha o Valongo recoberto parte dos escravos era da região centro-ocidental africana, deiegistros feitos pela igreja de San- da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fioxando de lado a participação relevante de ta Rita, que administrava o lugar, cruz), concluída recentemente. Foi feinegros vindos da África Ocidental. “Por permitem afirmar que 95% dos ta a análise da composição isotópica de isso a transdisciplinaridade é fundamental corpos são de pretos novos (os outros estrôncio de esmalte dentário presente para entender a escravidão. Cada enfoque 5% seriam de escravos “ladinos”). O sí- nas amostras colhidas em 1996, com a é limitado para dar conta das perguntas e tio privilegiado deu origem à pesquisa finalidade de determinar a origem geonenhum é suficiente. As pesquisas gené- bioarqueológica Por uma antropologia gráfica dos vestígios. “Os dentes são forticas são muito informativas, mas partem biológica do tráfico de escravos africa- mados na infância e não se remodelam, da análise de brasileiros que são descen- nos para o Brasil: análise das origens dos o que permite descobrir onde alguém dentes dos escravos”, diz Pena. Daí a im- remanescentes esqueletais do Cemité- viveu seus primeiros anos. O estrôncio portância do Cemitério dos Pretos Novos, rio dos Pretos Novos, coordenada pelo é como um DNA geoquímico e existe que abrigava primordialmente escravos bioantro­pólogo Ricardo Ventura Santos, como dois isótopos, de números 86 e 87. africanos recém-chegados ao Brasil. da Escola Nacional de Saúde Pública As proporções entre eles são assinaturas geoquímicas ligadas às características das rochas de uma região”, explica Sheila de Souza, integrante do projeto. A pesquisa revelou uma grande diversidade de valores dessas proporções, o Costão de Ilha das que indica (e confirma) que os escravos N. S. da Saúde Cobras trazidos ao Rio vieram de múltiplas regiões da África. Confirmou-se também Rua do Saco da que se tratava de negros africanos, jovens cemitério Valongo Gamboa e recém-chegados. Para estabelecer essa delimitação foCemitério dos ram detectadas “modificações intencioPretos Novos nais dos dentes”, cortes feitos na arcada Paço de motivação cultural, característicos de regiões africanas como Moçambique, o que, de certa forma, corrobora a tese de Pena. “Vimos também o polimento dos dentes, que geram ranhuras microscópiRJ cas e são características da higiene bucal de grupos africanos, que usavam gravetos Praia de nos dentes e mastigavam plantas como Santa Luzia ‘pasta dental’. É uma prática restrita de Contorno da cidade pretos novos, pois, uma vez aqui, não atual Lapa havia como mantê-la. Dentes de ‘ladi-

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Rio de Janeiro em 1820

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e, entre 1760 e 1830, o Rio, revelam os registros, efetivamente recebeu negros de muitas regiões africanas”, nota Florentino. “Também se confirma um padrão do tráfico, que agia da costa para o interior, em busca dos que haviam migrado do litoral.” É possível comprovar até o caminho da ilegalidade, que não rendeu documentação. Em 1815, Portugal e Inglaterra assinaram um acordo que proibia a compra e tráfico de escravos ao norte do equador. “As pesquisas de Pena e Santos demonstram, na prática, que, apesar da proibição, os contrabandistas atuavam na área. Dizendo navegar até Angola, desviavam para a Nigéria, onde pegavam escravos, que registravam como angolanos”, diz o historiador. A análise sobre o cemitério igualmente comprovou uma faceta pouco conhecida do tráfico: a baixa faixa etária dos cativos. “Os vestígios são de negros muito jovens”, fala Santos. Cerca de 780 mil crianças foram

O aumento da demanda de escravos para a Corte deixou poucas partes da África livres de traficantes

instituto pretos novos

nos’ não têm essas marcas”, diz Sheila. A variabilidade de razões de estrôncio observada contrasta com o encontrado em outros cemitérios de escravos das Américas, sendo maior, por exemplo, do que a medida nos africanos enterrados no New York Burial Ground, cemitério de escravos americanos encontrado em Manhattan em 1991. “Na contramão da América do Norte e de outras regiões do Brasil, o Rio recebia uma quantidade mais expressiva de cativos com uma maior diversidade étnica e genética”, afirma Santos. Pode-se identificar que a base alimentar desses indivíduos na infância não continha itens de procedência marinha. “Faz todo o sentido. A chegada da família real aumentou a demanda por escravos, culminando na fase áurea do tráfico, que acabou legitimando uma situação de fato: a Coroa não tinha mais o monopólio, o que dava livre acesso ao comércio. Logo, poucas partes do continente ficaram ilesas aos traficantes

Arcada dentária recuperada no cemitério com os cortes rituais feitos nos dentes pelos africanos

escravizadas para o Brasil a partir de meados do século XIX, porque eram mais “maleáveis” que os adultos e suportavam melhor as travessias. Nos estertores do tráfico, em especial no Rio, um em cada três escravos era criança. “A elite escravocrata ao sentir que o fim do tráfico estava próximo passou a buscar mais mulheres, ou seja, mais úteros para gerar escravos; e crianças, que trabalhariam por mais tempo após o fim do tráfico”, explica Florentino.

Objetos encontrados no Valongo Uma caixa contendo pequenas miçangas foi achada na escavação, com o mesmo tipo de contas achadas num crânio infantil do cemitério

Pequeno brinco feminino de ouro com a “meia-lua” do islamismo

Cachimbos com imagem africana foram achados em grande quantidade

Anel de piaçava feito com grande delicadeza

Contas usadas em colares para proteção mágica fotos  leo ramos

Dados usados para jogos de azar, então proibidos naquela parte da cidade, eram fonte de lazer para os cativos

28 | dezembro DE 2011


reinaldo tavares e cláudio honorato

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ovas escavações no cemitério corroboram essa prática pela presença de crânios e arcadas de jovens. As prospecções foram retomadas pela equipe de Tânia Lima, que, temerosa das consequências da especulação imobiliária em torno do sítio, por causa do Porto Maravilha, encarregou o arqueólogo Reinaldo Tavares, do Museu Nacional, da pesquisa O Cemitério dos Pretos Novos: delimitação espacial, que até o final do ano traçará o mapa do cemitério. O seu tamanho é uma incógnita. Segundo relatos da época, teria 50 braças, algo como um campo de futebol. O arqueólogo desconfia da medida, exígua demais para abrigar tantos corpos. Abrindo valas no entorno do sítio ele busca os seus limites. “Não é preciso cavar mais do que 70 centímetros para deparar com restos de corpos”, diz. O lugar era uma vala comum onde os corpos eram jogados, após ficarem dias amontoados num canto. Quando a fossa enchia, era reaberta e os vestígios eram incinerados e destruídos para dar lugar a novos corpos. “Encontramos também lixo urbano misturado aos ossos: comida, vidros, material de construção, animais mortos, dejetos. A tese inicial era que o cemitério fora transformado em ‘lixão’ da vizinhança após seu fechamento. As escavações apontam que ele ainda funcionava quando os detritos foram jogados com os corpos.” A genética só aumenta o peso simbólico provocado por esse desprezo. “Os escravos entravam no Brasil pelo Nordeste ou pelo Rio. A própria proximidade geográfica levou escravos da África Ocidental para o Nordeste e os da África Central para o Rio. Desses, a grande maioria era de bantos”, diz Pena. Seriam, portanto, corpos desse grupo étnico que lotam o cemitério. Do cais e dos armazéns era possível ver como os seus mortos eram tratados. “Para os bantos, o sepultamento indigno impossibilita a reunião entre o morto e seus antepassados, crença central da etnia. Pode-se imaginar que se sentiam condenados a uma ‘segunda morte’, cientes de que se apagara da memória o lugar de seu repouso final”, observa Júlio César. Os vivos, porém, não tinham grandes chances: só um terço dos pretos novos viveria como escravo mais do que 16 anos. A causa dessas precocidades dos óbitos eram as muitas doenças com que conviviam, como comprovam as pesquisas paleogenéticas de Alena Mayo, do La-

Ossos à flor da terra revelados nas novas escavações realizadas no cemitério

boratório de Genética Molecular de Microrganismos da Fiocruz, que rastreia, via DNA, as moléstias do Rio colonial. No cemitério de escravos da praça XV, por exemplo, verificou-se pelas ossadas que 7 em cada 10 cativos estavam infectados com protozoários ou helmintos. “Era resultado da péssima nutrição dos escravos, aliada às condições impróprias de higiene em que viviam”, diz Alena. A descoberta genética comprova vários aspectos do estudo clássico da historiadora americana Mary Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro (Companhia das Letras, 2000). Como a afirmação de que “as condições de vida dos escravos e as doenças matavam mais do que a violência física do cativeiro”.

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pesquisadora estudou o Cemitério dos Pretos Novos, onde encontrou traços de tuberculose, um total de 25% de amostras positivas. “As condições desumanas em que eram transportados faziam os escravos suscetíveis a contrair, já na chegada, a doen­ ça, então difundida pela cidade.” Isso também remete à pesquisa documental da americana: “A mortalidade dos africanos recém-chegados ao Valongo não se relacionava apenas às condições terríveis dos ‘tumbeiros’. Mesmo sobrevivendo à travessia, no cais eles enfrentavam um desafio maior: adaptar-se às novas, e péssimas, condições de vida para não sucumbir, de cara, às doenças do Rio”.

Uma escavação em particular trouxe revelações importantes. “Ossadas encontradas na igreja Nossa Senhora do Carmo, no Rio, de sepulturas do século XVII, destinadas a pessoas de ascendência europeia, apesar de muito degradadas, deram positivo para tuberculose em 7 das 10 costelas analisadas”, afirma Alena. No local foram também encontradas ossadas de índios e negros. Na comparação dos vestígios, a pesquisadora concluiu não só que a tuberculose já grassava na cidade no século XVII, mas que, na medida em que apenas os europeus deram positivo para tuberculose, foram os colonizadores os responsáveis pela introdução da doença no Rio. “Em estudos que fiz sobre material pré-colombiano, encontrei helmintíases intestinais e registros da doença de Chagas. Concluímos que eram doenças que não vieram com os europeus. No Brasil colonial, ao contrário, evidencia-se o papel de europeus na introdução e disseminação de doenças epidêmicas como a tuberculose.” Logo, os temores das “doenças dos negros” que levaram à criação, exatos 200 anos atrás, do Cais do Valongo, seriam infundados. Não há crime perfeito quando os conhecimentos se reúnem. n

Artigo científico JAEGER, L. H. et al. Mycobacterium tuberculosis complex detection in human remains: tuberculosis spread since the 17th century in Rio de Janeiro, Brazil. Infection, Genetics and Evolution. No prelo. PESQUISA FAPESP 190 | 29


 política C&T _  h omenagem

Pioneirismo incessante Com independência e ousadia, Ricardo Brentani promoveu a biologia molecular e fortaleceu a pesquisa sobre câncer no Brasil Carlos Fioravanti*

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rentani fazia as mulheres se sentirem bem no trabalho. Ele dizia: ‘Prefiro trabalhar com as mulheres a trabalhar com homens. As mulheres vão fazer com mais responsabilidade e mais cuidado. Sou um fã incondicional de mulheres’”, conta Luisa Villa, sucessora do médico Ricardo Renzo Brentani no Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer, que ele dirigiu de 1985 a 2005. Brentani, que morreu de infarto no dia 29 de novembro, aos 74 anos, tornou-se conhecido por ter uma mente independente. Não se deixava abater nem pelo machismo nem pela formalidade que predominam nos espaços acadêmicos. Extrovertido, hábil em comentários inesperados, cortantes e bem-humorados, objetivo e a seu modo afetuoso com suas equipes, ele foi um cientista de visão ampla, destacando-se como pioneiro em biologia molecular, a partir dos anos 1970, e na pesquisa em genética do câncer, já no final dos anos 1990, por meio do projeto Genoma Humano do Câncer, financiado pela FAPESP e pelo Instituto Ludwig.

30    dezembro DE 2011

Mas ele não se contentava em estar apenas no laboratório ou na sala de aula, produzindo ou semeando novas ideias, que resultaram em cerca de 200 artigos científicos, muitos deles publicados nas mais prestigiosas revistas científicas, ao longo de 50 anos de trabalho. Como poucos, ele foi também um gestor de voz firme, como presidente da Fundação Antônio Prudente, que mantém o Hospital A.C. Camargo, coordenador do Centro Antonio Prudente para Pesquisa e Tratamento do Câncer, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), apoiados pela FAPESP, e diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo (CTA) da FAPESP de dezembro de 2004 até a morte. Sob sua direção desde 1990, o Hospital do Câncer tornou-se um centro de referência internacional em pesquisa, ensino e assistência em câncer. Ele próprio comentou em 2007, ao receber o Prêmio Conrado Wessel de Ciência, um dos muitos que ganhou: “Eu achava que o hospital devia ser mais que um hospital. Devia ser um centro de ensino e pesquisa. Em 1996 credenciamos uma pós-graduação no MEC. Trata-se do único


eduardo cesar

hospital privado que tem pós na área no MEC. A primeira avaliação foi 4, a segunda 6 e a terceira 7, a nota máxima. Foi um dos dois com 7 na área médica. Essa visão de centro de ensino e pesquisa foi a redenção para o problema de recursos. Hoje é um hospital financeiramente sadio”. “Brentani conseguiu colocar em pé uma instituição que estava falida, o Hospital do Câncer”, comenta Isaias Raw, presidente do conselho técnico-científico da Fundação Butantã e liderança científica do Centro de Biotecnologia do Instituto Butantan, que foi um de seus professores na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Raw destaca que não se consegue manter uma instituição como um hospital “se não entender de ciência básica e se não tiver visão de administrador”. A ideia de administradores genéricos, capazes de gerir com eficiência negócios tão diferentes quanto um banco e um supermercado, é, a seu ver, “uma besteira”. Ricardo Brentani nasceu em 1937 em Trieste, na Itália, veio criança para o Brasil – o pai, Segismundo, era industrial, e a mãe, Gerda, artista plástica – e PESQUISA FAPESP 190    31


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depois se naturalizou. Ele estudou no Instituto Mackenzie antes de entrar na medicina na USP. “Foi um estudante que desde o começo revelou talento para a pesquisa. Trabalhou comigo desde o primeiro ano da faculdade. Ele me pedia para o liderar, mas não o liderei nunca”, conta Raw, que foi seu orientador no doutorado. No laboratório de Raw já estava Maria Mitzi, sua futura esposa (eles completaram 50 anos de casados em abril, tiveram quatro filhos, Hugo, Helena, Alexandra e Barbara, e 10 netos) e colaboradora científica (assinaram juntos vários artigos). Raw se lembra de quando Brentani verificou que o nucléolo, um compartimento das células, era importante para a produção de RNA mensageiro. Brentani entrou na sala de Raw. Gabriel Lippmann, cientista francês que havia ganho o Prêmio Nobel de Física em 1908, estava lá, olhou os dados e disse que estavam corretos. “Levou mais de 15 anos até ser reconhecida a importância do nucléolo na síntese do RNA mensageiro, que nessa época ainda não tinha nem nome”, conta Raw, aos 84 anos. 32    dezembro DE 20111

1. Berço novo para a primeira foto no Brasil  2. Brentani, Mitzi e netos  3. Jeito de galã, com a mulher, em evento científico nos anos 70

Michel Pinkus Rabinovitch, ex-professor da Faculdade de Medicina da USP e atualmente professor colaborador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), também se lembra de como o jovem estudante tinha uma mente independente: “Ele não perguntava antes de fazer as coisas”. Em 1954 Rabinovitch voltou de uma temporada nos Estados Unidos e começou a formar sua equipe com estudantes de medicina intelectualmente inquietos como Nelson Fausto, Thomas Maack, Sérgio Henrique Ferreira e Ricardo Brentani, que se integrou ao grupo um pouco depois dos outros. “Nunca formei gente como esses meninos, nem na França e nos Estados Unidos”, conta Rabinovitch, aos 85 anos. “Aquilo era uma fogueira intelectual.” Em 1960 e 1961, um ano antes de terminar o curso de medicina na USP, Brentani assinou com o professor e seus colegas os primeiros dois artigos científicos, ambos na Journal of Biophysical and Biochemical Cytology. “Foi uma época maravilhosa, infelizmente a ditadura acabou com tudo.”

A convivência incluía longas conversas regadas a cerveja no bar Riviera, na esquina da avenida Paulista com a Consolação, um dos locais que reunia a intelectualidade paulistana dos anos 1960 e 1970. “Éramos como uma família”, diz Rabinovitch, que por vezes conhecia até mesmo os pais dos estudantes. Nessa época, ele se lembra, saiu um livro do filósofo da ciência Karl Raimund Popper. O jovem Ricardo Brentani, então com 20 e poucos anos, viu o livro e não gostou de algo. Mas também não se aquietou e resolveu agir, sem avisar ninguém, claro. “Ele escreveu para Popper, e Popper respondeu, tratando-o como se também fosse um filósofo”, conta Rabinovitch, que acompanhou o ousado estudante debatendo com Popper. “Ricardo tinha um bom nível de educação e era extremamente inteligente.” Quem conviveu com ele o viu estimulando os mais jovens a não recuarem diante dos figurões ou de quem parecia superior. O raciocínio era simples: se ele se correspondeu com Popper numa época em que não havia sequer computador, por que os jovens doutores deveriam hesitar em abordar um ganhador de Prêmio Nobel que estivesse ali, a poucos metros? Brentani fazia com que os integrantes de suas equipes rapidamente reconhecessem e superassem os próprios medos. Os pupilos de Rabinovitch ganharam destaque. Nelson Fausto se estabeleceu como professor e pesquisador na Universidade de Washington, Estados Unidos; Maack, que teve de deixar o Brasil em 1964, fez


“Ele nunca

fotos acervo da família

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carreira na Universidade Cornell; e Sérgio Henrique Ferreira, como professor da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto e um dos principais pesquisadores em farmacologia no Brasil. Esporte e ciência

Brentani gostava também de esportes. Competia pela faculdade na equipe de polo aquático, corria na praia e curtia futebol (torcia pelo Santos). Ele foi professor da FMUSP até 2007, quando teve de se aposentar, ao completar 70 anos. Como seus ex-professores haviam feito, ele formou pesquisadores que se destacaram como líderes de grupos de pesquisa em câncer, como Roger Chamas, na FMUSP, e Luiza Villa e Emmanuel Dias-Neto no Hospital do Câncer. Brentani lançou novas linhas de pesquisa, ao demonstrar, por exemplo, o papel usual de um tipo de proteína, o príon, que ele suspeitava que não poderia apenas causar doenças. O Centro Internacional de Pesquisa e Ensino (Cipe) em Oncologia do Hospital A.C. Camargo, que ele ajudou a criar, começou a funcionar

sentida por todos nós, seus companheiros e colegas de trabalho”. “Brentani foi um colega valoroso na diretoria da FAPESP”, comentou Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico. “Por ser um cientista do mais alto calibre trazia sempre uma visão acadêmica rigorosa e estimulante para todas as discussões. Sua falta será sentida, seja como gestor, seja como cientista.” Joaquim José de Camargo Engler, diretor administrativo da FAPESP, comentou: “O professor Brentani foi um grande amigo e companheiro. Convivi com ele tanto na Universidade de São Paulo quanto, com mais proximidade e afinidade, na FAPESP, desde o momento em que se tornou conselheiro e, de forma mais assídua, desde que passou a integrar como diretor-presidente o Conselho Técnico-Administrativo da Fundação. Ele tinha uma inteligência privilegiada, raciocínio muito rápido e era um amigo incondicional”. No dia 29, Brentani assistiu a uma apresentação, no hospital, de Renata Pasqualini e Wadih Arap, dois de seus ex-alunos que desenvolveram uma estratégia nova de combate ao câncer no MD Anderson Cancer Center da Universidade do Texas (ver reportagem na página 54). Depois passou a tarde conversando com eles e com Diana Noronha Nunes e Emmanuel Dias-Neto, pesquisadores do Hospital do Câncer A.C. Camargo. “Foi uma tarde em que o vi especialmente feliz. Sorrisos, gargalhadas, planos e muitos sonhos. Ele estava feliz com a vinda do nosso futuro diretor de pesquisas, com o andamento do hospital, com o encaminhamento das pesquisas”, observou Dias-Neto. “Não me lembro de nenhum assunto desagradável ou que diminuísse sua alegria. Começou a chover no final de nossa reunião. Mal nos despedimos e soube, cerca de duas horas depois, que a chuva ainda iria perdurar por muito tempo.” n

fugiu da luta”, observou Erasmo Tolosa, colega desde quando eram estudantes de medicina

4. Turma de 1962 da Medicina da USP  5. Brentani, Liana Moraes, Mitzi e José Ermírio de Moraes Neto, na Fundação Antonio Prudente

em 2010. “Ele nunca fugiu da luta”, reitera Erasmo Magalhães Castro de Tolosa, professor emérito da FMUSP que conviveu com Brentani desde quando eram estudantes de medicina. Carlos Vogt conheceu Brentani no Conselho Superior da FAPESP, do qual o médico já era membro e o linguista era recém-ingresso. “Desde logo, me dei conta do papel de sua atuação apaixonada e crítica, pelos comentários, pelas avaliações, pelo discernimento em enfatizar sempre, em suas tomadas de posição, as razões institucionais e acadêmicas sobre quaisquer outras razões”, conta Vogt, nomeado no ano seguinte para a presidência da Fundação. Em 2004, sucedendo Francisco Romeu Landi, então recém-falecido, Brentani assumiu como diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo (CTA). Celso Lafer, presidente da FAPESP, comentou que Ricardo Brentani “deu, com sua forte personalidade e aguda inteligência, uma contribuição inestimável para a elevação do patamar de qualidade da FAPESP. Sua falta será

* Participaram Fabrício Marques (edição de entrevista) e Jussara Greco (produção de fotos) PESQUISA FAPESP 190    33


Para uma história da ciência em São Paulo Em sua última entrevista, Ricardo Brentani mostrou o que há 50 anos conferia porte internacional à Faculdade de Medicina da USP Mônica Teixeira

E

ncontrei-me com Ricardo Brentani no dia 23 de novembro para uma conversa sobre a atividade de pesquisa na Faculdade de Medicina da USP no início da década de 1960. Nessa época, e ao lado de outros jovens que também se tornaram importantes cientistas – como Walter Colli, Erney Camargo, Mitzi Brentani, Sérgio Ferreira –, Brentani iniciava sua carreira de pesquisador. Também é dessa época a criação da FAPESP. Foi justamente a coincidência entre o início da carreira do professor e a criação da Fundação que me levou a procurá-lo, em busca de lembranças de como acontecia a prática científica em São Paulo há 50 anos. “A Faculdade de Medicina era de porte internacional”, disse ele para começar a conversa. Três dos cientistas que davam o “porte internacional” à faculdade fizeram parte essencial da formação de Brentani: os histologistas Luis Carlos Junqueira e Michel Rabinovitch e o bioquímico Isaias Raw. Por minha iniciativa, a conversa se fixou principalmente no primeiro, o controverso catedrático de histologia e embriologia da faculdade. No final do encontro, o professor me mostrou muito feliz os resultados financeiros do Hospital A.C. Camargo, contou do novo diretor que contratou na Europa para chefiar o centro de pesquisa associado ao hospital. Também falou com orgulho do trabalho da FAPESP nos últimos anos. Antes da

