Menu - Histórias de Restaurantes Antigos de São Paulo

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Trabalho de Conclusão de Curso Disciplina: Projetos Experimentais I e II Curso: Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo

aluna

Paula Cabral Gomes orientador editorial

Marcos Cripa

diagramação

orientador gráfico

Max Fischer Paula Cabral Gomes

Valdir Mengardo

arte e capa

Rafael Mendonça

revisão

Eliane Robert Moraes Mônica Ramos

desenhos

Priscila Menegasso fotos

Paula Cabral Gomes

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 2009

GOMES, Paula Cabral; Menu – Histórias de Restaurantes Antigos de São Paulo; São Paulo, SP: 2009.


“Diz-me o que comes, dir-te-ei quem és” Brillat-Savarin “Keep on with the force Don’t stop ‘til get enough” Michael Jackson “É uma desculpa para falar sobre São Paulo” Paula Cabral Gomes



Cardápio Entradas Mapa Apresentação Pratos principais Capítulo I – História Capítulo II – Carlino Capítulo III – Capuano Capítulo IV – Castelões Capítulo V – Freddy Capítulo VI – Itamarati Capítulo VII – Brasserie Victória Capítulo VIII – Windhuk Capítulo IX – Acrópolis Capítulo X – Hinodê

R$ R$

6,00 9,00

R$ 12,00 R$ 40,00 R$ 50,00 R$ 60,00 R$ 70,00 R$ 78,00 R$ 88,00 R$ 98,00 R$ 110,00 R$ 120,00

Sobremesas Considerações finais

R$ 131,00

Bebidas Bibliografia

R$ 133,00

Café Agradecimentos

R$ 137,00


8.1

1.2 1.3

1.1 4.1

6.1

5

2.2 2.1

9 8.2

4.3

4.2 6.2

7.2 7.1

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Mapa

restaurantes e endereços CARLINO Primeiro 1.1 Avenida São João - Largo do Paissandu Segundo 1.2 Avenida Doutor Vieira de Carvalho, 141 Atual 1.3 Rua Epitácio Pessoa, 85

CAPUANO Primeiro 2.1 Rua Major Diogo, 263 Atual 2.2 Rua Conselheiro Carrão, 416

CASTELÕES 3 Rua Jairo Góis, 126

FREDDY Primeiro 4.1 Rua Conselheiro Crispiniano Segundo 4.2 Praça Dom Gastão Liberal Pinto, 111 Atual 4.3 Rua Pedroso Alvarenga,1170

ITAMARATI 5 Rua José Bonifácio, 270

BRASSERIE VICTÓRIA Primeiro 6.1 Rua 25 de Março Atual 6.2 Avenida Juscelino Kubitschek, 545

WINDHUK Primeiro 7.1 Avenida Ibirapuera Atual 7.2 Alameda Arapanés, 1400

ACRÓPOLIS 8.1 Rua da Graça, 364 Filial 8.2 Rua Haddock Lobo, 885

HINODÊ 9 Rua Tomás Gonzaga, 62 Primeiro Segundo Filial Atual

não existe mais não existe mais existe atualmente endereço atual


C


C

Apresentação

om o passar dos anos e a evolução do ser humano, comer deixou de ser apenas uma necessidade para se tornar um prazer, uma arte e uma diversão. Para satisfazer um público exigente, no século XVIII, na França, surgiram os primeiros restaurantes, frutos da urbanização e do aparecimento de um espaço público burguês. Um extenso caminho cheio de mudanças foi traçado por esses novos estabelecimentos até os dias de hoje e, por meio deles, conseguimos contar a história de um país e de uma cidade. Foi o que me propus a fazer com os restaurantes de São Paulo e os resultados foram reveladores e inesperados. Cada um dos restaurantes carrega consigo a história da formação da cidade e da sociedade paulistana, de imigrantes que vieram para o Brasil em busca de uma vida melhor, de estudantes e amigos que se encontravam quase todos os dias no mesmo lugar e que, agora, sentem saudades de um tempo que não volta mais. Histórias de vida felizes, tristes, emocionantes e engraçadas. As casas tradicionais escolhidas foram Carlino, Capuano, Castelões, Freddy, Itamarati, Brasserie Victória, Windhuk, Acrópolis e Hinodê. Nem todas são as mais antigas de São Paulo, a não ser as três primeiras, porém as escolhi porque cada um representa uma nacionalidade que influenciou de forma significante nossa cultura e, consequentemente, nossa cozinha. Elas foram abertas por imigrantes italianos, franceses, libaneses, alemães, gregos e japoneses. Infelizmente o Don Curro (espanhol) e o Presidente (português) não entraram no trabalho, ambos por eu não conseguir falar com seus donos. Para chegar até a história de cada um dos estabelecimentos eleitos, fui atrás da origem do restaurante no mundo e do caminho feito pela humanidade até transformar o comer em prazer. Foi importante também verificar como cada povo se alimentava, inclusive os indígenas, que nos influenciaram bastante com a utilização de raízes, legumes e muitas frutas. A vinda da família real para o Brasil foi determinante para o desenvolvimento


APRESENTAÇÃO

do país e de suas cidades. A partir do final do século XIX, com as lavouras de café, a construção de ferrovias e a vinda de imigrantes, São Paulo cresceu e surgiram os primeiros restaurantes e cantinas. A urbanização que tanto progresso trouxe, também fez com que as casas tradicionais passassem por dificuldades devido à grande transformação e ao declínio do Centro, região onde a maioria está localizada. Além disso, o fast food e o self-service tornaram-se grandes vilões, por modificarem as exigências de boa parte da clientela. Alguns resistiram, mudaram de bairro, mas outros foram obrigados a cerrar as portas. Porém, ficou claro para mim que os restaurantes que ainda lutam para continuar funcionando possuem grandes figuras no comando, assim como famílias dedicadas às tradições e à qualidade. Gostei bastante de fazer esse trabalho e sinto que não devo parar por aqui, mas seguir e tentar registrar o máximo de histórias que estão por aí, prontas para serem contadas com carinho e atenção.

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CAPÍTULO I

História do restaurante no mundo,

no Brasil e em São Paulo Hic sapidè titillant juscula blanda palatum, Hic datur effaetis pectoribusque salus. (Aqui estão molhos saborosos para estimular seu paladar delicado, Aqui, pessoas debilitadas encontram peitos saudáveis.) Mathurin Roze de Chantoiseau

Definição da palavra restaurante: Datação: 1844 cf. AGC; Acepções: adjetivo de dois gêneros - m.q. restaurativo; Etimologia: lat. restaurans, antis part.pres. de restauráre 'reparar, consertar, renovar, restaurar'; ver restaur-; f.hist. 1858 restáurànte (Houaiss) restaurante1: res.tau.ran.te1 – adj m+f (de restaurar) Que restaura. sm Aquilo que restaura. restaurante2: res.tau.ran.te2 – sm (fr restaurant) Casa onde se servem refeições ao público, mediante pagamento. (Michaelis)


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CAPÍTULO I

palavra restaurante já está muito bem assimilada atualmente e é difícil imaginar uma cidade sem um estabelecimento onde se pode comemorar datas importantes com amigos e família, marcar encontros românticos, reuniões de empresa, ou, simplesmente, matar a fome. Mais que um lugar para se alimentar, o restaurante é símbolo do desenvolvimento e da urbanização, do surgimento da burguesia que queria mostrar sua existência para seus iguais. Além disso, seus salões repletos de mesas e cadeiras também foram importantes palcos de discussões políticas e sociais, que deram origem a movimentos que mudaram o rumo da história mundial. Não há nada melhor que perceber os rumos tomados pela história para compreender como, onde e por que surgiram os restaurantes e o que significam para as cidades onde se situam.

Para Brillat-Savarin, a gastronomia “é o conhecimento fundamentado de tudo o que se refere ao homem, na medida em que ele se alimenta”, além de ter como objetivo “zelar pela conservação dos homens, por meio da melhor alimentação possível”

OS PRIMÓRDIOS DA GASTRONOMIA Alimentar-se é algo natural à humanidade, uma questão de sobrevivência. Com o passar do tempo, foram criadas formas de melhor se aproveitar cada alimento oferecido pela natureza, surgindo, assim, novos métodos de conservação, armazenamento e preparo. Gastronomia vem do grego gaster (ventre, estômago) e nomo (lei), termo criado pelo poeta e viajante Arquestratus, no século IV a.C. A palavra voltou à tona e o conceito se expandiu no século XVIII graças ao francês Jean Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826) — advogado, político, gastrônomo, epicurista e autor do livro A Fisiologia do Gosto (1825). 14


HISTÓRIA

Para ele, a gastronomia “é o conhecimento fundamentado de tudo o que se refere ao homem, na medida em que ele se alimenta”, além de ter como objetivo “zelar pela conservação dos homens, por meio da melhor alimentação possível”. O escritor francês classifica a gastronomia como uma ciência que, assim como todas as outras, é filha do tempo e se forma insensivelmente, primeiro pela acumulação dos métodos indicados pela experiência, mais tarde pela descoberta dos princípios que se deduzem da combinação desses métodos. Para Brillat-Savarin, “[a culinária] é também de todas as artes a que nos prestou o serviço mais importante para a vida civil; pois foram as necessidades da culinária que nos ensinaram a usar o fogo, e foi utilizando o fogo que o homem dominou a natureza” 1. Pré-História De nômades, os homens passaram a ser sedentários. Viraram caçadores, agricultores e criadores de animais. Após desenvolverem técnicas de plantio eficientes, surgiu o excedente de produção que era trocado por outras coisas necessárias e, em seguida, comercializado. Assim ocorreu a evolução da sociedade até culminar na formação das cidades. O fogo foi o primeiro elemento que modificou profundamente a vida do homem. Com ele foi possível começar a cozinhar e a secar a carne, para que não precisasse consumi-la toda de uma vez a fim de que não estragasse. Também aprendeu a prepará-la de formas diferentes para que ficasse com sabor mais agradável, ajudando a desenvolver o paladar humano. A carne era assada sobre as brasas e, para não ficar cheia de cinzas, colocaram-na em espetos. No período Neolítico, pelo fato de o planeta ficar com temperaturas mais amenas e a terra mais fértil, os homens conseguiram fixar-se em apenas um lugar e aprenderam a plantar e a criar animais, tendo alimentos suficientes durante todo o ano. A divisão de trabalho entre homens e mulheres ficou mais evidente: eles cuidando da caça, pesca, criação de animais e proteção do grupo; e elas, das crianças, plantio, colheita e preparação de alimentos. Depois, técnicas de fundição de metais foram desenvolvidas, possibilitando a confecção de novas ferramentas de trabalho e armas, provocando evoluções no 1

Brillat-Savarin, 1995; página 255.

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CAPÍTULO I

plantio e, consequentemente, aumentando a produção e obtendo-se excedentes para o comércio. História Antiga Na Mesopotâmia, foram desenvolvidas receitas semelhantes às de hoje — como, por exemplo, caldos de legumes e de carne — que eram registradas em tábuas de argila. Um dos métodos utilizados era cozinhar em água fervente. Também havia pães feitos com farinha de trigo e o uso do sal, ingrediente ainda raro, era cuidadoso. Além disso, surgiram novas técnicas de conservação, entre elas a defumação de alimentos e o armazenamento em recipientes de cerâmica. Nesse período já existiam os banquetes, encontros feitos para se comunicar com os deuses ou para celebrar grandes acontecimentos, como a inauguração de um palácio ou alguma vitória. O povo egípcio possuía largo conhecimento sobre as propriedades dos alimentos e os consumiam de forma saudável. Entre os faraós e a nobreza também havia banquetes regados à música e a diversos pratos salgados e doces. Já se usava facas de bronze e utensílios de madeira ou metal para servir, mas ainda não havia talheres individuais. Eles foram os primeiros a utilizar fornos de barro, tornando-se pioneiros na padaria artística, e desenvolveram as leveduras para fermentar o pão. Também foram os primeiros a construir cervejarias, onde as pessoas se encontravam para beber e conversar. Oriente Entre as civilizações mais antigas estão a Índia e a China, com uma gastronomia rica baseada em conceitos milenares. Identifica-se grande uso de grãos (cereais, arroz, trigo), legumes, chá, entre outros produtos. Além disso, para os chineses, a comida também alimentava o espírito, além do corpo. Em cada refeição havia um cerimonial elaborado, com regras a serem seguidas. Grécia Clássica A partir do século V a.C., a cozinha grega evoluiu bastante, criando, inclusive, uma panela para cada tipo de preparo, e desenvolveu-se a função de padeiro. Por volta de 200 d.C., apareceram em Atenas os cozinheiros especializados, inicialmente escravos dos nobres. Na Grécia Clássica, também estão os precursores 16


HISTÓRIA

do maître (aquele que garante a eficiência no atendimento dos clientes) e do sommelier (encarregado dos vinhos). Brillat-Savarin conta em A Fisiologia do Gosto que os gregos davam grande importância à culinária e a ela ligaram-se as artes, as conversas e os encontros dos quais participavam, por exemplo, grandes sábios. Era em torno das mesas, com boa comida e bebida, que se cantava a amizade, o prazer e o amor, além de haver danças, jogos e divertimentos. Ao serem dominados por povos bárbaros, acabaram perdendo parte da evolução obtida na culinária. Roma Antiga Na Roma Antiga havia as tabernas, onde homens do povo e viajantes se encontravam e eram servidas bebidas e algumas refeições. Usavam utensílios de cerâmica, taças semi-esféricas ou quadradas, pratos e moringas. As funções de padeiro e cozinheiro passaram a ter mais importância. Criouse também uma hierarquia na cozinha: cozinheiro-chefe, cozinheiro-assistente, pistor (quem comprava e armazenava os ingredientes) e o provador (aquele que morria primeiro em casos de comida envenenada). “Com as Guerras Púnicas (264 – 146 a.C.) entre Cartago e Roma e a conquista da Grécia e do Egito, a região do mar Mediterrâneo foi incorporada a Roma que começou a se tornar grande potência — tanto que os romanos passaram a chamá-lo de mare nostro (nosso mar). Junto com as imensas riquezas conquistadas, vieram também tesouros culturais, e, claro, os gastronômicos. E a culinária romana tornou-se mais requintada. Mercados públicos se espalharam por todo o Império, propiciando as trocas de alimentos”2 . Lá também havia banquetes e, no auge do Império, a elite consumia pratos cada vez mais inusitados, como patas de ganso, carne de girafa e cabeças de papagaios. Além disso, comia-se demais, então criaram os vomitórios para que as pessoas pudessem voltar a se fartar. Esses eventos acabaram dando margem a revoltas populares, pois enquanto uns esbanjavam, outros passavam fome. De acordo com Dolores Freixa e Guta Chaves, “o berço da gastronomia ocidental teve suas bases constituídas no Mundo Antigo, por meio do intercâmbio entre os povos da região mediterrânea. É nesse passado tão rico quanto longínquo que está estruturado o pensamento gastronômico atual, resultado de muitas 2

FREIXA, e CHAVES, 2008; página 50.

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CAPÍTULO I

influências, inclusive das relações entre o Ocidente e o Oriente”. Para Brillat-Savarin, os romanos redescobriram os prazeres da culinária que se juntaram a outros novos quando as conquistas foram até a África, à Sicilia, à Grécia, trazendo para Roma novas receitas e produtos. Dessa forma, aos poucos, “o luxo da mesa elevou-se a um ponto quase inacreditável”. Idade Média Devido à invasão dos povos bárbaros germânicos no Mediterrâneo e à queda do Império Romano, aquilo que havia sido construído em torno dos prazeres gastronômicos, perdeu-se, e foram impostos os gostos dos novos donos do poder. Durante boa parte da Idade Média, os conhecimentos culinários, assim como a cultura, ficaram nas mãos dos sacerdotes. Com a solidificação do feudalismo, houve mudanças na cultura gastronômica. Padeiros, cozinheiros, açougueiros e charcuteiros (produtores de embutidos) uniram-se nas chamadas corporações de ofício. Nos conventos portugueses, as freiras faziam doces, principalmente com gema de ovo, muito açúcar e especiarias (cravo, noz-moscada e canela). Preparavam também pão-de-ló, fios-de-ovos, marmeladas, marzipãs, suspiros, cidras, doces ainda tradicionais em Portugal e incorporados à cultura brasileira. Não havia luxo ostentado pelos senhores feudais, porém a fartura de comida era grande. A alimentação do rico e do pobre era semelhante, exceto pelo consumo da carne, privilégio dos mais abastados. O cozinheiro retomou um posto importante no século XIII, quando se recuperou a arte do preparo de guisados e molhos. Os banquetes prosseguiam para fazer alianças, tomar decisões e firmar acordos. Não havia ordem certa para o serviço de pratos. Antes da refeição, serviam frutas secas. Em seguida, praticamente toda a comida era colocada sobre a mesa, não havia talheres nem pratos individuais e comia-se sobre uma massa de pão estendida sobre a mesa (que ao final da refeição, era dada aos pobres). No auge da Idade Média, passaram a comer sobre grandes toalhas brancas, usadas também como guardanapo. Mais para o final do período, pessoas da elite levavam sua própria faca. A sobremesa era comida de pé e, por último, coentro, erva-doce, anis e cominho eram servidos para refrescar o hálito. Os mosteiros hospedavam viajantes e peregrinos até o século XI. Já as tabernas e estalagens surgiram depois, com o reaparecimento das cidades. Nesses 18


HISTÓRIA

lugares serviam normalmente bebidas e, quando havia refeição, era algo simples. A partir do século XI, por causa do comércio, as cidades ressurgiram. Em torno do castelo, apareceram diversas atividades e núcleos de artesãos chamados burgos. Devido à grande circulação de comerciantes, foram criadas as feiras, eventos animados que duravam cerca de quatro semanas. Aqueles que possuíam a mesma função dentro da população, uniam-se em corporações de ofício, responsáveis por fixar salários e preços dos produtos, assim conseguindo maior controle sobre o que se comercializava. As confeitarias ganharam fama em 1440, com os primeiros estatutos da profissão e reconhecimento em Paris, fazendo com que os confeiteiros diversificassem mais a produção. Só no Renascimento as regras de boas maneiras e a etiqueta ganharam forma, mas no século XII já apareciam sinais de refinamento na sociedade.

A Renascença, que começou na Itália e teve o auge na maior parte dos países no século XVI, foi fundamental para a arte, a ciência, e também para os hábitos à mesa. Os renascentistas romperam com os padrões medievais e, assim, costumes, como a ostentação exagerada, passaram a ser repugnados, pois a qualidade passou a ser mais importante

O primeiro livro medieval de culinária, Le Viandier, foi escrito pelo francês Guillaume Tirel (1310-1395), conhecido como chef Taillevent. O autor escreveu sobre a renovação da cozinha, introduziu termos utilizados até hoje e foi responsável pela organização das receitas medievais do século XIV. As civilizações bizantina e árabe estavam em grande desenvolvimento e acabaram por influenciar a Europa Medieval. Constantinopla, localizado na junção do continente asiático com o europeu, era ponto de passagem obrigatório. Assim, comerciantes de vários lugares e inúmeras mercadorias transitavam por lá e, inevitavelmente, havia troca 19


CAPÍTULO I

de influências entre os povos. Os árabes retomaram o comércio de especiarias na Europa e, assim, por meio dos mouros, os europeus conheceram o açúcar. Também levaram para lá o arroz e o açafrão (ingredientes da paella) e uma bebida muito apreciada em várias partes do mundo, o café. A contribuição italiana A Renascença, que começou na Itália e teve o auge na maior parte dos países no século XVI, foi fundamental para a arte, a ciência, e também para os hábitos à mesa. Os renascentistas romperam com os padrões medievais e, assim, costumes, como a ostentação exagerada, passaram a ser repugnados, pois a qualidade passou a ser mais importante. Os banquetes deram lugar aos prazeres mais delicados de cada prato. Entre as mudanças, houve a adoção de regras de como se portar à mesa, além do uso do garfo, de aparelhos de jantar, peças em metais preciosos, toalhas bordadas e porcelanas. Por curiosidade, além de pintor, inventor e cientista, Leonardo Da Vinci (1452-1519) também era gourmet e, para acabar com um costume nada higiênico dos nobres — limpar a boca na toalha —, criou o guardanapo. Nesse período foram escritas as primeiras cartilhas com regras que deveriam ser seguidas pela corte em refeições formais. E entre as obras mais importantes sobre gastronomia publicadas na época, está De honesta voluptate et valetudine (Da honesta volúpia e do bem-estar), de 1474, escrita por Bartolomeo Sacchi (1421-1481). Nela o autor relata a importância da etiqueta, propriedades de ingredientes e uso de especiarias sem excesso. A influência italiana chegou à França por meio de Catarina de Médici, que se casou com Henrique II em 1533, e levou para Paris aparelhos de mesa com copos de cristal e tolhas, entre outras coisas, além de cozinheiros italianos e alguns costumes (pratos bem elaborados, cultivo de hortas etc.). Porém, entre os pontos mais revolucionários, está a presença feminina nos grandes banquetes. Expansão marítima Na metade do século XV, os europeus começaram a buscar novas rotas comerciais. Em 1492, os espanhóis chegaram até o continente americano. Em 1498, os portugueses alcançaram a Índia e, dois anos depois, o Brasil. O principal responsável pela expansão marítima foi o bloqueio da entrada de 20