34

_ dezembro DE 2011

despedida, disse a ele que o procuraria pelo menos mais uma vez antes de completar o trabalho de pesquisa sobre a ciência em São Paulo nesses 50 anos de existência da FAPESP. A tristeza é grande pela impossibilidade de qualquer nova conversa. Qual era o panorama da pesquisa na Faculdade de Medicina da USP no início de sua carreira? A Medicina era de porte internacional. Tinha o [Luis Carlos Uchôa] Junqueira, o Isaias [Raw] e a parasitologia – o Samuel Pessoa fez uma equipe para ninguém pôr defeito: o casal Nussensweig, o Luiz Hildebrando, o Leônidas Deane, o Erney Camargo que estava começando. Na fisiologia, o catedrático era o Alberto Carvalho da Silva e o Gerhard Malnic também estava começando. Na patologia, o catedrático, desprezado por todo mundo, era o Constantino Mignone. Um dia, jantando em Washington com um patologista muito importante, ouvi dele que a tese de cátedra do Mignone sobre fisiopatologia da doença de Chagas era um clássico mundial – embora estivesse escrita em português. A clínica médica e a cirurgia também reuniam gente boa. A cardiologia era muito avançada. Quando a FAPESP começou a fazer diferença? Desde o começo. O primeiro presidente foi o [Jayme Arcoverde de Albuquerque] Cavalcanti, que era o catedrático de bioquímica. A primeira sede


reprodução eduardo cesar

Um dos primeiros papers de Bretani, publicado no Journal of Biophysical and Biochemical Citology, em 1960; e o primeiro auxílio que recebeu da FAPESP em 1965

da FAPESP foi no quarto andar da Faculdade de Medicina. O Cavalcanti presidia e ele cedeu a secretária dele para ser a secretária da FAPESP. Começou lá. Depois é que foi para a avenida Paulista. Como começou a fazer pesquisa? Entrei na Faculdade de Medicina em 1957 e, no primeiro ano, eu tinha muito tempo livre e pouca coisa para fazer. Por isso procurei um laboratório de pesquisa para ver como era. O primeiro professor que procurei, não vou dizer quem é, me disse: “Não tenho tempo para perder com besteira. Procura o Michel [Rabinovitch], que ele gosta de criança”. O Rabino então me deu um monte de livros para ler, complicados, difíceis. Depois que li tudo aquilo, ele falou: “Vamos começar a trabalhar já que você não vai desistir mesmo...” O Michel foi muito importante para mim. Quando ele me aceitou, comecei a trabalhar nas coisas dele. Ciência é assim: muita gente não percebe, mas não há democracia nenhuma. Você tem que crescer para começar a trabalhar nas coisas que quer. Com o Michel, publiquei meu primeiro Nature, no quarto ano da faculdade. Sou um privilegiado: tenho dois Nature com minha mulher,

um enquanto aluno e um com a minha filha. Não é todo mundo que tem esse privilégio. Aí o Rabino foi para a [Fundação] Rockefeller e fiquei um tempo com o Junqueira. Já durante o estágio com o Rabino, havia feito amizade com o Junqueira – que era meu professor e estava sempre no laboratório. Era um prazer conversar com ele: pessoa espetacular, grande cientista, cultura absurda; então, sempre fui amigo dele. Ele tinha algumas características que você que me conhece aprecia. Por exemplo: ele bateu em um professor da Faculdade de Medicina. Claro, foi expulso da faculdade. O Juquita [José Ribeiro do Valle], quando soube, recebeu o Junqueira na Escola Paulista de Medicina, onde ele se formou. De lá, foi para os Estados Unidos, para um pós-doc. Naquela época, não se chamava assim. Em Nova York, na Fundação Rockefeller, o Junqueira ficou muito amigo do Keith Porter e do George Palade [ambos ganhadores do Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia] e participou do desenvolvimento da microscopia eletrônica. Com isso, tornou-se um microscopista eletrônico fantástico. Ele voltou para São Paulo a pedido, para participar do concurso para a cátedra de

histologia – o catedrático anterior morreu subitamente. Então, ele virou catedrático muito jovem, trouxe um auxílio polpudo da Rockefeller para montar o laboratório. Da histologia do Junqueira saíram, por exemplo, o Ivan Mota, que descobriu o mastócito, era um cientista world class, o José Carneiro. O Nelson Fausto, o Sérgio Ferreira, eram crias do Michel, que era assistente do Junqueira. O laboratório tinha muitos microscópios, a primeira ultracentrífuga da Faculdade de Medicina. Essa ultracentrífuga era do Michel; e aprendi a montar e desmontar a máquina, porque naquele tempo não tinha assistência técnica. O laboratório tinha tudo que tinha que ter para a gente fazer a pesquisa que fazia na época. E por que ficava todo mundo nesse laboratório? Era o laboratório que tinha substância, por causa do auxílio da Rockefeller. Depois que o Rabino viajou, o Junqueira me disse que, como aluno, eu não poderia ter um laboratório na histologia. Nessa época, eu já tinha conhecido a Mitzi [Maria Mitzi Brentani, sua futura mulher]; ela ia trabalhar com o Isaias – que era o regente da cadeira de bioquímica – e eu fui junto, de contrapeso. Regente da cadeira era o professor adjunto que ainda não tinha feito concurso de cátedra. O Isaias foi o penúltimo catedrático da Faculdade de Medicina. O último foi o [Euriclydes] Zerbini: depois todo mundo virou titular. Mais tarde, em 1972, o Instituto de PESQUISA FAPESP 190

_ 35


Em 1968, Brentani obteve da FAPESP o primeiro auxílio como pesquisador independente, recomendado por Isaias Raw

Química me emprestou para a Faculdade de Medicina para eu criar a oncologia experimental. Passei a ficar fisicamente na Faculdade de Medicina, a não ser quando ia para as aulas de bioquímica, quando ia para a Cidade Universitária. Aí reatei a amizade com o Junqueira. Quais eram as qualidades dele? Ele foi um grande cientista. No fim da década de 1940, ele e o [Torbjörn] Caspersson, da Suécia, separadamente, mostraram onde a célula fazia proteína. Não é coisa à toa. Depois fez estudos pioneiros de síntese proteica em glândula salivar. Ele sempre foi um cara muito curioso e não tinha uma linha fixa de pesquisa. De repente, aparecia com uma curiosidade diferente. Por exemplo: ele mostrou que aquela linha lateral do peixe na verdade são neurônios que ajudam o peixe a se posicionar na água. Outra descoberta dele foi sobre o besouro-bombardeiro. Esse bicho secreta uma mistura de água oxigenada e ácido fórmico concentrado que ferve e queima. O dogma era que o besouro tem várias glândulas que secretam os componentes e que a mistura ocorreria fora do corpo; o Junqueira mostrou que o bicho tem uma glândula só, com uma membrana absolutamente espessa, e que a mistura já sai fervendo. Outra característica é que ele ficava ex36

_ dezembro DE 2011

Quais eram os temas do laboratório de histologia? Cada assistente tinha sua linha de pesquisa. Então, o Ivan estudava o mastócito; o Michel estudava fisiologia renal; o José Carneiro trouxe a autografia; o José Ferreira Fernandes fazia doença de Chagas; e o Sakae Yoneda fazia embriologia. Essas linhas estavam sintonizadas com as linhas mundiais. O Junqueira gostava muito de histologia comparada. Volta e meia tinha bichos estranhos lá. Ele tinha um técnico e a Hanna Rothschild trabalhava com ele também. Ele fazia muita histoquímica para ver síntese de proteína. Fez muita coisa com pâncreas e glândula salivar. Nos anos que passei na histologia, os estrangeiros que vinham visitar o departamento vinham por causa dele, para estar com ele.

Grandes avanços são sempre recebidos com descrédito. Nada mais perigoso que afrontar a verdade estabelecida citado nas épocas em que perseguia uma ideia e deprimido quando não tinha ideia a perseguir. Em 1975, 1976, ele andava deprimido. E eu tinha ouvido uma palestra sobre um corante [para microscopia] que chama Sirius Red F3BA. Liguei para o fabricante e descobri que o corante era usado para tingir couro e vendido em toneladas. Quando eu disse que precisaria de 100 gramas, ele resolveu me mandar de presente duas garrafinhas de 50 gramas. Quando chegou, fui fazer a lâmina [de colágeno] com o corante e ficou ruim. Sempre fui ruim de mão; tenho imaginação, mas nunca tive boa mão. Aí dei ao Junqueira uma separata sobre o corante, uma das garrafinhas de 50 gramas, a lâmina que eu tinha feito. Ele sempre foi um cara para quem tudo tem que ser perfeitinho, certinho. Passaram-se três dias e ele voltou todo feliz, com uma lâ-

Para o Junqueira, a FAPESP também foi importante? Com o “espírito popular” dele, o Junqueira fez muitos inimigos. Alguns grants que ele pediu não foram aceitos. Depois disso, ele não pediu mais. E para a sua carreira de pesquisador iniciante? Que importância teve a FAPESP?

reprodução eduardo cesar

mina deslumbrante e excitadíssimo. Esse corante é uma molécula muito comprida, são 1.200 angstrons, com seis cargas negativas espalhadas. Por isso, ele gruda paralelamente à fibra de colágeno. De modo que quando você incide com luz polarizada o corante fica birrefringente e emite luz. Durante uma década ou mais, o Junqueira e o Gregório Santiago Gomes revolucionaram a histoquímica e a biologia de colágeno. Eles publicaram 40 ou 50 papers com isso. Um dia ele apareceu desesperado na minha sala – estava branco, pálido. O que foi?, perguntei. “Acabou o corante!” Abri a gaveta e dei a ele a outra garrafinha. Depois dos papers do Junqueira, a fábrica do corante passou a vender mais em embalagens de 50 gramas do que de tonelada: o mundo inteiro passou a usar esse método.


acervo da família

Tenho um orgulho muito grande: nunca tive um pedido meu recusado pela FAPESP. Em 1968 fui alforriado pelo Alberto Carvalho da Silva. Alforriado quer dizer: até ali eu fazia o projeto de pesquisa, dava para o Isaias; ele incluía o meu em um projeto dele. Desse jeito, eu tinha o que precisava sem saber o how much. Em 1968, o Alberto falou para o Isaias que estava na hora de eu começar a pedir sozinho o meu financiamento. Assim ganhei meu primeiro grant. Muito bocudo como eu sempre fui, disse a ele: “Isaias, intelectualmente independente sempre fui. Agora que sou financeiramente independente também, não acho que precise pôr o seu nome nos meus papers, o que você acha?”. Ele, como é um cara espetacular, deu risada e disse: “Você tem razão”. O normal seria o professor dizer: “Moleque, vai à m...”. O Isaias é especial. Em que temas você trabalhou no laboratório do Isaias? A Mitzi e eu casamos no quinto ano da faculdade, logo que começamos a trabalhar com o Isaias. Quando voltamos da lua de mel, em 1961, o Isaias nos pôs a sintetizar proteína em tubo de ensaio a partir de frações celulares. Vamos lembrar que o sistema [de codificação de proteínas, o chamado código genético] foi destrinchado a partir de 1962 [por Francis Crick e Sydney Brenner]. Então a gente sofreu pra burro para fazer aquilo funcionar. Eu ficava desacorçoado e o Isaias dizia: “Você é bom, não fique assim, toca em frente”. Conseguimos alguns resultados e mostramos que, tirando RNA de nucléolo, a quantidade de síntese aumentava. Passamos 10 anos da nossa vida mostrando que o nucléolo processa RNA mensageiro – por isso que a síntese aumenta. Não sabíamos explicar os primeiros resultados; quando o RNA mensageiro foi descoberto, percebi que o nucléolo deveria processar RNA mensageiro. Todo mundo morria de rir dentro e fora do Brasil. Qual era o dogma? Em 1962 se mostrou que o nucléolo faz RNA ribossomal, que de fato faz. Na cabeça das pessoas, cada coisa faz uma coisa só, ninguém é capaz de pensar que talvez faça mais de uma. Há cinco anos, pesquisadores usando mutantes de levedura mostraram que nucléolo de fato

Brentani com Isaias Raw: independência em 1968 e amizade até o fim da vida

processa RNA mensageiro – só que não me citaram. Eu escrevi para o pesquisador. Ele me respondeu: “Mas eu estava no jardim de infância quando você publicou isso...”. Essa descrença da comunidade em relação a essas conclusões afetava vocês como? Vocês conseguiam continuar publicando? Sim, os dois artigos da Nature que publicamos juntos são sobre esse assunto. Conseguia sim publicar. Mas, por exemplo, um paper dessa época, que publiquei no Biochemichal Journal, veio recusado. A carta do editor dizia que os referees não gostaram da hipótese de trabalho. Respondi: “Li de novo [na política da revista] e lá está escrito que vocês querem papers onde a evidência experimental comprove a hipótese de trabalho. Não está escrito que os referees têm que gostar”. Passei um ano discutindo com ele. Finalmente, veio a carta de aceitação: “Tenho o prazer de comunicar que seu paper está aceito. P.S.: eu continuo detestando sua hipótese de trabalho”. Não estou me comparando a ninguém; sou muito pequeno. Os grandes avanços sempre foram recebidos com profundo descrédito. Está no Maquiavel: nada mais perigoso do que afrontar a verdade estabelecida. Você contrariou outras vezes a verdade estabelecida? Sim. Havia dados na literatura, esparsos, sugerindo que os polissomos que fazem

colágeno formavam agregados muito grandes. Eu pensei, contrariamente ao dogma – o dogma é que as três moléculas do colágeno se associam na tripla hélice depois de traduzidas –, que a única interpretação possível para esse “maçarocoma” seria a associação das três moléculas ser um evento precoce. Se eu tivesse razão, então deveria ser capaz de purificar polissomos que fazem colágeno com uma centrifugação baixa. Mostrei isso, publiquei e passei 10 anos tentando convencer a comunidade. Eu ia às Gordon Conferences [fórum de discussão de pesquisas de fronteira de biologia, química e ciências físicas] e todo mundo dizia: lá vem ele, com aquelas coisas malucas... Hoje sabemos que existem 18 colágenos diferentes caracterizados; e todo mundo aceita sem discussão que o assembly é precoce, não tardio. Um dia fui jantar na casa do Nelson Fausto, em Seatlle, e tinha lá um colagenomaníaco cobrão, famoso. “Você tinha razão e todos nós estávamos errados. Não espere que alguém cite você porque seus artigos já têm 30 anos.” Tudo bem. Mais recentemente, inventei a teoria da hidropacidade complementar em que ninguém acredita até hoje. Tudo bem: o doutorado da Renata Pasqualini está no PNAS; o doutorado do Sandro de Souza está no Journal of Biological Chemistry; com Wilma Martins, publicamos um Nature Medicine. Hoje tem pelo menos 90 papers mostrando que isso funciona. E alguns dos meus papers são muito citados. n PESQUISA FAPESP 190

_ 37


_  DATAFOLHA {

A aprovação do público-alvo Pesquisa de opinião indica leitores satisfeitos com Pesquisa FAPESP Neldson Marcolin

A

primeira pesquisa de opinião feita com os leitores de Pesquisa FAPESP trouxe resultados para lá de positivos. De acordo com levantamento do Instituto Datafolha, 99% dos que leem a publicação a avaliam como altamente satisfatória – 68% a consideram ótima e 31% boa. Setenta por cento fazem parte da população economicamente ativa (PEA) e, dentre estes, 58% são professores e 20% gestores e pesquisadores científicos. A idade média é de 47 anos e 39% têm renda acima de 10 salários mínimos. Esses dados foram colhidos nos meses de julho, agosto e setembro deste ano com 858 pessoas entre assinantes pagos, assinantes clientes da FAPESP (pesquisadores e bolsistas que aparecem como “cortesia” nas páginas seguintes) e compradores em banca. A margem de erro máxima para o total da amostra é de 3 pontos percentuais, para mais ou para menos. Os textos da revista são considerados de fácil leitura por 90% dos entrevistados. A nota média atribuída à publicação é 9. Quando perguntados por quais motivos costumam ler a revista, 96% fizeram referência ao conteúdo, citando espontaneamente, no caso, a di-

38    dezembro DE 2011

versidade dos assuntos de áreas de interesse (34%), para se manter atualizados (26%), o fato de a publicação ser especializada em assuntos científicos (21%), as atualidades sobre pesquisas (20%) e a abordagem de assuntos nacionais (18%), entre outros. Apenas 17% disseram ser leitores há menos de um ano, enquanto 31% dos entrevistados a leem há mais de sete anos. Entre os assinantes pagos, 25% têm de 16 a 25 anos e, outros 25%, de 26 a 35 anos. É um público mais jovem do que o do assinante ligado diretamente à FAPESP, concentrado naqueles que têm entre 46 e 69 anos (27%) ou mais de 60 anos (29%). Embora a média geral de idade seja de 47 anos, entre os assinantes pagos a média é menor, de 39 anos. A maioria dos leitores tem pós-graduação (79%) e é formada por homens (59%). Oitenta e sete por cento dos leitores estão na Região Sudeste e, destes, 79% no estado de São Paulo. A renda média familiar de R$ 11 mil indica um leitor de bom poder aquisitivo. Ou seja, a maioria é das classes A e B. Quarenta e um por cento deles trabalham no serviço público e 14% só estudam. Todos parecem estar conectados à internet – 90% têm notebook ou


 Perfil do entrevistado - sociodemográfico (em %) n total n Assinante n Cortesia

idade

média

média

média

escolaridade

40

anos

anos

anos

100

47

39

47

84 29

30 25

25 21

27

26 22

27 60

21

20

79

80

58

18

39

40

13

12

12

11

11

10

20

20

0

0

16 a 25 anos 26 a 35 anos 36 a 45 anos 46 a 59 anos

60 anos ou mais

2

4

16

0

fundamental/ médio

superior pós-graduação

ocupação Funcionário público

41

Assalariado registrado

13

Profissional liberal Empresário (dois ou mais empregados)

4

Só estudante

2

Autônomo regular (paga ISS)

2

Assalariado sem registro

1

Freelance/ bico

1

Estagiário/ aprendiz remunerado

1

Outros PEA

Não PEA

14

Só aposentado

30%

Desempregado

9 1

Outros

PEA

7

70% 4

PEA: População economicamente ativa

renda familiar mensal

média

40

R$ 11.836,63 R$ 8.045,68 R$ 12.376,35

38 35 30

30

30

26

25 20 16 12

18 14

10 6 3

5

5

2

6

8

6 4

1

0

Até 3 s.m.

4

4

mais de 3 A 5 s.m.

mais de 5 a 10 S.M.

mais de 10 a 20 S.M.

mais de 20 a 50 S.M.

mais de 50 S.M.

1

recusa

1

não sabe

pESQUISA FAPESP 190    39


netbook, 37% usam smartphones, 17% uti­­lizam tablets e 66% possuem aparelho de televisão de plasma, LCD ou LED. Outros 17% dizem pretender comprar um tablet nos próximos seis meses. Entre aqueles que têm curso superior ou estão cursando, 42% são das áreas de ciências biomédicas ou biológicas, 33% da área de exatas e 21% de humanas.

 Perfil do entrevistado - profissional (Espontânea e múltipla, em %) Área de formação 47 42

O Datafolha realizou também pesquisas qualitativas sobre Pesquisa FAPESP. Trata-se de reuniões com vários grupos de 7 a 10 leitores que, de modo anônimo, dão opiniões e sugestões sobre a revista. No grupo que reuniu oito universitários entre 20 e 25 anos, assinantes pagos, por exemplo, as opiniões sobre a publicação ratificaram a pesquisa quantitativa. Eles concordaram que “a revista não impõe uma posição, não empurra opinião para o leitor” e “mostra que o Brasil pode fazer boa pesquisa”. Uma das estudantes, ainda distante da área na qual gostaria de trabalhar, destacou a proximidade com a ciência proporcionada pelas reportagens. “Pesquisa FAPESP é como se fosse nosso contato com os cientistas. Já que ainda não estou entre eles, é como se estivesse ligada às ideias deles”, disse ela. Em outra reunião, desta vez de seis pesquisadores de 26 a 33 anos e uma de 56 anos, foi destacada a diversidade de assuntos. “Leio tantos artigos científicos da minha especialidade que quando chega a revista da FAPESP só me interesso por assuntos de outras áreas, para desanuviar”, comentou um dos participantes. Todos leem as principais revistas científicas de seu próprio campo de estudo, mas consideram isso como trabalho. Já Pesquisa FAPESP é divulgação da ciência, quase entretenimento para eles. “É o tal ócio produtivo, espécie de lazer que também informa”, avaliou um deles. Porém, quando leem algo que interessa para o trabalho, eles vão às fontes primárias, isto é, procuram pelos artigos originais citados na reportagem ou entram em contato com o autor da pesquisa. A pesquisadora mais experiente do grupo chamou a atenção para outro aspecto. Ela disse ler a revista para verificar qual o tipo de informação de sua própria área de estudo chega ao público leitor. “Gosto de ver o que está sendo filtrado pelos jornalistas que fazem a revista”, contou. n 40    dezembro DE 2011

34

33

Pesquisa qualitativa

29

28 21

n total n Assinante n Cortesia

43

20

6

humanas

exatas

biomédicas/ ciências biológicas

4

6

outras respostas

fonte: P.37 Qual o curso de graduação você se formou na universidade? Base: entrevistados que têm curso superior = 777 entrevistas

profissão nível superior (32%)

58

Professores/ educadores

39 61

13 4 14 3 5 3 2 5 2

2 1 2

Pesquisador científico

Diretores/ executivos

Empresários/ proprietários de empresa

Chefia/ coordenação/ supervisão

2 1 2

Estagiário

2 1

Estudante

2 5 5 citações até 2%

5

Outras respostas

Fonte: P 33a Qual é a sua profissão? base: entrevistados que trabalham = 599 entrevistas


 Hábitos do leitor (Espontânea e múltipla, em %)

mais velhos:

44%

Há quanto tempo é leitor da revista

média 5 anos 3 anos 5,8 anos

34

mais jovens:

31

37%

24

24 23 23

18 15 9

13 10

9

7

9

8

6

12

11

7 8 1

até 6 meses

mais de 6 meses a um ano

mais de 2 a 3 anos

mais de 1 a 2 anos

mais de 3 a 7 anos

mais de 7 anos

não sabe/ não lembra

fonte: P.1 quanto tempo, aproximadamente, você é um leitor da revista pesquisa fapesp? base: total da amostra = 858 entrevistas

 Grau de interesse por alguns temas

 Avaliação da revista

(Estimulada e única, em %)

(Estimulada e única, em %)

Meio ambiente Política científica e tecnológica Fontes energéticas Biotecnologia Biologia evolutiva Genética e genômica Neurociência Biologia celular Nanotecnologia Medicina Tecnologias da informação e... História Bioquímica Comunicação Imunologia

76

99 99 98

n total n Assinante n Cortesia

65 63 63 68 68 68

60 59 58 57 55

31 31 30

53 51 44 44

1

41

ótima/boa

40

ótima

boa

1

2

regular

fonte: P.6 na sua opinião, a revista pesquisa fapesp, de um modo geral, é ótima, boa, regular, ruim ou péssima? base: total da amostra = 858 entrevistas

fonte: P.12 agora eu vou citar uma lista de temas abordados na revista pesquisa fapesp e gostaria que você me dissesse se você tem muito, um pouco ou nenhum interesse em cada um deles: base: total da amostra = 858 entrevistas

citações até 1%

 Motivos da leitura (Espontânea e múltipla, em %) 96

98

96

fonte: P.8 por quais motivos você costuma ler a revista pesquisa fapesp? base: total da amostra = 858 entrevistas

6 1

6

Outras respostas em geral

1

1

1

Referências à imagem

1

1

1

Referências à qualidade dos profissionais

2 1 2

5 4 5

Referências ao aspecto gráfico/visual

Referências a qualidade e didatismo das matérias

Referências ao conteúdo

pESQUISA FAPESP 190    41


Daniel da Silva Ferraz


 ciência _  vida de primata

As matriarcas da floresta Ecologia

Convivência com a mãe aumenta o sucesso reprodutivo dos muriquis machos

Etologia

Ricardo Zorzetto Evolução

O

Aquele abraço: Yago, Leo, Evita e Elvis em momento de descontração

s muriquis, os maiores macacos das Américas, candidatos a mascote das Olimpíadas do Rio, têm um comportamento sexual peculiar. No período de acasalamento, a maioria dos machos copula com todas as fêmeas férteis do bando, exceto as próprias mães. A antropóloga norte-americana Karen Strier identificou esse padrão sexual, incomum entre os primatas, nos anos 1980, quando começou a estudar os muriquis de uma área de mata atlântica em Minas Gerais. E uma pergunta sempre a inquietou: em meio a tanta liberdade sexual, quem seria o pai dos filhotes? Só agora, três décadas mais tarde, Karen e colaboradores parecem ter encontrado a resposta. Nos bandos de muriquis não há um, mas vários pais – cada filhote, é claro, tem um único pai. Essa informação é importante porque pode orientar a preservação desse macaco brasileiro em risco de extinção. Apresentado na edição de 22 de novembro na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), esse resultado não é tão óbvio quanto pode parecer. É que em muitas espécies de animais, macacos inclusive, é comum um único macho ser o pai de quase toda a prole. Foi preciso aguardar o avanço dos testes genéticos, hoje capazes de analisar quantidades ínfimas de DNA extraído

Genética

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Onde estão os muriquis muriqui-do-sul

Quase 1.500 macacos se dividem em 15 populações em São Paulo, Paraná e Rio de Janeiro, a maior parte em áreas protegidas

muriqui-do-norte

SP

A

análise mostrou que 12 dos 24 machos do bando haviam tido pelo menos um filho. O mais bem-sucedido deles foi pai de apenas quatro filhotes ou 18% dos bebês. De acordo com a antropóloga norte-americana, esse padrão de paternidade é consequência da organização social dos muriquis, conhecidos por sua índole pacífica e por formarem uma sociedade sem disputa aparente de poder. Em sociedades com hierarquia rígida, como a dos gorilas, o grandalhão do grupo – o macho alfa – costuma se impor pela força e pode ser pai de até 85% dos filhotes. Mesmo entre os bonobos, primos pacíficos dos chimpanzés, o número de filhos que um macho costuma ter é mais alto. O mais prolífico desses macacos, que não têm parceira fixa e copulam mes­m o quando as fêmeas não estão férteis, costuma ser pai de 30% da prole – quase o dobro da taxa dos muriquis. Há tempos Karen e seus colaboradores até suspeitavam que não houvesse hegemonia da paternidade en­tre os muriquis. Mas faltavam dados que permitissem afirmar que os filhotes que nasciam sete meses depois do acasalamento – cada fêmea dá à luz apenas um bebê por vez – eram mesmo de pais diferentes. “Os dados genéticos confirmaram o que indicavam as observações comportamentais”, conta a antropóloga, pesquisadora da Universidade de Wisconsin.

MG

1

2

Remanescentes de mata atlântica

Ainda que não se observasse competição explícita entre os muriquis, não era possível descartar a hipótese de que a disputa ocorresse de algum outro modo ou mesmo no nível celular – por exemplo, os espermatozoides de um determinado macho poderiam ser mais rápidos do que o dos outros. Também poderia haver outras formas de interação social que os pesquisadores não conseguiam registrar depois que os macacos se embrenhavam

“A proximidade da mãe parece beneficiar alguns machos, mas não se sabe por quê”, diz Karen

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na floresta. O trabalho da PNAS não elimina por completo essas possibilidades, mas as torna muito remotas. Desse estudo, feito em parceria com o primatólogo Sérgio Mendes e a geneticista Valéria Fagundes, ambos da Ufes, e o antropólogo Anthony di Fiore, da Universidade do Texas, saíram ainda duas outras observações que podem auxiliar na preservação dos muriquis.

Cerca de mil animais vivem em 11 populações em Minas Gerais e no Espírito Santo. Muitas estão em propriedades privadas

A primeira é que, embora pratiquem o amor livre, os muriquis não copulam com as próprias mães – ao menos, não geram descendentes com elas. É uma constatação importante porque o cruzamento entre indivíduos aparentados diminui a diversidade genética da espécie e a torna mais vulnerável a doenças. “Quando reanalisamos os dados comportamentais, vimos que esse resultado faz sentido”, conta Karen. Ela havia observado anos antes que em geral são as fêmeas que saem à procura de um novo bando quando atingem a puberdade. Os machos continuam na companhia das mães, no mesmo grupo em que vivem o pai, o avô e os tios paternos. “Não sabemos se as mães não permitem que os filhos tentem copular com elas ou se eles não as consideram atraentes”, conta Karen. A segunda e mais intrigante constatação é que, embora não haja uma dominância clara de paternidade, certos machos são mais bem-sucedidos do que outros do ponto de vista reprodutivo. Alguns tiveram três ou quatro filhotes e outros, nenhum. Ao se questionarem sobre o motivo dessa diferença, os pesquisadores notaram que os machos pais de mais filhos eram aqueles que, depois de adultos, passavam mais tempo ao lado da mãe quando o bando estava reunido. “A proximidade da mãe parece beneficiar

mapa fonte: pan-muriquis fotos 1 Mauricio Talebi / Unifesp-diadema 2 Carla de B. Possamai

de sangue ou fezes, para verificar que os muriquis têm um padrão de paternidade distinto do de outros macacos. Para executar o estudo, Karen selecionou 22 filhotes nascidos entre 2005 e 2007 e encarregou o biólogo Paulo Bomfim Chaves, doutorando na Universidade de Nova York, de coletar o material genético deles, de suas mães (21 fêmeas) e de seus possíveis pais (24 machos). Em seguida, com a ajuda de pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), eles cruzaram os dados genéticos com as informações de história de vida e hábitos sexuais desses macacos, que vivem na reserva Feliciano Miguel Abdala, no município de Caratinga, na região leste de Minas.


alguns machos, mas ainda não sabemos como nem por quê”, diz Karen. É uma forma de influência bem distinta da que se vê, por exemplo, entre os bonobos. Esses macacos formam sociedades regidas por fêmeas nas quais as mães escolhem as parceiras dos filhos e os ajudam a enfrentar os outros machos do bando. Se comprovada, a influência materna pode indicar que as fêmeas de muriquis são matriarcas discretas e que os filhos aprendem a lidar com as outras fêmeas observando a mãe. Ou ainda que os filhos mais prolíficos se favoreçam da rede de contatos maternos para conquistar mais fêmeas. “Estamos começando a olhar para as interações entre mães e filhos adultos”, afirma Karen. Quase tudo o que se sabe sobre o comportamento dos muriquis é conhecimento recente, acumulado nos últimos 30 anos, em boa parte impulsionado pelo trabalho de Karen, que foi parar em Caratinga em 1982 por indica-

ção do orientador de seu doutorado na Universidade Harvard, o primatólogo Irven DeVore. Especialista em babuínos, ele soubera na época que em Caratinga havia sido achado um grupo de macacos que estavam quase extintos. Com o apoio dos primatólogos Célio Vale, então professor da Universidade Federal de Minas Gerais, e de Russell Mittermeier, da Conservation International, Karen iniciou o mais longo estudo de acompanhamento de muriquis. Desde a primeira vez em que se embrenhou pelos 957 hectares de floresta da fazenda Montes Claros, em Caratinga, Karen vem ajudando a construir a biografia dos muriquis e a reorientar as ações de conservação do primata. “Antes desses estudos, não se conhecia quase nada sobre os muriquis”, diz Mendes. Depois de implantar o estudo de longo prazo dos muriquis-do-norte (Brachyteles hypoxanthus), de pelagem amarelo-acinzentada e manchas rosadas na face,

1. Abraço coletivo reduz a tensão entre os machos 2. Muriqui-do-norte recolhendo néctar das flores

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3. Fêmea amamentando filhote

fotos  1. Daniel da Silva Ferraz  2. Carla de B. Possamai  3. Fernanda P. Tabacow  4. Mauricio Talebi / Unifesp / Associação Pró-muriqui

4. Em Carlos Botelho, primatólogo observa os macacos

2

1

ela esteve no fim dos anos 1980 no Parque Estadual Carlos Botelho, em São Paulo, uma área contínua de mata atlântica 40 vezes maior que Caratinga. Ali conheceu os muriquis-do-sul (Brachytheles arachnoides), com pelos castanho-amarelados e face completamente negra. Karen planejou então fazer no parque paulista um estudo semelhante ao que desenvolvia em Minas. O objetivo era comparar o modo de vida dos animais de uma área pequena, como Caratinga, com o dos que habitavam uma área florestal maior e mais bem conservada. “Ela foi visionária ao começar os estudos de acompanhamento de longo prazo dos muriquis”, comenta Mauricio Talebi, bioantropólogo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em Diadema. Talebi trabalhou com Karen no início dos anos 1990 e desde 1993 coordena os estudos em Carlos Botelho, no município de São Miguel Arcanjo, a 180 quilômetros da capital paulista. Ali vem investigando não apenas de que os muriquis se alimentam, mas, principalmente, por que comem o que comem e que estratégia usam para selecionar os alimentos.

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os 20 anos em que vem seguindo os bichos, Talebi identificou hábitos distintos entre os muriquis mineiros e paulistas que não podem ser explicados apenas por pertencerem a espécies diferentes. Uma das diferenças é que os macacos de Carlos Botelho comem muito mais frutos e flores do que os da reserva de Caratinga, que se alimentam quase exclusivamente de folhas.

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Durante seu doutorado na Universidade Cambrigde, na Inglatera, Talebi concluiu que o fator que mais influencia a dieta dos muriquis é a disponibilidade de alimentos. Em Caratinga, os animais vivem em um fragmento pequeno de mata atlântica, em que as árvores perdem as folhas na estação seca e onde há menos frutos. Carlos Botelho, que integra a maior extensão contínua de mata atlântica do país, fica na serra de Paranapiacaba, onde a umidade é alta o ano todo e as árvores estão sempre verdes. A dieta também varia de acordo com o gênero, verificou recentemente Talebi, em parceria com Phyllis Lee, da Universidade de Stirling, na Escócia. Mesmo em Carlos Botelho os machos comem mais folhas que as fêmeas, que preferem frutos e flores. Talebi atribui a diferença às necessidades nutricionais. As fêmeas, explica, precisam de muita energia e nutrientes para gerar os filhotes e produzir leite. Das flores, elas extraem fósforo, potássio e magnésio, e dos frutos, altos teores de açúcar. “As folhas têm muita proteína, mas em geral são de difícil digestão”, diz Talebi.

E

le e Rebbeca Coles suspeitam que o ambiente também influencia a forma como os muriquis buscam comida e o tempo que gastam em diferentes atividades (ver infográfico ao lado). As condições ambientais também podem ter favorecido o surgimento de uma característica genética que Talebi, Peter Lucas e Nathaniel Dominy descobriram ser exclusiva de algumas fêmeas: a capacidade de enxergar cores – os machos e a maioria das fêmeas só veem tons de cinza. “A visão colorida poderia ajudar essas fêmeas a encontrar os alimentos melhores e a se reproduzirem mais”, diz Talebi. “Esses trabalhos são fundamentais para a conservação dos muriquis”, afirma Leandro Jerusalinsky, chefe do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros. “A simples presença de pesquisadores nas áreas em que os macacos vivem já inibe a degradação das florestas e a caça, hábito cultural comum em muitas regiões brasileiras”, diz. Apesar da relevância do trabalho iniciado por Karen, ela não foi a primeira a estudar os muriquis. Foi o engenheiro agrônomo capixaba Álvaro Aguirre, especialista em manejo de fauna que trabalhou no Ministério da Agricultura, 46    dezembro DE 2011

Os valetes das copas Equipe registrou o dia a dia dos muriquis-do-sul no Parque Estadual Carlos Botelho, interior de São Paulo 1. Os pesquisadores identificaram as árvores em que os macacos se alimentam e mapearam o caminho que percorrem na mata

2. Bandos formados só por machos passavam um terço do dia à procura de folhas, flores e frutos

3. Fêmeas passavam a maior parte do tempo sozinhas ou acompanhadas apenas pelos filhotes

1.599 horas de observação

200

hectares de mata atlântica quem trouxe nos anos 1960 os muriquis de volta para o mapa das 116 espécies de primatas do Brasil. Em suas andanças pelo país, Aguirre encontrou 32 populações, formadas por um total estimado entre 2.100 e 2.200 muriquis e distribuídas por sete estados brasileiros, do norte do Paraná ao sul da Bahia. Quando os muriquis foram descritos, quase 150 anos antes, naturalistas franceses e alemães os incluíram no gênero Ateles, o mesmo do macaco-aranha. Étienne Geoffroy Saint-Hilaire chamou de Ateles arachnoides os macacos de pe-

lagem clara, face negra e mão em forma de gancho que descreveu em 1806. Catorze anos depois o naturalista alemão Heinrich Kuhl classificou como sendo de outra espécie, Ateles hypoxanthus, os animais que se distinguiam dos anteriores por terem a face e os órgãos genitais pigmentados de rosa, além de um micropolegar, ausente no primeiro. Em 1823 outro alemão, Johann Baptiste von Spix, propôs que pertenciam a um novo gênero, Brachyteles, aceito até hoje. Apesar do conhecimento acumulado desde os anos 1980 sobre o modo de vida dos muriquis, a situação das duas espécies não melhorou muito nos últimos 50 anos. Fabiano Rodrigues de Melo, ecó­­logo da Universidade Federal de Goiás, chefia um dos grupos que trabalham no recenseamento dos muriquis em Minas e na Bahia e estima que existam no máximo 2.400 macacos vivendo na natureza. Não é muito mais do que Aguirre havia contabilizado. “O número total de animais permaneceu praticamente constante”,


4. Ao encontrar frutos maduros, os machos emitiam chamados convidando as fêmeas para se alimentarem

5. Mais da metade do tempo, especialmente nos períodos mais quentes ou mais frios do ano, os muriquis descansam em bandos mistos

Duas fêmeas transferidas de bando por pesquisadores já tiveram filhotes

Fonte  Mauricio Talebi / Unifesp e rebbeca coles

Fêmea Macho

diz Melo. “O preocupante é que o número de populações está diminuindo.” Nas matas mineiras e baianas, Melo até identificou duas populações que não haviam sido descritas por Aguirre. Mas também não encontrou mais muriquis onde antes se sabia que existiam, como na região de Ilhéus, na Bahia. Hoje se conhecem apenas 12 populações de muriquis-do-norte, que, calcula-se, somam menos de mil indivíduos. Talebi, que faz o levantamento dos muriquis-do-sul, estima haver 15 populações dessa espécie, com 1.500 macacos. Ainda que se suspeite da existência de mais populações, um dos problemas, segundo Melo, é que várias delas são pequenas, formadas por menos de meia dúzia de animais, o que pode tornar inviável que se mantenham por muito tempo sem ações de conservação. A proteção dos muriquis ganhou em 2010 o respaldo de legislação federal. Uma portaria do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade aprovou o Plano Nacional para a Conservação dos Muriquis (PAN Muriquis). O plano, o primeiro em nível nacional para

a proteção de um primata, determina 10 metas para a proteção das duas espécies desses macacos. O objetivo é reduzir até 2020 o risco de extinção do muriqui-do-nor­te de criticamente em perigo para em perigo, e o do muriqui-do-sul de em perigo para vulnerável. “A preservação dos muriquis deixou de ser apenas sonho de pesquisador e se tornou uma política de estado”, diz Talebi, um dos idealizadores do PAN-Muriquis.

P

ara que o plano não fique no papel, diz Jerusalinsky, um dos coautores do projeto de conservação e coordenador do PAN Muriquis, será preciso que as ações consigam envolver, além de pesquisadores e ambientalistas, os proprietários de terra e os moradores das regiões onde vivem os muriquis. “Muitas populações dessas espécies estão em unidades de conservação e, em tese, estão mais protegidas”, diz. “Mas várias

outras se encontram em propriedades particulares, que podem perder área de vegetação nativa caso algumas das alterações propostas para o código florestal sejam aprovadas.” Uma estratégia que se mostrou interessante e pode complementar a demarcação de áreas de preservação é a transferência de fêmeas que estão para entrar na idade reprodutiva para outros bandos. Em 2005, a equipe de Sérgio Mendes capturou Renata, fêmea que vivia em um trecho pequeno de floresta em Santa Maria de Jeribá, Espírito Santo, e estava entrando na puberdade, prestes a abandonar seu grupo. Os pesquisadores a levaram para outra mata, onde havia outro bando. Após três anos, Renata teve seu primeiro filhote, a fêmea Rubi, e em 2010 o segundo, Régia. “O nascimento desses filhotes comprova que a estratégia funciona”, diz Mendes. “Se tivéssemos tentado 30 anos atrás provavelmente não teria dado certo, porque a tendência seria de transferir um macho jovem, que, em outros primatas, é o indivíduo que costuma migrar”, conta. Em Minas Gerais, Fabiano Melo repetiu o teste em 2006 com a fêmea Eduarda, que também já teve dois filhos. No dia 30 de novembro, Melo partiu com uma equipe para o município de Simonésia, próximo à divisa de Minas Gerais com o Rio de Janeiro, onde pretendiam capturar uma fêmea de muriqui que se encontra isolada em uma área de floresta muito pequena. A intenção é levá-la para o zoo­lógico de Belo Horizonte, onde deve fazer companhia a Zidane, um macho que, assim como o famigerado atacante da seleção francesa, deu um baile nos pesquisadores. Se tudo correr bem, essa será a primeira colônia de muriqui-do-norte em cativeiro, essencial para um dia, quem sabe, fornecer novos exemplares para a natureza. n

Artigos científicos 1. STRIER, K. et al. Low paternity skew and the influence of maternal kin in an egalitarian, patrilocal primate. PNAS. v. 108, p. 18. 915-19. 22 nov. 2011. 2. COLE, R.C. et al. Fission–Fusion Dynamics in Southern Muriquis (Brachyteles arachnoides) in Continuous Brazilian Atlantic Forest. International Journal of Primatology. No prelo. 3. TALEBI, M.G.; LEE, P.C. Activity Patterns of Southern Muriquis (Brachyteles arachnoides) in the last continuous remnant of Brazilian Atlantic Forest. International Journal of Primatology. v. 31, p. 571-83. 2010. pESQUISA FAPESP 190    47


science photo library

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_  dezembro DE 2011


_  hipertrofia cardíaca

O sensor do coração Uma enzima faz as células se expandirem e abre caminho para a insuficiência cardíaca

Cardiologia

Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto

U Rede de veias e artérias que irrigam o músculo cardíaco

ma enzima parece ser capaz de aumentar o tamanho do coração, em alguns casos beneficiando e em outros prejudicando o organismo. Isso pode ser bom quando o efeito é transitório, como acontece com quem faz exercícios físicos frequentes, já que essa enzima prepara o coração para enviar oxigênio e nutrientes para os tecidos do corpo de modo ainda mais rápido. Mas esse efeito, se contínuo, pode enfraquecer o coração e reduzir sua capacidade de bombear sangue, como acontece em pessoas que apresentam hipertensão arterial crônica, e levar à insuficiência cardíaca, uma das principais causas de morte no país. Por caminhos bioquímicos diferentes, a enzima chamada FAK, sigla de focal adhesion kinase ou quinase de adesão focal, mostrou-se necessária e suficiente para fazer o coração até dobrar de volume, de acordo com estudos realizados pelo cardiologista Kleber Gomes Franchini e suas equipes na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e no Laboratório Nacional de Biociências (LNBio) nos últimos 10 anos. Dois trabalhos, publicados em outubro nas revistas científicas Nature Chemical Biology e Journal of Molecular

Medicina

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Quem pode ter hipertrofia FisiológicA Esportistas e Atletas

PatolÓgicA Pessoas com Hipertensão e doença de chagas

mortalidade

300mil pessoas morrem a cada ano por causa de doenças cardiovasculares

medicamentos e procedimentos terapêuticos”, diz Franchini. “Daí a expectativa de que o conhecimento aprofundado dos mecanismos envolvidos nas alterações que dão origem à insuficiência cardíaca possa resultar em novos medicamentos que tragam alívio ao sofrimento e risco de morte.” Segundo o Ministério da Saúde, as doenças cardiovasculares matam em média 300 mil pessoas por ano, o equivalente a 30% dos óbitos causados por problemas de saúde no Brasil. O coração dos atletas

A expansão do coração de um atleta e de um hipertenso pode ter o mesmo início – provavelmente a FAK – e intensificar a produção de várias proteínas em comum, mas as diferenças agora estão mais claras. Medindo a expressão de um tipo de RNA que bloqueia a ação de proteínas responsáveis pelo aumento de volume do coração, Edilamar Oliveira e outros pesquisadores da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP) verificaram que as células musculares do coração de um hipertenso acentuam a atividade de proteínas como a miosina de cadeia pesada do tipo beta, o fator natriurétrico atrial e a alfa actina esquelética, que não aparecem no coração de ratos treinados.