HISTÓRIA

especiarias na Europa feito pelos turco-otomanos, que tomaram Constantinopla, além da incessante busca por riquezas. Esse contato com vários povos e culturas gerou uma troca de produtos importante para a culinária. Podemos citar batata, tomate, chocolate, milho, tabaco, frutas exóticas, raízes, cereais, café, pimenta etc. Na América colonizada pelos espanhóis, havia os maias, incas e astecas, povos com uma grande organização social e que tinham como base agrícola e produto de subsistência o milho. Encontravam-se, inclusive, tabernas onde eram servidos comida quente e um tipo de bolo de milho com feijão. Entre os principais produtos desses povos, também estava a batata, que virou base da alimentação dos franceses e dos alemães no século XVIII. No século XVI, o chocolate (da América), o café (da África) e o chá (da Ásia) entraram na Europa e tornaram-se hábito. Dois séculos depois, encontravam-se chocolaterias na Áustria e na França. A primeira cafeteria surgiu em 1457, em Istambul, e na França, em 1686, que existe até hoje. As casas de chá começaram na China, na corte do rei Tang (618-907), tornando-se depois um costume bastante inglês. A França Foi na Idade Moderna, na França, que os chefs evoluíram suas técnicas e estimularam a criatividade. Luís XIV — que reinou de 1643 a 1715 e construiu o luxuoso Palácio de Versalhes — incentivou as artes, a moda e também a gastronomia. Sobre esse período, Brillat-Savarin declarou que “a ciência dos festins segue o impulso progressivo que faz avançar todas as outras ciências”. O Rei Sol organizava grandes banquetes e dava títulos de honra àqueles que se destacavam em sua equipe. Em seu reinado, surgiu o serviço à francesa, ou seja, o serviço passou a ser dividido em três etapas e não mais se colocava tudo na mesa de uma só vez. Primeiro vinham os aperitivos e as entradas; depois era a vez dos assados, das peças frias e dos legumes; e por último, as sobremesas. O reinado de Luís XV (de 1715 a 1774) não foi menos suntuoso e os momentos de paz foram de grande valia para o desenvolvimento das artes e do plano intelectual. Ele também sofisticou mais ainda os modos à mesa e a culinária. Os primeiros menus, ricamente ilustrados e com a relação dos pratos servidos nos banquetes, surgiram em sua corte. Devido à perda de terras e endividamento do país, Luís XVI iniciou seu 21


CAPÍTULO I

reinado (1774-1793) em crise político-econômica, o que não pareceu o perturbar muito, assim como a sua esposa, Maria Antonieta, pois a nobreza ostentava riqueza, enquanto o povo passava fome. Essas extravagâncias irritaram a população, que, incentivada pela burguesia nascente, deu início à Revolução Francesa e à Queda da Bastilha em 1789. Dessa forma, os cozinheiros tiveram que abandonar os palácios para sobreviver de alguma outra forma. O século XVIII trouxe consigo inúmeras mudanças. Entre elas a substituição do fogão a lenha pelo de ferro fundido aquecido por carvão mineral e uso de açúcar nas sobremesas e guloseimas, mudando o paladar europeu. A aristocracia adotou a sala de jantar com mesas exclusivas para as refeições, utilizava grandes toalhas bordadas, candelabros de ouro ou prata e porcelanas. De acordo com Josimar Melo, crítico gastronômico do jornal Folha de S. Paulo, “a humanidade sofisticou suas necessidades, foi se tornando mais... humana. Todas as artes começaram como formas elementares de sobrevivência e foram se sofisticando, tornando-se formas de fruição estética, independente de suas origens pragmáticas. Foi o que ocorreu com a cozinha, que, de forma puramente de alimentação, tornou-se fonte de prazer tanto físico quanto estético”. ORIGEM DO RESTAURANTE As evoluções referentes à culinária não pararam e traçaram caminho até chegar ao surgimento do primeiro restaurante do mundo. Os viajantes que não tinham família ou conhecidos nos locais por onde passavam e outros em situação semelhante dependiam de estalagens, tabernas, traiteurs, casas de pasto e bares de vinhos para se alimentarem. Desses estabelecimentos, as mais antigas e representativas são as tabernas, que eram, originalmente, pequenas lojas ou oficinas destinadas ao trabalho manual, formadas por um só cômodo e feitas de tábuas (traberna, em latim). Em Roma, elas ficavam apenas à volta dos mercados centrais das cidades. Mais tarde, estabeleceram-se permanentemente como lojas que faziam parte de prédios maiores, normalmente onde viviam seus proprietários com as famílias, e passaram a ter também cômodos de aluguel. Com o caminhar dos anos, o termo passou a se referir a locais que forneciam bebidas alcoólicas e comida preparada. Com a expansão do Império Romano, havia tabernas em todas as regiões conquistadas, tornando-se, assim, parte das 22


HISTÓRIA

culturas locais e adaptando-se aos modos de vida dos diversos povos. De acordo com Siwla Helena Silva, na China houve um processo similar anteriormente, datando pelo menos da Dinastia Sung (1127-1279), antes da conquista pelos mongóis. A capital Hangchow, já apresentava, segundo relatos de viajantes ocidentais, estabelecimentos com cardápios e serviços bastante próximos do modelo de restaurante. Os traiteurs ofereciam comida pronta, podendo entregá-la também em casa ou em hotéis, e alugavam a aparelhagem de jantar, como se fosse o buffet de hoje. Muitos estabelecimentos serviam, normalmente, em table d’hôte, ou seja, as refeições eram pré-determinadas pelos hospedeiros em horas e preços fixos. A pessoa pagava pelo lugar à mesa e comia aquilo que serviam. Os mais rápidos comiam mais e não se sabia com quem se dividiria a mesa. “Uma refeição servida em uma grande mesa, sempre à mesma hora marcada, e na qual os comensais tinham pouca chance de escolher ou pedir pratos especiais, a table d’hôte não raro era um ponto de reunião regular ao meiodia para os artesãos e trabalhadores locais, velhos amigos e antigos moradores de um bairro. Uma tradição urbana, a table d’hôte oferecia uma fofoca confiável para os interessados no crescimento da vizinhança, mas podia ser um ambiente não tão aprazível para forasteiros recém-chegados.”3 O serviço em table d’hôte coexistiu com serviços mais, digamos, particularizados, ocupando, inclusive, o mesmo estabelecimento. Isso porque as regras que contavam como se portar à mesa foram assimiladas com o tempo. O café (bebida) e os cafés (estabelecimentos) já existiam na Arábia e na Pérsia no século XV e no Império Turco desde o século XVI. Os primeiros cafés franceses foram abertos em Marselha, em 1671, mais ou menos ao mesmo tempo em que começaram a aparecer em Paris. No começo eram apenas balcões ao ar livre, onde se servia a infusão recém-chegada à Europa. Com o tempo, os estabelecimentos foram se sofisticando e passaram a oferecer chá, chocolate quente, assim como novos produtos (licores, doces, chocolate, sorvetes). Esses locais, em meados do século XVIII, também foram cenários de discussões literárias e políticas que atraiam estudantes e pensadores. Algumas das características dos cafés marcariam o restaurante moderno, 3

SPANG, 2003; página 19.

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CAPÍTULO I

como os pedidos individuais em mesas separadas, contas e listas de produtos e preços fixados em cartazes. Essas casas também foram responsáveis por permitir às classes abastadas que frequentassem espaços públicos sem serem vistas como “pobres”, imagem ligada àqueles que iam às tabernas. Mas, mesmo assim, só os homens podiam visitá-las sem serem mal vistos, isso porque a presença das mulheres ainda era reservada às suas próprias casas. Segundo Siwla Helena Silva, o café foi, enfim, “um desenvolvimento precedente de extrema importância no surgimento e na aceitação do restaurante pelo público de elite. A partir das grandes mudanças econômicas e culturais na sociedade francesa do final do século XVIII, sobretudo na cidade de Paris, as peças estavam no lugar para a sua formação”4.

“Sem ser amplamente ‘público’ ou estreitamente ‘privado’, o restaurante ofereceu a oportunidade para a exibição pública de um ensimesmamento privado. A vida pública, em seu desenvolvimento no final do século XVIII, era — e continua a ser — tanto sobre a capacidade de ignorar as outras pessoas (ainda que se estivesse ciente de sua presença) quanto sobre o bem comum”

Rebecca L. Spang

Antes de tornar-se uma palavra que remete diretamente aos estabelecimentos que oferecem alimentos e bebidas a seus clientes, restaurante significava alimento ou remédio que tem a propriedade de restaurar as forças de uma pessoa doente ou esgotada. Assim, os que sabiam preparar os restaurantes ou caldos e que podiam comercializar todos os tipos de cremes, macarrão, geléias e outros pratos delicados eram chamados de restauranteurs. “Em 1765, durante o reinado de Luís XV, Boulanger, proprietário da casa 4

SILVA, 2007; página 26.

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HISTÓRIA

Poulies, em Paris, fixou na porta a seguinte inscrição: ‘Boulanger débite de restaurants divins’ (Boulanger serve caldos restauradores divinos). Ele se referia ao bouillon restaurant, caldo feito de várias carnes, além de cebolas e raízes nutritivas, que já existia desde a Idade Média em albergues e tabernas populares. (...) A ideia de Boulanger fez tanto sucesso que ele acabou criando novas receitas para sua cozinha e as apresentou sob a forma de uma lista com o preço ao lado. Surgiram o menu, ainda de forma simplificada, claro, e o conceito de restaurante” 5, como contam Dolores Freixa e Guta Chaves. O que diferenciava o serviço da table d’hôte do prestado pelo restaurante era que neste havia maior cuidado com a forma de serviço; organização profissional da cozinha; cliente com possibilidade de ser servido em uma mesa à parte, sozinho ou com acompanhantes escolhidos por ele; existência de cardápio (com produtos oferecidos e respectivos preços), que possibilita a escolha antecipada do que se deseja comer e assim poder pagar por aquilo que consome; não havia horário fixo, pois cada um tinha a necessidade de restaurar as forças quando “sentia” o cansaço. O menu impresso apareceu por volta de 1770, no mesmo período em que a palavra restaurant passou a ser utilizada para identificar os estabelecimentos que serviam os restaurants. Ele começou a ser utilizado para identificar as entradas, o prato principal e as sobremesas que compunham a refeição completa oferecida pelo anfitrião e pelo chef. E para identificar todos os pratos do restaurante usavase uma carta ou cardápio. Para o doutor em História e professor de Gastronomia da Universidade Anhembi-Morumbi, Ricardo Maranhão, “restaurante é diferente de tudo o que vem antes. Não é casa de pasto, bar, boteco. E a diferença fundamental e primordial é que tem cardápio. Cardápio é algo que tem a ver com a Modernidade, com a Contemporaneidade. O restaurante surgiu um pouco antes da Revolução Francesa, o que está ligado ao mundo contemporâneo. É um mundo do contrato social, onde tudo deve ser escrito e comunicado, nada pode ser imposto. Então o cardápio é o contrato social do restaurante. O contrato social é o nome do livro de Jean Jacque Rousseau, que fez a cabeça de todos os revolucionários do século XIX. É o livro que consagra a nova filosofia. Tudo deve ser decidido por todos e não imposto. Você tem tudo o que você pode ter e o preço por escrito”. 5

FREIXA e CHAVES, 2008; página 112.

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CAPÍTULO I

Como ser aceito na sociedade? O que diferenciava os restauranteurs dos traiteurs era uma preocupação com a saúde e bem-estar do cliente, beneficiados pelas descobertas medicinais e curiosidade culinária, preocupações da elite oitocentista. Assim surgiu a nouvelle cuisine e, de acordo com Rebecca L Spang, “a natureza precisava ser limpa para ser própria ao consumo humano; a arte culinária, ao aprimorar as matérias-primas da dieta humana, poderia fazer a humanidade progredir além de suas origens selvagens”. Também havia grande cuidado com os ambientes dos restaurantes. Os salões deveriam ser delicadamente decorados de forma elegante e bem iluminados. Além disso, os pratos eram servidos em porcelana frágil. Com o passar dos anos, os restauranteurs acrescentaram carne, peixe e vegetais aos cardápios para ampliar a clientela. Como o serviço era voltado para os “fracos do peito”, também havia a presença feminina sem o preconceito que existia antes. Porém isso não agradou aos outros comerciantes. Então, nas décadas de 1770 e 1780, uma série de ordens policiais tentaram limitar o horário de funcionamento dos restaurantes, levando seus donos a apelarem ao Parlamento de Paris. Os decretos da polícia parisiense igualavam os restauranteurs a outros comerciantes de alimentos e vinhos, que eram obrigados a fechar às onze horas da noite no verão e às dez no inverno. Essa medida foi tomada como insulto pelos donos dos restaurantes que queriam se diferenciar de cabarés e casas de pasto de qualquer maneira, então eles se organizaram para apelar da decisão do Parlamento. A argumentação baseava-se principalmente no público alvo dos restaurantes, aqueles considerados com saúde fraca que precisavam consumir caldos fortificantes a qualquer momento, quando o corpo pedisse, que faziam parte da alta sociedade, ou seja, um público que não se comparava ao de cabarés. Por fim, em 1786, o Parlamento aceitou os argumentos dos advogados e os restauranteurs foram autorizados a permanecerem com portas abertas até a meia-noite. Cerca de duas décadas depois, o restaurante passou a servir outros alimentos, não tendo apenas como público alvo os “fracos do peito”, mas sim todos aqueles que queriam se alimentar de forma saudável. Esse tipo de estabelecimento existia a pelo menos trinta anos antes da Revolução Francesa, porém se popularizou apenas durante os cinco últimos do século XVIII. 26


HISTÓRIA

Espaço público e burguesia Para compreender o surgimento do restaurante deve-se compreender o que é esfera pública e como as pessoas agem dentro dela. Jürgen Habermas, de acordo com Rebecca L. Spang, identificou o desenvolvimento de uma esfera pública burguesa, locais onde indivíduos de meios socioeconômicos diversos se encontravam; onde pessoas pensavam e se comportavam de forma diferente com relação ao que faziam no mercado da praça, na igreja ou na corte. Havia maior individualidade, mesmo estando-se num lugar público. “Sem ser amplamente ‘público’ ou estreitamente ‘privado’, o restaurante ofereceu a oportunidade para a exibição pública de um ensimesmamento privado. A vida pública, em seu desenvolvimento no final do século XVIII, era — e continua a ser — tanto sobre a capacidade de ignorar as outras pessoas (ainda que se estivesse ciente de sua presença) quanto sobre o bem comum.”6 O restaurante individualizava cada um socialmente, ao contrário da table d’hôte e do café, ambientes que “forçavam” uma certa interação entre as pessoas. Para que todos pudessem ver todos dentro do salão dos restaurantes, eram colocados espelhos nas paredes para evitar olhares diretos. Mas, assim como havia pessoas que faziam questão de serem expostas, outros preferiam se divertir nas cabines particulares, que eram vistas como uma ameaça para a moralidade pública, porém eram protegidas pela lei. Os restaurantes foram aceitos e procurados pela sociedade quando os nobres e a alta burguesia os viram como uma forma saudável e desejável de se alimentar. No início do século XIX, esse tipo de estabelecimento chamava a atenção dos turistas, principalmente de americanos e ingleses. “Um mundo estranho e ao mesmo tempo confuso, embrulhado nas regras e no vocabulário impenetráveis da gastronomia, um espaço público aberto e disponível, um pouco da vida ‘cotidiana’ francesa à qual os visitantes tinham fácil acesso, os restaurantes eram a mistura perfeita do conhecido e do exótico, o íntimo e o extrínseco.”7 Uma das coisas que mais impressionava nos restaurantes era o cardápio, com sua caligrafia ornamentada e capa de couro com molduras de madeira. O “francês do cardápio” era algo único. Não importava o grau de estudo do cliente, 6 7

SPANG, 2003; página 110. idem; página 214.

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CAPÍTULO I

era sempre complicado compreender direito o que era servido. O responsável por diferenciar um estabelecimento do outro era juntamente o cardápio, com tipografias diferentes. Os primeiros impressos pareciam jornais, já os que vieram em seguida lembravam produções literárias da época. Em 1820, o restaurante, como conhecemos hoje, tornou-se uma verdadeira instituição cultural. Por muito tempo essas casas permaneceram como um fenômeno exclusivamente parisiense, situado em pouquíssimos lugares fora da capital francesa e sendo visto como atração peculiar de notáveis da cidade. MUNDO A culinária francesa atingiu seu ápice no século XIX com a multiplicação das redes de hotéis na Europa. Nessa época também surgiram os críticos, escritores e ensaístas gastronômicos da história (entre eles Brillat-Savarin). No final daquele século já havia cerca de 1.500 restaurantes e mais de 20 mil cafés e cervejarias em Paris. Um dos principais chefs franceses foi Auguste Escoffier (1846-1935), responsável pela divisão do trabalho na cozinha em cinco funções como se usa até hoje: garde-manger (pratos frios e suprimentos da cozinha), entremettier (legumes, sopas e sobremesas), rôtisseur (assados, grelhados e fritos), saucier (molhos e fundos de base) e pâtissier (confeitaria). As famílias ricas tiravam férias em hotéis luxuosos e várias partes da Europa e para coordenar as cozinhas desses locais eram contratados grandes chefs franceses. Dessa forma, a culinária francesa se espalhou inicialmente pelo continente e, para agradar os clientes das regiões em que trabalhavam, acrescentavam ao cardápio pratos locais, formando o “cardápio internacional dos hotéis” e uma “cozinha internacional”. As novas tecnologias do século XX também revolucionaram a culinária, criando novas formas de conservação e preparação de alimentos. Mas o que mudou o costume da sociedade foi o advento das leis trabalhistas, que deram direito ao descanso semanal, redução da jornada de trabalho e férias remuneradas. Assim, o lazer entrou na vida dos trabalhadores que então podiam viajar e, além de conhecer novos lugares, experimentar novos pratos. O turismo cresceu e com ele, o turismo ligado à gastronomia. O primeiro guia gastronômico foi lançado em 1900, por André Michelin, 28


HISTÓRIA

o fabricante de pneus. Nele havia endereços dos melhores hotéis, restaurantes, postos de gasolina e oficinas mecânicas. Era uma forma de incentivar o uso do automóvel e, consequentemente, o gasto de pneus. A partir de 1933 começou a classificação dos estabelecimentos por estrelas (máximo de três). A versão brasileira dessa publicação é o Guia Quatro Rodas Brasil, da Editora Abril. Também foi na França, mais especificamente em Paris, que surgiu a considerada melhor escola de culinária do mundo, Le Cordon Bleu. Foi criada pela jornalista Marthe Distel que lançou, em 1895, uma revista semanal para mulheres com o nome La Cuisinière Cordon Bleu, com artigos e receitas. O sucesso foi tão grande que ela resolveu organizar cursos abertos. Já nos Estados Unidos, com a entrada da mulher no mercado de trabalho, ficou cada vez mais difícil fazer as refeições em casa, fazendo com que o número de restaurantes populares e lanchonetes aumentasse. Então criaram o fast food e o self-service. A reação européia veio através da nouvelle cuisine (que surgiu na França, inspirada na cozinha oriental, e tem como algumas características a redução dos menus em prol da qualidade máxima e o emprego do cozimento a vapor) e da slow food (que surgiu na Itália como resposta à fast food, defendendo a preservação dos sabores dos alimentos). E a influência de uma cultura sobre a outra não parou e não para, possibilitando, assim, o aparecimento de novos pratos e o contato com ingredientes diferenciados a cada dia. BRASIL Quando os portugueses chegaram ao Brasil em 1500 encontraram aqui populações indígenas que conheciam grande número de alimentos, principalmente frutas e raízes. Os colonizadores também trouxeram de sua terra alguns produtos e assim começou o intercâmbio cultural e gastronômico. No século XVII, vieram africanos para trabalhar como escravos nas plantações de cana-de-açúcar e, junto com eles, o azeite-de-dendê, o coco e uma cultura riquíssima. No século XVIII, exploraram as regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do país atrás de minas de ouro e outros metais preciosos. Dessa forma houve o povoamento dessas áreas e o surgimento dos tropeiros que levavam mantimentos de um local para outro. Com D. João VI e a corte portuguesa, veio para cá o refinamento da culinária 29


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francesa. No século XIX, imigrantes europeus vieram trabalhar nas lavouras de café, devido à abolição da escravatura e às guerras. Italianos, alemães e árabes, entre outros, trouxeram seus hábitos e técnicas de alimentação. O desenvolvimento do século XX possibilitou a criação dos restaurantes a necessidade de profissionais da área. Primeiras influências As populações que habitavam nosso país viviam da pesca, caça e coleta e tinham grande conhecimento sobre as ervas medicinais. Não havia horário fixo das refeições, comia-se quando se tinha fome. A mandioca era a base da alimentação e com ela produziam farinha, goma (polvilho), tapioca, beiju e caldo quente. Também aproveitavam bastante o milho, o qual comiam assado ou usavam para preparar mingau. A diversidade de frutas era imensa: goiaba, abacaxi, cajá, araçá, maracujá, mamão, pitomba, umbu, caju, banana etc. Adoravam pimentas, que eram servidas cruas ou secas, piladas com farinha de mandioca. Os portugueses trouxeram alguns costumes como refogar com cebola e alho, a fritura (desconhecida dos índios e africanos), especialidades como cozidos, empanados, caldos, bolos, pastéis doces e salgados. A contribuição africana também foi imensa. Dois dos ingredientes mais significativos são o azeite-de-dendê (colocado na moqueca, no vatapá, no acarajé) e o coco (utilizado para fazer doces, como cuscuz, mungunzá, canjica). Também trouxeram quiabo, inhame, galinha-d’angola e banana (nanica, maçã, prata e ouro). Cana-de-açúcar A casa-grande pode ser considerada símbolo dessa mistura inicial de receitas e ingredientes que ocorreu no Brasil. As receitas eram das sinhás, mas tiveram que ser adaptadas usando os ingredientes disponíveis aqui e eram feitas pelas escravas. Pela manhã os escravos comiam uma mistura de melaço da cana com farinha de mandioca ou de milho. Depois era servido um cozido feito com farinha de mandioca, carne, abóbora e, às vezes, feijão-preto e toucinho. Com o que sobrava faziam um pirão e colocavam pimenta. Como suco, tomavam garapa e a pinga compensava o trabalho árduo do dia e a fome. Recebiam duas doses por 30


HISTÓRIA

dia, uma antes de trabalhar e outra ao deitar-se. Como em Portugal, os brasileiros também se acostumaram a usar muito açúcar e ovos nas confeitarias, o que deu origem ao pão-de-ló, sonhos, bolos, ambrosias e bolo de rolo (uma espécie de rocambole). Bandeirantes No final do século XVII, Minas Gerais recebeu milhares de pessoas vindas de várias partes do país atraídas pelas jazidas de ouro. Dessa forma, as áreas próximas às minas ficaram lotadas e surgiram problemas de abastecimento de alimentos, roupas, ferramentas e outras coisas. Para suprir essas faltas, os tropeiros, vindos do Rio Grande Sul, levavam mantimentos em mulas para a região. Esse deslocamento integrou os Pampas à região em desenvolvimento. Os tropeiros preparavam a comida em tripés de ferro e um caldeirão. Nele refogavam alho e gordura, colocavam sal, farinha de milho, ovos e feijão-preto. Com o feijão também faziam o virado à paulista ou o tutu à mineira que consistia no feijão amassado, misturado com farinha de mandioca ou milho, acompanhado de costelinha de porco, linguiça, torresmo, arroz e couve refogada. Os filhos daqueles que enriqueceram iam para a Europa estudar e de lá voltavam com novas ideias, traziam toalhas, louças finas, talheres de metais preciosos. Com o declínio da mineração, iniciou-se a criação de gado, no final do século XVIII. A partir daí surgiram alimentos como queijo caseiro, vaca atolada, pão de queijo, doce de leite. Pecuária O Sul do país foi ocupado por causa da pecuária. Quando os colonizadores chegaram à região, os índios já tinham o costume de tomar mate e assar carne. Depois passaram a produzir também carne de charque, salgada e seca. Os costumes do vaqueiro gaúcho são herança da mistura do indígena com o português ou espanhol. Império Junto com a família real, vieram mudanças significativas que transformaram bastante os costumes dos que aqui moravam. A abertura dos portos fez com que entrassem produtos de várias partes do mundo, principalmente da Europa. 31


CAPÍTULO I

A mistura dos ingredientes daqui com os que chegavam deram origem a mais pratos e combinações que se tornariam base da alimentação do brasileiro, como é o caso do arroz com feijão. “Com a demanda de produtos e o crescimento populacional, apareceram diferentes estabelecimentos na cidade, cujos proprietários eram na maioria portugueses. Padarias, armazéns de secos e molhados, botequins e as chamadas ‘casas de pasto’ constituíram esse comércio. Algumas das ‘casas de pasto’ tinham hospedaria para os viajantes e serviam um pequeno cardápio que poderia ser uma sopa, um cozido, uma carne, uma sobremesa como pudim e uma garrafa de vinho.”8 A corte adorava os requintes da cultura francesa, chegando a escrever nos cardápios os nomes dos pratos servidos em francês. O primeiro livro escrito e publicado no Brasil foi O cozinheiro imperial, de 1840, com receitas portuguesas, influência francesa e ênfase sobre a cozinha nacional. Café e imigração Com a riqueza obtida com as plantações de café, surgiram os barões, as estradas de ferro, vieram milhares de imigrantes europeus, e a cidade se desenvolveu rapidamente. Os italianos, nacionalidade da maioria dos imigrantes que desembarcou no porto de Santos, foram para as lavouras. Mas parte deles veio para São Paulo e abriu cantinas, onde jogavam e comiam pães, antepastos, salames, macarronada, pizzas e outros pratos. Também vieram para o Brasil os árabes sírio-libaneses, trazendo, entre outras coisas, esfihas, kibes, charutos de repolho e folha de uva, doces folhados, damasco e hortelã; os alemães com a cerveja e o chucrute; os espanhóis com a paella; os gregos com a moussaká; os húngaros com o goulash; os japoneses com os sushis e sashimis; além de vários outros povos. Um país modificado No final do século XIX, o Brasil já estava bem diferente, com iluminação a gás e elétrica. Lojas luxuosas, teatros, casas de chá, confeitarias e hotéis eram encontrados nas cidades mais ricas, entre elas Rio de Janeiro, São Paulo e Belém. 8

FREIXA e CHAVES, 2008; página 196.