Daiju Kitamura / Aflo Sport / Glowimages

and Cellular Cardiology, detalham os mecanismos de ação da FAK e confirmam essas conclusões. De acordo com esses estudos, a FAK faz as células musculares cardíacas, chamadas cardiomiócitos, aumentarem de tamanho. “Inicialmente, esse efeito resulta em aumento harmônico dos cardiomiócitos, que se contraem de forma mais eficiente, o que é considerada uma vantagem no processo de resposta do coração, principalmente nas pessoas com hipertensão ou outro problema”, diz Franchini. “No entanto, a ativação excessiva da FAK pode resultar em danos para os cardiomiócitos, levando inclusive à morte celular.” Os pesquisadores verificaram que essa enzima pode também induzir a multiplicação de outro tipo de célula cardíaca, os fibroblastos, menores e mais numerosos que as musculares. De acordo com os estudos feitos até agora, os novos fibroblastos migram para os lugares deixados pelas células musculares mortas. Em consequência, os fibroblastos formam fibras menos elásticas, que podem enrijecer o coração e prejudicar seu funcionamento. Os efeitos negativos da FAK, acentua Franchini, podem demorar décadas até serem notados. “Kleber é um investigador clínico com uma visão molecular das doenças. Ele consegue explorar o aspecto fisiológico, o bioquímico e o molecular. É algo raro”, comenta Mário Saad, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp com quem Franchini trabalhou. Agora, além de estudar os mecanismos de ação da FAK, as equipes de Campinas estão desenvolvendo compostos que possam deter a ação dessa enzima principalmente nos fibroblastos. Se identificarem alguma substância que passe por todos os testes feitos em animais de laboratório e se mostre capaz de agir com eficácia e baixa toxicidade em seres humanos, talvez os pesquisadores ajudem a reduzir o risco de insuficiência cardíaca que resulta da hipertrofia do coração. As pessoas com insuficiência cardíaca sofrem de fraqueza, falta de ar durante atividades rotineiras e inchaço no corpo. Nos casos mais graves, até mesmo levantar-se da cama torna-se difícil. “A mortalidade em cinco anos após o primeiro sintoma de insuficiência cardíaca é de cerca de 40%, mesmo com uso máximo e otimizado dos melhores


Outra diferença é que a chamada hipertrofia fisiológica, típica dos esportistas, geralmente é reversível – o tamanho do coração dos esportistas volta ao normal após algumas semanas sem exercícios –, e não está associada à insuficiência cardíaca, ou seja, não é maléfica. Já a hipertrofia definida como patológica, verificada em quem tem algum desequilíbrio orgânico, é permanente. Como os limites entre os dois tipos de hipertrofia nem sempre são claros, os cardiologistas com frequência enfrentam situações delicadas ao examinar o coração de atletas. Um dos primeiros exames, o ecocardiograma, detecta a espessura das paredes e o funcionamento do coração. Um coração é considerado normal quando a espessura de suas paredes se encontra entre 9 e 12 milímetros; entre 13 e 14 milímetros é uma área cinzenta, de diagnóstico difícil, e de 15 para cima, ainda mais difícil, por indicar uma hipertrofia que pode ou não ser reversível. Ciclismo e outros esportes que exigem muita força aumentam o tamanho do coração

metamorfose

“Alguns esportistas não aceitam o diagnóstico de hipertrofia e continuam treinando, apesar dos riscos”, diz Carlos Negrão

do coração normal Peso 250 g Espessura 9 a 12 mm

hipertrofia Peso 500 g Espessura 15 mm ou mais

do InCor, observa: “Alguns esportistas não aceitam o diagnóstico e não conseguem parar, apesar do risco que estão correndo”. Franchini acredita hoje que a FAK age como um sensor do coração, preparando as células musculares para situações de desgaste energético intenso. Essa conclusão amadureceu lentamente. Descoberta em 1992 simultaneamente por três grupos de pesquisa nos Estados Unidos, a FAK é uma proteína de porte considerado médio, com 125 quilodáltons (dálton é a unidade usada para medir a massa das proteínas). Inicialmente se viu que ela favorecia a multiplicação celular, mas depois surgiram indícios de que poderia fazer muito mais. Em 1996 Franchini queria saber como as células de órgãos ocos como o coração detectavam os momentos em que deveriam se expandir para compensar o aumento de tensão gerado pelo exercício físico intenso e pelo enrijecimento dos vasos sanguíneos. Talvez houvesse sensores, mas onde poderiam estar? Foi quando ele leu o artigo intitulado “Arquitetura da vida” na revista Scientifican American. Seu autor, o médico norte-americano Donald Ingber, atualmente na Universidade Harvard, Estados Unidos, sugeria que os tais sensores poderiam estar em áreas de contato das células com o ambiente extracelular chamadas pontos de adesão focal. Franchini procurou e encontrou uma elevada concentração de FAK no coração. O passo seguinte era saber o que a enzima fazia ali. Franchini suspeitou que a FAK poderia ser o sensor que ele procurava, mas, como bom mineiro, nascido em Uberaba, seguiu em silêncio. Ele e outro mineiro, Mario Saad, chefe de um laboratório na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, verificaram que a quantidade de FAK nos pontos focais aumentava em resposta à elevação da pressão sanguínea, induzida por um anel ajustável co-

Para conferir, Patrícia Alves de Oliveira e outros médicos da unidade de reabilitação cardiovascular e fisiologia do exercício do Instituto do Coração (InCor) da USP insistem para que os atletas interrompam temporariamente os treinamentos como forma de esclarecer a possível causa da hipertrofia. “Depois de quatro meses sem treino, normalmente há uma reversão na hipertrofia causada pelo excesso de exercício, mas na patológica não”, diz ela. Carlos Eduardo Negrão, diretor da Escola de Educação Física e pesquisador

pESQUISA FAPESP 190

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Um caminho para a insuficiência cardíaca A enzima quinase de adesão focal (FAK) faz o coração aumentar de tamanho

Veia cava

FIBRAS MUSCULARES

Aorta

Átrio esquerdo

Átrio direito

CÉLULA MUSCULAR

Ventrículo esquerdo Ventrículo direito

PAREDES

efeito irreversível

As células cardíacas desses animais, com duas ou três cópias a mais do que o normal do gene que induz a produção dessa enzima, ganharam até 20% de massa extra – uma situação semelhante à do coração do atleta, em que a enzima exibe apenas o efeito benéfico sobre as células musculares, e não sobre os fibroblastos. “A ação prolongada da FAK nos fibroblastos pode ser prejudicial e irreversível”, diz Ana Paula Dalla Costa, pesquisadora do grupo de Franchini na Unicamp. Dentro das células musculares do coração, as FAKs permanecem inativas enquanto estão ancoradas em moléculas de miosina, que funcionam como colunas que ajudam a dar rigidez às células musculares. A contração muscular, como resultado de um esforço físico, faz com que as miosinas se estiquem e liberem as FAK, que migram para as extremidades da célula e ativam proteínas que agem sobre cerca de 40 genes, que por sua vez induzem a formação de proteínas que deixam a célula mais robusta para enfrentar as situações que exigem mais esforço (ver infográfico). Em um estudo recente, publicado em outubro na Nature Chemical Biology, Aline Santos, Franchini e outros pesquisadores do LNBio, da Unicamp e da USP descrevem o trecho da FAK que a ativa, fazendo-a soltar-se da miosina. Além 52

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FONTE KLEBER FRANCHINI  INFOGRÁFICO TIAGO CIRILLO

locado ao redor da artéria aorta do rato. Depois, conta Franchini, eles criaram um aparelho que esticava as células musculares do coração de ratos – e a quantidade de FAK aumentava 100% após 12 horas contínuas de estiramento. Em outro experimento, mostraram que, sem a FAK, inibida por meio de compostos específicos, o coração não se expandia mesmo quando deveria. Aos poucos a equipe da Unicamp reuniu outras evidências da relevância da FAK nas células musculares e nos fibroblastos do coração. Carolina Clemente, pesquisadora no LNBio, revelou em 2007 o papel duplo dessa enzima, fazendo os miócitos se expandirem e os fibroblastos se multiplicarem. O grupo mostrou que ela era suficiente para causar esses fenômenos quando criaram um camundongo que expressa FAK apenas nas células musculares do coração, em colaboração com José Xavier Neto, agora no LNBio.

SARCÔMERO Actina

Miosina

A FAK está normalmente ancorada em uma proteína, a miosina. A miosina e a actina, outra proteína, formam o sarcômero, unidade contrátil da célula muscular cardíaca Disco Z

Disco Z

FAK

O sarcômero, quando submetido a uma tensão, se estica e libera a FAK

A FAK migra para a vizinhança do disco Z (limite do sarcômero) e ativa outras proteínas

Disco Z

FAK Proteína

Coração normal

hipertrofia

insuficiência cardíaca

Como resultado, as células musculares aumentam de tamanho, causando hipertrofia, primeiro passo para a insuficiência cardíaca


fotos  Kleber Franchi / FCM-Unicamp

Um coração depois de um infarto: as fibras de colágeno (em azul) produzidas pelos fibroblastos avançam e resultam em fibrose (cicatriz) miocárdica; os cardiomiócitos (em lilás) morrem ou se retraem. Ao lado, um fibroblasto (microscopia eletrônica) com as fibras de colágeno que enrijecem o coração

Os Projetos 1. Patogênese da hipertrofia e insuficiência cardíacas: mecanismos ativados por estimulo mecânico no 2006/54878-3 2. Bases celulares e funcionais do exercício físico na doença cardiovascular - no 2010/50048-1 modalidade Projetos Temáticos Coordenadores 1. Kleber Gomes Franchini Unicamp / LNBio 2. Carlos Eduardo Negrão - USP investimento 1. R$ 1.158.498,59 (FAPESP) 2. R$ 2.153.787,14 (FAPESP)

disso, eles mostram que apenas esse trecho, um fragmento de proteína, pode agir como toda a FAK, desencadeando os processos que fazem o coração aumentar de volume. Regulando a FAK?

Os resultados dos experimentos levaram os pesquisadores a esta pergunta: se fosse possível desligar a FAK ou ao menos reduzir sua quantidade, poderia ser bom para o organismo? “Em princípio”, diz Franchini, “interferir no processo de hipertrofia patológica pode ser benéfico por diminuir a expansão das células musculares e a fibrose gerada pela multiplicação dos fibroblastos”. Em 2010 os pesquisadores do LNBio começaram a buscar moléculas que pudessem bloquear a ação da FAK. Avaliaram cerca de 40 e encontraram uma, identificada pelo código D5, que parece ter esse efeito. Franchini acredita que a D5 ou outra molécula equivalente, se agirem apenas nos fibroblastos e passarem nos testes seguintes de eficácia e toxicidade, abrem perspectivas de uso futuro para eliminar a fibrose em doenças como cirrose hepática e pulmonar e esquistossomose. Encontrar uma forma de deter a FAK sem danos para o organismo é uma tarefa delicada. Essa enzima se liga a dezenas de proteínas em muitos tipos de células, além das do coração, e tem muitas funções, podendo participar da proliferação, migração e sobrevivência das células – não só as sadias, como também

as tumorais. “Essas propriedades fazem com que a FAK seja muito atraente como potencial alvo terapêutico”, diz o cardiologista Wilson Nadruz Jr., professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp que participou dos estudos. Já começam a aparecer compostos capazes de deter a ação dessa enzima, encontrada em abundância em vários tipos de tumores, como os de cérebro, mama, próstata e fígado. Um composto chamado TAE226, apresentado em 2007 por pesquisadores dos Estados Unidos, tem se mostrado capaz de inibir a FAK e assim deter o crescimento de células tumorais no cérebro de camundongos. Em agosto, pesquisadores de Taiwan apresentaram na International Journal of Cancer as primeiras evidências de que outra molécula, a SK228, deteve o crescimento de tumores em cultura de células e em animais, também por inibir a ação da FAK. n

Artigos científicos 1. CLEMENTE, C.F. et al. Focal adhesion kinase governs cardiac concentric hypertrophic growth by activating the AKT and mTOR pathways. Journal of Molecular and Cellular Cardiology. out. 2011 (on-line). 2. FERNANDES, T. et al. Eccentric and concentric cardiac hypertrophy induced by exercise training: microRNAs and molecular determinants. Brazilian Journal of Medical and Biological Research 44, 9. p 836-84. set. 2011. 3. SANTOS, A.M. et al. FERM domain interaction with myosin negatively regulates FAK in cardiomyocyte hypertrophy. Nature Chemical Biology. out. 2011 (on-line). pESQUISA FAPESP 190

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_  o besidade e câncer

Peptídeo (fragmento de proteína)

Ataque mais seletivo

Receptores

Célula

Drogas guiadas pelos vasos sanguíneos fazem macacos emagrecer e podem ser uma forma seletiva de tratar tumores texto

Marcos Pivetta

H

infográfico Drüm

á cerca de 10 anos, o casal de cientistas brasileiros Renata Pasqualini e Wadih Arap começou a investir pesadamente numa linha de pesquisa contra o câncer com potencial, ao menos em teoria, de gerar drogas com alto grau de especificidade, letais apenas para as células dos tumores. A ideia da bióloga molecular e do médico pesquisador, que chefiam conjuntamente um laboratório no prestigiado MD Anderson Cancer Center, da Universidade do Texas, em Houston, era explorar uma característica vascular dos tumores (e de outros problemas de saúde) para desenhar tratamentos e formas de diagnóstico mais seletivos. O câncer faz surgirem vasos sanguíneos na hora e no lugar errados que têm uma assinatura química única, uma espécie de CEP molecular particular e diferente do apresentado por células sadias desse mesmo tecido. Se for possível então mapear o endereço químico de cada tipo de tumor e desenvolver proteínas-carteiros capazes de levar uma encomenda explosiva somente para os vasos que alimentam as células indesejadas, a possibilidade de construir drogas a partir das 54

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peculiaridades do sistema vascular pode ser testada na prática. Renata e Wadih publicaram recentemente dois artigos em importantes revistas científicas nos quais relataram resultados há pouco obtidos com essa abordagem. Embora não fosse um estudo sobre câncer, a área central de atuação da dupla, um dos trabalhos recebeu extensa cobertura da imprensa mundial por sinalizar uma possível nova forma de combater uma das epidemias mais associadas à vida moderna: a obesidade. Na edição de 9 de novembro da Science Translational Medicine (STM), os pesquisadores relataram que um grupo de 10 macacos rhesus obesos perdera, em média, 11% do peso depois de submetidos durante quatro semanas a um tratamento com uma droga chamada adipotídeo. Aparentemente o candidato a remédio não provocou maiores efeitos adversos nos primatas. “Essa é uma descoberta potencialmente importante, visto que a ocorrência de efeitos colaterais desagradáveis limita o uso das drogas aprovadas que reduzem a absorção de gordura nos intestinos”, diz Renata.


1  Os vasos sanguíneos têm receptores químicos específicos que podem servir de alvos para terapias contra doenças

Receptores

Peptídeo (fragmento de proteína)

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3 Além do peptídeo, a droga é composta por uma molécula chamada klaklak com formato de saca-rolhas

4 O klaklak penetra nas células e mata somente os vasos selecionados. Sem irrigação, o tumor ou as células de gordura que dependiam desses vasos também morrem

Uma possível droga é desenhada a partir de um peptídeo capaz de se ligar apenas nos vasos que irrigam o tecido a ser atacado

Medicina


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trientes, as próprias células de gordura morrem. Retomando a analogia postal, uma molécula faz o papel de carteiro, de encontrar o endereço desejado, e a outra é a carta-bomba em si. Os resultados do trabalho com o adiCarta-bomba Desenhada pelos brasileiros, a droga potídeo nos macacos rhesus obesos fotestada nos macacos é formada pela ram animadores e confirmam os dados junção de duas moléculas. A primeira obtidos num estudo semelhante feito é um fragmento de uma proteína, tecni- com roedores em 2004. Além de os pricamente denominado peptídeo, que se matas terem perdido pouco mais de um liga especificamente ao receptor proi- décimo do peso total, imagens de ressonância magnética bitina, um CEP químostraram que houve mico encontrado na uma redução de 27% superfície das células da temida gordura abdos vasos sanguíneos dominal ao final dos 28 dos tecidos gordurodias de uso da droga. sos. A segunda é uma A resistência à insuliestrutura com formana, um fator de risco to em espiral, de saao diabetes, diminui ca-rolhas, chamada em 50% nos animais. klaklak, que penetra Não foram verificadas nas células dos vasos alterações de comporsanguíneos e provoca tamento nos macacos, seletivamente a morte que continuaram intedessas estruturas que ragindo com os tratairrigam as células adidores e não apresentaposas. O klaklak ataca ram sinais de náusea as mitocôndrias, a usiou aversão a comida. na de energia das cé“Os principais efeilulas. Sem vasos para tos colaterais foram lhes fornecer os nunos rins”, diz Renata. “Mas eles dependem Casal Wadih Arap e Renata da dose da droga emPasqualini: pregada, já eram predesenvolver vistos e são reversídrogas é um veis.” Quando deixam processo complexo e de tomar o adipotídeo, demorado seus efeitos positivos e negativos desaparecem. A droga não produziu alterações de peso em macacos magros, indicativo de que o composto ataca somente os vasos sanguíneos do tecido adiposo. É interessante notar que o trabalho com os macacos gordinhos tem implicações diretas com a linha central de pesquisa do casal de brasileiros. “A obesidade é um grande fator de risco para o desenvolvimento de câncer e tem mais ou menos o mesmo peso do que fumar”, afirma Wadih. “Sob qualquer ângulo, os pacientes obesos com câncer reagem pior à cirurgia e ao tratamento com rádio ou quimioterapia. Mas, assim como o tabagismo, a obesidade é potencialmente reversível.” O próximo passo dora do MD Anderson e primeira autora do trabalho na PNAS. Além do casal de cientistas e de Fernanda, mais quatro brasileiros assinam o artigo.

“A obesidade é um fator de risco para o câncer com um peso tão grande quanto fumar”, diz Wadih Arap

leo ramos

O segundo estudo saiu em 15 de novembro na versão impressa da revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS). É um artigo de menor apelo para o grande público, mas fundamental para a tarefa de construir um mapa com o CEP molecular dos vasos sanguíneos que irrigam cada tipo de tecido do corpo humano, desafio a que o grupo de Renata e Wadih vem se dedicando nos últimos anos. No trabalho, quatro CEPs moleculares foram identificados a partir da biópsia de tecidos de três pacientes com câncer. Dois endereços vasculares são comuns a tecidos de vários órgãos; um leva especificamente a metástases de câncer da próstata encontradas na medula óssea; e outro se liga às células de tecido adiposo branco, nome técnico do perigoso tipo de gordura que se acumula ao redor do estômago e debaixo da pele. “Esse estudo faz parte dos trabalhos de nosso laboratório para mostrar que os vasos sanguíneos são mais do que um “encanamento” ubíquo e uniforme a serviço do sistema circulatório”, afirma Wadih. “Vamos usar esses novos ‘endereços vasculares’ para desenvolver drogas contra câncer e obesidade ou novas metodologias para direcionar drogas e diminuir efeitos colaterais”, comenta a brasileira Fernanda Staquicini, pesquisa-


Barnhart et al / MD Anderson Cancer Center

será testar o adipotídeo em indivíduos obesos com câncer de próstata, um experimento clínico que está sendo preparado pela equipe do MD Anderson Cancer Center. Os pacientes vão receber a droga diariamente por quatro semanas e será averiguado se a perda de massa corporal e a diminuição dos riscos associados à obesidade trarão benefícios também para o controle do tumor. Para Lício Velloso, médico da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) especializado no estudo da obesidade, o artigo científico de Renata e Wadih que mostra os efeitos da droga adipotídeo em macacos rhesus acima do peso é um trabalho muito bom e interessante. “Apesar de extremamente promissor para o tratamento da obesidade, esse tipo de abordagem (não necessariamente essa droga) deve ser submetido a um escrutínio importante para investigar o destino da gordura”, afirma Velloso. “Se há uma redução da massa no tecido adiposo, é importante saber para onde está sendo desviado o fluxo de lipídeos (gorduras) que deveria ser armazenado naquele tecido”, diz Velloso. Segundo o pesquisador da Unicamp, existe a possibilidade de que tais lipídeos estejam se alojando no fígado, elevando o risco de esteatose hepática, cirrose e câncer no órgão. Uma segunda hipótese é de que a gordura tenha migrado para as paredes das artérias, onde poderia causar o entupimento do sistema circulatório e talvez desencadear um infarto do miocárdio ou um derrame cerebral. Indivíduos afetados pela doença chamada lipodistrofia, que é causada por uma mutação espontânea num gene, não possuem tecido adiposo. Entretanto, o estudo da STM não demonstrou aumento no armazenamento de lipídeos no fígado ou na parede de artérias. A droga adipotídeo não teve esse efeito indesejável. Renata e Wadih acrescentam que examinaram a circulação, as fezes e mais de 40 tecidos de macacos que receberam o remédio e não constataram acúmulo de gorduras. Mais de 130 patentes

Renata e Wadih são cautelosos quando perguntados se a metodologia de caçar CEPs vasculares para usá-los como alvos de novas terapias pode levar à cura do câncer ou mesmo da obesidade. “Não sabemos quando teremos todas as respostas”, pondera a bióloga molecular.

“Desenvolver drogas é algo complexo e demorado.” Para descobrir os peptídeos mais eficientes no trabalho de levar o mortal klaklak para as células de vasos sangu­ íneos que serão o alvo do ataque, os pesquisadores usam uma técnica denominada phage dis­­play. Grosso modo, o método consiste em injetar num organismo bilhões de partículas de um vírus que ataca apenas bactérias, os fagos. Cada vírus carrega em seu genoma trechos de DNA distintos que codificam peptídeos particulares. A afinidade entre esses peptídeos e proteínas dos vasos de cada tipo de tecido determiRessonância magnética de macaco rhesus antes (à esq.) e depois do tratamento com a nova droga. O vermelho indica as células de gordura na a distribuição dos fagos no organismo. O sequenciamento do DNA dos fagos permite então identificar baseada num peptídeo formulado no Tepeptídeos que se ligam apenas a certos xas (ver reportagem de Pesquisa FAPESP tecidos, como os vasos dos tecidos gor- nº 173, de julho de 2010). durosos ou de tumores. “Com as técnicas Renata, Wadih e o MD Anderson demais modernas da genômica, consegui- têm mais de 130 patentes referentes a mos sequenciar em larga escala o DNA moléculas descobertas por sua abordade fagos encontrados em vários tecidos e gem inovadora, inclusive a do adipotídeo, descobrir mais peptídeos de interesse”, já licenciada pela empresa Ablaris, com comenta Emmanuel Dias-Neto, chefe a qual o casal de pesquisadores tem relado Laboratório de Genômica Médica ções comercias. Quando se contabilizam do Hospital A.C. Camargo de São Pau- 99% das patentes pedidas nos Estados lo, que também participou do trabalho Unidos desde 1946, Renata figura entre na PNAS. os 400 nomes mais importantes da lista. Vários grupos no mundo estão usando Em breve, deve ser publicado um novo os peptídeos obtidos pelo casal de bra- estudo do casal com um peptídeo que sileiros. Na Itália, Angelo Corti, da Fon- foi testado em pacientes com câncer de dazione San Raffaele del Monte Tabor, próstata. “Já encontramos centenas de de Milão, fez estudos em animais com CEPs vasculares e cada dia descobrimos o peptídeo NGR como transportador da mais”, diz Renata. n molécula TNF, que danifica os vasos sanguíneos dos tumores. Agora a droga está sendo testada em pacientes pela empresa Artigos científicos Molmed. Na Alemanha também há es1. STAQUICINI, F.I. et al. Vascular ligandreceptor mapping by direct combinatorial tudos similares. Na Universidade de São selection in cancer patients. PNAS. v. 108, Paulo, o bioquímico Ricardo Giordano, n. 46, p. 18.637-42. 15 nov. 2011. que passou 10 anos no MD Anderson, 2. BARNHART, K.F. et al. A peptidomimetic targeting white fat causes weight loss and está testando em roedores uma droga improved insulin resistance in obese monkeys. contra uma deficiência de visão conheScience Translational Medicine. v. 3, n. 108, cida como retinopatia da prematuridade p. 108-12. 9 nov. 2011. pESQUISA FAPESP 190

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especial _ An o Internacional da Química

Ciência, palavra (pouco)

feminina Um século depois de premiada, Marie Curie ainda é uma das poucas na lista do Nobel na área texto  Maria Guimarães ilustração  Paula Gabbai

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arie Curie, nascida na Polônia e radicada na França, foi a primeira mulher a ganhar o Nobel e até hoje é a única laureada em duas categorias do prêmio. O primeiro deles, em 1903, foi concedido em parceria com o marido, Pierre Curie, junto com Antoine Henri Becquerel, por estudos com radioatividade. Mas foi seu segundo Nobel que mereceu as celebrações como foco central do Ano Internacional da Química em 2011. Um século antes, Madame Curie ganhou sozinha o prêmio de Química pela descoberta do rádio e do polônio, dois elementos radioativos. Nada mais adequado, diante dessa homenagem, do que tratar dela e das mulheres na ciência no último dia do ciclo organizado pela FAPESP e pela Sociedade Brasileira de Química e divulgado por Pesquisa FAPESP todos os meses desde maio. “A contribuição feminina na ciência é de um terço”, alertou a coordenadora, Marília Goulart, da Universidade Federal de Alagoas. “Como será daqui a 10 anos?” Para ela, a ciência requer paixão

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1. Clara Immerwahr, primeira doutora em química da Alemanha  2. Irène Curie em 1921, ao receber um título honorário em homenagem à mãe nos Estados Unidos  3. com o marido, Pierre Curie, durante lua de mel  4. Marie Curie na foto divulgada no Nobel de 1903


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fotos  1. e 3. science photo library  2. the nobel foundation / smithsonian institution archives  4. james stokley

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e não é uma questão de gênero. Mas é preciso políticas que favoreçam o equilíbrio entre cientista e mãe, uma divisão de papéis que ainda causa dificuldades às mulheres nessa carreira que exige dedicação absoluta. As palestras aconteceram no dia 9 de novembro e contaram com a química Maria Vargas, da Universidade Federal Fluminense (UFF), a historiadora da ciência Ana Maria Alfonso-Goldfarb, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e o cientista social Gabriel Pugliese, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Uma bancada dois terços feminina, invertendo a predominância na ciência. Poucas ilustres

O olhar sobre o papel das mulheres cientistas prometido no título de Maria Vargas começou ali mesmo, dentro do auditório: Vanderlan Bolzani, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara e uma das organizadoras do ciclo de conferências na FAPESP, foi a primeira mulher a presidir a Sociedade Brasileira

de Química, entre 2008 e 2010. Mas voltando no tempo, a pesquisadora da UFF fez questão de dar destaque a Clara Immerwahr, que em 1890 pôs os estudos à frente da proposta de casamento feita pelo químico Fritz Haber, conhecido pela síntese da amônia. Cursou química como ouvinte e foi a primeira mulher na Alemanha a ter o título de doutora, em 1900. No ano seguinte, porém, aceitou o casamento e, talvez sem saber, assinou o fim de sua carreira científica. Apesar de trabalhar com o marido, o nome de Clara nunca foi citado. O casamento representou também o fim da própria vida, de certa maneira: ela se opôs ao marido e ao país quanto à produção de armas químicas na Primeira Guerra Mundial, que considerava uma “perversão da ciência”. Em protesto contra o papel de Haber na supervisão do primeiro ataque de gás na história militar, ela, acusada pelo marido de ser traidora da pátria, se suicidou em 1915, aos 45 anos. Uma mulher que poderia ter feito contribuições para a ciência, assim, acabou entrando para a história pela co-

História

Química PESQUISA FAPESP 190

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Da cozinha ao laboratório

Ana Maria Goldfarb mergulhou na história até os registros da visão sobre características femininas na Grécia Antiga de Aristóteles e Ptolomeu: entre outras, ela listou fragilidade, doçura, covardia, volúpia, habilidade e argúcia. Estas duas últimas hoje parecem positivas, mas na época eram vistas como relacionadas ao conhecimento de techné, uma capacidade manual mais para a cozinha do que para o laboratório. De qualquer maneira, o laboratório químico antigo era repleto de caldeirões, por isso era território aberto às damas. O quadro mudou no século XVII, quando a nova ciência mandou as mulheres de volta à cozinha. Mas algumas resistiram e continuaram suas pesquisas por meio de associação com homens. Foi o caso da irlandesa Lady Ranelagh, que estimulou o irmão Robert Boyle a estudar química em seu laboratório de destilação. A projeção pelos estudos químicos que entrou para a história da ciência foi toda dele, mas, de acordo com Ana Maria, a sombra da irmã transparece em todos os seus escritos. A ciência superficial para salões teve destaque no século XVIII. Foi a época de atividade do casal Lavoisier, em que Antoine ficou eternizado com o justo título de criador da química moderna. Madame Lavoisier teve um papel menor, mas era

mulheres no nobel de química 1911 Marie Curie 1935 Irène Curie 1964 Dorothy Hodgkin 2009 Ada Yonath

fotos  2. wm. notman & son  3. the nobel foundation  4. mrc laboratory of molecular biology

ragem de manifestar sua convicção pacifista sem ceder às pressões sociais e familiares. Na história do Prêmio Nobel, 40 mulheres já foram laureadas: apenas quatro em química. A primeira foi Marie Curie, em 1911. Casada com o físico Pierre Curie desde 1895, os dois faziam parte do trabalho em colaboração e, juntos, descobriram que a pechblenda, um mineral descoberto por Becquerel, era rica em polônio e rádio, dois elementos mais radioativos que o urânio. A dedicação à vida de ciência, que ela conseguiu conciliar com a familiar, também custou caro a Marie. Em 1934 ela morreu de leucemia, como muita gente que trabalhava com química da radioatividade antes que se conhecessem os efeitos nocivos dessas substâncias. Em seguida foi a vez no Nobel de sua filha Irène, que dividiu o prêmio com o marido (e antigo doutorando de Marie Curie), Frédéric Joliot, em 1935. Depois de Pierre e Marie Curie terem se destacado por estudos com a radioatividade natural, sua filha alcançou a láurea máxima da ciência revelando a radioatividade artificial, em que elementos que não teriam esse comportamento são induzidos a serem radioativos. Como a mãe, Irène não foi eleita para a Academia Francesa de Ciências – os respectivos maridos foram. Outro destaque de Maria Vargas foi para a britânica nascida no Egito Dorothy Crowfoot Hodgkin, que se apaixonou pela química ao fazer um experimento de crescimento de cristais de sulfato de cobre na escola. Desenvolveu a paixão com amplo apoio dos pais, que lhe permitiram montar um laboratório no sótão de casa. Em 1945, por meio de estudos de cristalografia, ela determinou a estrutura química da penicilina, descoberta por Alexander Fleming 16 anos antes. Para transformar o fungo em medicamento antibiótico, que mais tarde veio a salvar milhões de vidas, era preciso sintetizar em laboratório a substância ativa. A descoberta a conduziu, aos 47 anos e já com três filhos, a tornar-se membro da Royal Society, a academia de ciências britânica. Casada com Thomas Hodgkin, um idealista de esquerda, ela conseguiu o reconhecimento como pesquisadora e como mãe: foi dela a primeira licença-maternidade paga na Universidade de Oxford. Dorothy também determinou a estrutura da vitamina B12, trabalho que levou a várias aplicações médicas e lhe trouxe o Nobel em 1964. Mais recentemente, em 2009, a israelense Ada Yonath, do Instituto Weizmann, foi a quarta ganhadora do Nobel de Química, por desvendar a estrutura do ribossomo, uma estrutura celular central na produção de proteínas. Entre as laureadas, ela é a única em que não há menção a casamento, por isso escapa à conclusão da palestrante Maria Vargas: “Escolha bem o marido se quiser ter uma boa carreira científica”.


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1. Fanny Gates  2. Harriet Brooks, entre as poucas físicas na virada entre os séculos XIX e XX  3. Dorothy Hodgkins  4. Rosalind Franklin, que investigou a estrutura do DNA

poliglota e desenhava esquemas dos experimentos feitos pelo marido e pelos colegas. Permaneceu, porém, invisível, lamenta Ana Maria. “Ela precisava saber bastante de ciência para separar o que interessava registrar.” No século XIX e no início do XX, a educação era por vezes vista como algo nocivo para a própria saúde das mulheres e para as funções de esposa e mãe que deveriam desempenhar. Mesmo assim, alguns trabalhos científicos eram desempenhados pelas mulheres, que teriam maior capacidade de concentração exatamente por terem a mente vazia de pensamentos e ideias, segundo declaração do físico britânico James Chadwick citada por Ana Maria. Foi esse contexto que Marie Curie superou, mas sem conseguir realçar as demais mulheres de seu laboratório, que permaneceram entre as muitas “ilustres desconhecidas” da ciência. “Ela era um verdadeiro trator”, avaliou Ana Maria, “passava por cima do que fosse necessário passar, além de ser boa estrategista”. De outra maneira, teria permanecido ofuscada pelo marido.

leo ramos

Exceção relativa

Foi exatamente disso que tratou Gabriel Pugliese. A escolha de um bom parceiro, como no caso do casal Curie, pode ao mesmo tempo abrir cami-

Maria Vargas, Ana Maria Goldfarb e Gabriel Pugliese

“O casamento deu a Marie Curie acesso ao mundo científico, mas também foi inviabilizador”, disse Gabriel Pugliese

nhos e sombreá-los, ele mostrou. “Marie Curie teve sucesso como exceção na tradição de mulheres invisíveis”, disse. Segundo ele, o trabalho dela sobre a descoberta da radioatividade foi ignorado na Academia de Ciências até que o marido assumiu a coautoria. Só aí se iniciou a discussão sobre o tema, que veio a se revelar importante. “Fazer parte do casal permitiu a Marie Curie o acesso ao mundo científico, mas também foi inviabilizador.” Para Pugliese, esse casal é um ilustre exemplo de como se via a química e a física: a primeira faria parte do campo do fazer, das habilidades manuais e portanto seria mais feminina, como já tinha mostrado Ana Maria Goldfarb. Já a física exigiria pensamento teórico, uma capacidade mais masculina. No que a radioatividade transcendeu a química e se aproximou da física, a descoberta foi abraçada por Pierre Curie e rendeu ao casal o Nobel. De Física. Essa identificação da física e da química com os estereótipos de masculino e feminino ressalta o paradoxo do papel do casal para a ascensão da mulher a uma posição de destaque na produção de conhecimento. E é esse paradoxo que Pugliese destaca no livro que publicará em 2012, Sobre o caso Marie Curie. E que torna irônica, do ponto de vista histórico, a homenagem do Ano Internacional da Química a Marie Curie. n PESQUISA FAPESP 190

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especial _ An o Internacional da Química

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Reforços para a medicina Substâncias e análises moleculares inovam em tratamentos e diagnósticos

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m meio a avanços em equipamentos, fármacos, técnicas e procedimentos ligados à medicina, o protagonista central costuma ficar oculto: a química. Embora o assunto mereça muito mais tempo de discussão, uma boa porção foi apresentada no último conjunto de palestras do ciclo Ano Internacional da Química na sessão “A química inteligente a serviço da medicina”, coordenado por Leandro Helgueira, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP). O tema reuniu, em 9 de novembro, uma bancada formada quase exclusivamente por químicos: Luiz Henrique Catalani, do IQ-USP, Sidney Ribeiro, do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, Etelvino Bechara, do campus de Diadema da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e Jerson Lima Silva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – o único médico do grupo. A química de polímeros, responsável pela produção de produtos como plásticos, foi o foco de Luiz Henrique Catalani, que mostrou como é an-

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Biomateriais na história Suturas há 32 mil anos Implantes dentários 600 a.C. Primeiro olho de vidro 1832 Polímero superabsorvente feito de ácido acrílico pode ser usado em fraldas


eye of science / science photo library

tigo o uso de substâncias que atuam em conjunto com sistemas biológicos em substituição a algum tecido, órgão ou função no corpo – conhecidas como biomateriais. “Esqueletos do Neolítico mostram que já se conhecia suturas há 32 mil anos”, exemplificou. E tem muito mais. Há 2 mil anos chineses, astecas e romanos já utilizavam ouro para reparar dentes e George Washington, presidente dos Estados Unidos entre 1789 e 1797, usava uma dentadura de marfim de rinoceronte. Para que uma prótese seja funcional, é essencial pensar na relação adequada entre os tecidos hospedeiros e o biomaterial, uma propriedade conhecida como biocompatibilidade. “O ambiente in vivo não é estático”, lembrou Catalani, “é um processo dinâmico”. Em busca desse bom relacionamento, cada vez mais se analisam as propriedades químicas dos materiais desenvolvidos quando em contato com tecidos biológicos. É o caso do uso de teflon e poliéster em próteses de ligamentos, tendões e discos intervertebrais. Um tipo de substância que seu grupo vem desenvolvendo no Laboratório de Biomateriais

Poliméricos é a eletrofiação. Trata-se de fios em escala nanométrica produzidos por meio de uma injeção de carga elétrica que estira a substância aglutinada numa gota de solução de polímero. A possível aplicação desses fios é formar malhas na mesma escala das células, como um arcabouço em que elas se encaixam, servindo como substrato para a recuperação de tecidos. Outro foco importante do laboratório de Catalani na USP são os curativos à base de hidrogel. “A ideia de que um curativo deve ser seco é errada”, explicou. O ideal é que seja úmido, leve, não abrasivo e altamente permeável, aderindo à pele sã e não ao ferimento. Não é pouca coisa, mas não termina necessariamente aí: as substâncias que compõem os nanogéis podem ter efeito fungicida e bactericida, contribuindo ainda mais para a cicatrização de ferimentos. Os hidrogéis também são o foco do Laboratório de Materiais Fotônicos, coordenado por Sidney Ribeiro em Araraquara. É um material constituído por 98% de água e 2% de celulose com estrutura tridimensional nanométrica produzida por bac-

Medicina

Nanotecnologia

Química PESQUISA FAPESP 190

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Organismo alterado

Um especialista em iluminação é Etelvino Bechara, pioneiro nos estudos de como e por que vagalumes emitem luz. Seu grupo na USP também explicou as manchas deixadas por libélulas na pintura dos carros: elas põem ovos atraídas pela luz polarizada pela resina, que seus olhos confundem com a superfície de um lago. Mas foi um tema bem diferente que o químico – agora professor da Unifesp em Diadema – levou ao público do ciclo de palestras: os danos causados no organismo pelo envenenamento por chumbo, elemento comum em tintas usadas para pintar paredes, em baterias de carros e em brinquedos de plástico, para citar alguns entre inúmeros exemplos. Alguns registros históricos desse tipo de intoxicação foram o do compositor Ludwig van Beethoven, exposto a altos teores de chumbo por frequentar tipografias para controlar a impressão de suas partituras, além dos pintores Vincent van Gogh e Candido Portinari, atingidos pelas tintas que usavam em seus quadros. 64

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Laboratório Sidney Ribeiro / Unesp

térias a partir de açúcar. A síntese por meio de microrganismos é uma alternativa importante devido ao impacto ecológico das usinas de celulose em termos de poluição e ocupação de terras com plantações de eucalipto. “A celulose extraída de plantas é um material eco amigável, mas desde que você esteja muito longe das áresa plantadas e da indústria produtora”, brincou. O grupo vem conseguindo produzir membranas com espessura que pode variar de micrometros a centímetros. O resultado é um material transparente, com alta resistência mecânica e que pode ser usado como substituto da pele em curativos para feridas de difícil tratamento. O grupo trabalha também com materiais de segunda geração, enriquecidos com substâncias com propriedades medicinais como nanopartículas de prata ou própolis. A proteína fibroína, principal componente da seda, domina outra linha de pesquisa tecida por Ribeiro. O Brasil é o terceiro produtor mundial desse fio extraído de casulos da lagarta Bombyx mori. Desses casulos é possível extrair a fibroína, que nas mãos dos pesquisadores dá origem a materiais tecnológicos com aplicações que vão da medicina à opto-eletrônica, como esponjas magnéticas e filmes transparentes luminescentes. O grupo da Unesp está concentrado no uso de materiais luminescentes para imageamento em medicina. Elementos importantes para isso são as terras-raras, que podem levar a marcadores luminescentes mais eficazes para diagnóstico e terapia. Ribeiro sonha também com iluminadores solares e células fotovoltaicas. O primeiro cliente será a FAPESP, financiadora do estudo, ele brincou, olhando para a iluminação do auditório.

Esponja de fibroína com fios de celulose para regeneração óssea (alto) e membrana de celulose bacteriana

órgãos afetados por chumbo Cérebro Sangue Fígado Rins Testículos Pulmões Sistema imune

Os efeitos são disseminados, porque o chumbo substitui íons de cálcio e de zinco em proteínas essenciais no organismo, inativando enzimas envolvidas no metabolismo aeróbico e na transmissão nervosa. A inibição de reações envolvidas na biossíntese de parte da hemoglobina também causa uma maior produção de ácido aminolevulínico (ALA), com estrutura muito semelhante à do ácido gama-aminobutírico (Gaba), uma substância essencial nas sinapses. O resultado pode incluir danos neurológicos e psiquiátricos sérios, como comportamento antissocial e delinquente. O estresse oxidativo causado pela intoxicação com chumbo também tem efeitos mutagênicos no DNA e gera mau funcionamento no fígado e nos rins. O ALA também induz a liberação do ferro estocado pela proteína ferritina, prejudicando a respiração celular, com perda de resistência física. Sobre comportamento, Bechara contou sobre estudos com adolescentes presos por infrações criminosas. Ao medir os níveis de chumbo no organismo, pesquisadores descobriram uma chance quatro vezes maior de atitudes agressivas com maior incorporação do metal. Em busca de confirmar esses resultados internacionais, em 2005


fotos leo ramos

Luiz Henrique Catalani, Jerson Lima Silva, Sidney Ribeiro e Etelvino Bechara

“Problemas não resolvidos sobre a estrutura de proteínas atrasam a descoberta de fármacos”, disse Silva

ele participou da coordenação de um estudo que avaliou os níveis de chumbo em jovens da então Febem, hoje Fundação Casa. “A relação foi confirmada, mas os resultados não foram mais contundentes porque o projeto foi bloqueado por motivos não justificados”, afirmou. O químico ainda não desistiu: continua estudando a associação entre chumbo e comportamento antissocial e pretende montar na Unifesp um centro de tratamento e prevenção à exposição. Por enquanto, já se sabe que o tratamento com quelantes e antioxidantes pode ajudar a minorar o estresse oxidativo causado pela intoxicação, mas muitos dos danos não podem ser revertidos. Mas os efeitos nocivos no cérebro não vêm apenas de fatores externos, como mostrou Jerson Lima Silva. Alterações em estruturas de proteínas normais do organismo podem estar por trás de doenças neurodegenerativas e câncer. Neste último caso, o agente é a proteína p53, que é um fator de proteção contra a formação de tumores. Uma mutação que cause um dobramento incorreto, e portanto afete a sua estrutura, pode conduzir a um desequilíbrio no funcionamento dos genes e, em consequência, ao desenvolvimento de algum tipo de câncer, como vem sendo comprovado

em vários estudos. Um efeito curioso relatado pelo palestrante é que a célula mutada parece ter um efeito sobre as outras, como se fosse um processo infeccioso, que também passam a se comportar de forma incorreta e proliferam de forma descontrolada. Esse efeito infeccioso é também típico nas doenças causadas por príons, como as encefalopatias espongiformes popularizadas pela doença da vaca louca. Nesse caso, já foi demonstrado que a relação entre o príon – uma proteína alterada – e moléculas de água é essencial para a estabilidade estrutural. “Parece que é a hidratação que controla as doenças de conformação proteica”, contou Lima Silva, que vem buscando entender também a ação dos agentes genéticos – o DNA e o RNA – na criação dessas proteínas anômalas. Em sintonia com o assunto discutido mais cedo no mesmo dia, ele lembrou que nos primórdios do estudo estrutural das moléculas está a britânica Rosalind Franklin, que não foi devidamente reconhecida por seu papel na elucidação da estrutura do DNA. “Agora temos técnicas muito diferentes e mais detalhadas, mas ainda restam problemas não resolvidos que atrasam o desenvolvimento de fármacos”, comparou. n Maria Guimarães PESQUISA FAPESP 190

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_  f ormação da terra

A grande oxigenação Rochas indicam que oxigênio só passou a se acumular na atmosfera há 2,5 bilhões de anos Salvador Nogueira

Q

uem não gosta da Terra? É, disparado, o lugar mais hospitaleiro do sistema solar. In­ contáveis formas de vida, de incrível complexidade, ocupam cada cantinho do globo, das profundezas do mar ao topo das montanhas mais altas. A variedade biológica – a famosa biodiversidade – é um dos mais apaixonantes aspectos do planeta. Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo – na verdade, a maior parte do tempo – em que tudo o que havia na face da Terra eram seres unicelulares e simples. Bactérias. A diversidade de espécies só começou a aumentar depois que um evento radical mudou a equação da vida terrestre e elevou drasticamente a habitabilidade de nosso mundo, permitindo, em última instância, que viéssemos a existir. Esse evento foi a elevação dos níveis de oxigênio na atmosfera, que deixou registros em rochas muito antigas. Um grupo internacional de pesquisadores, do qual participou um brasileiro, analisou amostras dessas rochas de diferentes regiões do planeta e conseguiu agora fortes indícios de quando e como teria acontecido essa transformação, que fez as taxas de oxigênio passarem de inde-

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_   dezembro DE 2011

tectáveis na atmosfera primitiva para os 20% encontrados na atmosfera atual. Acredita-se que tenha sido a própria vida que tenha originado todo esse oxigênio e promovido a mudança na composição da atmosfera da Terra. Essa alteração teria se iniciado, segundo os paleontólogos, quando emergiu durante a evolução dos seres vivos a capacidade de realizar fotossíntese. Comumente associada às plantas, a habilidade de produzir oxigênio também é comum a bactérias como as algas azuis, seres unicelulares que vivem nos oceanos e, apesar do nome, são mais semelhantes às bactérias do que às algas. A grande virtude da fotossíntese é converter a luz solar e o dióxido de carbono em energia para o metabolismo. Como subproduto, é liberado oxigênio. Não foi fácil, contudo, introduzir esse gás em grandes quantidades na atmosfera. Por muito tempo a composição do ar permaneceu basicamente a mesma porque o oxigênio, altamente reativo, interagia rapidamente com outras substâncias presentes no mar, oxidando-as. O principal alvo era o ferro proveniente de rochas que se encontrava dissolvido na água. O resultado era a precipitação do

ferro oxidado, que se depositava no leito oceânico. Assim, praticamente não sobrava oxigênio para a atmosfera. Somente quando todo o potencial para oxidação se esgotou – as rochas e o oceano já não tinham mais como absorver o oxigênio – é que esse gás finalmente começou a se acumular no ar. Foi justamente em formações ferríferas espalhadas pelo mundo que os pesquisadores liderados por Kurt Konhauser e Stefan Lalonde, da Universidade de Alberta, no Canadá, encontraram pis­tas para recontar essa história toda. Em artigo publicado em outubro no periódico científico britânico Nature, eles conseguiram estabelecer uma data para a transição da atmosfera antiga para a nova: o acúmulo de oxigênio no ar teria começado 2,48 bilhões de anos atrás – a Terra tem hoje cerca de 4,6 bilhões de anos – e foi relativamente rápido. Para determinar como e quando essa mudança ocorreu, os pesquisadores


carlos alberto rosiere / ufmg

bioquímica

Depósitos de ferro oxidado (acima e no detalhe à esquerda) em formações rochosas da Austrália

analisaram a distribuição do elemento químico cromo (Cr) e de seus isótopos em formações ferríferas. A ideia é que a distribuição desse e de outros elementos químicos nas rochas guarde pistas das características dos oceanos com os quais esses elementos tiveram contato em tempos antigos. nA trilha do cromo