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HISTÓRIA

Como os brasileiros ricos viajavam à Europa, traziam de lá muitas referências, principalmente da França. Um dos hábitos “importados” foi a aceitação de que as mulheres frequentasse confeitarias ou casas de chás sem serem mal vistas. O parque industrial foi implantado mais rapidamente com a Proclamação da República e aumentou o número de pessoas nos centros urbanos. Nas grandes cidades surgiu uma classe trabalhadora e uma classe média que ampliaram o mercado consumidor.

“Com a demanda de produtos e o crescimento populacional, apareceram diferentes estabelecimentos na cidade, cujos proprietários eram na maioria portugueses. Padarias, armazéns de secos e molhados, botequins e as chamadas ‘casas de pasto’ constituíram esse comércio”

Dolores Freixa e Guta Chaves

Até o começo do século XIX, só havia hospedarias e estalagens de caráter familiar e serviço informal. No Rio de Janeiro, na década de 1830, existia algo que se assemelhava a um serviço de hotel, mas apenas voltado para forasteiros nacionais e internacionais. A partir de metade do século XIX, em São Paulo e no Rio surgiram os primeiros hotéis com restaurantes de cozinha francesa e serviço à la carte. Por ser a capital brasileira, o Rio de Janeiro era o lugar mais elegante do país. Lá está até hoje a Confeitaria Colombo, inaugurada em 1894, com seus espelhos belgas, bancadas em mármore italiano, molduras e vitrines de jacarandá. A culinária internacional do Copacabana Palace também chamou muita atenção. O país não parou de se transformar e, na década de 1960, com a emancipação feminina, mais mudanças fundamentais ocorreram. Como a mulher passou a trabalhar fora de casa, nem sempre tinha tempo para preparar a comida, e então surgiram os pratos semi-prontos, congelados e as entregas em domicílio, além das lanchonetes que ofereciam fast food. A primeira desse tipo a se instalar 33


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no Brasil foi o Bob’s, aberto em 1952, em Copacabana, no Rio de Janeiro. A partir de 1979, os hotéis luxuosos passaram a contratar chefs franceses para suas cozinhas. Além de trazerem seus ingredientes e receitas, introduziram os produtos encontrados no Brasil. Dessa forma, eles iniciaram a nova gastronomia brasileira. Com o passar dos anos, o interesse pela área aumentou e, em 1989, foi criado o primeiro curso universitário de gastronomia, pela Universidade AnhembiMorumbi, em São Paulo. O país ainda se encontra em constante mudança, o que não dá certeza alguma de que os restaurantes que lutam pela sobrevivência permaneçam vivos. Porém não deixa de ser importante registrar as histórias desses lugares e, assim, ter uma cobertura histórica de casa fase pela qual o Brasil passou. Os restaurantes, afinal, são puro reflexo da sociedade. SÃO PAULO São Paulo é a maior cidade do país, a 14º mais globalizada do planeta e um grande centro comercial, cultural e gastronômico. Numa área de 1.509 km², vivem cerca de 11.188.646 habitantes. Na capital paulista, há 80 shoppings centers, 30 mil taxis, mais de 5,5 milhões de carros circulando, mais de 240 mil estabelecimentos, cerca de 120 teatros e casas de show, 71 museus, 11 centros culturais, 888 feiras livres por semana, 169 mil orelhões, o maior aeroporto da América Latina (Cumbica), a maior parada GLBT do mundo, 15 mil bares, 12.500 restaurantes de 52 tipos ou etnias diferentes, mais de 5 mil pizzarias que produzem mais de um milhão de pizzas por dia e diversas casas de culinária japonesa que fazem 16.800 sushis por hora. Na última década, o número de cursos ligados à gastronomia aumentou significantemente no Brasil. No período de 2000/2001, havia apenas três cursos de graduação na área, número que em 2008 foi para 51 autorizados pelo MEC, 25 deles na Região Sudeste. Hoje pólo cultural, São Paulo só começou a se desenvolver na segunda metade do século XIX, pois até então era um simples vilarejo pobre. O primeiro lugar aberto na cidade para alimentar e abrigar viajantes foi uma casa de pasto, onde era servido torresmo, bijus de tapioca, carne assada e feijão mulatinho com farinha e podia-se descansar. 34


HISTÓRIA

Em 1827, com a inauguração da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, as coisas começaram a mudar, pois os alunos, geralmente filhos de famílias ricas e proprietárias de terras, precisavam de lugares para se divertir, comer e conversar com os colegas. Os únicos estabelecimentos disponíveis eram algumas poucas tavernas e o Café da “Maria Punga” (Maria Emília Vieira) que servia café, bolinhos de tapioca, de fubá, broinhas de polvilho e outros quitutes. Devido à expansão das lavouras de café e à construção das ferrovias — e, consequentemente, outras evoluções —, mais pessoas precisavam de lugares para fazer as refeições e passar um tempo agradável. Então em 1850, surgiram os primeiros estabelecimentos que podiam ser chamados de restaurantes. Entre eles o Restaurante Popular, o Balneário, o de Bragança, o de Gandolfo Nicola, o Sereia Paulista, o Stadt Bern e o restaurante francês da Viúva Roge. Os mais famosos eram os de hotéis, como o Hotel de France et Restaurant, Hotel da Europa e Hotel de França. “Foi assim que surgiram os restaurantes com as mesmas características dos primeiros estabelecimentos franceses do século XVIII: um local que oferecia vários pratos escolhidos à la carte pelo freguês, com preço fixo, pago no final da refeição”, como afirmam Dolores Freixa e Guta Chaves. Para um café da tarde, os estudantes iam até casas de doceiras, como a de Nhá Umbelina, em frente à Faculdade, onde consumiam chocolate, mingau, pastéis, refrescos e doces. Depois de formados, passaram a frequentar confeitarias como a do Alemão, a Cordes e a Vienense, que surgiu no início do século XX. De acordo com Ricardo Maranhão os restaurantes são produtos característicos da urbanização. Ele aponta que “na sociedade tradicional, não se comia fora de casa. Quem fazia isso era mal visto, por exemplo. Porque se pensava assim: Se não é estrangeiro, não é viajante, por que come fora de casa? Porque não tem comida boa! Além disso, vai comer algo feito por uma pessoa desconhecida? As pessoas também pensavam que mulher que comia fora era prostituta. A presença de pessoas em trânsito é que começam a caracterizar um mercado de restaurante”. Nas primeiras décadas do século XX, São Paulo teve um processo de urbanização rápido e passou a ter bondes, iluminação pública, lojas, cinemas, teatros, restaurantes e bares. Os italianos dominaram o mercado de restaurantes nas década de 20 e 30 e assim surgiram estabelecimentos como Carlino, Capuano, Castelões, Spadoni, Telêmaco, Palhaço, Brasserie Ferrari, Gigetto, Brasserie Paulista 35


CAPÍTULO I

(da família Fasano), Franciscano e Roperto. Várias outras cantinas foram abertas, principalmente nos bairros ocupados pelos imigrantes, como o Brás e o Bixiga. Os franceses também abriram suas casas com todo o requinte característico. Entre eles está o Freddy, La Poppote, Le Logis, La Paillotte, La Casserole e o Marcel. Até aqui se pode notar duas vertentes: uma que deu origem aos restaurantes franceses e aos cafés, procurada pelos barões do café e por pessoas ricas; e outra mais voltada para o trabalhador braçal e para a classe média.

“Na sociedade tradicional não se comia fora de casa. Quem fazia isso era mal visto, por exemplo. Porque se pensava assim: Se não é estrangeiro, não é viajante, por que come fora de casa? Porque não tem comida boa! Além disso, vai comer algo feito por uma pessoa desconhecida? As pessoas também pensavam que mulher que comia fora era prostituta. A presença de pessoas em trânsito é que começam a caracterizar um mercado de restaurante”

Ricardo Maranhão

Muitos trabalhadores não conseguiam voltar para casa para almoçar ou então levar comida pronta, então precisavam de estabelecimentos que servissem comida boa, em grande quantidade e com preço baixo. Para essas pessoas, havia as cantinas em bairros com grande concentração de operários, como o Brás e a Moóca. No começo elas serviam apenas essas pessoas, mas com o tempo passam a atender também uma demanda de final de semana e de noite. “Originalmente a palavra cantina, na Itália, significa lugar de vender vinho. Lá ainda há lugares que são assim. Nelas é servido vindo e para a pessoa tirar o gosto de um para experimentar o outro, tem sempre um provolone ou um salame preso no teto para se cortar um pedaço. Nas cantinas do Brás as pessoas levavam comida para comer com o vinho. Então a classe média paulistana descobriu esses lucais e começou a ir atrás. A mais antiga é a Capuano, que é dessa época, uma 36


HISTÓRIA

das únicas que conseguiu sobreviver”, explica Ricardo Maranhão. Em 1922, foi inaugurado o Ponto Chic, com pratos e sanduíches especiais servidos em grandes balcões e mesas pelo salão. Foi lá que surgiu o famoso lanche conhecido como bauru — pão francês com queijo derretido, fatias de rosbife e tomate —, sanduíche que recebeu esse nome por sempre ser pedido pelo radialista Casimiro Pinto Neto, apelidado de Bauru por ser da cidade homônima, no interior de São Paulo. Após o término da Segunda Guerra Mundial, a cidade não parou de crescer e de exigir novos estabelecimentos. Por isso mais restaurantes abriram: Jardim de Napoli, Cacciatore, Venite, Cantina Speranza e o Ca d’Oro. Mas além da cozinha italiana, outros imigrantes nos proporcionaram pratos diferenciados. A explosão mesmo do restaurante foi com a grande industrialização dos anos 50. São Paulo não podia parar, havia um crescimento alto e eram feitas exportações em alta escala. Segundo o professor de gastronomia, foi neste período que se consolidaram os restaurantes populares para o trabalhador de baixa renda. Alguns deles eram de muito boa qualidade. Havia um padrão de higiene, os balcões eram de mármore, serviam salada e salsicha boa. Foi assim que surgiu o PF (prato feito). Então a classe média, grande fenômeno da pós-industrialização, passou a ser grande frequentadora desses locais. Como exemplo tem o Salada Paulista, o Papai, o Restaurante Giratório, cantinas como o La Tavola, Don Giovanni, e casas de massas como O Gato que Ri e o Giggio. Outra vertente importante foi a dos imigrantes alemães que ocuparam inicialmente a região de Santo Amaro, indo para Moema nas décadas de 50 e 60. Entre os restaurantes da cozinha tradicional alemãs estavam Dona Ana, Windhuk e Urso Branco. Entre os de cozinha árabe está a Brasserie Victória, o Almanara e a Casa Garebed; espanhóis: La Coruña e Don Curro; suíço: Caverna Bugre; grego: Acrópolis; chinês: China Massas Caseiras. A vertente mais recente é a dos restaurantes japoneses, do final dos anos 60, início dos 70. Existiam as casas que eram só para japoneses e não abriam para o público brasileiro — inclusive não falavam português. Os dois que começaram a ser frequentados por brasileiros foram o Hinodê e o Tanji. Infelizmente nem todos sobreviveram às mudanças, que se por um lado ajudaram a cidade a crescer, por outro também a fizeram perder grandes casas com boa comida e muita história para contar. 37


CAPÍTULO I

A partir da década de 70, estouraram os fast foods e os self-services; surgiram “movimentos” como o nouvelle cuisine e o slow food; multiplicaramse as churrascarias e rodízios. Assim, em 1997, São Paulo recebeu o título de Capital Mundial da Gastronomia, uma iniciativa do SinHoRes (Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares de São Paulo), da ABRESI (Associação Brasileira de Gastronomia, Hospedagem e Turismo) e do COMTUR (Conselho Municipal de Turismo da Cidade de São Paulo). Para Ricardo Maranhão e Josimar Melo, no entanto, a cidade, claramente, não é a capital da gastronomia e o título trata-se de uma estratégia para atrair turistas. “Paris é a capital mundial da gastronomia, mas agora está perdendo o posto. Mas essa conversa é ufanismo não justificado porque está muito longe de ser verdade. São Paulo tem grandes restaurantes, podemos dizer que está entre as 10, mas não dá para falar que é a capital. Ela não tem esse grau de especialização”, declara Maranhão. Melo, por sua vez, acredita ser um embuste criado pelos vereadores da cidade que a auto-elegeram. “Mas, sem dúvida, é uma cidade gastronômica, dada a variedade de cozinhas aqui representadas em seus restaurantes e o genuíno interesse da população pelo assunto”, pondera. Mesmo sendo uma cidade com restaurantes dos mais variados tipos, ainda falta maior dedicação à descoberta de uma cozinha brasileira e também paulistana. O trabalho de alguns chefs cuida do resgate de ingredientes e de uma culinária regional brasileira, continuando o trabalho dos franceses Michel Thénard e Laurent Suaudeau e do belga Quentin de Saint-Maur. O difícil é saber o que pode ser classificado como prato típico paulistano, já que nossa cultura sofreu inúmeras influências, desde os indígenas até os imigrantes. Para Josimar Melo, a culinária paulistana é justamente a mistura de culturas. “A cozinha paulista original, a dos tropeiros, ainda sobrevive um pouco no interior do Estado, mas se desenvolveu mesmo em Minas Gerais, levada pelos bandeirantes. Aqui na capital pouco sobrou dela, a não ser como um dos muitos elementos de uma cozinha que representa outras regiões do país e do mundo”, aponta. É complicado afirmar esse ou aquele prato como criado exclusivamente na cidade, levando-se em consideração também aquelas receitas trazidas por imigrantes, mas que foram muito bem aceitas pelos paulistanos. “É difícil, objetivamente, mas posso dizer macarrão, spaghetti à bolonhesa, macarrão alho 38


HISTÓRIA

e óleo, pratos com referência italiana”, disse Ricardo Maranhão. Da mesma forma, podemos considerar como pratos da cozinha local o virado à paulista, o cuscuz paulista, ou a pizza, a esfiha e o sushi. Muitos restaurantes antigos não resistiram às mudanças sofridas pela cidade e de clientela e tiveram que fechar as portas. Aqueles que ainda sobrevivem lutam diariamente para manterem-se inteiros e com a qualidade de sempre. Para ter maior contato com alguns estabelecimentos antigos da cidade em que nasci e moro, a fim de conhecer as minúcias de cada história, resolvi estar atenta a todos os detalhes, desde localização, até datas específicas de imigração, por exemplo. E foi essa maior atenção despendida que me fez compreender melhor alguns problemas pelos quais a minha cidade passa — como a degradação do Centro, que cada vez mais cria barreiras para a manutenção dessas casas. Assim, o meu objetivo com esta reportagem é contribuir para perpetuar as histórias desses restaurantes, que remontam a própria história de São Paulo.

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CAPÍTULO II

Carlino

Fundado em 1881

Lo chef vi consiglia

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dono Antonio Carlos Marino

ara chegar até o Carlino, passei por famosas vias de São Paulo e ótimos cartões-postais: Praça Júlio Prestes, avenidas Rio Branco, Ipiranga e São João, além da Praça da República. Por mais paulistana que eu seja — e provavelmente por isso mesmo —, nunca havia andado por esses lugares dando a devida atenção aos detalhes. Então, no caminho, fui (re)conhecendo um pouco da história da cidade e inclusive cantei mentalmente o trecho “alguma coisa acontece no meu coração, que só quando cruza a Ipiranga com a Avenida São João”, da música Sampa, composta por Caetano Veloso em 1978. Mesmo com um mapa nas mãos, pedi ajuda a dois policiais para conseguir chegar à Rua Epitácio Pessoa, número 85. Sabe como é, meu senso de direção é “ótimo”! Avancei alguns metros e, quando dei por mim, estava aos pés do Edifício Copan — obra de Oscar Niemeyer, inaugurada em 1966, com 37 andares, 140 metros de altura, 1.160 apartamentos distribuídos em seis blocos e com mais de 5 mil moradores, além da área comercial no térreo. Finalmente, achei o que queria!


CAPÍTULO II

O mais antigo de São Paulo, porém moderno A frente do restaurante é simples. Há um cavalete com a inscrição em italiano “Lo chef vi consiglia” e os pratos recomendados. Dentro, o ambiente é aconchegante e moderno, com luz amarelada, paredes brancas e verdes, balcão e mobiliário de madeira escura e mesas com toalhas de cor marrom. Ao telefone estava Rosana, esposa de Antonio Carlos Marino, atual dono do Carlino. Enquanto eu aguardava, olhei os quadros com matérias antigas sobre o restaurante, publicadas em vários jornais e revistas; fotos da cidade italiana de onde a família de Antonio Carlos veio, Lucca — da região da Toscana, origem das receitas feitas na casa —; e imagens do dono com as apresentadoras de televisão Kátia Fonseca e Ana Maria Braga. O rosto do restaurateur não me era estranho, pois, quando eu era mais jovem, assistia aos programas femininos que passam no período da tarde junto a minha mãe e avó, e neles Antonio Carlos demonstrava seus pratos tradicionais.