Os pesquisadores buscaram amostras de rochas ricas em ferro em todas as partes do mundo – inclusive no Quadrilátero Ferrífero, em Minas Gerais. Quem ficou incumbido de levantar e analisar o material brasileiro foi o geólogo Carlos Alberto Rosière, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Como as rochas tinham idades diferentes, foi possível inferir as mudanças na atmosfera e no ambiente oceânico ao longo do tempo. Concluiu-se que cerca de 2,5 bilhões de anos atrás grandes quantidades de Cr foram ex-

traídas dessas rochas e transportadas do continente para o oceano por águas superficiais extremamente ácidas, contendo ácido sulfúrico produzido a partir da decomposição da pirita (sulfeto de ferro). Como essas reações nas rochas são explicadas principalmente pela presença de bactérias aeróbicas acidofílicas – que necessitam do oxigênio do ar para viver e são capazes de sobreviver em ambientes ácidos –, supõe-se que uma quantidade significativa de oxigênio já tivesse se acumulado na atmosfera do planeta. Há evidências, porém, de que a produção desse gás tenha começado bem antes, cerca de 3,5 bilhões de anos atrás, com as algas azuis, também conhecidas como cianobactérias. Por um longo perío­do, no entanto, o oxigênio liberado por essas algas mal alcançava a atmosfera por interagir rapidamente com o ferro de origem vulcânica dissolvido no mar, originando as grandes formações ferríferas que hoje se encontram nos continentes e abastecem as mineradoras e a indústria siderúrgica. “Depois dessa fase inicial de produção de oxigênio, que durou quase 1 bilhão de anos, o processo de transformação da atmos­fera pode ter sido bem rápido”, afirma Rosière. “Em 100 milhões a 200 milhões de anos, ela já apresentaria grandes quantidades de oxigênio.” Esses indícios de que uma atmosfera rica em oxigênio já existisse há 2,5 bilhões de anos são os mais antigos já identifica-

dos até o momento. E são compatíveis com análises anteriores, baseadas em outras evidências desse importante evento na história da Terra, chamado de grande oxigenação. Contudo, os pesquisadores admitem que a aceitação dessas conclusões não é geral. “Alguns podem dizer que as características que encontramos nas formações ferríferas indicam condições locais, mas não a de todo o planeta”, explica Rosière. Somente mais evidências poderão con­­firmar que esse é um sinal do episódio que permitiu o eventual surgimento de criaturas multicelulares, como os animais de grande porte e os seres humanos. “Na geologia, uma andorinha ou duas não fazem verão. Existe uma grande quantidade de dados que são passíveis de questionamento ou de interpretação alternativa. Então é preciso ter uma somatória convergindo numa dada direção”, diz Rosière. “Não dá para dizer: agora estamos satisfeitos, as coisas estão resolvidas.” n Artigo científico KONHAUSER, K.O. et al. Aerobic bacterial pyrite oxidation and acid rock drainage during the Great Oxidation Event. Nature. 19 out. 2011. pESQUISA FAPESP 190

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_  centro da galáxia {

Uma lâmpada de raios X Disco de gás ao redor de buraco negro acende a cada sete dias

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redor do buraco negro da galáxia – desta vez com uma frequência temporal muito menor, da ordem de uma semana. As emissões em raios X da parte mais interna da nuvem gasosa, mais quente e que envolve diretamente o buraco negro, variam em questão de dias, como se fosse uma lâmpada, e o clarão se irradia do centro para as bordas do disco. Como demora cerca de uma semana para a luz viajar do centro para a periferia da nuvem, o tamanho do raio do disco de matéria deve ser de sete dias-luz. “Só conseguimos perceber essa variação porque fizemos observações semanais da galáxia durante três meses seguidos”, diz Thaisa. Ao lado de colaboradores do Brasil e do exterior, entre os quais o aluno de mestrado Jáderson Schimoia, ela submeteu um artigo em que descreve o fenômeno a uma revista científica. Uma analogia com objetos do dia a dia facilita a visualização do fenômeno. O sistema buraco negro mais disco de gás gravitacionalmente mantido ao seu redor pode ser comparado às partes de um velho álbum de músicas gravadas no vinil, o long play (LP). O buraco negro equivaleria ao furo na bolacha sonora. A porção mais interna do disco de gás seria o selo de papel no centro do LP. A mais externa se assemelharia à grande região negra do vinil, onde estão registradas as

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fotos  1. e 2. eso  3. Gemini observatory  4. baseado em arte de jáderson schimoia

E

m 1991 a astrofísica gaúcha Thaisa Storchi Bergmann descobriu um disco de matéria, uma nuvem achatada de gás ionizado, que gira em torno do buraco negro situado no centro da NGC 1097, uma bela galáxia espiral da constelação de Fornax, distante 45 milhões de anos-luz da Terra. Durante uma década, a pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) observou uma vez por ano a galáxia e constatou que o disco de gás não era uniforme. A nuvem continha um braço espiral que, a cada cinco anos e meio, dava uma volta completa em torno do buraco negro. A astrofísica também verificou que, por vezes, o disco se tornava mais brilhante do que o usual. Esses picos de luminosidade foram interpretados como sendo decorrentes de o buraco negro ter, nesses momentos, engolido mais matéria proveniente da nuvem, em razão de talvez haver ali uma maior densidade ou quantidade de gás para ser sugado. Novas observações feitas com o telescópio Gemini Sul, situado em Cerro Pachon, no Chile, entre o final do ano passado e o início de 2011, corrigiram a periodicidade em que ocorre o ciclo da volta completa do braço espiral para um intervalo de um ano e meio e identificaram uma segunda variação na luminosidade do disco ao

Visão geral da NGC 1097


Nuvem achatada de gás ao redor do buraco negro

Detalhe do centro da galáxia

Partes do disco de matéria 2

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Buraco negro

Região central do disco de gás se ilumina e...

... sete dias depois as finas bordas da nuvem se acendem

4

Jatos de partículas

músicas, que nasce colada ao selo e vai até as bordas do disco. A comparação é útil, mas não é perfeita. O LP é um disco em que todas as partes possuem a mesma espessura. O disco de matéria da NGC 1097 apresenta irregularidades. Sua região central (o selo do vinil) é mais grossa, mais gordinha, do que os setores mais afastados do buraco negro. Tecnicamente, possui a forma de um toroide, uma figura que lembra um pneu ou biscoito com um furo no meio (ver ilustração à direita desta página). “É como se essa rosquinha fosse uma lâmpada de alta energia fixada num poste que se encontra um pouco mais elevado do que o resto do disco de gás”, compara Thaisa. “Ela se acende ou se intensifica em função da quantidade de gás que cai no buraco negro.” No estudo, os pesquisadores analisaram dados obtidos pelo Gemini referentes à chamada linha espectral H-alfa, a emissão de energia mais intensa e visível do átomo de hidrogênio, proveniente da zona periférica do disco. Concluíram que a variação de emissão nessa região

se devia à reverberação da luminosidade originada na “rosquinha”. Não se sabe exatamente por que a lâmpada pisca em intervalos de sete dias, mas esse evento provavelmente tem a ver com as variações na quantidade de matéria sugada pelo buraco negro. “Ele estava acostumado com um regime de captura de gás e, de repente, se viu obrigado a engolir mais matéria”, compara o astrofísico brasileiro Rodrigo Nemmen, outro autor do trabalho, que faz pós-doutoramento no Goddar Space-Flight Center, da Nasa. Como se sabe, não é possível observar de forma direta um buraco negro, uma região do espaço tão densa e compactada, dotada de um enorme campo gravitacional, da qual nada escapa, nem a luz. Mas um objeto com essas características fornece pistas indiretas de sua presença. Quando se descobre uma fonte misteriosa de radiação, em especial de raios X, num ponto do Universo, como o centro de uma galáxia ativa, uma das possíveis explicações para o fenômeno é a existência de um buraco negro. Pouco antes de ser tragada pelo campo gravitacional

do buraco negro, a matéria do disco de gás se encontra tão aquecida que libera energia na forma de radiação. Portanto, quando ocorre um pico de absorção de matéria, é esperado que a região mais interna do disco, a lâmpada, aumente sua luminosidade e reverbere essa energia extra para suas bordas. Conhecer o tempo que a luz demora para viajar da parte mais central para a periferia de uma nuvem de gás permite obter uma estimativa da dimensão do disco de matéria independentemente de outros modelos teóricos. “Tendo a dimensão do disco e a velocidade do gás em torno do mesmo, que inferimos a partir de emissões ópticas e pode chegar a 10 mil quilômetros por segundo, podemos obter a massa do buraco negro”, explica Thaisa. Por meio dessa abordagem alternativa, os astrofísicos brasileiros recalcularam esse parâmetro do buraco negro no centro da NGC 1097. Deu um resultado da ordem de 100 milhões de massas solares, número que bateu com estimativas feitas por outras técnicas. n Marcos Pivetta pESQUISA FAPESP 190    69


ď ¸ tecnologia


_  cosmética

Beleza retocada Extratos feitos a partir de plantas e ativos nanoencapsulados são tendência entre pequenas empresas brasileiras Texto

Dinorah Ereno

ilustração

N

Gabriel Bitar

ovos mecanismos moleculares com ação contra flacidez e rugas descobertos no picão-preto (Bidens pilosa) resultaram em um ativo cosmético que funciona de forma semelhante ao retinol, sintetizado a partir da vitamina A. Premiado em 19 de outubro como o melhor trabalho científico apresentado no 20º Congresso Latino e Ibérico de Químicos Cosméticos em Isla Margarita, na Venezuela, o projeto reuniu o conhecimento do farmacologista e fitobotânico Luiz Claudio Di Stasi, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu, e a experiência da empresa Chemyunion, de Sorocaba, ambas no interior paulista. A gramínea, considerada uma espécie invasora no campo, mostrou em testes ter benefícios similares aos dos retinoides, receitados nos consultórios dermatológicos em razão do seu poder de regeneração celular e síntese de colágeno, mas sem os seus efeitos adversos, como irritação cutânea, descamação e ardência.

Farmácia

A inovação está sendo testada por uma indústria brasileira do setor de cosméticos e vem se somar a outras descobertas de ativos e aditivos vegetais feitas pela Chemyunion em parceria com universidades, transformados em produtos de reconhecidas empresas nacionais e internacionais, como Natura, O Boticário, L’Oréal, Estée Lauder, Victoria’s Secret, Johnson & Johnson e Medley, entre outras. Um dos primeiros produtos inovadores a se destacar no disputado mercado de beleza foi o Aquasense, lançado em 2008 e desenvolvido com apoio da FAPESP por meio de um projeto do programa de Pesquisa Inovativa em Pequena Empresa (Pipe). Antes disso a empresa, com 19 anos no mercado, trabalhava com matérias-primas prontas incorporadas pelas indústrias a medicamentos e cosméticos. O Aquasense é um extrato feito com a casca dos galhos do angico-branco (Piptadenia colubrina), uma árvore de grande porte da mata atlântica, indicado para uso em cremes, loções e outros produtos com o objetivo de aumentar a

Nanotecnologia

Química pESQUISA FAPESP 190    71


Ativos botânicos Ativo

Angico-branco

Camapu

Picão-preto Café verde

Pfaffia, Uva e marapuama linhaça e lírio-branco

Café e arroz

Uva e rosa-mosqueta

Partes usadas

Casca dos galhos

Extrato do fruto

Extrato da planta

Óleo das sementes

Raízes, casca e flores

Óleo das sementes

Folhas do café e óleo da planta

Molécula da Óleo do arroz uva tinta e óleo e das sementes, das sementes mais extrato de arnica

Ação do ativo

Aumenta a hidratação da pele

Reparador de colágeno, anti-inflamatório e protetor do calor

Promove a renovação celular com ação antioxidante

Reduz a celulite e a gordura localizada

Redução de olheiras e de bolsas de gordura

Reduz rugas e hidrata a pele

Melhora a microcirculação e a celulite

Antioxidante e redução de manchas

Redução de olheiras

Aplicação Cremes Cremes para o rosto de rosto e corpo reparadores

Creme anti-idade noturno

Creme Creme anticelulítico para a área e redutor dos olhos de medidas

Cremes para o rosto e mãos

Cremes e géis anticelulite

Cremes para o rosto e mãos

Gel e sérum para a área dos olhos

Nome Aquasense comercial

Revinage

Slimbuster L

NanoAging Reverse

NanoSlim Complex

NanoShine

NanoBright Eyes

Physavie

Por dentro da nanopartícula

Usam nanotecnologia

Uma capa de gordura recobre o princípio ativo do cosmético Princípio ativo e óleo vegetal

Estrutura que estabiliza a nanopartícula

Cápsula de gordura que retém o princípio ativo

hidratação da pele. Argentina, Colômbia, Rússia e Estados Unidos estão entre os países compradores da matéria-prima, desenvolvida a partir da descoberta das aquaporinas – proteínas que permitem a passagem de água entre as células – pelo norte-americano Peter Agre. O achado lhe rendeu o Prêmio Nobel de Química em 2003. “Ao entrar na pele, o Aquasense estimula a célula a expressar a aquaporina e a água começa a ser distribuída, gerando a hidratação”, diz Gustavo Diea­ mant, gerente de pesquisa e inovação da empresa. O foco da pesquisa iniciada em 2004 era buscar um ativo hidratante em uma planta da biodiversidade brasileira que estimulasse o mecanismo de síntese das aquaporinas. Para isso, uma das sócias da Chemyunion, Maria Del Carmen Ve72    dezembro DE 2011

Bioskinup Contour

Nanopartícula é uma estrutura formada por um conjunto de moléculas com pelo menos uma de suas dimensões (largura, profundidade ou altura) medindo entre 1 e 100 nanômetros. Um nanômetro equivale a um milímetro dividido por 1 milhão. A propriedade que diferencia a nanopartícula de materiais em escala macroscópica é o fato de ela ter uma área superficial muito maior que seu volume.

lazquez Pereda, procurou o professor Di Stasi, do Departamento de Farmacologia do Instituto de Biociências da Unesp, autor de várias publicações sobre plantas medicinais da Amazônia e da mata atlântica. O pesquisador, que passou a fazer parte da equipe científica da empresa como consultor, pesquisou plantas da flora brasileira com potencial hidratante e reparador da pele. Dentre elas, a escolha recaiu sobre o angico-branco. Mas era preciso provar na prática que ele realmente seria capaz de expressar o mecanismo de interesse. No caso do angico-branco, a casca dos galhos é triturada em pequenos fragmentos, dos quais se obtém um extrato que contém uma classe de polissacarídeos chamada arabinogalactanas, responsável por estimular a célula a expressar

Arroz, rosa-mosqueta e arnica

as aquaporinas. Com isso elas transportam mais água para a pele, deixando-a hidratada. O mecanismo de hidratação do extrato do angico-branco resultou na publicação de artigos em revistas científicas e prêmios em congressos, como o da Sociedade Brasileira de Cosmetologia em 2008. Foi a partir do primeiro projeto Pipe da FAPESP, submetido em 2006, que a Chemyunion conseguiu comprar alguns equipamentos que permitiram extrair e testar seus novos ativos. Entre eles estão um extrator de fluido supercrítico, que utiliza gás carbônico (CO2)na fase de transição entre os estados líquido e gasoso para obter extratos vegetais com altíssimo grau de pureza, e um aparelho chamado Laser Doppler que identifica em tempo real a microcirculação cutânea e as características da pele sensível. Outro produto desenvolvido pela empresa também com apoio do projeto Pipe, atualmente em testes por uma empresa brasileira da área de cosméticos, é um ativo extraído da planta camapu (Physalis angulatu) – arbusto originário da Amazônia e das regiões Norte e Nordeste – com atividade semelhante à dos anti-inflamatórios corticoesteroides, mas sem os efeitos colaterais de uso a longo prazo, como ressecamento e envelhecimento da pele. Tanto a extração do camapu como a do picão-preto é feita pelo chamado processo de extração por CO2 supercrítico. “Quando o gás carbônico é injetado no equipamento, ele atravessa a planta e arrasta os ativos”, diz


leo ramos

Dieamant. Ao eliminar o gás, não sobra nenhum resíduo de solvente, como nos processos tradicionais de extração. Da planta, obtém-se uma pasta que, misturada a um meio apropriado, possibilita dar início ao processo de triagem. “A proposta no caso do camapu foi a de buscar ativos com ação anti-inflamatória, similar aos corticoides, muito utilizados hoje para tratar problemas da pele e do couro cabeludo, como coceiras, eczemas e caspa”, diz a bióloga Juliana Tibério Checon, que trabalhou com a planta durante o seu mestrado em farmacologia na Unesp de Botucatu, orientada por Di Stasi, e hoje faz parte da equipe de pesquisa e desenvolvimento da empresa. “Investigamos dentro de plantas da flora brasileira ativos que tivessem o mesmo benefício dos corticoides usados atualmente, mas sem os efeitos colaterais”, diz Juliana. O estudo começou com a triagem de plantas in vitro para avaliar se em cosmética elas apresentavam os efeitos anti-inflamatórios indicados pelo uso tradicional das populações onde a planta é nativa. Foram investigados vários mecanismos de ação do extrato da planta, desde a proteção ao calor, a reposição de colágeno e possíveis efeitos colaterais. Os estudos in

por imunofluorescência com anticorpos para colágeno. Em contato com a pele, o anticorpo emite luz quando se conecta ao colágeno e então é possível avaliar qualitativamente uma maior ou menor presença dessa proteína na pele. “Na comparação entre os dois tipos de fragmentos é possível ver que o extrato de camapu conseguiu prevenir a perda de células e a quebra de fibras de colágeno”, diz Juliana. Os efeitos colaterais encontrados em corticoides também foram avaliados. Nessa análise, culturas celulares da pele foram tratadas com corticoides comerciais e com o ativo do extrato vegetal. “Em cinco dias de uso, os corticoides comerciais começaram a degradar o colágeno da pele, enquanto o ativo do camapu que desenvolvemos continuou a estimular a produção de colágeno.” A necessidade de esmiuçar os efeitos reais dos produtos na pele deve-se às exigências das indústrias cosméticas, que antes de fecharem qualquer acordo comercial se Desprezado no campo, certificam da real efio picão-preto tem cácia dos ativos. Para em seus compostos atender a um mercasubstâncias do ávido por novidapromotoras de regeneração des, a Chemyunion celular tem investido 7% em pesquisa e desenvolvimento, em média, do seu faturamento, que em 2010 foi de R$ 41 milhões. A equipe conta com 15 pessoas dedicadas à pesquisa, desenvolvimento e inovação, sendo três doutores e quatro mestres. O grupo inclui pesquisadores de várias especialidades, como síntese e extração de ativos vegetais, nanotecnologia, biologia celular e molecular e imunotoxicologia. Além da parceria com a Unesp, a empresa tem pesquisas em colaboração com a Faculdade de Farmácia da Universidade de São Paulo (USP) e com o Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Na pesquisa realizada com o picãopreto, coordenada por Dieamant, a aná-

vitro dos efeitos do ativo quando exposto ao calor foram feitos com fragmentos de pele descartados em cirurgias plásticas, como de pálpebras, obtidos com autorização do comitê de ética. Fragmentos de pele foram tratados com 0,1% do produto e outros não foram tratados, para servir de comparação. Em seguida foram colocados em estufa a 40oC durante 90 minutos, simulando o aquecimento provocado pela exposição solar, situação propícia ao desenvolvimento de processo inflamatório e consequente hiperpigmentação e formação de rugas. Todos os fragmentos foram marcados

Proteção ao calor, reposição de colágeno e possíveis efeitos colaterais são os mecanismos de ação analisados

pESQUISA FAPESP 190    73


Produto para o cabelo à base de enzimas queratinases da empresa WSGB está pronto para produção em larga escala

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Frutos do camapu e extratos da planta: atividade anti-inflamatória similar à dos corticoides

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que pode desencadear efeitos indesejáveis. Como o ativo do picão-preto tem uma atividade pouco expressiva nesse receptor, isso pode ajudar a explicar por que ele apresenta benefício biológico similar ao ácido retinoico, porém em menor escala e sem os efeitos colaterais. Alisamento capilar

A microempresa WSGB, de São Carlos, no interior paulista, também teve apoio do Pipe para desenvolver ativos na área cosmética. Um deles, um produto de alisamento capilar à base de enzimas, é o que está mais próximo de sair da bancada e ir para a prateleira. A fórmula, que utiliza um tipo específico de enzima chamada queratinase, cuja estrutura é similar à da queratina dos cabelos, despertou o interesse da Biominas, instituição que faz a ponte entre empresas que desenvolvem tecnologias e as que podem produzi-las em grande escala. “Até agora não existe nenhum produto no mercado para alisamento capilar à base de enzimas queratinases”, diz a farmacêutica Mônica Cristina Salvagnini, sócia da WSGB. A formulação tem um depósito de patente nacional. Outro projeto desenvolvido pela empresa, também com apoio da FAPESP, trata da modificação do dióxido de titânio para protetores solares. “Os protótipos que fizemos não apresentavam efeito esbranquiçado como os protetores solares com alto fator de proteção”, diz Mônica. No entanto, a demora em transformar em produto a inovação conseguida no laboratório tornou o desenvolvimento obsoleto e economicamente inviável, já que outras empresas lançaram produtos similares no mercado, com preço mais baixo do que o projetado pela WSGB. Nessa mesma linha de proteção solar, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), de São Paulo, desenvolveu recentemente uma nanoestrutura que protege ao mesmo tempo contra as radiações UVA, que contribuem para o envelhecimento precoce da pele, e UVB, responsável por queimaduras e câncer de pele quando há exposição prolongada ao sol. Foi feito um depósito de patente nacional, mas os testes só terão início com o interesse de empresas pela inovação. No Rio Grande do Sul, o conhecimento em nanotecnologia migrou da universidade para a indústria cosmética. Em junho de 2008, duas professoras da Universidade

fotos  1. chemyunion  2. 3. e 4. leo ramos

lise fitoquímica do extrato da planta revelou a presença de fitol e ácidos graxos, sinalizadores de possíveis ações anti-inflamatória, antioxidante e estimuladora de síntese da matriz extracelular, todas ligadas a um mecanismo de ação similar ao dos retinoides. Com base nisso, os pesquisadores avaliaram as atividades antioxidante (pela ação de enzimas específicas), anti-inflamatória (pela quantificação de mediadores inflamatórios como prostaglandina) e retinoidelike (pela medição do fator de crescimento dos componentes da matriz extracelular, como colágeno e elastina). Os resultados obtidos mostram que o extrato da planta funciona de forma parecida ao dos retinoides clássicos, que atuam no rejuvenescimento da pele, promovendo renovação celular bem rápida e eficiente, com diminuição de rugas, de manchas e aumento da elasticidade. “A comprovação in vitro foi feita com anticorpos que marcam os receptores de retinoide na pele”, diz Juliana. Os retinoides podem atuar em dois receptores distintos, os ácidos (RARs) e os não ácidos (RXRs). Os receptores ácidos produzem uma resposta biológica mais intensa, o


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3

Análise de ativos em fragmentos de pele (esq.) e simulação da radiação solar em cultura de células

Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Adriana Pohlmann, do Instituto de Química, e Silvia Guterres, da Faculdade de Farmácia, associaram-se como sócias cotistas a duas ex-alunas, Renata Raffin e Candice Felippi, com doutorado e mestrado, respectivamente, na área de nanotecnologia, para criar a Inventiva. O objetivo era colocar no mercado uma empresa capaz

Os Projetos 1. Estudo da atividade imunomoduladora e anti-inflamatória dos extratos de Physalis angulata provenientes das extrações hidroglicólica e em dióxido de carbono supercrítico e sua possível aplicação – no 2006/56552-8 2. Avaliação da capacidade hidratante de ativos extraídos de plantas da flora brasileira via expressão da aquaporina 3 – no 2006/51824-0 3. Estudo da composição fitoquímica e da atividade farmacológica das frações polares e apolares de Bidens pilosa obtidas por extração em dióxido de carbono supercrítico para aplicação em dermatologia e cosmetologia – no 2007/59310-8 4. Produto biotecnológico para modificação de fibras capilares – no 2006/60459-3 modalidade 1 a 4. Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) Co­or­de­na­dores 1. Márcio Antonio Polezel - Chemyunion 2. Maria Del Carmen Velazquez Pereda - Chemyunion 3. Gustavo de Campos Dieamant Chemyunion 4. Valeria Fernandes Monteiro – WSGB investimento 1. R$ 465.692,30 (FAPESP) 2. R$ 494.639,44 (FAPESP) 3. R$ 88.058,36 (FAPESP) 4. R$ 152.196,60 (FAPESP)

de fazer a nanoencapsulação de ativos para a indústria cosmética. Alguns equipamentos utilizados na empresa, sediada em Porto Alegre, foram desenvolvidos em colaboração com engenheiros. “Desenvolvemos um processo próprio de produção de nanopartículas”, diz Renata. O apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), por meio de um projeto de subvenção econômica, foi essencial para o desenvolvimento de produtos e para o estabelecimento dos testes clínicos, de estabilidade e segurança dos produtos. “As partículas que produzimos são ativos cosméticos nanoencapsulados, como vitaminas, óleos e extratos vegetais”, diz Renata. As nanopartículas, feitas de materiais lipofílicos (gordurosos), são vendidas para as indústrias de cosméticos usarem como ativos em formulações próprias tanto para a pele como para cabelos e unhas. Todos os produtos desenvolvidos pela Inventiva são vendidos com indicação de uso. Entre eles está, por exemplo, uma nanopartícula composta por cinco ativos com ação anticelulítica. Já o produto antirrugas leva dois óleos vegetais (de semente de uva e de linhaça) e duas vitaminas (A e E). As vendas, por enquanto, estão concentradas no mercado nacional. Mas a empresa procura distribuidores com atuação fora do país para estender seus domínios. “O carro-chefe da empresa é um anticelulítico chamado NanoSlim Complex”, diz Renata, responsável pela parte de desenvolvimento de novas formulações. A primeira linha lançada tinha 13 produtos. Hoje são 23 no portfólio e outros três já estão prontos para serem lançados. “A cada seis meses novos produtos são lançados”, diz. Os clientes querem ter sempre lançamentos diferenciados. “As vendas não são de grandes quantidades,

mas de produtos variados.” Atual­mente trabalham na empresa as duas sócias, dois funcionários e sete bolsistas vinculados ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), envolvidos com o desenvolvimento e a criação de formulações. O tamanho médio das partículas da Inventiva varia de 130 a 150 nanômetros, que passam por um rigoroso controle de qualidade. Segundo a Comissão Europeia para a área de nanociências, um nanomaterial deve ter 50% das partículas com dimensão inferior a 100 nanômetros. Visualmente o produto se assemelha a um leite, sem necessidade de refrigeração. Os ensaios de segurança do produto foram feitos de acordo com a legislação europeia que não permite testes de cosméticos em animais. “Fizemos testes equivalentes in vitro, que mimetizam órgãos ou partes do corpo e dão a resposta se o produto é potencialmente tóxico, irritante ou agressivo”, diz Renata. Os testes mostraram que os produtos são seguros, não têm potencial de irritação nos olhos, não provocam mortes das células nem aumentam a oxidação delas quando expostos à luz. Com base nesses resultados, a empresa passou aos testes clínicos em humanos, feitos por empresas autorizadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Nessa etapa, são avaliados se o produto causa irritação acumulada após vários dias de uso, potencial alergênico, resposta pela exposição à luz solar, além do potencial de geração de cravos e espinhas. O resultado deu negativo em todos os quesitos para todos os produtos avaliados. Foi feito ainda o teste de eficácia para verificar se eles tinham a ação proposta. “Tudo foi comprovado”, diz Renata. A partir de abril deste ano, a empresa teve um bom crescimento nas vendas, após fechar parceria com duas grandes distribuidoras que representam não só a indústria cosmética como também a química, de medicamentos e matérias-primas. Além do mercado industrial, a Inventiva vende suas matérias-primas para as farmácias de manipulação. n

Artigo científico Pereda, M.C.V. et al. Expression of differential genes involved in the maintenance of water balance in human skin by Piptadenia colubrina extract. Journal of Cosmetic Dermatology. v. 9, p. 35-43. 2010. pESQUISA FAPESP 190    75


_  I ndústria química

Casa de plástico

Polímeros substituem tijolos de argila e dormentes de ferrovias — Evanildo da Silveira

D

escoberto em 1872, o policloreto de vinila, conhecido como PVC, começou a ser produzido industrialmente na década de 1920 nos Estados Unidos e na de 1930 na Europa. Feito a partir do sal de cozinha (cloreto de sódio) e de derivados de petróleo, hoje é um dos plásticos mais usados no mundo em tubos, conexões e tapetes de banheiro, brinquedos, bolsas de sangue e soro. Mais recentemente ele passou a ser usado para substituir tijolos e outros materiais. É o caso de uma tecnologia para construção de casas com paredes de PVC desenvolvida em parceria pela Braskem, Dupont e Global Housing, empresa brasileira com sede em Santa Catarina. Batizado de sistema construtivo em concreto PVC, ele emprega perfis ou módulos desse tipo de plástico encaixados uns nos outros e preenchidos com concreto. As vantagens são que a casa pode ficar até 20% mais barata, comparando-se com as de alvenaria, e é construída de forma mais rápida, levando oito dias para ficar pronta ante três meses de uma residência convencional de 40 metros quadrados (m2).

76

_   dezembro DE 2011

São 10 tipos de perfis, cada um com uma função específica. O mais usado em uma construção é o chamado módulo I, que tem 20 centímetros (cm) de largura e 8 cm de espessura e altura variável de acordo com o pé-direito da casa. Há ainda o módulo multifuncional, de 8 por 8 cm, empregado nos cantos e nas divisórias. O único que fica visível depois da moradia pronta é o perfil de acabamento, que encobre os outros, tanto no interior como no exterior, e tem a mesma função do reboco. O presidente da Global Housing, Gilberto Fernandes, conta que a ideia de desenvolver o concreto PVC surgiu há seis anos, inspirada numa tecnologia semelhante existente no Canadá, onde há pelo menos duas empresas do ramo. Existem ainda outras similares na Austrália, México e Venezuela. “Num primeiro momento, nós desenvolvemos a ideia, aprimorando e adaptando a tecnologia às condições ambientais e climáticas brasileiras”, explica. “O segundo passo foi criar uma formulação, para fabricar os módulos.” É aí que entram a Braskem e a Dupont. A primeira fornece a resina de PVC e a segunda o dióxido de titânio, que são usados na composição da fórmula que dá origem aos perfis.


eduardo cesar

Engenharia

De acordo com o responsável pelo desenvolvimento de negócios de PVC da Braskem, Marcello Cavalcanti, a empresa fornece o produto, em forma de pó, que depois é fundido na fábrica da Global Housing com os outros componentes da formulação. São cerca de 300 toneladas por mês. Além do reboco, o PVC dispensa pintura e revestimento. A cor branca é dada pelo PVC e pelo dióxido de titânio, substância que também protege contra os raios ultravioleta do sol, evitando microrrachaduras e escamações do plástico, preservando o desempenho mecânico e aumentando a durabilidade do produto. “Mas se o dono da casa quiser pintá-la de outra cor, pode”, garante Fernandes. “Assim como aplicar ladrilhos, azulejos ou grafiato [revestimento decorativo]. Na verdade, é tudo como numa casa convencional.” Além dessas vantagens do PVC, que é um tipo de polímero reciclável, Fernandes cita outras, como a resistência à chuva, vento e maresia. “Esse plástico é imune à ação de fungos, bactérias, insetos, roedores e à maioria dos reagentes químicos”, enumera. “Sem falar que é um bom isolante térmico, elétrico e acústico; impermeável

Química


Sistema construtivo inovador 2

3

Ferro Barras de ferro são colocadas no meio das paredes e nos cantos

concreto

módulos

As paredes são preenchidas com concreto

São 10 tipos de perfis plásticos, um para cada função

infográfico (3D) nana lahoz  fotos eduardo cesar

1  PVC Módulos pré-fabricados de PVC são encaixados para formar as paredes

a gases e líquidos; não propaga chamas e é totalmente reciclável.” Quanto à casa em si, o presidente da Global Housing diz que ela tem paredes com espessuras menores que as tradicionais – não mais que 8 cm –, o que gera um ganho de até 7% na área útil. Elas também não racham nem estufam, não deformam e não absorvem água. A construção da casa não exige mão de obra especializada, apenas treinada. De acordo com Fernandes, essa tecnologia é uma forma inovadora e rápida de construir, em escala industrial, diferentes tipos de edificações de alta qualidade, com pouco uso de madeira e água e desperdício mínimo de materiais. O projeto de uma moradia de concreto PVC começa como os outros, tradicionais. O piso pode ser uma laje de concreto (chamada de radier), que servirá como principal apoio para as paredes de PVC. A Global Housing verifica o projeto e, de acordo com ele, fornece o kit para a montagem da casa. No canteiro de obras basta montar os perfis, seguindo o projeto e as especificações. Não há colunas propriamente ditas, mas nos cantos e no meio de cada parede é colocada uma barra de ferro, do piso até o teto. Além disso, ao longo 78

_   dezembro DE 2011

20 mil metros quadrados de casas já foram construídos com esse sistema das paredes, a cada 80 cm, no piso são fixadas pequenas barras de ferro com 60 cm de altura. Todas ficam por dentro das paredes feitas com os módulos, que depois são preenchidas com concreto. Após 24 horas secando, a casa está pronta para a colocação das portas e janelas e do telhado. Por esse sistema podem ser erguidas edificações com até dois andares – térreo mais o andar de cima –, como sobrados, por exemplo. Em termos de custo, o preço do metro quadrado de uma construção com con-

creto PVC equivale ao de uma tradicional – algo entre R$ 800,00 e R$ 850,00, dependendo da região do país. “Mas no final da obra há uma economia de cerca de 20%, principalmente por causa da menor necessidade de trabalhadores”, diz Fernandes. Também contribui para a redução do preço de uma casa de PVC a facilidade de gerenciamento e padronização dos processos construtivos Depois do desenvolvimento da tecnologia, a empresa catarinense buscou a certificação e homologação de seu sistema construtivo em órgãos públicos. Para isso contou com o auxílio da Braskem. “Nós ajudamos a Global Housing a conseguir toda a certificação técnica para concreto PVC”, conta Cavalcanti. De acordo com ele, a legislação da construção civil no Brasil só permite que novas modalidades e tecnologias de edificações se beneficiem de financiamentos da Caixa Econômica Federal se passarem pelo Sistema Nacional de Avaliação Técnica (Sinat). Também conhecido como diretriz Sinat, é uma iniciativa da comunidade técnica nacional da construção civil que direciona a avaliação do produto e é organizado pelo Ministério das Cidades. O objetivo é uniformizar e avaliar novos produtos e sistemas


construtivos colocados no mercado e visa obter o Documento Técnico de Avaliação (DATec), um certificado que homologa e comprova a qualidade. Por isso, abre as portas para programas habitacionais financiados com recursos públicos, como o Minha Casa Minha Vida. O sistema construtivo concreto PVC da Global Housing passou pela fase do Sinat. Foi analisado pelo Centro Tecnológico do Ambiente Construído (Cetac) do Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo (IPT), onde foi feito o acompanhamento do sistema de montagem e ensaios de envelhecimento acelerado dos painéis, além de verificação da resistência a impactos, fogo e isolamento acústico. “Nessa fase o produto foi considerado com bom potencial de desempenho para a construção de casas térreas e sobrados, isolados ou geminados”, disse Luciana Oliveira, pesquisadora e chefe do Laboratório de Componentes e Sistemas Construtivos do Cetac. “Isso significa que ele pode receber financiamento da Caixa”, explica Cavalcanti, da Braskem. Mesmo antes da diretriz Sinat a empresa conseguiu conquistar uma fatia do mercado imobiliário. Desde que as casas de PVC começaram a ser comercializadas há um ano, foram construídos 20 mil m2 delas no Brasil. “Elas são de diversos tamanhos, além de creches, Casa pronta na Du Pont, escolas, sobrados e até em Barueri (SP): demonstração

quiosques de praia”, conta Fernandes. “Hoje produzimos em torno de 400 moradias por mês. A previsão é ampliar esse número para mil.” A Global Housing vai aumentar o número de fábricas em 2012, abrindo unidades, nos estados do Rio de Janeiro, Alagoas e Piauí.

zido a partir de plásticos recolhidos do lixo, como rebarbas de fraldas descartáveis, recipientes de óleo combustível e de detergente e sacos de embalagem. A Wisewood iniciou suas atividades com a fabricação de dormentes poliméricos para atender a MRS Logística e sua necessidade de substituição de dormentes de madeira. “Desenvolvemos então uma peça de alta tecnologia e engenharia, para atender a todas as especificações e à enorme resistência mecânica que este mercado exige”, conta o diretor comercial da companhia, Diego Gevaerd. “Foi um sucesso total e hoje nossos dormentes à base de WPC já estão em teste nas outras duas gigantes do setor de ferrovias: Vale e All.” Com o tempo, os dormentes deram origem a novas tecnologias e produtos como tábuas e mourões. De acordo com Gevaerd, hoje a empresa recolhe em aterros sanitários e lixões, por meio de cooperativas de catadores, sucateiros e das próprias indústrias, cerca de 1.800 toneladas de plástico por mês, basicamente polipropileno e polietileno. São os chamados plásticos duros, que, adicionados a fibras naturais, passam por um processo industrial, dando origem a um material idêntico à madeira. “Transformamos o que chamam de ‘lixo’ em produtos acabados, com aplicações industriais”, orgulha-se Gevaerd. “Hoje atuamos em nível nacional, mas estamos iniciando atividades em novos mercados no exterior.” Ele garante que a madeira plástica pode ser manuseada como a natural. Com as mesmas ferramentas ela também pode ser cortada, colada, furada, parafusada, pregada e torneada à vontade. Além disso, tem uma série de outras vantagens. “É inerte e impermeável, imune a pragas como fungos e cupins, permite ser lavada e não necessita de certificados de fumigação”, enumera Gevaerd. “Além disso, não precisa de tratamento algum (custo zero de manutenção) e não solta farpas. Sem falar que evita o desmatamento de nossas florestas e uso de madeira de reflorestamento e é uma solução sustentável, por ser um material 100% reciclado e reciclável.” n

Plásticos retirados dos

lixões são transformados em madeira polimérica

Atuando em outro ramo de mercado, a empresa Wisewood igualmente faz do plástico seu principal negócio. A empresa criada em 2007, com sede em Itatiba, no interior de São Paulo, fabrica a chamada madeira plástica, usada na produção de dormentes de estradas de ferro, decks, revestimentos, pallets, módulos, bancos, lixeiras e rodapés. Trata-se na verdade de um composto denominado tecnicamente wood plastic composition (WPC), produ-

Assista ao vídeo com a montagem dos perfis de plástico em www.revistapesquisa.fapesp.br pESQUISA FAPESP 190

_  79


festo

_  p rotótipos orgânicos {

Inspiradas em aves e elefantes Objetivo de novas máquinas é economizar energia em todas as frentes possíveis Carlos Fioravanti, de Esslingen

Recriando a natureza: uma gaivota e uma aranha mecânicas

80    dezembro DE 2011


Instituto Fraunhofer

Aeronáutica

Biomecânica

O

designer Rainer Mugrauer segura com as duas mãos a barriga de uma gaivota cinza de dois metros de envergadura e um de comprimento. Ele a ergue acima de sua cabeça e com um leve impulso a solta no ar. A ave decola, bate as asas e dá duas voltas sobre o auditório da Festo, empresa de automação situada em Esslinger, cidade vizinha a Stuttgart, sudoeste da Alemanha. Depois a gaivota volta às suas mãos, fecha as asas e se aquieta. É uma ave mecânica, o SmartBird, movida com uma bateria pouco maior que a de um celular. E esta é a primeira vez que o voo de uma ave é decodificado e um protótipo decola com autonomia. Várias empresas estão construindo máquinas inspiradas em animais para reduzir o consumo de energia, melhorando design, materiais e métodos de fabricação. Nesta manhã de 10 de outubro, cerca de 20 pessoas, a maioria jornalistas estrangeiros, observam o Smartbird. Não é um grande público, comparado com o que assistiu ao primeiro voo dessa ave, em abril de 2011, em uma feira de tecnologia na Alemanha. Em julho, centenas de pessoas aplaudiram de pé a ave voando sobre o auditório da filial da organização não governa-

mental Technology, Entertainment, Design (TED) em Edimburgo, Escócia. No céu de um parque da cidade, a ave mecânica atraiu dezenas de gaivotas que se puseram a voar perto dela. O SmartBird impressiona pela elegância e simplicidade. Feito de fibra de carbono, pesa 450 gramas. Mugrauer tira a cabeça e mostra os fios e as engrenagens que movem as asas. Alguns sensores alertam para objetos próximos durante o voo. “Somos os primeiros a decodificar o voo de uma ave”, celebra o engenheiro Heinrich Frontzek, chefe da comunicação corporativa da empresa. Segundo ele, um físico de uma empresa aeronáutica, Wolfgang Send, tinha decifrado teoricamente o voo de uma gaivota, mas não havia encontrado quem se dispusesse a construir uma ave capaz de voar com autonomia. Antes deles, outros planejaram objetos parecidos. O engenheiro e artista italiano Leonardo da Vinci projetou em 1485 sua ave de madeira, que não saiu do papel. O engenheiro alemão Otto Lilienthal construiu planadores rudimentares e fez cerca de 2 mil voos; em um deles, em 9 de agosto de 1896, Lilienthal caiu de uma altura de 17 metros, quebrou a coluna e morreu no dia seguinte. pESQUISA FAPESP 190    81


1

Em abril de 2006, pesquisadores da Universidade de Toronto, no Canadá, lançaram o ornitóptero, um planador cujas asas se movem como as das aves. Em outubro de 2010, engenheiros da Universidade da Califórnia em Berkeley, Estados Unidos, apresentaram um inseto mecânico de 10 centímetros de comprimento e 25 gramas com o propósito de detalhar a evolução do voo das aves, como descrito em um artigo publicado em outubro na revista Bioinspiration and Biomimetics. EstíMulO À Criatividade

A gaivota mecânica representa a nova concepção de produtos que a Festo pretende começar a fabricar o mais breve possível. “Queremos apreender com a natureza, que não desperdiça energia”, diz Frontzek. Outra finalidade é fazer a criatividade voar. Frontzek diz que está incentivando os engenheiros alemães a deixar caminhos já trilhados e pensar com mais liberdade – e assegura que está conseguindo. Ao menos, já têm coisas novas para mostrar, como as garras e os braços mecânicos flexíveis, inspirados na tromba de elefante, capaz de segurar uma maçã sem despedaçá-la. Nos últimos quatro anos os engenheiros dessa empresa construíram pinguins, medusas e raias mecânicas, que têm servido para inspirar novos equipamentos de automação, como válvulas, sensores e sistemas de tratamento de ar comprimido com maior eficiência energética. Em outubro, uma aranha robô com uma câmera, desenvolvida no Instituto Fraunhofer, em Berlim, deu seus primeiros passos publicamente em uma feira de tecnologia em Frankfurt realizada 82    dezembro DE 2011

entre 29 de novembro e 2 de dezembro. Os engenheiros do Fraunhofer acreditam que o inseto mecânico poderia entrar em buracos pequenos, formados pela destruição de casas e prédios, e fornecer imagens que ajudassem a resgatar sobreviventes. Produzir animais eletrônicos é uma das possibilidades da área chamada biônica ou biomecânica, que inspirou a série de televisão Cyborg, o homem de 6 milhões de dólares, exibida entre 1974 e 1978, e uma coruja no filme Blade Runner – O caçador de androides, de 1982, que confundiu o policial Deckard, representado por Harrison Ford. Biônica e biomecânica por vezes se confundem com a biomimética, outro nome para os esforços humanos de imitar a natureza e produzir coisas úteis. Foi assim que em 1941 o engenheiro suíço George de Mestral criou o velcro, um tecido com pequenos ganchos usado para prender roupas e calçados, depois de observar as sementes de grama que se prendiam nos pelos de seu cão. Um exemplo mais recente:

em 2005, a Mercedes-Benz apresentou um carro conceito chamado Bionic, cuja forma lembra a de um peixe, que deve consumir 20% menos combustível que um modelo equivalente. “Na química e biologia, já se conhecem processos que, inspirados na fotossíntese, visam a geração limpa de hidrogênio combustível”, observa Maria del Pilar Taboada Sotomayor, professora do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araraquara, que trabalha nessa área. “Na área de desenvolvimento de dipositivos sensores para monitoramento de diversos tipos de compostos de interesse clínico e

“Não pense que os outros estão querendo roubar suas ideias”, sugere Peter Post

2


Engenheiro fazendo arte: a gaivota que nasceu animal terminou mecânica

ambiental, a substituição das enzimas tem sido bastante estudada, através da substituição dos compostos biológicos por catalisadores que imitam satisfatoriamente a catálise biológica.” ECONOMIA DE ENERGIA