“Estamos indo bem. Estou no Centro ainda, mas procuro outro lugar fora daqui. Não abro mais à noite, não tem condições. Não é por violência, não. É uma combinação de fatores. É ruim para as pessoas chegarem, o entorno todo é problemático”

Antonio Carlos Marino

Rosana me recebeu e se desculpou pela ausência do marido, que fora resolver alguns problemas. Mesmo assim, a viagem não estava perdida, pois ela adiantou um pouco a história do restaurante e falou sobre o clima do Carlino. “É de família mesmo”, afirmou Rosana. Uma das provas chegou minutos depois. Um dos amigos e clientes da casa entrou, conversou com Rosana e com os funcionários, pediu vinho e disse que não beberia sozinho. Assim Rosana acompanhou Nésio. Nésio Carlos Costato Basile, 80 anos, frequenta o Carlino há 40. Antonio Carlos e ele são como irmãos e, mesmo morando em Higienópolis, Nésio não deixa de passar no restaurante um dia sequer. 42


CARLINO

Nada como um bom prato Na semana seguinte, refiz o trajeto e, mais uma vez, me impressionei com o Copan. Inevitável! Antonio Carlos estava sentado na entrada do restaurante e, após arranjar o troco para um cliente, me chamou para sentarmos numa das mesas. Antes perguntou se eu havia almoçado. Como eram duas horas da tarde e eu estava trabalhando antes, não tinha sobrado tempo nem para uma sopa instantânea. Então ele me ofereceu um de seus pratos. — Gosta de alcachofra? — Nunca comi! — Então comerá hoje! É um prato novo. Como você vai falar sobre um lugar sem experimentar o que ele oferece?! Fiquei com vergonha, mas como a barriga não me deixava recusar nada naquele momento, aceitei. Mal sabia que eu iria descobrir uma das maiores dificuldades de minha profissão: fazer perguntas e comer ao mesmo tempo. Enquanto aguardávamos meu fettuccini com molho e alcachofra, dei início ao extenso questionário. O começo Carlino é o restaurante mais antigo de São Paulo. Foi fundado em 1881 por Carlo Cecchini, o Carlino. O primeiro endereço da casa foi Avenida São João, Largo do Paissandu, e lá permaneceu até 1960. Em 1949, Carlo passou o restaurante para as mãos de Marcello Gianni. A primeira mudança feita pelo novo dono foi transferir o estabelecimento para a Avenida Doutor Vieira de Carvalho, número 141, Largo do Arouche. Antonio Carlos Marino tornou-se dono do restaurante em 1978, quando tinha cerca de 35 anos. “Estamos indo bem. Estou no Centro ainda, mas procuro outro lugar fora daqui. Não abro mais à noite, não tem condições. Não é por violência, não. É uma combinação de fatores. É ruim para as pessoas chegarem, o entorno todo é problemático. Vou sair daqui, mas não vou fechar. O que eu ganho é pouco para nós. A gente gosta do que faz, por isso se dedica, procura outros lugares, também procura se adaptar, se readaptar. Não é fácil! Na Vieira de Carvalho, nós morávamos em frente ao restaurante. Ficamos 18 anos lá”, declarou Antonio Carlos. Chegou a comida. Prato apetitoso e muito bem servido. A boca salivou e o garçom trouxe um babador. Como nunca tinha usado um desses, caí na risada. 43


CAPÍTULO II

O rapaz disse “bom apetite” e o chefe: — Come, senão vai esfriar! Tudo bem! Seu pedido foi uma ordem. E, mesmo assim, continuei fazendo as perguntas entre uma garfada e outra. Mudanças e dificuldades O Carlino ficou fechado por três anos, de 2002 a 2005. Enquanto isso, Antonio Carlos criava jantares para eventos, o que continua fazendo. Mas faltava algo, um contato maior com os clientes. “O gostoso, para mim, é falar com as pessoas. Sentia falta disso." Ele passou um tempo procurando outro lugar para remontar o restaurante. Passou por bairros como Higienópolis, Pacaembu, Perdizes e Moema, porém a relação com o Centro falou mais alto. Alguns clientes pedem que o Carlino vá para outra região, mas Antonio Carlos aguarda mudanças a fim de não ter que deixar o bairro para sempre. Ele torce para que casas de espetáculos apareçam no Centro e, consequentemente, seu público exija bons restaurantes, cafés, estacionamentos etc. “Quanta coisa não tem aqui, é abandonada e podia ser reciclada. Precisa agitar São Paulo!” As dificuldades pelas quais o Carlino passou também afetaram vários outros restaurantes localizados no Centro. Todos tiveram problemas com a degradação do local, com a mudança brusca do público que frequentava o bairro, migração de empresas e, além disso, com a praticidade e os preços mais baixos oferecidos pelos estabelecimentos que vendem comida por quilo. Mudaram-se da Avenida Doutor Vieira de Carvalho, por exemplo, a Casa Ricardo, o Almanara, o Rubaiyat e a Gelateria Parmalat. Não sobrou nenhum para contar história e, no lugar desses, novos foram abertos. A região central também perdeu Bistrô, Paddock, Da Giovanni, Parreirinha e Balila. Centro, eterno Centro Mesmo pensando em se mudar do Centro de São Paulo, cenário de tantos acontecimentos culturais, políticos etc., é fácil perceber que a vontade de Antonio Carlos é continuar onde está. “Deixaram por muito tempo degradar, não fizeram mais moradia. Tem que colocar família para morar aqui, não adianta fazer quartinho pequeno para uma pessoa só!” Então fomos interrompidos um instante pelo mesmo amigo e cliente da 44


CARLINO

semana passada, Nésio, aquele que não queria tomar vinho sozinho. — Parabéns! Hoje é dia do amigo! — Obrigado pela consideração! – disse o dono do restaurante. Para Antonio Carlos, “é muito bom trabalhar com restaurante. Não há do que reclamar!” O grande chefe de cozinha — Tá bom aí? — Muito bom! – respondi com a boca cheia. Antonio Carlos é filho de italiano. Seu pai veio para o Brasil em 1930, antes da Segunda Guerra Mundial. Ele era açougueiro, aqui conheceu sua esposa, se casaram e tiveram filhos. Assim como o pai, Antonio Carlos também foi açougueiro, mas fez curso de Química. “Nunca entrei num laboratório, detestava aquilo. Ficava nas cozinhas dos restaurantes quando ia entregar carne de manhã cedo. Passava um tempão lá. Meu pai me dava bronca. Eu já gostava de cozinha. Quando criança, eu ajudava minha mãe a fazer macarrão na mão, sabe?! Fettuccine, fusilli... Uma delícia! Aprendi a cozinhar com ela e com minha ‘nona’, além de observar amigos. Assim fui me aprimorando!” Com 18 anos, teve seu primeiro restaurante. “Era sócio de um senhor de idade. Ficava na Rua Senador Feijó, número 191, e se chamava Corso, nome de um vinho argentino. Era o único restaurante que não fechava no dia 11 de agosto. Então, quando davam duas horas da tarde, formava-se aquela fila de estudantes do Largo São Francisco. Deixávamos as mesas com vinho, queijo, tudo. Quando dava oito da noite, não tinha mais nada. Trabalhávamos demais, porque os outros fechavam, mas era gostoso. Era bonito, eles cantavam uma musiquinha agradecendo ao dono do restaurante, ao cozinheiro, ao garçom. Dava prejuízo, mas era legal!” Além do Corso, antes de comprar o Carlino, Antonio Carlos teve uma pizzaria na Consolação, a Toscania. Dia do Pindura? Como fiquei curiosa, depois verifiquei como surgiu a tradição do dia 11 de agosto. Essa data é conhecida como o Dia do Pindura, criado pelos alunos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco para comemorar o aniversário da faculdade e a criação dos primeiros cursos superiores de Direito do Brasil, que 45


CAPÍTULO II

ocorreu em 1827. De acordo com o costume, os estudantes comem e, no final da refeição, um formando, normalmente, se levanta e profere um discurso em agradecimento aos donos do restaurante e aos garçons, além de todos não pagarem por aquilo que consumiram. Tradição e qualidade Os pratos mais tradicionais da casa são o cordeiro a cacciatora com polenta e o coelho a lucchesi com funghi porcini. Essas receitas existem desde a época do Carlino, o primeiro dono, e, com o tempo, outras foram acrescentadas ao cardápio. “Esse é um prato novo [referindo-se ao que eu estava comendo]!” Nesse momento, Antonio Carlos notou minha briga com o macarrão e perguntou: — Sabe como é que se usa a colher? Vai rodando... Tem gente que corta, outras não gostam. Italiano não gosta. Eles dizem: “Onde já se viu cortar macarrão!” Pois é, eu tentava fazer isso, mas não havia praticado o suficiente antes. Para manter a qualidade, os ingredientes são escolhidos cuidadosamente. “Compramos algumas coisas no Mercadão Central. Lá peixe é fresquinho, cordeiro também, verduras. Também vamos ao Ceasa de vez em quando. Mas acordar de madrugada, com esse frio, eu não vou não! Mas compensa muito!” — Quer um café? Eu vou tomar um! – ofereceu Antonio Carlos. Clientela famosa Entre o público que frequentava o Carlino, estavam artistas de teatro e televisão, cantores de ópera, políticos, advogados, empresários e jogadores de futebol, além dos velhos e fiéis amigos e clientes. “Na Vieira de Carvalho, ia a turma do PT, José Genoino, Marta Suplicy, Eduardo Suplicy, e um monte de jogador de futebol. Na São João, o Marcello [Gianni] que me contava, ia muito jogador, como, por exemplo, o Leônidas da Silva, o inventor da bicicleta no futebol, que foi comentarista da Jovem Pan. Bastante artista de televisão, como Raul Cortez, Carlos Moreno — o Garoto Bombril —, Paulo Autran, Marcos Caruso. Também ia o ex-ministro Magri, a Zélia Cardoso de Mello, o Luiz Gonzaga Belluzzo, Ibrahim Eris, Salvatore Cacciola... É gostoso ter restaurante!” 46


CARLINO

Último desejo O restaurante já foi palco de muitas histórias e, entre elas está uma bastante inusitada, que tanto Rosana, em minha primeira visita, quanto Antonio Carlos, lembraram. Quando o restaurante ainda era na Vieira de Carvalho, um rapaz perguntou se uma senhora, que estava doente, poderia entrar para comer. Antonio Carlos consentiu, pensando que apareceria alguém sobre uma cadeira de rodas. Porém, quando a porta se abriu, entrou uma cama hospitalar. A cena impressionou bastante. Algumas pessoas, inclusive, se retiraram. Um dos desejos da senhora, antes de falecer, era comer no Carlino. “Eu contei essa história para a Ana Maria Braga no programa dela e até brinquei dizendo que não sabia se essa senhora já tinha morrido ou se morreu por causa da comida do Carlino”, comentou rindo.

“Tenho uma grande admiração por ele, sua esposa e filhos. Trata-se de um guerreiro que tem enfrentado todas as dificuldades quase sem desanimar. A luta para melhorar o entorno (iluminação, limpeza, arborização etc.) parece destinada a voltar sempre ao ponto de partida”

Sérgio Gomes da Silva

Como não podia faltar, também teve briga. “Um deputado federal estava comendo e um moço, numa mesa próxima, falava alto coisas sobre o político. Quando o rapaz passou atrás dele, o deputado lhe deu um murro, tão forte que foi parar na cozinha. Depois disse: ‘Nunca mais fale das pessoas por trás, fale na frente!’” — Quer tomar café? É bom! – ofereceu novamente Antonio Carlos. Assim meu fettuccine com alcachofra acabou e a conversa continuou por mais um tempo. Enquanto isso, seus filhos — um casal que segue os passos do pai, ambos estudam gastronomia e todos os dias estão no Carlino — almoçavam na mesa ao lado e foi inevitável não ouvi-los falando sobre o Palmeiras. Logo me empolguei: 47


CAPÍTULO II

— Eu também sou palmeirense! Pronto, estava em casa! Restaurante, doce lar Entre os clientes e amigos está Sérgio Gomes da Silva, 60 anos, jornalista. Pedi para Antonio Carlos o contato de alguém que freqüentasse bastante o local, então ele me passou o do Sérgio. O jornalista conhece o restaurante desde a década de 70, “acompanhando colegas da Folha de S. Paulo, quando trabalhava lá entre 1974 e 1979”. Começou a frequentá-lo ainda na Avenida Doutor Vieira de Carvalho, de acordo com ele “a menor do mundo, que liga o Largo do Arouche à Praça da República. Fui ao Google Maps e não consegui localizar. Como ela é muito curta, não coube no mapa”. Adorei! Sérgio não ia sempre ao restaurante, porém, no momento em que o Carlino foi para a Rua Epitácio Pessoa — “a 100 metros da Oboré, que fica na Rua Rego Freitas, 454” —, “ocupando o espaço que era de um estranho (Clube do Centro Antigo de São Paulo)”, ele passou a ser o “seu” restaurante, “sobretudo porque havíamos perdido o velho e generoso Parreirinha, na Rua General Jardim”. Com o tempo, o relacionamento com a casa se intensificou. “Aliás, diz o Marino, que eu fui o seu primeiro cliente na sede nova. E pode ser verdade, pois almocei ali sozinho (já por volta das três ou quatro horas da tarde), quando ainda nem tinha placa na porta.” “Desde então, meu aniversário, aniversário dos meus pais, Dia dos Pais, almoços com os palestrantes dos cursos desenvolvidos pela Oboré [empresa de que é diretor], jantares para reunir os velhos jornalistas que ainda têm ‘lenha pra queimar’, almoços de confraternização com os estudantes do Projeto Repórter do Futuro (nos dias de encerramento dos cursos), tudo acontece ali.” Entre as muitas histórias vividas no restaurante, o jornalista destaca uma. “Dia 15 de setembro de 2008, uma segunda-feira, meu querido amigo Samir Salman, diretor do Hospital Premier, preparou uma festa surpresa no Carlino para comemorar meu aniversário. Tínhamos trabalhado a semana inteira na realização do 1º Ciclo de Cinema e Reflexão - Aprender a Viver, Aprender a Morrer, na Cinemateca Brasileira. O dia anterior tinha sido uma grande festa para celebrar os 30 anos da Oboré e, para ‘arrematar’, o Samir organizou esse jantar no Carlino, que foi até o dia amanhecer. Teve de tudo, até dançarinas do ventre.” Hoje, Sérgio e Antonio Carlos são amigos. “Tenho uma grande admiração 48


CARLINO

por ele, sua esposa e filhos. Trata-se de um guerreiro que tem enfrentado todas as dificuldades quase sem desanimar. A luta para melhorar o entorno (iluminação, limpeza, arborização etc.) parece destinada a voltar sempre ao ponto de partida. O Hotel Hilton (parede com parede do Carlino) foi desativado e o prédio ficou sem uso durante anos. Depois o Tribunal ficou de ser transferido para lá. Já se passaram mais de dois anos e tudo continua sem movimento. E isso tem sido dramático para os planos de funcionamento pleno do mais antigo restaurante de São Paulo. Como a classe média tem medo de vir para a Vila Buarque (embora o bairro ostente índices de ocorrências policiais 10 — dez! — vezes menores que os Jardins), o restaurante não tem funcionado à noite.” Sobre quantas vezes por mês vai ao Carlino, Sérgio não tem ideia, “muitas. Menos do que gostaria e mais do que o meu bolso suporta, embora o Carlino pratique preços justos para a qualidade da comida que prepara”.

Ristorante Carlino Rua Epitácio Pessoa, 85 República – Região Central 3258-5055 www.carlino.com.br

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CAPÍTULO III

Capuano

Fundado em 1907

“Obrigado! Felicidades! A casa é sempre aberta!”

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dono Ângelo Mariano Luisi

uantas vezes fui ao Bixiga, tradicional bairro italiano, comi fogazza e polenta com molho à bolonhesa na festa da Achiropita — santa padroeira do bairro homenageada em agosto —, vi o ensaio da Vai-Vai — escola de samba fundada em 1930 —, passei em frente ao Capuano e nem o notei. Dentre os poucos estabelecimentos centenários da cidade, está a cantina italiana, fundada em 1907 pelo imigrante Francisco (Ciccio) Capuano, da Calábria, região sul da Itália. Próximo à Avenida Brigadeiro Luís Antônio e à Rua 13 de maio, pude encontrá-la na Rua Conselheiro Carrão, número 416. Dessa vez foi fácil achar o local por já ter ido ao bairro anteriormente. Logo avistei uma pequena porta que dava acesso a um salão com paredes, móveis e lustres de madeira. Nas paredes, muitos quadros com equipes de futebol, fotos da família, amigos, e, no teto, lustres com fitas das cores da bandeira italiana penduradas. Elisabetta Luisi Gagliardi, filha de Ângelo Mariano Luisi, dono do Capuano,


CAPÍTULO III

estava ao telefone quando cheguei. Enquanto eu esperava, observei a cozinha, as mesas, o atendimento e acabei ouvindo a conversa da mesa ao lado. Falavam sobre a festa da Achiropita que se aproximava. Quem os servia era Donato Pinto Rapolli, cunhado de Elisabetta. Ela, quando pode, veio conversar comigo. “Meu pai comprou aqui em 1961, do Francisco Capuano, o primeiro dono. Agora, com a morte da minha mãe, meu pai se afastou um pouco e nós assumimos o negócio. Faz uns oito anos, mais ou menos, que meu cunhado, meu marido, minha irmã e eu cuidamos do restaurante. Mas eu já vinha desde pequena acompanhando a trajetória a cantina.” O velho Ciccio Francisco Capuano começou importando vinho tinto e oferecendo pedaços de parmesão e sardella na Rua São Domingos, também no Bixiga. Como percebeu que as pessoas tinham muita fome e que ela não seria saciada apenas com pedaços de queijo, abriu uma cantina na Rua Major Diogo, número 263. Mas o esquema de funcionamento era bem diferente daquilo a que se está acostumado hoje. “O velho Capuano não tinha cardápio fixo no começo da cantina. Ele servia primeiro uma salada (algo como entrada); depois tinha o prato principal, podia ser fusilli [um tipo de macarrão], arroz com camarão, cabrito a cacciatore; e, por fim, como sobremesa, uma fruta da época. Quando dava oito horas da noite, ele abria e, na hora em que lotava o salão, fechava as portas e ninguém mais podia entrar. Tinha que comer aquilo que ele determinava e Ciccio ficava bravo se deixasse comida no prato ou se alguém não quisesse comer”, contou Elisabetta sorrindo. “Houve uma vez em que o Adhemar de Barros, governador de São Paulo na época, chegou à cantina e as portas já estavam fechadas. Então ele disse: ‘Mas eu sou Adhemar de Barros!’ E o Ciccio respondeu: ‘E eu sou Francisco Capuano, já fechei as portas e ninguém entra mais!’ Ele tinha um jeito meio rude. A cantina funcionava daquela forma e ele não abria exceções.” Sobre as mesas eram colocadas toalhas de papel, nada de pano e muito luxo, mas isso não incomodava nem artistas muito menos políticos que frequentavam a cantina. Como era próximo ao Teatro Brasileiro de Comédia, várias vezes pessoas como Procópio e Bibi Ferreira iam até o Capuano jantar após as peças. Também passaram por lá Washington Luís, Altino Arantes, Carlos de Campos e Lucas Nogueira Garcez. 52


CAPUANO

Outro que tentou mudar o esquema de Ciccio e não conseguiu foi Getúlio Vargas. Ele queria almoço e Francisco Capuano não oferecia de jeito nenhum, só jantar. Por influência da terceira esposa, Concetta, que queria voltar para a Itália, Ciccio vendeu a cantina. Então Ângelo Mariano Luisi e Savério Viola tornaramse os novos donos do estabelecimento. Pouco tempo depois, Ciccio voltou para o Brasil, tentou comprar de volta o Capuano, mas Ângelo não fez negócio. A solução encontrada pelo italiano foi assumir em sociedade a Cantina Chamarré (1966-1967) e, logo em seguida, abrir a Cantina Ciccio, também no Bixiga, que manteve até 1971. Faleceu em 1977, com 92 anos. Ângelo teve que mudar de endereço porque Ciccio pediu a casa onde ficava a cantina. “Mudamos para cá em 1968. Saímos de lá porque o prédio não era próprio, daí houve a oportunidade de comprar esse aqui, então viemos. Meu pai tinha comprado só o restaurante mesmo, o prédio não era nosso”, explicou Elisabetta.

“O velho Capuano não tinha cardápio fixo no começo da cantina. (...) Quando dava oito horas da noite, ele abria e, na hora em que lotava o salão, fechava as portas e ninguém mais podia entrar. Tinha que comer aquilo que ele determinava e Ciccio ficava bravo se deixasse comida no prato ou se alguém não quisesse comer”

Elisabetta Luisi Gagliardi

Clientela de luxo O novo endereço também fez sucesso entre os artistas. “Tinha o teatro Zaccaro perto. Veio inclusive o Pepino Di Capri, quando esteve no Brasil. Agora contamos com bons clientes, eventualmente algum artista, porque há o teatro Sérgio Cardoso aqui perto, tem outros na Avenida Brigadeiro Luís Antonio, que não é tão longe. E, principalmente, sempre vem alguém para conhecer a cantina por ser muito antiga.” 53


CAPÍTULO III

No meio de tanta história, surgiu uma questão: Como o senhor Ângelo conheceu o Ciccio? “O primeiro contato que meu pai teve com o Capuano foi através de um tio dele, que conhecia um cliente da cantina, um fabricante de calçados. A fábrica ficava em frente ao restaurante, na Major Diogo. Por intermédio desse tio que frequentava a fábrica, meu pai ficou sabendo que estavam vendendo o negócio. Então se interessou a comprar, porque, até então, ele era vendedor ambulante”, contou Elisabetta. Em busca de uma vida melhor Ângelo chegou ao Brasil com sua esposa, Angela, em 1949. “Meu pai veio de uma região que fica mais para o sul da Itália, Salerno. Indo em direção ao sul, à Calábria. Mais exatamente Casalbuono, uma região de Salerno.” Elisabetta, a mais velha, e sua irmã, Teresa Luisi Rapolli, nasceram no Brasil. A primogênita estudava de manhã e, depois da escola, ajudava a mãe na cozinha. "Minha mãe aprendeu a fazer as receitas do Capuano observando, ele não explicava direito. Isso porque não queria vender a cantina." E foi dessa forma que conseguiram manter os pratos tradicionais por todos esses anos. Entre eles estão o fusilli caseiro e o cabrito a cacciatore, que no cardápio, se juntam a outras opções. Na verdade, a grande paixão de Ângelo sempre foi a música. “Na época da minha mãe, ela ficava na cozinha e ele com a parte da música, como faz até hoje aos sábados e domingos. Ele fará 90 anos agora! Ainda toca clarinete e bandolim. O serviço grosso mesmo da cantina, nós que fazemos”, disse Elisabetta, referindose a sua irmã, seu cunhado, Donato, e ao marido, Cosmo Gagliardi. “No final de semana vêm as filhas, os netos.” Clientes e amigos fiéis, não importa o time Muitos deixaram de ser “apenas” clientes. “Temos uns bem antigos, que se tornaram parte da família, amigos, e tem um pessoal novo que vem conhecer e acaba gostando.” Perguntei a Elisabetta se havia algum cliente e amigo na cantina naquele momento e lá estava ele terminando seu almoço. Ela me levou até a mesa de Irineu de Franceschi, 70 anos. “Frequento aqui há mais de 30 anos! Deve ser mais... — disse após pensar um pouco — Nós éramos um grupo grande, íamos à cantina quase que diariamente. 54


CAPUANO

Era o ponto de encontro de toda a nossa turma. Vínhamos de terça à sexta, sem falhar quase nenhum dia. Nós reuníamos, principalmente, o pessoal do Palmeiras — nesse momento meus olhinhos brilharam mais uma vez —. Discutia, brigava, abraçava, cantava. Era um lugar que estava lotado todo dia. Uma casa muito tradicional e de boa comida, feita na hora, cerveja gelada. Então era tudo bom!” Irineu frequenta o Capuano desde quando a cantina era na Major Diogo. Ele era vizinho do restaurante, mas não ia muito. Conheceu o velho Capuano e é freguês fiel do Ângelo há mais de 50 anos, desde que compraram o estabelecimento. Quando perguntei sobre as histórias que ocorreram na cantina, Irineu logo puxou algumas da memória. “Vinha uma dupla aqui que era infernal. O Orlando Ferri, a pessoa mais tradicional daqui, queria cantar e o Capuano não deixava. O Ferri ficava nervoso, brigava!”, contou. Logo emenda outra que tem como mote o futebol. “Quando o Donato, santista, começou a trabalhar aqui, a primeira coisa que eu fiz foi rasgar a bandeira do Santos. Eu achava um absurdo não ser palmeirense. Mas hoje já está em paz. Lembro até hoje, foi a primeira coisa que eu fiz. Depois foi perdoado!” Irineu aproveitou que Donato estava passando e perguntou sobre o caso. — Na verdade nem fui eu quem colocou o pôster, foi o seu Ângelo. Como a sua turma — referindo-se a Irineu — era muito grande e vinha toda a noite aqui, a primeira coisa que viu foi isso, daí pegou o pôster e rasgou – afirmou Donato. Após muitas risadas, Irineu retrucou: — É um absurdo! Entrar aqui e não ser palmeirense! Na época era assim, hoje em dia a gente atura! 1982... Quase trinta anos já! – admira-se o palmeirense fanático, agora mais moderado, de acordo com ele. Então deixei Irineu terminar o almoço tranquilamente, tomar um café e partir. Eu fui logo em seguida, agradeci a todos pela atenção e prometi voltar na manhã seguinte para encontrar o senhor Ângelo. Uma mera desculpa Fiz exatamente o mesmo trajeto e consegui pegar o lado errado da Conselheiro Carrão ou algo do tipo. Realmente meu senso de direção é péssimo, mas nada demais aconteceu. Cheguei ao Capuano e lá estava um senhor sentado no banco com seu bandolim. Eu disse que procurava o senhor Ângelo e ele respondeu: 55


CAPÍTULO III

— Mas Ângelo sou eu! Confesso que tive dificuldades para compreendê-lo, mas as respostas foram ótimas. “Foi o Capuano que vendeu para mim. Ele abriu em 1907. Faz tempo! Fiz a festa de 100 anos! Agora o que mais?”, perguntou ansiosamente. Quando ouvi esse “agora o que mais?”, caí na gargalhada pela praticidade do senhor Ângelo. “Eu trabalhava na Major Diogo, 263, o velho vendeu para mim, vendeu tudo. Vim para cá... É o mesmo Capuano, nunca mudou, sempre o mesmo. Daí vim para cá e fiquei aqui. Aqui é meu. Quê mais?”, disse Ângelo, um tanto quanto sucinto e divertido.

“O cliente vem almoçar. Você tem que pagar o almoço. Tem couvert artístico, é R$ 4. Sentar, comer e pagar o couvert.” E continuou, para reforçar: “Somos em três pessoas, sempre três. Eu e mais dois: um cantor, um violão e eu [que toca clarinete e bandolim]. De sábado à noite e de domingo no almoço. Senta, come e paga o couvert!”

Ângelo Mariano Luisi

Quis saber o que mais o marcou nesses tantos anos de restaurante e a resposta foi rápida: música. Logo percebi que o que ele mais gosta mesmo é de tocar e pronto. A cantina, de certa forma, se tornou uma desculpa para se apresentar todas as semanas. E ele arremata com um “faz bem!”. “Comecei a tocar de pequeno, era pequenininho, tinha 12 anos. Hoje estava treinando um pouco.” Como sua filha Elisabetta me informou no dia anterior, Ângelo chegou ao Brasil em 1949. Perguntei se já veio casado para cá e ele disse: “Não trabalhava com restaurante, trabalhava num cinema. Era operador de cinema. Trabalhava na cabina, daí deixei lá. Queria ficar livre. Depois em 1960, encontrei um amigo, Capuano. Ele vendeu para mim, eu comprei o restaurante. E toquei para frente. 56


CAPUANO

Agora quem cuida é minha filha. Está tudo aqui trabalhando. Esse que passou agora é meu genro.” E ele reforça: “1960, não esquece. Mas a cantina foi em 1907.” “Vim para o Brasil para trabalhar. Não tinha nada. Abraço, adeus”, disse Ângelo sobre sua vinda para o país. — O que o senhor mais gosta de tocar? – emendei. — Almoço... Almoço. De dia e de noite. Trabalhamos domingo. Olha o cardápio, está tudo escrito aí. Durante a semana paga menos, porque é mais fraco, então fazemos uma promoção, R$ 16. Tem que vender. Barato! O mais barato é esse daqui — disse apontando para o cardápio. Tem mais caro também! Todo sábado à noite, “depois das 21 horas”, o senhor Ângelo e seus amigos se apresentam no restaurante. “O cliente vem almoçar. Você tem que pagar o almoço. Tem couvert artístico, é R$ 4. Sentar, comer e pagar o couvert.” E continuou, para reforçar: “Somos em três pessoas, sempre três. Eu e mais dois: um cantor, um violão e eu [que toca clarinete e bandolim]. De sábado à noite e de domingo no almoço. Senta, come e paga o couvert!” Foi inevitável não rir! Para me conter, já perguntei quais músicas ele mais gostava de tocar. “Eu gosto de tudo quanto é música. Tudo o que eu gosto, eu toco. Estava esperando aqui com bandolim. Toco só sábado e domingo. Sábado à noite e domingo no almoço”, confirmando novamente os dias e horários de suas apresentações. Passaram por nós sua filha Elisabetta e a bisneta de Ângelo. — Ma donde vai? – perguntou. Quando eu quis saber se a família ficava sempre por lá, no restaurante, ele respondeu: “A família acabou, minha mulher morreu, faleceu faz três anos, quase quatro... É... A vida é assim!” E dando um chega a tanto questionamento: — Tá bom? — Tá bom! – respondi rindo novamente. — Obrigado! Felicidades! A casa é sempre aberta! Depois de eu ter roubado alguns minutos do tempo de ensaio do músico, tirei algumas fotos do restaurante e seu dono, inclusive dele segurando o bandolim. 57


CAPÍTULO III

Agradeci novamente e recebi como resposta: — De nada. A casa é aberta!

Cantina Capuano Rua Conselheiro Carrão, 416 Bixiga – Região Central 3288-1460 www.cantinacapuano.com.br

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CAPÍTULO IV

Castelões

Fundado em 1924

“Isso vai acabar em pizza!”

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dono João Donato Neto

s 10 horas da manhã, cheguei à estação Brás, que parece uma cidade dentro de São Paulo: muitas vias, placas, destinos. Fui atrás das placas que indicavam o Largo da Concórdia, ainda vazio àquela hora. Caminhando pela Rangel Pestana, encontrei a Rua Jairo Góis. O Brás, antigo bairro residencial formado por espanhóis e italianos, aos poucos recebeu migrantes nordestinos e imigrantes de outras nacionalidades (asiáticos, por exemplo) e conheceu a decadência e a deterioração, tornando-se um grande centro de comércio de roupas, couro, tecidos, plásticos — tudo o que se possa imaginar é vendido pelos camelôs e comerciantes. Boa parte das construções antigas foi soterrada, destruída ou modificada, mas ainda podem ser encontrados pedaços de história em algumas partes da região. Entre elas está a Cantina e Pizzaria Castelões — nome emprestado de um antigo time de futebol de várzea.


CAPÍTULO IV

Sobrevivendo Quando cheguei ao endereço, João Donato Neto, 73 anos, dono da Castelões, não estava. Tinha saído com sua filha Andréa — que com seu irmão, Fábio, ajuda o pai a cuidar do restaurante — para comprar o que faltava para a pizzaria. Enquanto ele não chegava, eu observava as dezenas de fotos colocadas nas paredes, muitas com legenda informando quem eram as pessoas e em quais ocasiões os registros foram feitos. A decoração é toda nas cores da bandeira italiana (verde, branco e vermelho). Nem os ventiladores, muito menos as tolhas xadrezes, escapam. Em destaque estão a foto grande de um senhor (que depois descobri ser o pai de João) e as palavras Castelões e Don Vincenzo em luz neon, ainda desligada. Também há quadros com símbolos de vários times de futebol, latas de azeites e cervejas, garrafas de vinho italiano, balanças e caixa registradora antigas, além de um porta-ovos feito de madeira e arame fixado na parede (um tanto “exótico”) e um piso com cerâmica vermelha.

“As pessoas vinham ao restaurante comemorar qualquer coisa. Era a vitória de um time de futebol, conquista de um campeonato... Qualquer reunião era feita aqui e acabou que sempre diziam ‘isso vai acabar em pizza’, ‘vai acabar em pizza’, e pegou. Foi em nossa cantina que surgiu pela primeira vez essa frase”

João Donato Neto

“Isso vai acabar em pizza!” João e sua filha chegaram e ele, a princípio, com seu jeito sério, e eu, envergonhada, conversamos. A Cantina e Pizzaria Castelões foi fundada em 1924 pelo italiano Ettore Siniscalchi, cuja família também era proprietária da principal confeitaria da região (Guarani). O negócio começou como boteco, servindo apenas queijos, salames, vinhos e receitas clássicas italianas. Só alguns anos depois passaram a fazer 62


CASTELÕES

também as pizzas. Na década de 1950, o brasileiro Vicente Donato, pai de João, vendedor de sapatos, começou a trabalhar no restaurante fazendo extras aos finais de semana. “Com o decorrer do tempo, ele percebeu que ganhava mais aqui fazendo extras do que no emprego fixo que tinha. Então, passou a ser efetivo na Castelões. Começou a aprender, foi garçom, chegou à gerência e, em seguida, virou sócio. Com o tempo — que pega todo mundo —, os filhos do sócio do meu pai foram para o Rio de Janeiro e ele comprou a outra parte. Isso foi na década de 1940, 1950, por aí, quando eu vim para cá com ele”, contou o paulistano João. A tradicional massa é a mesma desde 1928, quando Ettore buscou na cidade de Amparo, interior de São Paulo, um famoso padeiro, Pedro Rosário, que passou dos pães para as pizzas. Ele ficou mais de 30 anos na Castelões e passou seus conhecimentos para o pernambucano Paulo Ferreira de Souza, que saiu da casa após 20 anos de trabalho (detalhes a frente). Castelões é a pizzaria mais antiga de São Paulo e, como não podia deixar de ser, carrega com ela milhares de histórias. “São muitos casos de políticos, empresários, artistas, de toda a clientela que aqui frequentou e nós temos como prová-los por meio de nosso acervo de fotos. As pessoas vinham ao restaurante comemorar qualquer coisa. Era a vitória de um time de futebol, conquista de um campeonato... Qualquer reunião era feita aqui e acabou que sempre diziam ‘isso vai acabar em pizza’, ‘vai acabar em pizza’, e pegou. Foi em nossa cantina que surgiu pela primeira vez essa frase.” O clima da cantina é familiar, principalmente no jantar quando avô, pai e filho, mais os amigos, se reúnem para saborear a clássica pizza que leva o nome do restaurante: mussarela com linguiça calabresa da casa. “Agora já estamos pegando a quarta geração da clientela. Nós conhecemos todo mundo e todo mundo nos conhece. Há um mês atrás nós comemoramos o nosso 85º aniversário. Teve uma festa com a presença de políticos, empresários, advogados, médicos, aqueles que mais lembramos vieram comemorar com a gente.” De pai para filho O tom da conversa se tornou mais tranquilo com o tempo e ficamos mais à vontade. Então João declarou que está se afastando do negócio, pois, por mais que goste daquilo que faz, manter um restaurante cansa. “Eu tenho meus afazeres particulares, então os deixei para as quintas-feiras, mas no resto da semana estou 63


CAPÍTULO IV

aqui, todo o dia. Mesmo de quinta, não deixo de vir à cantina, só não tenho horário certo. Tem sempre uma compra para fazer, uma coisa para temperar, outra para preparar. Tem que ver como as coisas vão sair, como não vão. Tem que provar, não adianta ver só na vitrine. Assim não se sabe se está com sal ou insosso, se falta tempero. Tudo deve estar arrumadinho. Ter uma cantina é isso aí, tem que estar aqui 363 dias por ano.” Para dar continuidade, Fábio e Andréa, filhos de João, estão seguindo os passos do avô Vicente, os mesmos traçados pelo pai deles. “Eles gostam!”, entregou. Para João, esse processo foi natural e, quando se deu conta, já estava completamente envolvido. Com a morte de seu pai, em 1987, tornou-se dono da pizzaria. “Comecei a vir nos fins de semana ajudar meu pai. Depois que ele comprou, passei a vir sempre e já sabia muita coisa. Eu o via fazendo, ele adorava. Eu o observava e tentava fazer igual. Às vezes dava certo, às vezes não. Se você quer entender, tem que fazer. Teoria não funciona. Além disso, tem que saber direito para poder mandar, mostrar o que está errado.” Os segredos E a dedicação não para por aí, ainda tem o compromisso com o cliente e com a qualidade do que se oferece a ele. “Para você ver, eu sai às 8 horas da manhã e voltei agora [já eram mais de 11]. Cada um me fornece uma coisa. Eu vou, escolho, às vezes trago e às vezes não. Não tenho compromisso com ninguém. Tenho compromisso só com o meu cliente e com a qualidade. Se você tiver pão, eu vou comprar de você. Se amanhã o seu não estiver bom, você sai fora.” No que João falou sobre o assunto, entrou um senhor trazendo os pães italianos. — Bom dia, seu João! — Bom dia! — O senhor está bom? Trouxe os pães! — É tudo assim! Se estiver fresquinho, volta mesmo! – disse voltando-se para mim. “Dessa forma não perdemos a qualidade e mantemos sempre o mesmo padrão. Matéria-prima boa, empregados a altura também. O funcionário mais novo deve estar com oito anos de casa, por aí. É um rapaz que trabalha na copa. 64


CASTELÕES

Mas assim aproveitamos e o passamos para outro setor. Pode virar cozinheiro ou pizzaiolo. Nós formamos todos aqui, por isso não cai a qualidade.” Muitos funcionários formados na Castelões lá permanecem até se aposentarem — ou se aposentam e não param de trabalhar — e outros vão para outros restaurantes, mas mantendo a amizade. “Tem uma turma aqui que está se aposentando, já faz uns 40 anos que trabalham comigo. Aposentam-se aqui e não saem. É difícil nos deixarem! Sai quando alguém vem tirá-los daqui. Isso acontece muito! A Castelões é uma escola. De vez em quando um vai embora, mas mantemos a amizade. Isso é muito bom!” — Você não vai à Marguerita? – me pergunta João – É uma ótima casa, fica na Haddock Lobo. Um senhor que trabalha lá ficou 20 anos com a gente. Veio de Pernambuco, meu pai o pegou para trabalhar com ele. Quando chegou não sabia fazer nada, mas ele foi ensinando, deu a oportunidade. Mas você logo vê a pessoa que quer ir para frente. A cozinheira da noite, a Dona Ivone, se aposentou, mas continua conosco. A filha dela é a cozinheira do dia. É bom esse ambiente salutar, sabe?! Esse tipo de ambiente com muita intriga não rende nada. Quem paga o pato são os clientes que não têm nada a ver. É por tudo isso que João consegue manter a casa cheia. Mas ainda há mais um segredo do sucesso. “É gostoso tocar uma casa dessas! Cansa, mas é gostoso! Quando você vê a casa lotada, o cliente satisfeito. Mas não vivemos só de glória, né?! Tem dias que começa tudo dando errado desde cedo. Então temos que ver onde houve o erro e concertar. O cliente não pode sair mal servido nem aborrecido. Porque o que acontece é o seguinte: se ele sai satisfeito, abre um leque; se não, esse leque fecha. É infalível! E assim vamos caminhando. Estamos com 85 anos e ficaremos mais 85 no mínimo!” Mais segredos Pedi a João que me mostrasse o antigo forno (que tem quase a mesma idade da casa), onde as pizzas são feitas. Ainda estava quente com lenha queimando. Ele alcança 650ºC — o que não acontece em qualquer forno —, sendo esse um dos segredos do sabor diferencial da pizza feita na Castelões. João aproveitou e me mostrou como se faz o frango capão (um frango enorme assado na brasa que é servido junto com salada mista aos sábados, domingos e feriados). Também passamos pela cozinha de onde estavam saindo os antepastos coloridos e cheirosos, um mais lindo que o outro. Eles são feitos com 65


CAPÍTULO IV

berinjela, abobrinha, couve-flor, batata, grão-de-bico, feijão branco e fradinho, três tipos de carne, pimentão, tomate seco “feito em casa” e mais alguns ingredientes que provavelmente passaram despercebidos, pois já estava hipnotizada pelos pratos. “Todo dia são os mesmos antepastos. Isso de variar é uma faca de dois gumes. A pessoa pode vir, gostar, voltar no dia seguinte e não ter. Tem gente que vem aqui só para comer os antepastos!” Eu faria o mesmo sem reclamar! E colocar todos numa vitrine que fica logo na entrada da cantina é covardia! Depois resolvi dar uma olhada no cardápio. Dentre os 14 sabores oferecidos, a pizza mais pedida é a meio mussarela, meio Castelões (mussarela com a lingüiça calabresa que secam na própria pizzaria). — Também tem o provolone que servimos, assim como a azeitona chilena, que tem um sabor sensacional! E eu em pensamento: Ok! Quero um pouco de tudo. — Vou te dizer uma coisa, de fome aqui ninguém morre! Percebi! Então me mate antes que eu saia rolando daqui! Entre os doces há o canoli siciliano. São três canos de massa frita com recheios de chocolate, creme de baunilha e ricota fresca com frutas cristalizadas. Também tem a sacrapantina, uma receita resgatada de um livro italiano centenário. É um doce com três camadas: pão de ló, creme e creme com cassis, além da calda de frutas silvestres e chantily. E João me alertou: “O cardápio não é muito extenso.” Mas neste caso cai muito bem a frase “quantidade não é sinal de qualidade e vice-versa”. Só de olhar os antepastos, o cardápio e as fotos, já fiquei com fome, muita fome. Ma che delizia! Já estava pensando em ficar para o almoço e experimentar alguma das delícias que eu observava desde manhãzinha, quando recebi o convite do senhor João: — Você almoça comigo então? E logo respondi animadíssima: — Sim! Que vergonha! Nem consegui disfarçar... Enquanto ele ajeitava algumas coisas no balcão e no caixa, eu escrevia parte do cardápio para não esquecer. Então ouvi: — Vamos sentar? 66


CASTELÕES

Quando olhei, não acreditei. Ele tinha arrumado a mesa! Então nos sentamos e começamos o almoço pelo pão italiano e a calabresa. Depois veio a alcachofra recheada com palmito, aliche, queijo ralado e azeitona chilena. Que delícia! Nunca tinha comido alcachofra assim e foi engraçado ter que puxar uma folhinha de cada vez para achar a parte gostosa. O prato principal foi fusili com molho de tomate, de massa fresquinha e molho — que leva dois dias para ficar pronto — feitos artesanalmente. Sentir o gosto verdadeiro das coisas sem conservantes tem seu valor e seu sabor. E tudo foi servido com elegância: garçom com gravata borboleta, duas colheres na mesma mão e muita simpatia e atenção.

“Uma vez meu irmão chegou à casa de meu outro irmão para cumprimentá-lo por seu aniversário, mas quando não encontrou ninguém em casa, não teve dúvida: foi direto para a Castelões e lá encontrou a família”

Eneida Mônaco

Será que essa entrevista acabará em pizza? Em pizza não poderia acabar, porque ainda era cedo e as pizzas só são servidas a noite. Nem João nem eu sabíamos por quais motivos o paulistano só come pizza, de preferência, no jantar, mas concordamos que é impossível negar que esta é uma das maiores paixões dos moradores dessa cidade que não para. Vários outros assuntos acompanharam a refeição, desde gatos até investimentos em projetos culturais feitos no Brasil. Nesse momento, o gatinho com pelo preto e branco e carinha de criança sapeca, Frajola, “morador” da Castelões há cinco meses, nos observava. “Não há nada melhor contra esses bichinhos indesejáveis [referindo-se a ratos]. Aqui, por ser uma região antiga, com casas velhas, esgotos, tem muito. Nós prendemos o Frajola quando tem cliente, senão ele sobe no colo.” João lembrou que ainda não havia selecionado as fotos tiradas na 67


CAPÍTULO IV

comemoração dos 85 anos da cantina. E eu me perguntei: “Onde ele colocará tanta coisa? Só se levá-las para a cozinha ou construir uma nova parede só para isso”. Mesmo assim ele pediu para que eu levasse umas das que tirei para colocar no acervo da casa com meu nome e data. Fiquei muito feliz em ser convidada para fazer parte dessa história. Para variar, depois de ver mais de um símbolo do Palmeiras pelas paredes da casa e uma placa que dizia: “Tenho três paixões na vida: 1ª Ser brasileiro; 2ª Ser Palmeirense; 3ª Comer pizza na Castelões”, não resisti e perguntei se ele torcia para o time alviverde. “Palmeirense era o meu pai, eu não sou muito aficionado por futebol, mas dentro dessa casa eu tenho que ser. Não morro de paixão.” Bom, menos mau. Estranho seria ouvir que ele era corintiano. Depois descobri que a pizzaria tinha a fama de premiar artilheiros palmeirenses. Em todo domingo de jogo, o dono da cantina dava uma pizza para o jogador que fizesse gol na partida. Ele também me contou que ia com seu pai ao Capuano na Rua Major Diogo. Lembrou-se do esquema de funcionamento da antiga cantina. Ciccio abria às 8 horas da noite e, quando a casa enchia, fechava as portas. As carnes variavam diariamente entre cabrito, frango e coelho. E não tinha cardápio. Havia salada, um prato de entrada, outro era o principal e, por fim, a sobremesa. “De sobremesa, ele entrava no salão com uma caixa de frutas no ombro e dava uma para cada um. Às vezes era maçã, outras, pêssego, dependia da época. Quando íamos ao Mercadão umas 10, 11 horas da manhã, encontrávamos o Capuano comprando as coisas para a cantina dele”, complementou João. Citou alguns dos clientes ilustres da pizzaria. “O FHC vinha aqui. Depois que ele ganhou as eleições, veio comemorar aqui, fez uma festança. Quando ele era senador, vinha aqui aos sábados e, às vezes, tinha fila. Uma vez uma senhora perguntou: ‘Você não vai deixar o senador passar na frente?’ Eu disse que não podia fazer isso. Quando ele entrou falou para mim: ‘Você fez muito bem!’ E eu respondi: ‘Até porque o senhor se sentiria mal e eu não aceitaria de forma alguma.’ Ele e a dona Ruth, inteligente e culta, sempre vinham. O Serra, o Kassab, o Maluf vêm bastante. O Ulysses Guimarães vinha muito. Advogados famosos...” João também me ofereceu vinho, mas beber durante o “trabalho” seria demais. Acho que foi a única coisa que recusei. Na pizzaria há vinhos importados (chileno, argentino, italiano e francês), além dos nacionais. Tentador! Outros temas também vieram à tona, já que ninguém estava com pressa mesmo e meu sábado estava ótimo até então. Também falamos sobre bairros 68


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bons para se morar, sobre um passado que eu não vivi, sobre música clássica, sobre como projetos culturais são essenciais para o desenvolvimento de um país e como os políticos brasileiros não se importam com isso, sobre como a comida estava boa, sobre... Nossa! Já fazia mais de três horas que estava lá! Mais um pouco, ficaria para a janta também, ajudava a lavar a louça, a limpar as mesas... Sem dúvidas, esse dia fez com que meus amigos descrevessem o tema do meu trabalho como o “pior” que eu poderia escolher. Juro que foi sem querer (querendo)! Pizza para a vida toda Eneida Mônaco, 51 anos, administradora cultural, frequenta a pizzaria “a vida toda”, ou seja, desde que se conhece como gente. “Moro próximo, sou neta de italianos, não havia como não conhecer...” Costuma ir sempre com a família e divide com eles a pizza preferida: mussarela. Esse costume já virou tradição e, quando há alguma comemoração, ninguém tem dúvida de onde todo mundo está. “Uma vez meu irmão chegou à casa de meu outro irmão para cumprimentá-lo por seu aniversário, mas quando não encontrou ninguém em casa, não teve dúvida: foi direto para a Castelões e lá encontrou a família.” Pelo visto não é só o restaurante que passa de pai para filho, o gosto pela pizza mais antiga de São Paulo também.