Os animais mecânicos parecem brinquedos, mas quase sempre há um problema que deveriam ajudar a resolver. Frontzek conta que ele próprio propôs à equipe de pesquisa e desenvolvimento da Festo a possibilidade de fazer braços flexíveis como a tromba de um elefante como forma de reduzir os acidentes causados pelos braços rígidos dos robôs industriais. A equipe se convenceu e trabalhou durante três anos, em colaboração Zoo high tech: inseto dos com outras empresas Estados Unidos e universidades, até e tromba chegar ao protótipo articulada da

fotos  1. e 3. Festo  2. Universidade de Berkeley

Alemanha

exposto publicamente. Frontzek ressalta: o objetivo não é fabricar aves ou braços parecidos com trombas, mas aproveitar o conhecimento adquirido para construir máquinas mais eficientes e de menor consumo de energia. “Como em um carro conceitual, o importante não é o carro em si, mas a tecnologia dentro dele.” Com vendas anuais próximas a € 1,8 bilhão (R$ 4,3 bilhões), a Festo investe anualmente cerca de € 150 milhões (R$ 360 milhões) em pesquisa e desenvolvimento de novos produtos. A prioridade agora é reduzir o consumo de energia onde for possível e, com o mesmo objetivo, rever os processos de produção e reduzir o peso das máquinas que fabricam. Segundo Nico Pastewski, gerente de inovação, um projeto em colaboração com outras empresas já permitiu a redução de 20% no consumo de energia em máquinas a ar comprimido desde 2007. “Podemos economizar com medidas simples.” Outra mudança desejada é fazer com que as máquinas, hoje controladas por um mecanismo central, sejam autocontroladas, ou, de outro modo, funcionem de modo descentralizado, como a ave mecânica. Uma parte difícil do trabalho é vencer as resistências – não dos materiais, mas das pessoas. Por essa razão, Peter Post, 3 chefe de programas

estratégicos de pesquisa, considera fundamental o diálogo aberto entre as equipes internas e externas que participam de um trabalho. “Precisamos ter mentes abertas”, aconselha. “Não pense que os outros estão querendo roubar suas ideias.” Mesmo equipes afinadas nem sempre encontram soluções para os problemas da produção, por exemplo, de baterias, que ainda necessitam de materiais tóxicos. “Não temos ideias brilhantes para solucionar as baterias”, ele reconhece. “Sorry.” Os espetáculos da Festo lembram o estilo de Thomas Edison, inventor e empresário dos Estados Unidos que reunia especialistas de áreas diferentes – físicos, engenheiros e advogados – e lhes dava os materiais e a liberdade de que precisavam para trabalhar. Edison anunciava suas invenções – como a lâmpada elétrica incandescente, o gramofone e dezenas de outras – antes mesmo de estarem prontas, para preparar os consumidores para as novidades. “Um provérbio alemão diz: faça coisas positivas e fale sobre elas”, comenta Eberhard Veit, presidente do comitê de gestão da Festo. Logo na entrada da empresa, um carrinho passeia sobre a grama e distrai os visitantes. Na verdade, é um cortador de grama, movido a ar comprimido. n O jornalista viajou a convite do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) Assista aos filmes dos animais mecânicos em www.revistapesquisa.fapesp.br

Artigo científico peterson, k.; birkmeyer, P.; Dudley, R. e Fearing, R.S. A wing assisted running robot and implications for avian flight evolution. Bioinspir. Biomim. out. 2011. pESQUISA FAPESP 190    83


resenhas

A inovação em três países João Furtado

84 | dezembro DE 2011

fotos eduardo cesar

O

livro Diplomacia, desenvolaproximam do brasileiro, abordado vimento e sistemas nacionais de modo mais detalhado no segundo de inovação: estudo comparacapítulo, onde os nexos entre globado entre Brasil, China e Reino Unido lização e inovação permeiam o depropõe uma abordagem comparativa senvolvimento feito pelo autor. ambiciosa para um tema de grande Os capítulos que compõem a seinteresse no mundo da inovação: os gunda parte do livro dedicam-se à sistemas nacionais de inovação de análise dos sistemas de inovação dos três países muito diferentes – Brasil, países que são objeto da comparaChina e Reino Unido. ção: Brasil, China e Reino Unido. O autor Ademar Seabra da Cruz Se o Reino Unido é o primeiro moJunior possui uma formação e uma delo nacional de sistema de inovatrajetória ecléticas: formação secunção, a China é o caso espetacular, dária em área tecnológica (química), com “a dramática mudança de percursou diferentes graduações (eco- Diplomacia, fil a partir da reforma institucional nomia, letras, direito), antes de rea- desenvolvimento e de 1985, ou de alguns poucos anos nacionais de lizar estudos de pós-graduação em sistemas antes, quando o Partido Comunista inovação: estudo ciência política (nas Universidades comparado entre Brasil, Chinês (PCC) transformou completa de São Paulo e de Brasília), filosofia China e Reino unido e radicalmente a estrutura produtiva (London School of Economics), so- Ademar Seabra da Cruz Junior do país”. Ambos os casos descritos 292 páginas, ciologia (de novo na USP) e alcan- Funag, por Seabra da Cruz oferecem o terR$ 59,00 çar o doutorado no Altos Estudos Pode ser baixado em mo comparativo para o exame do do Instituto Rio Branco. sistema brasileiro. www.funag.gov.br A formação vasta e variada deu O sexto capítulo apresenta a hilugar a uma tese (e um livro) igualmente vasta pótese-tese, que o autor suaviza com o termo e variada, pelas abordagens que o autor realiza, “exploratório”: o papel protagonista do Miniscombinando a sua extensa formação universitária tério das Relações Exteriores “na conformação e a experiência profissional, incluindo as influên- e desenvolvimento dos respectivos sistemas nacias muito variadas que ele indica nos (generosos) cionais de inovação”. Nas palavras do autor, eis agradecimentos. Há sem dúvida uma visão (ou a tese que pretende demonstrar: “É o Itamaraty várias visões) da economia, uma interpretação quem ostenta, portanto, no Estado brasileiro e no muito pouco canônica dos fatos econômicos que âmbito do SNB [sistema de inovação brasileiro], conformaram o sistema econômico internacional as melhores condições para conhecer a realidade e os países sobre os quais o autor se debruça; há e disponibilidade, não somente de cooperação, elementos dos sistemas políticos e das políticas mas de transferência de tecnologia e de aproprianacionais; e há uma destacada importância acor- ção de experiências de inovação bem-sucedidas dada às relações internacionais e às políticas na- no exterior, mormente no quadro dos países da cionais para essas relações internacionais, uma OCDE e das economias emergentes”. Seabra da presença esperável, claro, em vista da militância Cruz reconhece em seu livro ser essa tarefa “das profissional do autor no Ministério das Relações mais desafiadoras”. Mas isso não esmorece a Exteriores. sua fé na missão, pois “[o] Itamaraty dispõe (...) No primeiro capítulo o autor apresenta a sua de vocação para o desempenho dessa tarefa”. A revisão das teorias da inovação, com ênfase em tarefa ingente de montar um sistema nacional elementos que lhe permitem desenvolver as suas de inovação vigoroso e dinâmico só pode beneideias sobre o sistema nacional de inovação. Em- ficiar-se desse valioso alicerce. bora seja uma visão universal, o olhar do autor volta-se principalmente para os sistemas úteis João Furtado, economista, é coordenador adjunto de inovação para a compreensão dos sistemas nacionais que se tecnológica da Diretoria Científica da FAPESP.


Brasileiras e internacionais

Aventura por duas culturas

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B

e ainda é verdade que as empresas nacionais inovam pouco e têm dificuldade de competir globalmente, também vem crescendo a lista de corporações brasileiras que se internacionalizaram fortemente e se tornaram multinacionais, caso de gigantes como a Petrobras, a Vale, a JBS Friboi, a Gerdau ou a Embraer. As estratégias dessa elite de empresas e os obstáculos que enfrentam são o mote do livro Multinacionais brasileiras: internacionalização, inovação e estratégia global, coletânea de 18 artigos acadêmicos organizada por Moacir de Miranda Oliveira Junior, professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP). A primeira parte do livro é dedicada à apresentação de referenciais teóricos – uma exceção é o capítulo que mostra impasses conceituais ao explorar casos de empresas chinesas que seguiram diferentes padrões de internacionalização. A segunda parte de artigos aborda o desempenho das multinacionais brasileiras, suas principais motivações (pressão da concorrência global, saturação do mercado brasileiro) e as dificuldades que enfrentam (barreiras tarifárias, dificuldades de acesso a canais de distribuição, entre outras). O impacto da internacionalização no mercado de trabalho é discutido numa dupla perspectiva: se o fenômeno é associado à precarização do trabalho em vários países, no Brasil as empresas internacionalizadas geram emprego e renda em padrões favoráveis. Os dois blocos finais são os mais saborosos, ao abordar estudos de caso. Como o da Embraer, que, ao desenvolver a família de jatos 170/1900, gerou um “empreendimento de engenharia colaborativa global”, em que coordena um grupo de empresas maiores do que ela e de diversos países. Outro exemplo é o da Natura, que optou por avançar sem parceiros para resguardar seu patrimônio tecnológico. A estrutura de coletânea causa certo prejuízo à leitura: a apresentação de certos conceitos teóricos se repete em vários artigos. Mas a variedade dos exemplos e a abrangência das análises compensam eventuais redundâncias. Fabrício Marques

Multinacionais brasileiras Moacir de Miranda (org.) Bookman Editora, 358 páginas, R$ 72,00

Borges e a mecânica quântica Alberto Rojo Márcia Aguiar Coelho (trad.) Editora Unicamp, 144 páginas, R$ 30,00

orges e a mecânica quântica traz aos seus leitores um belo guia para a ciência como atividade humana. Ao falarmos de cultura científica, fomos acostumados a lembrar das grandes realizações da ciência, que muitas vezes não sabemos apreciar como apreciamos, por exemplo, um bom samba de Noel Rosa. Por que parece ser tão diferente assim com a ciência, quando comparada com a música? Essa dificuldade desemboca na ideia de “As duas culturas”, ensaio do físico e escritor Charles Percy Snow (1905-1980). O ensaio apresenta a perturbadora tese de que a quebra de comunicação entre as duas culturas da modernidade – as ciências e as humanidades – levaria a obstáculos imensos na solução dos grandes problemas do mundo. Eis que surge Alberto Rojo, físico com contribuições para a física da matéria condensada e músico e compositor. Com seu repertório, Alberto sela as pazes entre as duas culturas, trocando a termodinâmica pela mecânica quântica, na maior parte dos exemplos, e Charles Dickens por Jorge Luis Borges. Logo no início veem-se as possibilidades de diá­­ logo entre física e literatura com a revelação do conto O jardim dos caminhos que se bifurcam como antecipação de solução de um problema de física, estabelecendo que a “ficção pode ser lida como ciência”. A possibilidade de que literatura e ciência estejam emaranhadas, com a ciência imitando a arte em alguns casos, é fascinante. Emaranhar, aliás, é o conceito-chave do que se chama teletransporte, assunto no qual a mecânica quântica não imita a ficção científica. O capítulo sobre isso é talvez o melhor texto de divulgação sobre o assunto no qual já deitei os olhos. A matemática na natureza, o funcionamento do GPS e outras peças compõem um mosaico da ciência como atividade humana, estabelecendo uma bem-vinda ponte intercultural. Alberto Rojo finaliza pelo início, descrevendo como as coincidências na aventura da descoberta da natureza física da luz não deixam nada a dever a um conto de Borges.

Peter Schulz é professor do Instituto de Física da Unicamp. PESQUISA FAPESP 190 | 85


Arte

A música do futuro Projeto coordenado por Fernando Iazzetta viabiliza concertos interativos on-line João Marcos Coelho

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magine um mundo musical sem as noções de virtuoses nem compositores geniais. Salas de concerto com palco e plateia serão apenas conceitos de um dourado passado romântico, onde as pessoas se reuniam para, respeitosamente e em silêncio, aplaudindo apenas nos momentos permitidos, assistirem reverencialmente a uma espetacular exibição de destreza manual e artística de um virtuose num Steinway de concerto ou então empunhando um Stradivarius de US$ 2 milhões. Ainda não chegamos lá, mas sem dúvida estamos caminhando para isso. Hoje já é possível realizar concertos interativos on-line, com músicos espalhados nos quatro cantos do planeta (com direito a serem ouvidos em streaming também em todo o planeta). Quem acaba de realizar um concerto desses é um grupo de integrantes do “Móbile – processos musicais interativos”, um projeto temático coordenado por Fernando Iaz­ zetta, da ECA-USP, com apoio da FAPESP. “Em junho de 2011, realizamos um Net Concert, em colaboração com o Sonic Arts Research Centre (Sarc), da Queen’s University, em Belfast, Irlanda do Norte. Foi um concerto colaborativo com dois grupos de músicos, um deles em nosso estúdio na USP (o Lami – Laboratório de Acústica Musical e Informática) e outro no auditório do Sarc”, diz Iazzetta. Conectados por um sistema multicanal de áudio e vídeo, tocaram juntos cinco peças compostas especialmente para esse tipo de evento. Duas questões estão envolvidas no projeto. A primeira é testar e desenvolver sistemas para conexão remota em tempo real e que músicos possam tocar 86 | dezembro DE 2011

juntos, mesmo estando em lugares diferentes. A segunda é explorar criativamente esse sistema. “Ou seja, nossa ideia não é simplesmente ter uma peça tradicional tocada por músicos em cidades ou até países diferentes (embora esta seja uma possibilidade), mas criar obras que tirem proveito do ambiente da internet 2.0 e explorar novas possibilidades desse ambiente.” Após este primeiro teste bem-sucedido, o Móbile fará em 22 de março de 2012 seu segundo concerto por internet rápida, integrando o Festival Sonorities de Belfast. Novamente, dois grupos, um em São Paulo e outro em Belfast, apresentarão um concerto com conexão de alta resolução de áudio e vídeo em tempo real, com obras escritas especialmente para o evento. O público poderá assistir ao concerto em São Paulo, em Belfast ou em qualquer parte do mundo, haverá acesso por streaming pela internet. As informações sobre o concerto e o endereço para acessar o streaming estarão acessíveis em breve no site www.eca.usp.br/mobile. Música de (e para) todos

Móbile, iniciado em 2009 e com conclusão prevista para 2013, promove, segundo Iazzetta, “o cruzamento entre uma produção teórica e artística, possibilitando que trabalhos de criação sejam desenvolvidos dentro desta proposta. Há ainda interesse na exploração de ações que possam promover o intercâmbio entre diversas áreas de conhecimento (artes, ciência da computação, engenharia), bem como entre a música e outras artes midiáticas. Os trabalhos agrupam-se em quatro

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O Projeto Móbile: processos musicais interativos no 2008/08632-8 modalidade Projeto Temático Co­or­de­na­dor Fernando Iazzetta ECA/USP investimento R$ 414.806,66 (FAPESP)


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1. A performer Lilian Campesato usa sistema interativo de som e imagem no espetáculo Por trás das coisas, em outubro de 2010, realizado no teatro do Instituto de Artes da Unesp, em São Paulo

fotos  1. Guilherme Tosetto 2. Fernando Iazzetta

2. Orquestra de câmara toca na cena final do mesmo concerto em meio a uma projeção de imagens

linhas de pesquisa: sonologia; desenvolvimento de sistemas interativos; produção artística com sistemas interativos; e acústica musical, psicoacústica e auralização”. Trocando em miúdos, metas que levam em conta o naufrágio das noções de intérprete genial e obra de arte. Este talvez seja o maior mérito do projeto Móbile: pensar a música em outros termos, mais conectados com a realidade urbana, comportamental, científica e tecnológica que nos rodeia. O projeto tem uma equipe flutuante de 30 a 40 colaboradores – entre pós-graduandos, alunos de graduação e professores de outros departamentos e universidades, como Unesp e Unicamp. Tem também dois subcoordenadores, os professores Fabio Kon e Marcelo Gomes de Queiroz, ambos da USP. A meta é juntar a produção artística com a científica, estimular a interdisciplinaridade e os processos coletivos de criação. Móbile já produziu duas apresentações coletivas nos dois últimos anos, seus colaboradores produziram cerca de 70 artigos em seminários brasileiros e internacionais. Além disso, subgrupos como duos, trios e formações até maiores concentram-se em aspectos específicos da prática musical experimental. Não há postura estética determinada, embora, afirma Iazzetta, “pelo próprio perfil dos envolvidos, ele acabe se direcionando para a música experimental”.

Sem dúvida, Móbile olha para o futuro com consistência e arrojo, sem despregar os pés do nosso chão. De certo modo, antecipa em suas ­realizações algumas das conclusões do sociólogo Pierre-Michel Mender no artigo “Um passo para a utopia”, incluído no volume coletivo Artistes 2020 – Variations prospectives, publicado em 2010 na França. Menger faz um exercício de futurologia superinteressante. Sua afiada “bola de cristal” decreta para 2020 o fim do filtro seletivo na música e na dança: as barreiras entre os gêneros musicais se enfraquecerão. Prevê a “desespecialização” nas artes visuais e a multiplicação dos híbridos entre as disciplinas artísticas (vídeo, cinema, pintura, escultura, teatro, ópera, dança). Prega a “democracia do gênio” (ou o fim do adestramento prolongado e torturado, tanto na criação quanto na interpretação). E a “desagregação da noção de obra”. A utopia do “todo mundo artista”, diz Menger, será sustentada por uma transformação da prática artística: autoformação em contexto de troca e aprendizagem mútua em rede, valorização das práticas híbridas, insistência sobre a atividade coletiva e a mutualização da noção de invenções criadoras, enfraquecimento do direito de propriedade em benefício da livre recombinação de ideias e de soluções acessíveis a todos. Tudo isso – provam as apresentações, os artigos e a prática interdisciplinar rigorosa do Móbile – já é realidade por aqui. n PESQUISA FAPESP 190 | 87


conto

O vermelho das carpas frias Tony Monti

1. o mapa

2. as margens do mapa

Os joelhos estavam enormes. Eu prefiro os assados na grelha, com a pele escura e crocante, mas os molhos que acompanham os joelhos refogados também me agradam. A digestão é lenta. Por causa disso, adiamos uma hora o início do almoço. Trabalhamos um pouco mais de manhã para que o sono decorrente da refeição atrapalhe por menos tempo a produtividade de tarde. Há um acordo velado de que também atrasamos meia hora o retorno à empresa. Com uma hora e meia de almoço podemos comer, fazer um pequeno intervalo, e comer de novo. A maior parte de nós come tanto Eisbein assado quanto Eisbein refogado, uma receita em cada turno de almoço. Entre os turnos, somos cúmplices uns dos outros ao tomarmos uma caneca grande de cerveja de trigo. Brindamos sem alarde, para não ofender os ortodoxos. Uma parte mínima dos funcionários toma a liberdade de repetir a Weissbier. Bebem em silêncio. Quando deixamos pesados o restaurante, caminhamos até a empresa pela principal avenida de Schroeder. Quase não conversamos durante o trajeto. São dez minutos de reflexão silenciosa entre alemães e italianos. Não sei bem o que os demais pensam. Eu me concentro em respirar, manter a postura ereta e não perder o ritmo dos passos. Na rua há pouca gente. Há grupos semelhantes aos nossos. Quase ninguém sozinho, quase ninguém falando. Costumamos passar em frente à empresa, na calçada oposta, e caminhar mais duzentos metros para atravessar na faixa de pedestre, como sugere a lei, apesar de ser mínimo o fluxo de carros. Voltamos então no sentido oposto e entramos para o trabalho. Poderíamos ter atravessado a avenida na faixa em frente ao restaurante, mas esta discreta estratégia nos dá cinco minutos de caminhada a mais e cinco minutos de trabalho a menos. De noite, quando saímos da empresa, a maioria dos que voltam ao restaurante são solteiros. Às vezes alguns casados vão sem a família. É raro, mas acontece também, levarem mulher, marido, filhos, amigos. Os demais vão embora comer Eisbein em casa. Duas horas depois, nos dispersamos, cada um para seu lado. Às dez e cinquenta e sete, quando passa o trem, as ruas estão vazias. A linha do trem cruza a avenida em diagonal selando o fim do dia. Há um bar e um restaurante no centro, onde alguém deve estar bebendo e comendo. Quando o trem passa, eles fazem um brinde a mais um dia de vida.

Duas estradas chegam a Schroeder, no centro de Santa Catarina. Nesta época do ano, em ambas a paisagem é a mesma: quadras enormes, imersas em água, encravadas em um descampado às vezes interrompido por pequenas plantações. Lagos quadrados em um terreno vasto. Poderiam ser uma titânica criação de carpas que esconderia, sob a superfície, movimentos e tons de vermelho na paisagem parada, azul, marrom, verde e um pouco cinza. Mas não, o que as lâminas d’água quase imóveis encobrem são pequenos caules de arroz que vão crescer no terreno alagado. Bem perto da cidade, no descampado começam a aparecer pontos escuros sobre a terra e o mato, animais inertes, não grandes como bois nem pequenos como galinhas. Não é preciso chegar muito perto para ver que são porcos, parados ou arrastando-se lentos. Além da lentidão e do precoce envelhecimento dos bichos, nota-se que todos eles têm uma ou duas pernas decepadas acima da altura do joelho.

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Ernesto Kohler - Do Livro O Final das Espécies, 2010

4. o vermelho das carpas frias

Eu gosto dos porcos. Nunca vi um joelho mecânico. Imagino que seja um mecanismo simples, muito preciso, de metais nobres e frios com pequenos elementos plásticos. Quando o arroz cresce nas quadras alagadas, meu pensamento sobre as carpas fica interrompido pela robustez do que eu vejo. Não é fácil inventar peixes vermelhos nas frinchas do arroz. Quando penso que porcos com joelhos de platina caminham tranquilos, me vem uma ampla sensação de limpeza que me tira a parte voraz da fome. Minha dúvida, no final das contas, é entender se o laboratório da cidade deveria trabalhar para saciar a fome ou para produzi-la, aumentando assim o meu prazer de comer joelhos, o que torna a questão sobre o destino dos porcos decepados uma derivação casta do meu desejo primário de comer e engolir em grandes quantidades. 5. joelhos prata e azul

3. o reflorestamento

Há quem reclame da situação dos animais mutilados. Agora desenvolveram um joelho mecânico que substitui nos porcos os joelhos originais. O equipamento é caro, poucas fazendas vendem Eisbein com reposição de joelhos. Antes dos joelhos mecânicos, tentou-se produzir em laboratório joelhos de porco comestíveis sem a necessidade de produzir corpos inteiros, mas a suculência, a textura e o sabor desejados nunca foram conseguidos. O mesmo laboratório hoje desenvolve os molhos para acompanhar o Eisbein biológico. A cidade tem estado estranha. Nunca foi fácil dizer se somos italianos com hábitos alemães ou o contrário. Na cidade, os alemães nunca têm mais que dois filhos. Os italianos às vezes têm cinco, seis. Há cada vez mais italianos na cidade e cada vez mais porcos nos arredores. É como os porcos, diz uma anedota que circula entre os italianos, pouco joelho para muita carne inútil. Não entendo o rumo dos acontecimentos, se queremos salvar os porcos, dar-lhes uma sobrevida ou descartá-los imediatamente.

Há muitos pontos de vista. Não duvido que um dia eu escute alguém propor a suspensão do consumo dos joelhos. Imagino que todos já pensaram no assunto, mas nunca encontrei quem o verbalizasse. Talvez haja intimidades ainda mais escondidas. Quando tenho muita fome, minutos antes de chegar ao restaurante no almoço, tenho certeza de que o maior respeito aos porcos, animais tão semelhantes a nós mesmos, seria deixá-los sem joelho, jogados aos urubus e aos vermes, sem interferir na natureza das coisas. Essa ideia antecipa para mim o encontro da fome e do alimento. Sinto neste momento um intenso prazer estético. Minha fome é como um ódio. Quando a fome passa, quando caminhamos em silêncio pela avenida de volta ao trabalho, minha cabeça parece outra. Começo a achar bonitos os joelhos mecânicos que nunca vi. Imagino algo entre prateado e azul, muito limpos, frios como as carpas, mas sem as manchas vermelhas. E me sinto bem quando atravesso a porta de vidro e percebo a brisa do ar condicionado na temperatura exata. O gosto do almoço é um excesso discreto, um vestígio na boca. Espero uns instantes na minha mesa, pesado, apenas respirando, antes de escovar os dentes. Tony Monti é doutor em literatura brasileira e autor de eXato acidente (contos, 2008) e o Menino da rosa (contos, 2007). Em 2011 participou da coletânea Geração zero zero: fricções em rede. Escreve regularmente em seu blog pessoal www.tonymonti.wordpress.com PESQUISA FAPESP 190 | 89


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