Cantina e Pizzaria Castelões Rua Jairo Góis, 126 Brás – Região Central 3229-0542

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N


CAPÍTULO V

Freddy

Fundado em 1935

O mineiro mais francês de São Paulo dona Priscilla Simonsen Biancalana

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chef Geraldo Rodrigues (Leléo)

o Itaim Bibi, bairro que possui várias empresas, complexos comercias e restaurantes, está o Freddy, entre árvores e ruas movimentadas. À sua frente, um grande personagem da cozinha brasileira (ou seria francesa?), o chef Geraldo Rodrigues, 66 anos, mais conhecido como Leléo. Há 47 anos, Leléo ajuda a manter a tradição do Freddy, onde chegou aos 18 anos por meio de seu cunhado, Joaquim Moreira de Aquino, chef do restaurante à época. Começou na pia, como todos, e aos poucos foi mudando de posição na hierarquia da cozinha. Tornou-se quarto, terceiro, segundo chef, e, quando Joaquim saiu, alcançou a posição mais alta: grand chef de cuisine. “Comecei como todos os chefs, lavando panela, olhando fogão, fazendo purê de batata e assim por diante. A gente vai aprendendo.”


CAPÍTULO V

Entrei pelos fundos do restaurante e lá estava Leléo se preparando para fazer compras, pois tinha se esquecido da entrevista. Mais um pouco e o perderia para verduras, legumes e muitos outros ingredientes. Iltom Santos, que cuida do escritório, me ajudou a encontrá-lo e me deu um recado: — Esse homem tem mais história para contar do que a turma do Walt Disney. Cuidado! – e todos riram. — Dá para fazer um livro, tem muita história no Freddy – confirmou Leléo. De monsieur Freddy à Priscilla Biancalana O restaurante foi inaugurado em 1935, na Rua Conselheiro Crispiniano, no Centro da cidade, por Freddy. Ele passou o comando do estabelecimento a Jacques Legoff, dono do restaurante por 20 anos. Mas o troca-troca não parou por aí: o proprietário seguinte foi Severino Pontes, que teve como sócia a atual dona, Priscilla Simonsen Biancalana, que agora está no comando do restaurante. Assim como mudou de dono, o Freddy também mudou de lugar. Primeiro saiu da Rua Conselheiro Crispiniano, centro de São Paulo, e chegou ao Itaim Bibi, Praça Dom Gastão Liberal Pinto, número 111, em 1955. O Itaim foi escolhido porque o bairro estava começando a crescer e lá continuaram. Em 2007, foram para a Rua Pedroso Alvarenga, número 1170, “pelo fato de a região ser mais ‘ligada’ à culinária, ser mais moderna e mais ‘leve’”, de acordo com o chef. Enquanto Leléo falava, com seu jeito de moleque, sempre cumprimentando e brincando com todos que passavam, caminhões, carros, aviões, tudo atrapalhava nossa conversa. Barulho, muito barulho a cada minuto! Esse é o problema de estar no meio de um grande centro comercial de uma metrópole como São Paulo. Quem é Geraldo Rodrigues? Só conheço o Leléo! Leléo chegou à São Paulo com nove anos de idade, em 1954. Veio de Minas Gerais com sua família, os pais e 12 irmãos. O apelido foi dado pelo seu padrinho de batismo e, até hoje, só o chamam assim. Antes de ir para o Freddy, o chef teve várias profissões. Foi agricultor, feirante, trabalhou num parque de diversões e num circo, onde, entre outras coisas, montava as caixas de som para a dupla sertaneja Tonico e Tinoco. “Meu pai tinha uma chácara em Santo Amaro. Trabalhei como jardineiro... Depois comecei no Freddy. Não queria vir porque tinha que trabalhar sábado e domingo. Mas eu gostei e não sai mais!”, confessou Leléo. 72


FREDDY

Na capital paulista, formou sua família. Teve 13 filhos. Mas a cidade que lhe deu tantas oportunidades também lhe tirou pessoas importantes. “Ocorreram vários acidentes. Mataram um filho meu, o mais velho morreu num acidente de moto... É a vida, né?”. Logo em seguida ele disse ter 18 netos, provando que continua caminhando de qualquer forma. O ritmo de trabalho do Freddy é “alucinante”. Sábado, domingo e feriados praticamente não existem, o que não parece incomodar muito Leléo. Ele afirmou mais de uma vez adorar o que faz. “Aqui é muito bom! Mas não tem descanso. É trabalho todos os dias. Agora eu venho mais durante a semana para ver se está tudo certo. O duro será quando eu tiver que parar de uma vez. Terei que vir pelo menos uma vez por mês. Aqui é minha casa, né?! Mais que minha casa! É muito bom!”

“Eu nasci na cozinha já. Quando meu pai chegou em casa, não tinha parteira nem nada, eu estava no chão da cozinha. Então, se nasci lá, ia ser cozinheiro”

Geraldo Rodrigues (Leléo)

E pelo jeito sua profissão foi logo revelada no dia de seu nascimento. “Eu nasci na cozinha já. Quando meu pai chegou em casa, não tinha parteira nem nada, eu estava no chão da cozinha. Então, se nasci lá, ia ser cozinheiro.” Nada melhor do que uma história quase que fantástica para dar sentido ao que somos e sentimos. Leléo ensina tudo àqueles que chegam à cozinha do Freddy para que os pratos e o serviço não sejam modificados. Apresentou-me aos outros funcionários que estavam por lá e cada um que passava recebia uma definição. “Esse é o ‘Leléo Segundo’ — falou rindo —, Francisco, o segundo chef. Esse é irmão de um dos chefs — apontou para outro —, fica na pia, mas já sabe fazer bastante coisa. Eu comecei assim também.” Outro segredo da cozinha do Freddy é utilizar sempre os mesmos ingredientes e comprá-los, se possível, sempre dos mesmos fornecedores para 73


CAPÍTULO V

manter a qualidade e a tradição. Mas é impossível negar que o maior segredo do restaurante é a simpatia de Leléo, que agrada até aos fregueses que sempre pedem para chamá-lo. “O pessoal gosta muito de mim. Pede para alguém me chamar e eu vou lá bater papo. Bom demais! Muito legal!”, disse mais um vez, sorrindo. Além disso, o talento e o humor fazem com que ninguém queira perdêlo. Já surgiram várias propostas, mas os donos do Freddy nunca o deixaram ir embora. Sempre apresentavam uma contra-proposta e iam atrás dele. Histórias de um chef “Causos” é o que não falta de jeito algum. Entre uma resposta e outra, Leléo encaixava uma de suas peripécias. A primeira foi sobre escargots, digamos, sem recheio. “Eu era solteiro naquela época e saí numa quarta-feira. No dia seguinte, entrava às 10 horas [no restaurante]. Cheguei caindo de sono. Daí pediram escargot. Temperei e mandei para a mesa... sem o escargot. Parece piada! Mas eu estava tão ruim, com tanto sono, que mandei só a casca. Até hoje não sei como é que eu fiz isso!” Mas nem só de trapalhadas vive o chef. Ele também teve seu reconhecimento por conseguir agradar um casal que não se satisfazia com nada e só gostou do prato preparado por ele. “Uma vez o chef, meu cunhado, fez um contra-filé — eu era o terceiro chef nessa época —, e os clientes, um casal de alemães, reclamaram. Daí eu tentei fazer e deu certo. Então eles pararam de reclamar e dali pra frente ninguém mais fez esse prato, só eu. Não sei por que deu certo. Não sei se ele passava demais do ponto, mas acertei na veia, como dizem.” Leléo conheceu gente famosa e alguns deles, inclusive, foram até a cozinha lhe dar um abraço em agradecimento pela refeição. “Tanta coisa me marcou aqui! O Pelé veio até a cozinha. É um cara tão gentil, tão bacana. Também vi a Hebe Camargo, Silvio Santos, Bolinha, Marília Gabriela, Goulart Andrade, Genival Lacerda...” Uma escola De acordo com o chef, muitos dos que passaram e passam pela cozinha do Freddy vieram principalmente do Nordeste, além de outras regiões do país. “Eles aprendem a fazer as coisas aqui comigo e depois saem, vão para outros restaurantes quando recebem propostas melhores” — como quando têm a 74


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oportunidade de serem primeiros chefs, já que esse posto no Freddy é de Leléo. Estagiários também passam pelo restaurante, ficam alguns meses e seguem seus caminhos, o que não os impede de construir uma amizade com o chef, que ainda hoje recebe notícias daqueles que o tiveram como mestre. Ele não fez nenhum curso, aprendeu tudo olhando, tentando, errando e conseguindo. Já foi várias vezes premiado e, em 1993, ganhou como Melhor Chef do Rio de Janeiro e de São Paulo pelo Guia Quatro Rodas. Também figurou bastante em matérias feitas pela revista Veja e pelo jornal O Estado de S. Paulo, além de participar de programas na televisão, como num de desafios, em que dão um grupo de ingredientes para cada chef convidado, que deve criar um prato. “Eu vou lá e faço. Sai melhor ainda!” Festivais e pratos tradicionais Leléo nunca saiu do país, o que me surpreendeu bastante, confesso. Mas também compreendi que nossa culinária francesa-brasileira tem seu toque especial, devido, inclusive, às adaptações decorrentes de não termos os mesmos ingredientes disponíveis no outro continente. Isso a tornou diferente da chamada cozinha francesa clássica, o que não significa que tenha mais ou menos qualidade, apenas que é diferente e saborosa. O restaurante promove festivais durante o ano. São eles: Camarões, Chateaubriand, Cordeiro e Cavaquinha. Leléo estava se preparando para o Festival do Cordeiro e me entregou alguns papéis divulgando o evento. Durante dois meses, no almoço e no jantar, todos os dias, por R$ 109 por pessoa, podiase provar receitas tradicionais tendo direito a entrada (paté maison, coquille de

crabe, carpaccio de carne), pratos principais (steak de cordeiro, brochette de cordeiro, costeletas de cordeiro, gigot - perna de cordeiro assada, servida com feijão branco) e sobremesas (marjolaine com calda de chocolate quente, petit

gâteau e crêpes suzette). Entre os pratos tradicionais destacam-se o cassoulet maison, carnard

maison, chateuabriand, lagostas ao thermidor, blanquette de veau, coq au vin, entre outros. Opção é o que não falta! E caso queria inventar algo, tudo bem. Leléo dará conta do recado. 75


CAPÍTULO V

“Aqui quem manda é o cliente” Mauro Ribeiro dos Santos, 35 anos, trabalha no Freddy com Leléo há quatro anos. Após perder o emprego, estava passando em frente à casa do gerente, Iltom, seu vizinho, que perguntou se ele queria cobrir as férias de um funcionário. Ele aceitou e lá ficou. — E sem férias! – disse Leléo rindo – Eu fiquei aqui 10 anos sem férias. Trabalhando direto! O Iltom também. É, pelo jeito, não é fácil mesmo... Para Mauro, quem manda é o cliente. “Sempre fica alguém na cozinha e à disposição do cliente enquanto precisar. Restaurante é oportunidade e tem que aproveitar para não perder o freguês. Afinal de contas, ele paga para ser bem atendido.”

“Sempre fica alguém na cozinha e à disposição do cliente enquanto precisar. Restaurante é oportunidade e tem que aproveitar para não perder o freguês. Afinal de contas, ele paga para ser bem atendido”

Mauro Ribeiro dos Santos

Mauro era cobrador e fiscal de ônibus e foi parar num ramo completamente diferente, sobre o qual nada sabia. Léleo logo avisou: “Ele é esperto! Tem que ser esperto, não pode se acomodar. Deu a chance, tem que aproveitar.” Para manter a tradição e não sufocar o chef de trabalho, à noite quem cuida das panelas é Francisco Estrela Abrantes Filho, também “criado” por Leléo e que está no Freddy há mais de 30 anos. Paciência e simpatia Enquanto terminávamos o papo, os clientes que estavam almoçando foram embora e tínhamos o restaurante só para nós. Então chegou o momento das fotos e de conhecer cada canto do Freddy... E de ganhar balinhas também. 76


FREDDY

O lugar e sua decoração me impressionaram, assim como a simpatia de Mauro e Leléo, que foram me explicando e me indicando cada detalhe dos ambientes do restaurante. O salão principal possui um lustre enorme, logo acima de uma mesa. Outro salão menor também é iluminado por um lustre semelhante, porém menor. Quadros pelas paredes remetem à França e sua história. O piso feito de madeira “de demolição” dá um clima bom ao ambiente. A adega climatizada chama atenção por ser diferente das que já tinha visto — não que eu já tenha conhecido muitas, mas as garrafas ficam deitadas em mantas metálicas que, com iluminação especial, também dão ao lugar um certo clima. Até o banheiro merece destaque e já foi, inclusive, fotografado para um livro que reúne banheiros de vários restaurantes do país (Banheiros & Personalidades, Editora Melhoramentos). Acabei ganhando um exemplar por ter me encantado com a ideia dos criadores do livro. Leléo me mostrou a cozinha, o início do preparo de alguns pratos e o fígado canceroso de um ganso, o famoso e chique froie gras. Confesso que não é algo bonito de se ver, mas o sabor deve ser divino. Não posso confirmar essa informação por nunca ter experimentado, tanto por falta de coragem quanto por falta de dinheiro no bolso. Au revoir Após visitar a França, tive que voltar para o Brasil e isso fiz atravessando um simples portão. O menino Leléo me levou até a saída de “sua casa”. Acho que é para eu voltar sempre!

Restaurante Freddy Rua Pedroso Alvarenga,1170 Itaim Bibi – Zona Oeste 3167-0977 www.restaurantefreddy.com.br

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CAPÍTULO VI

Itamarati

Fundado em 1940

Ter memória é a alma do negócio

S

donos Adriano Diniz dos Santos José Jesus de Souza Oscar Francisco de Souza

e o Largo São Francisco falasse, com certeza contaria inúmeras histórias, entre elas a criação da Faculdade de Direito 11 de Agosto e o que isso significou para São Paulo e para o Brasil. Com a vinda dos estudantes para o centro da capital paulista, houve a necessidade de abrir estabelecimentos onde os alunos pudessem se alimentar, conversar e aproveitar a noite. Assim surgiram nossos primeiros restaurantes, cafés e confeitarias, tudo para satisfazer a demanda dos universitários. Rua José Bonifácio, 270. Endereço fácil de encontrar. O Itamarati fica próximo ao ponto inicial de várias linhas de ônibus, às estações de metrô Sé, São Bento e Anhangabaú e ao Viaduto do Chá, à Rua Senador Feijó e, principalmente, à Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Como não poderia deixar de ser, o caminho até o Centro foi longo, pois


CAPÍTULO VI

para alguém que mora na Zona Sul de São Paulo e depende exclusivamente do transporte público, qualquer lugar suficientemente interessante fica a, no mínimo, uma hora de distância. Por eu ter trabalhado na região por alguns meses, sentime em casa e, de certa forma, chateada por perceber, mais uma vez, que o lugar que procurava ficava exatamente no caminho que eu fazia todos os dias e eu não o notava. O olhar apressado e desatento paulistano estava no modus operandi há mais tempo do que imaginava. Cheguei cedo, por volta das 10 horas da manhã. Ainda arrumavam as mesas, colocavam as louças em seus devidos lugares, limpavam tudo; rotina de funcionário e dono de restaurante, presumo. No caixa, estava Adriano Diniz dos Santos, um dos donos do Itamarati. Sentamo-nos e, enquanto ele separava algumas moedas, eu preparava as perguntas. No início, Adriano estava um pouco desconfiado, dizia não haver muita história para contar, mas com o passar do tempo, pareceu-me menos incomodado.

“Eu costumo dizer que os que frequentam o Itamarati não são clientes, mas sim uma família. Isso porque tem freguês que saiu do Centro, montou escritório em outro lugar, mas quando pode, sempre vem comer aqui”

Adriano Diniz dos Santos

Um início mais doce O Itamarati abriu suas portas em 1940, mas não como restaurante, e sim, como confeitaria. Adriano pediu para buscarem um quadro no escritório e nele havia uma matéria antiga falando sobre a inauguração do local. O jornal era a Folha da Noite, de uma sexta-feira, 11 de julho de 1940. O dono do restaurante, hoje com 85 anos, não participou da inauguração, pois se tornou proprietário do estabelecimento apenas em 1960. “Tem pouca coisa daquela época. Eu fui o segundo dono, mas não sozinho. Sou eu e mais dois sócios.” 80


ITAMARATI

— Que diz aqui? – perguntou para mim, quando trouxeram o quadro. — “Com a presença de numerosos convidados”, — comecei a ler a matéria — “constituído em sua maioria por amigos e fregueses da Mercearia Nice, efetuouse ontem, à Rua José Bonifácio, 270, a inauguração da Confeitaria Itamarati. Ocupando um amplo e moderno salão, que está localizado em um dos pontos principais da cidade, o novo estabelecimento apresenta instalações modernas e harmoniosas, revelando em tudo o espírito de progressão que norteou a construção de seus mínimos detalhes. Tivemos a ocasião de observar os produtos expostos, todos da mais excelente qualidade, e provenientes de diversas origens. Após a inauguração, os proprietários da Confeitaria Itamarati, senhores Januário Miranda, José Maria Mesquita, Eduardo Teixeira Martins, Armando Cardoso e Manuel Mendes, ofereceram às pessoas presentes um lanche, no qual foram servidos os produtos que estão à venda no novo estabelecimento.” — As meninas eram bonitas naquela época, não eram?! – perguntou, de repente, o risonho Adriano. Memória gigante Pouco tempo depois, chegou Miranda, um dos garçons mais antigos do Itamarati. — Ela me ligou outro dia — disse a Adriano sobre mim — e eu pedi para retornar na semana seguinte, porque o senhor estaria aqui, já teria voltado de viagem, então ela poderia falar diretamente com o dono. Dei umas coordenadas... Fique a vontade, Paula! Com essa declaração, percebi que Miranda sentia-se responsável pelo restaurante também e não sem motivos, pois o primeiro contato do cliente é sempre com o garçom. E esse relacionamento entre aquele que serve e o que é servido facilmente pode evoluir para uma grande amizade. Pelas mesas do Itamarati passaram pessoas que marcaram a história de São Paulo e do Brasil. Entre os clientes ilustres estão Jânio Quadros, Ulysses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso, Lauro Lacerda e Faria Lima, além de outros nomes que fugiram à memória de Adriano. “Tem promotor, juiz, desembargador”, falaram Miranda e Adriano juntos, um completando a fala do outro. “Tornamo-nos donos do estabelecimento e, logo em seguida, Jânio Quadros renunciou. Depois veio a ditadura. Aquele ministro da justiça, Luís Antonio da Gama e Silva, que criou o Ato Institucional número 5 [AI-5] e prejudicou muita 81


CAPÍTULO VI

gente, também era nosso cliente, estudou na Faculdade de Direito. A maior parte de nossos clientes estudou aqui, são nossos fregueses desde aquela época. Eu costumo dizer que os que frequentam o Itamarati não são clientes, mas sim uma família. Isso porque tem freguês que saiu do Centro, montou escritório em outro lugar, mas quando pode, sempre vem comer aqui”, contou Adriano. Há casos de pessoas que iam ao restaurante com os avós e hoje levam os filhos e netos. Teve, inclusive, o caso de uma moça que apareceu por lá, de acordo com Miranda, dizendo que ia ao restaurante com o pai comer empadinha, feita no local desde a época em que era Confeitaria. “Ela comeu quatro empadinhas e ainda levou algumas para casa”, entregou o garçom. Essa foi apenas a primeira história contada por Miranda, ainda viriam muitas outras que não consegui registrar devido à presteza do raciocínio dele e a minha capacidade de escrita lenta. Sim, estava com gravador, mas não adiantou, pois além do fato do Miranda falar rápido, havia barulho no restaurante. Nunca tinha visto alguém com uma memória tão boa, recordando tantos nomes, cargos, parentescos, datas etc. Impressionante! — Tem a doutora Diva, juíza, foi presidente do tribunal, agora é professora; Cândido, um dos grandes ídolos da faculdade; tem o doutor Fábio, também aposentado. Você vê que graça, ele foi professor dos quatro filhos dele: Antônio, Luiza, Audálio e Marcos. E todos os quatro são professores agora. O mais velho é procurador da justiça. Quando sobra um tempinho ele vem pra cá – contou o garçom com certa intimidade. Esquema paulistano O restaurante funciona de segunda a sexta. Em cada dia da semana é servido um prato diferente, além do cardápio fixo. Segunda-feira é a vez do famoso virado à paulista do Itamarati, que tem como acompanhamento arroz, couve, linguiça, ovo e banana frita. “O pessoal adora o virado à paulista. É o tradicional daqui! Tem gente que vem de longe comer esse prato. E o bacalhau também. É muito bom! Não é porque eu trabalho aqui, mas a comida é muito boa”, reforçou Miranda. “O patrão é muito legal. Não tô querendo caixinha não!” E todos caímos na risada. O Dia do Pindura Os estudantes de Direito da Faculdade do Largo São Francisco criaram uma 82


ITAMARATI

tradição. A ela deram o nome de Dia do Pindura, que ocorre em 11 de agosto, data da fundação da Faculdade. Nesse dia os futuros advogados entravam nos estabelecimentos, comiam tudo o que queriam e saíam sem pagar a conta, oferecendo como “moeda de pagamento” os agradecimentos feitos normalmente por um dos formandos. Porém, com o passar do tempo, a tradição tornou-se insustentável, como afirmou Adriano. “Ainda hoje tem o Pindura, mas se tornou um abuso muito grande, porque, antigamente, só quem seguia a tradição era a Faculdade 11 de Agosto, depois se estendeu a todas as faculdades. Virou bagunça! Agora, quando fazemos alguma coisa, só não paga estudante que frequenta a casa. Além disso, antes era só no dia 11, agora é durante uma semana.” Para Miranda, também é impossível manter a tradição, já que nenhum estabelecimento suportaria uma semana dando comida de graça para um monte de estudante faminto. “Tinha um professor que vinha todos os dias, trazia amigos, alunos. Uma pessoa dessas merecia o Dia do Pindura”, lamentou. O ponto de encontro Não importava o motivo, professores, alunos, ex-alunos, todos ligados de alguma forma à Faculdade comemoravam qualquer coisa no Itamarati. Há quase 10 anos, após os resultados das eleições da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), que ocorrem de três em três anos, os vencedores faziam seus discursos no restaurante. Além disso, a casa recebia a visita dos antigos alunos. Votação era sinônimo de muito trabalho, como recordou Miranda. “Nesse dia a gente começava trabalhar às 10 horas da manhã e ia até às 10, 11 da noite. Fechávamos a casa e ficava gente aqui dentro ainda.” Os tempos mudaram e agora a votação ocorre em vários locais do estado. No Largo São Francisco, votam apenas os associados mais antigos, dentre os quais sempre há, no mínimo, um freguês que sente falta do Itamarati. “Tem gente que aproveita e vem aqui matar a saudade. Alguns ligam para conversar, falam que estão com saudade do chopp”, conta Miranda, listando mais alguns nomes e cargos que, mais uma vez, não consegui anotar devido à quantidade de informações por minuto. Em toda penúltima sexta-feira do mês, antigos alunos da Faculdade se reúnem no restaurante e lá conversam, se divertem e levam a família toda para comer os pratos que tanto os prendem a esse lugar. Ou isso seria apenas mais uma desculpa? 83


CAPÍTULO VI

Na entrada do Itamarati, encontramos uma placa da Associação dos Antigos Alunos do Largo São Francisco homenageando o restaurante com os seguintes dizeres: “Celebrando 62 anos de amizade e alegria”. Demonstrações de carinho e afeto como esta tornam clara a ligação forte estabelecida entre o restaurante e seus fregueses. Os artistas também comem Além dos engravatados, artistas também frequentavam o Itamarati. Entre eles Yoná Magalhães, Lucélia Santos, Sérgio Reis, Erasmo Carlos e Bete Mendes, que, de acordo com Miranda, “engordou comendo bacalhau aqui”. — Não fala isso! - retrucou Adriano, rindo. E o garçom se lembrou de mais alguns clientes do restaurante. “Tinha freguês que vinha almoçar, ficava aqui, pedia para o pessoal trazer os papéis para ele assinar e saía tarde. Tinha outro que vinha, comia, fazia o cheque mas não destacava a folha do talão. Várias vezes alguém teve que vir trazer depois.” De onde vim, onde estou — Qual é o seu nome completo? – perguntei ao garçom. — Miranda! — Só Miranda!? Como foi difícil segurar, demos risada novamente. Miranda já se acostumou tanto com o fato de ser chamado apenas pelo sobrenome que parece ter se esquecido do restante: José Moreira Miranda. José, 55 anos, trabalha no Itamarati há quase 30 anos. “Eu gosto do ramo, a clientela deles é excelente. Tem gente que chega aqui e nem pede a comida, eu já sei que prato é, a sobremesa, a bebida, tudo.” E logo começou a contar mais algumas histórias. Já o senhor Adriano é português, de Leiria, e chegou ao Brasil em 1942. “Vim para cá pelo mesmo motivo que todo imigrante vem: para procurar uma vida melhor. Antes de ter o restaurante, fui até entregador de pão na rua. Tive um bar na Praça da Sé por oito anos.” Seus atuais sócios são Oscar Francisco de Souza e José Jesus de Souza, irmãos. José foi o primeiro a entrar no negócio e, com o tempo, a relação entre ele e Adriano evoluiu para uma grande amizade. “Eu tinha um negócio na Rua 7 de Abril, esquina com a Dom José de Barros. 84


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Saí de lá e passei para outra pessoa. Então comecei a procurar um lugar que servisse para o novo empreendimento e um corretor me indicou a Confeitaria. Três pessoas estavam interessadas e, como eu não podia esperar mais, perguntei quem me acompanharia. O Souza levantou a mão e falou que vinha comigo. Assim foi criada a nossa sociedade. Somos sócios e amigos. Nunca tivemos atritos um com o outro, porque sabemos nos respeitar. Ele é português também.” Já a sociedade com o Oscar começou quando tiveram alguns problemas com a Procuradoria do Estado, que ficava no prédio acima, e, para não ver o restaurante desaparecer e deixar os funcionários na mão, abriram outro estabelecimento na mesma rua. “Os procuradores achavam que precisavam dessa parte aqui de baixo para fazer um estacionamento e quiseram desapropriar. Como o prédio era da Santa Casa, eles propuseram a troca desse imóvel por outro semelhante e entraram num acordo. Para evitar qualquer problema maior, como já tínhamos essa quantidade de empregados que poderia ser mandada embora, e o Centro, naquela época, era muito melhor do que hoje, nós abrimos outra casa, como churrascaria, aqui na José Bonifácio, número 176.”

“O pessoal é tão bacana que em 1998 fizeram uma festa aqui para os alunos. Fechamos o restaurante para eles e ficaram até às cinco da manhã. Tudo gente nova, mas bem disciplinada! Uma alegria, uma festa”

José Moreira Miranda

Porém, com as mudanças que ocorreram na região, houve a saída de bancos, financeiras e outras empresas, e, consequentemente, a diminuição da clientela, que aos poucos foi se modificando. Dessa forma ficou difícil manter duas casas em funcionamento e passaram a churrascaria para outros donos, que abriram no lugar um self-service. Mais uma vez, a história se repetiu e um antigo restaurante paulistano teve que se esforçar para manter as portas abertas. Adriano afirmou que durante esses anos a situação mudou muito. “Antigamente, quando tínhamos as duas casas, 85


CAPÍTULO VI

no almoço o movimento era regular e trabalhávamos muito a noite, tinha chopp, essas coisas. Como havia muita empresa, os funcionários se juntavam aqui depois do expediente. Com a saída delas, nossa noite fracassou. Então passamos a nos basear mais no almoço, criamos pratos mais econômicos para lidar com clientes de self-service. Nossa sobrevivência é assim. Enfrentamos o que der e vier, com calma!” Para o dono do Itamarati, “sobrevivemos mais devido à tradição e ao bom serviço”. Reformas Já as mudanças dentro do restaurante não foram muito grandes. No entanto, a fachada, antes reta, ganhou arcos, uma referência à Faculdade de Direito. O balcão mudou de lugar duas vezes. Inicialmente ficava da porta até o meio do salão, depois passou a ser do meio ao fundo e agora fica ao fundo, de frente para a porta. “O piso continua o mesmo, meio quebrado aqui, meio quebrado ali.” Nas paredes, há quadros antigos da Kibon, da época em que a marca chegou a São Paulo. “Nós tínhamos um funcionário muito habilidoso que foi contratado pela Kibon para fazer esses quadros.” História nunca falta Mesmo depois de muito falar sobre sua história e do restaurante, Adriano ainda achava que não havia tanta coisa para contar. “A história é mais curta do que você pensou! Bagunça, quebra-quebra, nunca houve. Nossos clientes são bem disciplinados.” Não que eu acreditasse que só existia história se houvesse briga. “O pessoal é tão bacana que em 1998 fizeram uma festa aqui para os alunos. Fechamos o restaurante para eles e ficaram até às cinco da manhã. Tudo gente nova, mas bem disciplinada! Uma alegria, uma festa”, complementou Miranda. Os clientes Terminamos a entrevista, mas como queria conversar com alguns clientes e Adriano falou para eu voltar às 13 horas, quando o restaurante enchia, resolvi dar uma volta pelo Centro e conhecer outro estabelecimento bem antigo de São Paulo, além de comprar alguns livros nos belos sebos da Liberdade. Fui até a 86


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Padaria Santa Tereza, inaugurada em 1872, que tem uma canja e uma coxinha de ótima fama entre os paulistanos. Conferi só a canja e recomendo. Preço bom e servida em grande quantidade. Pouco depois do horário combinado, retornei e, na entrada, encontrei um moço de quepe recepcionando os fregueses. Novamente me puni pela falta de atenção. Como é que nunca tinha visto aquele restaurante na José Bonifácio? Logo que entrei, Adriano me apresentou a algumas pessoas. Na primeira mesa visitada, estava Cláudio Lembo, ex-governador do Estado de São Paulo, que disse frequentar o lugar há mais de 60 anos. Não sei se fiz alguma expressão de surpresa, mas ele perguntou se eu tinha me assustado. “Estudei na São Francisco, trabalhei aqui no Centro, saí do bairro, agora voltei e venho aqui no Itamarati, lugar tão tradicional de São Paulo. Venho com os amigos, estamos sempre aqui também por causa do ambiente agradável que o restaurante manteve por todos esses anos.” Em outra mesa, quatro senhores com cerca de 70, 80 anos cada, acabavam de almoçar. Heraldo vai ao restaurante desde 1968. Estudou na Faculdade, mas conheceu o local antes, quando seu pai lá almoçava. “Almocei aqui todos os dias durante 25 anos. Há alguns mudei meu escritório e não posso mais vir com tanta frequência. Venho pelo menos uma vez por semana agora.” Já Maurício vai toda a semana ao Itamarati, apresentado por seus colegas da Faculdade. Praticamente todos os entrevistados tinham ligação com a Faculdade, provando ser essa a grande responsável pelo movimento do restaurante. Recompensa Já um pouco cansada por ter passado tantas horas no Centro, andando para lá e para cá, passando de mesa em mesa, analisando o movimento, a sede e a fome bateram. Então ganhei uma tradicional empadinha e um refrigerante do senhor Adriano. Assim entendi porque tem gente que vem de longe atrás desse salgado tão simples e saboroso.

Restaurante Itamarati Rua José Bonifácio, 270 Sé – Região Central 3241-4929 87


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CAPÍTULO VII

Brasserie Victória Fundado em 1947

“Saiba fazer sua palavra ser respeitada”

A

dono Edmond Azar

meta era chegar à Avenida Juscelino Kubitscheck, número 545. Só um ônibus e tudo estava resolvido. Em uma parte dessa grande avenida, encontrei a Brasserie Victória. Ela é maior do que eu imaginava. Não sei por que a via menor, como uma casa de família mesmo — não que o restaurante não seja aconchegante. Ele é bem iluminado, com bastante plantas em torno, o que fez parecer que eu tinha mudado de cidade apenas ultrapassando a porta de entrada. Não há exagero, pois ver tanto verde ao lado de uma grande avenida é raro. Essa ideia de contar a trajetória dos restaurantes antigos de São Paulo está me proporcionando uma experiência única: conhecer a cidade em que vivo, um pouco de sua história e daqueles que ajudaram a construí-la. Encontrei Maria Antonieta, que cuida do escritório da Brasserie Victória, e ela me avisou que o senhor Edmond Azar, dono do restaurante, chegaria um pouco mais tarde que o combinado. Ele fora ao médico fazer alguns exames, pois


CAPÍTULO VII

viajaria poucos dias depois. Enquanto ele não chegava, eu olhava os doces árabes no balcão, e também via famílias e amigos almoçando charutos de repolho recheados com arroz e carne, pão sírio, homos, kibes e esfihas... E a fome chegando. Uma família — pai, mãe e dois filhos — sentaram-se e aos poucos os pratos foram chegando. Não paravam de colocar comidas apetitosas na mesa. Fartura é uma característica da comida árabe! Edmond chegou com sua filha Vivian, me cumprimentou, pediu desculpas pelo atraso e nos sentamos. Expliquei a proposta do trabalho e ele conduziu a conversa quase que o tempo todo sozinho. Entrevistados assim são ótimos! O começo “Nós estamos no século XXI, mas vou contar o que aconteceu até chegar à inauguração do restaurante, como começou o século XX. Nele houve a invenção dos aviões, carros, computadores, eletricidade, e duas guerras também, de 1914 e 1939.” Poxa, ele foi à história mundial para justificar a vinda de tantos imigrantes para o Brasil. Muitos detalhes! “Quando terminou a guerra, que era na Europa, mas também afetou o Oriente Médio, em 1946, muita gente desses lugares, inclusive libaneses, sírios, palestinos, quiseram imigrar em busca de melhores condições de vida. A guerra arrasou tudo, morreu muita gente. Então, em 1948, vim para o Brasil.” Assim Edmond chegou ao ‘país da prosperidade’ para recomeçar. “Achei no Brasil uma liberdade que não tínhamos em nossa terra. Aqui há liberdade. Era maior antigamente. O povo brasileiro é magnífico, doce. Estou há 62 anos aqui no Brasil e não o troco por nenhum lugar do mundo.” Ele, o caçula da família, veio sozinho e, só depois, quando viu no Brasil um bom lugar para se viver, chamou os parentes que ainda estava no Líbano. “Quando comecei a ganhar algo aqui, mandei carta para o meu irmão, que já tinha três filhos. Escrevi: ‘Venha para o Brasil, é uma terra maravilhosa, tranquila.’” Edmond tinha cinco irmãos. Agora um está no Brasil com 87 anos, uma mora no México, com quase 90 anos, e os outros três faleceram no Líbano. Além do irmão, também trouxe a mãe para viver perto dele, que faz questão de deixar claro seu amor pelo país. “Como o Brasil, não há lugar igual.” O dono da Brasserie Victória começou a trabalhar com tecidos na Rua 25 de Março, assim como muitos outros imigrantes libaneses. Só teve contato com o 90


BRASSERIE VICTÓRIA

restaurante depois que conheceu sua esposa Adélia, filha da dona Victória Feres, que deu início a todo o negócio. Dona Victória saiu do Líbano em 1909. “Em 2009, completa 100 anos que ela veio para cá! Que coincidência!”, comenta feliz o senhor Edmond. Aos 15, ela chegou com o marido e sua mãe para encontrar seu pai, que tinha uma loja de tecidos na 25 de Março, porém ele não estava mais no Brasil. Então todos foram para os Estados Unidos e, só depois, em 1922, voltaram para o Brasil. Na década de 1940, o marido de Victória teve que retornar à terra natal para cuidar de negócios da família e, assim, ela deu início à Brasserie e Rotisserie que leva seu nome.

“Achei no Brasil uma liberdade que não tínhamos em nossa terra. Aqui há liberdade. Era maior antigamente. O povo brasileiro é magnífico, doce. Estou há 62 anos aqui no Brasil e não o troco por nenhum lugar do mundo”

Edmond Azar

O local era predominantemente frequentado por membros da colônia libanesa. Aos poucos, a comida árabe foi se popularizando no Brasil até tornar-se, inclusive, parte de redes de fast-food. “Quando a dona Victória começou, ninguém conhecia bem essa comida. Como na 25 de Março tinha muitos libaneses, sírios, árabes, ia todo mundo comer lá. E com isso os brasileiros se acostumaram a comer comida árabe: charuto em folha de uva, abobrinha, kibe, kibe cru, kibe assado, kibe frito, esfiha... Foi um sucesso. E tinha a doceria também. Fazíamos encomendas para festas, aniversários, casamentos.” E entre tantos imigrantes libaneses, como Edmond conheceu Adélia? “No navio que tomei para vir para cá, conheci um parente de dona Victória. Depois eu estava passando pela 25 de Março e vi o sobrinho dela, José, comendo no restaurante da minha sogra. Olhei para ele e perguntei o que estava fazendo lá. Então ele disse que estava trabalhando com a tia dele. Assim conheci Adélia 91


CAPÍTULO VII

e sua mãe. Comecei a namorar com minha esposa e fui trabalhar na Brasserie. Conversamos sobre as aldeias de onde viemos.” Assim Edmond falou do Líbano e de sua beleza e, novamente, do Brasil e sua fartura. “O Líbano é uma delícia, mas, para ir até lá, precisa de dinheiro. Quando tiver condições, vá para lá, você vai gostar muito. Passeios bonitos, comida boa... Já voltei para passear, porque para viver, trabalhar, é o Brasil.” O restaurante A Brasserie Victória foi inaugurada em 1947, na rua hoje conhecida por ter produtos bem baratos e por estar sempre lotada de gente vinda do Brasil todo, a 25 de Março. Com a chegada de muitos imigrantes orientais e cheio de camelôs no local, o restaurante também abriu uma unidade na Avenida Juscelino Kubitschek, em 1982. “Aqui foi um sucesso e na 25 começou a decair por causa da clientela. Depois de 1980, muitos marreteiros tomaram conta da rua. Não tinha como fazer coisa boa lá. Então resolvemos vender a propriedade de lá e mudar tudo para cá. Ficamos muito satisfeitos aqui. O lugar é excelente.” A culpa é dela Dona Victória nasceu em 1894 e faleceu em 1991. Deixou um grande número de receitas para seus decentes que não escondem o orgulho de poder dar continuidade a essa tradição. Já é a terceira geração da família que cuida do negócio e preza manter o fogo a lenha e a qualidade dos ingredientes. A comida é artesanal e os pratos não são feitos em série. Quem supervisiona o trabalho hoje são os netos da matriarca, Victória e Paulo. As receitas só eram passadas de mãe para filha, nada de livros de receitas e nem de homem na cozinha. Então Adélia, a única que podia acompanhar o preparo dos pratos, foi a responsável pelo registro das preciosas “fórmulas”. Victória chegou, inclusive, a expulsar o neto Paulo da cozinha quando estava preparando um kibe cru. De acordo com Edmond, a qualidade da comida árabe oferecida por eles é mantida porque os ingredientes são cuidadosamente escolhidos. “Eu não gosto de qualquer coisa aqui. Aquilo que eu compro é de primeira. Carne nenhuma vem moída de fora. Não sei quais tipos colocam! Só compro carne de boi, vaca não entra, e sempre carne traseira: coxão mole, alcatra e patinho, parte nobre do boi. Limpamos da nossa maneira. O arroz também é do melhor, a manteiga, a 92


BRASSERIE VICTÓRIA

farinha. Essa eu compro em pacote de cinco quilos, nada daquele pacote de 50, não vem limpa. A casa tem tradição e acredito que vai seguir. Eu estou vivo ainda, acho que ainda estou bem, quero viver mais um pouquinho... Se Deus ajudar, agradeço. E meus filhos estão aí para continuar.” Entre os pratos mais pedidos estão o kibe e a esfiha em primeiro lugar e também o kafta (carne no espeto) —“Muito gostoso, bom com pão, arroz, sai muito também”— e a folha de uva. “Uma maravilha! Nossos pratos são muito gostosos, muito bem preparados.” Além dos filhos de Edmond, também há uma equipe de funcionários, muitos deles trabalhando no restaurante há muitos anos, alguns há mais de 40. E o tratamento entre todos é bastante cordial e respeitoso, como se fossem todos da mesma família. “Uma moça ensina a outra a fazer comida árabe.” Família Azar Edmond e Adélia se casaram no dia 8 de julho de 1950. “Vamos fazer 60 anos de casados. 84 de idade e 60 anos de casado. Bonito, né?!” O casal teve cinco filhos, Victória, Vivian, Edmond, Paulo Sérgio e Luiz Carlos. Hoje todos trabalham com o pai no restaurante e estão recebendo seus ensinamentos. Fomos interrompidos por uma das funcionárias, era telefone para o senhor Edmond. Atendeu, resolveu e agradeceu muitas vezes a outra pessoa na linha e à moça que lhe trouxe o aparelho. Que gentil! Ele mantém uma relação de grande respeito mútuo com os funcionários. Um pedacinho do Líbano Como todo lugar tradicional, a Brasserie Victória também tem seus fregueses antigos, muitos já amigos da família, brasileiros que se apaixonaram pela comida árabe e libaneses que vão ao restaurante para ter um pedacinho da terra natal. “Alguns chegam aqui com saudades da nossa comida. Tornaram-se amigos de cumprimentar por nome. Deixamos tudo como antigamente. Tem gente que frequenta aqui há 50 anos. Vem saborear as coisas tradicionais. Dizem que é igual à comida do Líbano!” Mais fartura No Brasil há fartura de muitas coisas, inclusive de coisas que não fariam falta 93


CAPÍTULO VII

alguma se deixassem de existir, como a fome, a miséria e a violência. Mas aqui temos lugar para plantar, uma variedade imensa de frutas, legumes, verduras, água em abundância etc. Como se sabe, não é em todo lugar do mundo que conseguimos encontrar tudo isso. E essas são algumas das características que encantam Edmond. “Na Europa, um copo de água custa de dois a três dólares. O brasileiro vai ao mercado e sai com a sacola cheia. Você não sabe quanto custa isso na França, por exemplo!” O dono do restaurante contou que, antes de vir para o Brasil, em época de guerra, os navios não podiam atracar porque havia minas nas costas marítimas e por isso pequenas quantidades de alimentos básicos custavam muito. “Já aqui a pessoa leva uma cesta na feira, a enche de verduras e legumes e joga metade fora. Não há nada igual à fartura brasileira!”

“Alguns chegam aqui com saudades da nossa comida. Tornaram-se amigos de cumprimentar por nome. Deixamos tudo como antigamente. Tem gente que frequenta aqui há 50 anos. Vem saborear as coisas tradicionais. Dizem que é igual à comida do Líbano!”

Edmond Azar

Por gostar tanto daqui alguns dizem que ele não está enxergando bem, mas de acordo com Edmond: “Estou enxergando melhor do que todo mundo!” Para ele um grande problema do nosso tempo são as dívidas que as pessoas obtêm por comprar tudo no cartão de crédito, carnê, boleto, e depois não conseguem pagar. Afinal de contas, como pode gastar algo que não se tem? E faz todo o sentido. Uma vez sua esposa comprou uma enceradeira e lhe mostrou. Ele achou bonita e queria saber quanto tinha custado. Quando ela disse que pagara uma parte à vista e o restante daria aos poucos, em pequenas parcelas a cada 20 dias, Edmond pegou o telefone, chamou o homem que havia vendido o aparelho, deu todo o dinheiro correspondente ao valor da enceradeira a ele e pediu para o rapaz se retirar. Depois disse a Adélia para nunca mais fazer isso. 94


BRASSERIE VICTÓRIA

O lema é trabalhar e trabalhar “Cresci trabalhando e digo sinceramente que trabalhei!” Um dos “segredos” de Edmond é o trabalho árduo e continuo. — Que dia é hoje? – de repente ele pergunta. — Quarta-feira! — Pois é, eu sei muito bem que dia é hoje! Isso porque trabalhamos direto. Uma beleza de trabalho. Olha minha mão! – mostrando-as para mim - Trabalho com minha cabeça, falo com um, falo com outro, com meus empregados. Eu entro aqui, todo mundo me cumprimenta, eu cumprimento todos como gente minha. Não tem disso não! Sujeito que não ganha dinheiro aqui no Brasil é porque não é trabalhador! Brasil não tem igual, filha! – reforça - Confia no Brasil que vai bem! Então ele abordou mais algumas coisas que incomodam muito quem mora aqui, entre elas a segurança, e me deu alguns toques, umas dicas para me dar bem na vida. “Nós precisamos de segurança. Primeiro falávamos outra coisa. Era que o Brasil precisava de cultura, de educação. Já hoje é segurança! Mas uma pessoa culta sabe se defende por meio da educação! Então faria mais sentido continuar investindo na educação. Você vai muito bem, hoje está ganhando pouco — como é que ele sabe? —, mas quando ficar mais sábia, falar mais, vai melhorar. Você deve chegar em uma pessoa com honestidade, não pode ser muito acanhada, não deve existir medo. Isso é experiência da vida, da velhice. Eu era muito ‘não quero isso, não quero aquilo’, mas tem que saber explicar. Saiba fazer sua palavra ser respeitada! Estou falando assim porque você é muito meiga, muito gentil. Isso serve para você. Vai se lembrar de mim e vai falar: ‘Aquele velho falou aquelas coisas para mim’. Você vai ver!” Eu já estava toda envergonhada, como sempre, porém uma frase ficou na cabeça: “Saiba fazer sua palavra ser respeitada!” — Está gostando? Que mais, Paulinha? O que você quer saber? Nesse momento me senti amigona do Edmond, um senhor muito paciente e gentil. Mas já não conseguia me lembrar das outras perguntas. Será que eu tinha mais perguntas? Acabou? Ah, não! Pedi para que escrevesse os nomes das regiões de que vieram ele e a esposa. Colocou também no papel seu nome, para que eu não o escrevesse errado. 95


CAPÍTULO VII

— Tudo o que nós falamos você gravou? — Gravei! — Será que falei alguma coisa errada? Foi bom? Dá para dar uma nota quatro, cinco? — Mais... — Muito bem, Paula! Espero que se saia bem. Se precisar de alguma coisa, disponha da gente. Que você tenha um bom desempenho em seu trabalho. — Obrigada! E que o senhor sorria por muito tempo ainda... Retorno Em minha segunda visita à Brasserie Victória, tirei fotos da entrada, dos salões, dos doces, mas a primeira imagem registrada foi daquele que disse meu nome assim que entrei. — Paula! — Olá, senhor Edmond! — Tudo bem com você? — Sim, e com o senhor? — Tudo bem. Está cansada? Estava, mas, depois dessa recepção, não mais. Conversamos um pouco e registrei alguns momentos. Uma das funcionárias pediu para não sair na foto e ficou brincando com um rapaz que estava atrás do balcão com Edmond. Depois mostrei as fotos para ela, que as elogiou. Desse jeito fiquei com vergonha e com o ego lá em cima também, é claro! — Quer comer alguma coisa? Um doce ou um salgado? – ofereceu Edmond. Dessa vez deixei o que minha mãe me ensinou de lado e aceitei um doce. Escolhi o boage, massa folhada com cheio de nozes e pistache com calda de açúcar feita no próprio restaurante. Não preciso falar sobre o sabor... Na hora de ir embora, quis pagar, porém o senhor Edmond logo disse: — Não! Eu que te ofereci! E me despedi, vendo novamente o sorriso dele e prometendo voltar em breve.

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BRASSERIE VICTÓRIA

Brasserie Victória Avenida Juscelino Kubitschek, 545 Itaim Bibi – Zona Oeste 3845 8897 www.brasserievictoria.com.br

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CAPÍTULO VIII

Windhuk

Fundado em 1948

“E o mundo pregou essa peça”

F

donos Valfrido Krieger Francisco Krieger

inalmente um restaurante num bairro mais próximo de casa, Moema, que recebeu esse nome em 1987 — antes era chamado de Indianópolis. Antigamente a região era coberta por grandes chácaras e, a partir de 1880, foi ocupada por ingleses e alemães. Hoje, além de ser um bairro residencial, também foi ocupado por várias empresas, lojas e bares. Entre várias ruas com nomes indígenas (Jauaperi, Jurupis, Nhambiquaras, Maracatins), está a Alameda Arapanés. No número 1400, próximo ao Shopping Ibirapuera, fica o Windhuk, o restaurante alemão mais antigo de São Paulo. Por volta de 4 horas da tarde cheguei à casa de três andares, paredes brancas, janelas e portas de madeira, construída em 1979, na esquina com a Avenida Cotovia e paralela à Ibirapuera. Por dentro, seguindo o mesmo estilo da parte de fora, toalhas e cortinas xadrezes com vermelho, fotos e reportagens pelas paredes, várias canecas e, em


CAPÍTULO VIII

cada mesa, um pequeno navio com mostardas, sal e guardanapos. Valfrido Krieger, dono do restaurante junto com seu irmão Francisco, não havia chegado e um dos garçons, já arrumando as mesas, ofereceu-me algo para beber. E adivinha qual foi uma das opções? Cerveja, claro! Mas fiquei com a água mesmo. Windhuk, o navio e o restaurante O nome do restaurante veio de um navio alemão de luxo de transporte de passageiros e carga. Em 1948, um dos cozinheiros do Windhuk, Otto Rückert, montou um bar na Avenida Ibirapuera e a ele deu o nome da embarcação. Antes de tornar-se dono, em 1964, Valfrido foi funcionário do local. “Na época era um barzinho, uma casa de chopp e somente depois é que se transformou em restaurante.” Com o tempo, tornou-se sócio e, após 12 anos de trabalho em conjunto, comprou a outra parte da sociedade. A mudança de endereço ocorreu em 1979, quando construíram a casa na Alameda Arapanés, no mesmo quarteirão.

“O que interessa é o cliente. Sem ele não se tem nada. Ele quer ser atendido, ser visto, quer que estejamos por perto. Então, faz parte do trabalho do restaurante estar presente. Isso para quem quer durar mais tempo, senão, fica um período, depois passa para frente, vende, troca, alguma coisa”

Valfrido Krieger

Em 1985, seu irmão Francisco juntou-se a ele para tocar o restaurante. “Durante todo esse tempo, nós chutamos muita pedra. Nós balançamos, trabalhamos muito, sofremos, pois é um trabalho árduo ter um restaurante. Não é tão simples como todos pensam. Restaurante é aquilo que costumamos dizer: estamos na contramão da vida social. Depois veio o casamento, os filhos, hoje estão aí os netos e continuamos no mesmo sistema. Sábado e domingo se 100


WINDHUK

trabalha e à noite também. Tem que ter compreensão, aprender a controlar e a conviver com esse ambiente de vida.” E o esforço diário é sempre voltado para o cliente, aquele que mantém o restaurante, querendo ou não. “O que interessa é o cliente. Sem ele não se tem nada. Ele quer ser atendido, ser visto, quer que estejamos por perto. Então, faz parte do trabalho do restaurante estar presente. Isso para quem quer durar mais tempo, senão, fica um período, depois passa para frente, vende, troca, alguma coisa”, disse. Além disso, para não ser obrigado a fechar o estabelecimento, não basta apenas comprar e acompanhar de longe o funcionamento do restaurante. De acordo com Valfrido, deve-se também “ter conhecimento de cozinha, administração, cuidar das coisas de perto. Se você paga para administrar, vai sobrar muito pouco. E se não cuidar também não funciona.” Uma pesquisa detalhada e sensível Francisco Krieger, irmão caçula de Valfrido e também dono do restaurante, começou a buscar detalhes sobre a história do navio pelo fato de o restaurante estar diretamente ligado a ele por meio do nome e do fundador, um dos cozinheiros que, por ter orgulho de trabalhar no Windhuk, homenageou-o como pode. O navio de luxo, o mais moderno na década de 30, tinha o nome da capital da Namíbia — colônia alemã na África do Sul —, com capacidade para 600 turistas e 250 tripulantes, foi lançado às águas em 1936 e pertencia à empresa alemã Wellmann Linean. Era o orgulho da marinha mercante de seu país. Tinha 176 metros de comprimento, deslocava até 16.662 toneladas, a distância da ponta do mastro até a quilha era de 52 metros e sua largura era de 22 metros. Atingia a impressionante velocidade de 18 nós. Ele fazia cruzeiros da Alemanha até a África, mas na 13ª viagem, quando ainda estava no outro continente, muitos países declararam guerra contra seu país e o retorno do navio tornou-se difícil, uma vez que os inimigos queriam afundá-lo. Windhuk, então, ficou ancorado no porto de Lobito, Angola, o lado português da África — ainda dividida entre Inglaterra e Portugal —, onde havia, de certa forma, mais segurança para os tripulantes. O terceiro capitão e mais quatro tripulantes pegaram um bote salva-vidas e lançaram-se ao mar, chegando à Las Palmas, Espanha, nas Ilhas Canárias, após 73, fato dado como heróico. Em 101


CAPÍTULO VIII

alto mar, tiveram o apoio de um navio português que lhes deu um pouco de descanso e de comida. Enquanto isso, o Windhuk permanecia ancorado em Lobito e precisava partir. Havia economia de combustível, as câmaras de refrigeração estavam todas desligadas. O clima era terrível, de perseguição, mesmo sendo a tripulação formada apenas de civis. Não podendo esperar mais, saíram da África, porém com o navio pintado com as cores da bandeira japonesa e com o nome Santos Maru, navegando com mais tranquilidade. O destino era a Argentina, país em que tinham asilo político, mas o receio de serem atingidos e de terem que entregar o navio os impediu de continuar a viagem. Assim chegaram ao porto de Santos no dia 7 de dezembro de 1939. Já haviam noticiado o naufrágio do Windhuk por duas vezes e ele estava ali, no Brasil, com outras cores. A tripulação teve permissão para descer e finalmente conseguir comida. Lá permaneceu ancorado até 1942, quando o Brasil rompeu relações diplomáticas com a Alemanha e entrou em guerra. Dessa forma, os tripulantes foram presos e conduzidos primeiramente a casas de detenção de imigrantes e, depois, distribuídos em cinco campos de internação ou concentração no interior de São Paulo — Bauru, Pindamonhangaba, Guaratinguetá, Ribeirão Preto e Pirassununga. Com o fim da guerra em 1945, a parte dos tripulantes que trabalhava na primeira classe do navio, com referências profissionais em navios de luxo e cruzeiros, foi absorvida em Campos do Jordão no Grande Hotel e no Hotel Cohiba. A maioria restante veio para o centro de São Paulo. Tornaram-se excelentes profissionais, chefs de cozinha em multinacionais. “Um foi vice-presidente da CocaCola, tivemos pioneiros em maquinas de café no Rio de Janeiro, todos lutando e recomeçando sua vida”, afirmou Francisco. Otto Rückert era um dos cozinheiros — de um total de 35 — e foi quem fundou o Bar Windhuk na Avenida Ibirapuera em 1948. “A tripulação, após os 50 anos do fim da guerra, passou a se reunir uma vez por ano aqui no restaurante. Nesse ano completamos 70 anos da chegada do navio.” São eles: Arno Frieser, o mais velho, com cerca de 97 anos, que vive na Alemanha, em Hamburgo; Wilken Ranck, cerca de 92 anos, vivendo entre São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais; Horst Jüdes, cerca de 88, em Campo Limpo; Kurt Koch, em Aldeia da Serra; e Rolf Stephan, em São Paulo. “Infelizmente a cada ano perdemos parte dessa história” lamentou Francisco. 102


WINDHUK

O navio não existe mais. Foi para os Estados Unidos — houve uma negociata do governo brasileiro como o americano. “O navio foi rebocado, pois dizem que dias antes de o Brasil declarar guerra, alguns tripulantes e o comandante teriam acionado as turbinas e ali jogado toneladas de areia e de cimento”. Depois, nos Estados Unidos, ele teve a tecnologia recuperada e passou a ter outro nome, Le Jeune, e a levar tropas para a Coréia e para o Vietnã. Em seguida, transportou peregrinos e, em 1966, virou sucata. “Esse navio é um capítulo da história mundial, uma vez que cada um dos tripulantes amargou com experiências a situação vivida. Temos que lembrar que havia um dia e uma hora marcados para partida e para retorno. E o mundo pregou essa peça.” Não foi tão fácil assim juntar tantas informações, pois, para muitos, ter de retornar àquela situação não foi nada fácil. Quando se volta a um passado sofrido, sente-se tudo novamente. “Teve casos em que irmão reviu irmão após 30 anos, esposa e filha reviram marido e pai após 10. Alguns nunca mais viram ninguém, outros tiveram notícias raras, correspondências censuradas. Eles estavam presos aqui, aparentemente, sem motivos. Foi sim um campo de concentração, não equivalente aos da Europa, felizmente, mas, emocionalmente, eu diria, em situação ímpar” Os tripulantes Após ler algumas das matérias colocadas nas paredes do Windhuk, notei que há muita história ligada ao restaurante. Quem cuida diretamente disso é Francisco, responsável por reunir todos os anos, desde 1989, os tripulantes do navio. “Todos os anos fazemos o encontro no sábado mais próximo ao dia 7 de dezembro — data em que o navio chegou a Santos —, fazemos um almoço festivo para que as pessoas possam se encontrar, para que tragam as famílias. Porém, hoje, só restam cinco ou quatro que vivem no Brasil e um na Alemanha.” Não é só chucrutes e cerveja Confesso que meu conhecimento sobre cultura alemã sempre foi limitado a chucrutes, cerveja e Oktoberfest, sendo que o primeiro eu nunca comi e nem sou tão fã de cerveja. Aprendi um pouco vendo quais são os pratos principais oferecidos no restaurante. Entre eles estão o kassler (lombo de porco com osso), o eisbein (joelho de porco) e o schlachtplatte (prato misto com salsicharias, como 103


CAPÍTULO VIII

kassler, eisbein, linguiça branca, salsicha, salsichão, patê de fígado e chouriço, além de batata cozida e chucrute). “Para preparar tudo com qualidade, a cozinha tem uma instalação bastante funcional, pois temos 280 lugares e, quando o restaurante está cheio, temos quatro pessoas trabalhando na cozinha para poder atender a demanda de forma satisfatória”, afirmou Valfrido. Fui conhecer a cozinha, o balcão onde tudo fica armazenado e até o banheiro. Melhor não deixar nada passar! Brasileiros e alemães A comunidade alemã veio em peso para a região onde o Windhuk está localizado. Mesmo sendo um estabelecimento típico alemão, os brasileiros também o frequentavam. No entanto, o que hoje para nós é normal, até por termos nos acostumado com a cultura de vários países, pode, um dia, ter incomodado alguém. Valfrido contou que “antigamente, vinham ao restaurante alguns jovens brasileiros que se misturavam aos senhores alemães. Esses viviam longe de suas famílias e vinham para cá trabalhar como mão-de-obra especializada, técnica, já que aqui não havia. Se pensarmos um pouco, São Paulo é o maior centro de indústrias alemãs fora da Alemanha. Então, muita gente trabalhava aqui e frequentava a nossa casa. Todos gostavam muito de beber, fazer festa, brincar. Mas, às vezes, esses senhores se incomodavam com o comportamento dos jovens brasileiros e tínhamos que amenizar essas situações para que tudo funcionasse num padrão que pudéssemos trabalhar e manter o cliente da casa satisfeito”. Atualmente a clientela mudou, pelo fato do Windhuk não ser mais um bar. Mas Valfrido afirmou que mesmo tendo pequenas brigas e bate-bocas, “sempre foi uma clientela tranquila, familiar” Onde estão os restaurantes alemães? “Houve uma fase, nos anos 60, 70, que em São Paulo podíamos escolher restaurantes de culinária alemã. Como é a satisfação financeira que manda, quando as pessoas ganham pouco, procuram algo para aumentar o lucro. Assim criaram as casas com música ao vivo e jantares especiais. Tudo isso foi mudando o foco”, contou Valfrido. O maior problema enfrentado foi a perda do principal produtor de 104


WINDHUK

mercadorias com a falência do Frigorífico Eder, causando o fechamento de muitas casas e a migração de seus donos para outros negócios. Pensei nos outros restaurantes visitados anteriormente e notei que uma das principais dificuldades enfrentadas por todos é o crescimento desenfreado da cidade e, consequentemente, a perda de uma história rica em detalhes, que morre assim que as portas de mais um estabelecimento antigo são fechadas. Então perguntei a Valfrido se seus filhos se interessavam em continuar com o restaurante e, pelo visto, as chances de mais um lugar encerrar seus serviços são grandes se depender somente disso. “Todos eles têm suas atividades. Tenho três filhos. Um [Christian Krieger, dono do Armazém do Alemão, Brooklin] trabalha com restaurante e é quem deve tocar aqui, não sei... O outro trabalha com seguros e minha filha é da área de saúde, tem uma academia. O Christian deve seguir aqui ou então teremos que encerrar também.” O que seria uma pena!

“Esse navio é um capítulo da história mundial, uma vez que cada um dos tripulantes amargou com experiências a situação vivida. Temos que lembrar que havia um dia e uma hora marcados para partida e para retorno. E o mundo pregou essa peça”

Francisco Kreiger

Imigração alemã Valfrido e Francisco são filhos de família agricultora alemã de Santa Catarina. O primeiro veio para São Paulo “começar uma nova vida”. Antes de trabalhar no Windhuk, teve outros empregos e a ideia inicial não era ser dono do restaurante. “Trabalhar aqui era o ‘pulo do gato’ para outro emprego e acabei ficando apenas 45 anos”, declarou. Francisco, o caçula de uma família de 13 filhos, veio para São Paulo em 1980 e, antes de trabalhar no restaurante, ficou cinco anos na Bayer do Brasil, o que era um sonho para ele. A imigração alemã para o Brasil ocorreu nos séculos XIX e XX, ocupando 105


CAPÍTULO VIII

assim, várias regiões do país. Entre os motivos estão as guerras enfrentadas pela Europa e a busca por uma vida melhor em terras fartas brasileiras. Os alemães só ficam atrás dos italianos com relação ao número de imigrantes. São cerca de 18 milhões, sendo que 10% dos brasileiros têm ao menos um antepassado alemão. O primeiro grupo de imigrantes chegou ao Brasil em 1824 e foi encaminhado para Nova Friburgo, no Rio de Janeiro. No mesmo ano, outro grupo foi enviado para o Rio Grande do Sul, com incentivo de D. Pedro I para que a região fosse colonizada. Em 1828, alemães se instalaram em Santo Amaro, em São Paulo. Nos primeiro 50 anos de imigração, chegaram ao Brasil cerca de 25 mil alemães, quase todos encaminhados para a parte agrícola. A Europa passava por mudanças importantes com o grande desenvolvimento das cidades, o êxodo rural e aumento rápido da população. Para controlar esse crescimento, o governo incentivava a emigração. A década de 20 foi a mais intensa devido ao pós-Primeira Guerra Mundial e, na de 60, chegaram os últimos grupos em número significativo ao país. Os antepassados de Francisco fizeram parte desse grupo que ajudou o país a crescer. “Minha avó por parte de mãe é alemã, e do lado paterno, a família já está no Brasil há 152 anos. Em 2009 fez 180 anos que os alemães vieram para São Paulo e, 185, para o Brasil. O maior investimento externo da indústria alemã é aqui.” Sua mãe também era alemã e veio para o Brasil com 11 anos de idade. O avô havia fugido da guerra e veio buscar uma vida mais tranquila, após trabalhar mais de 40 anos “dentro da terra em minas de carvão. O sonho dele era viver e conhecer o sol. E isso se deu aqui. Mas antes, aportaram em Santos, foram trabalhar em Jaboticabal, no interior de São Paulo, na Fazenda Barrinha; primeiro para pagar a passagem e segundo para pagar a caderneta e depois, passaram pela estação da Luz e pediram auxílio para ir à Santa Catarina. Eu diria, sem dúvida, que ali havia muita vontade de viver.” Para Francisco, entre outros motivos que trouxeram seus parentes para Brasil, estava o grande período de neve que tinham que enfrentar todos os anos. “Na Europa, em seis meses temos neve e nos outros tem que plantar e colher para sobreviver no próximo inverno. E então tiravam frutos em grandes variedades e os enterravam nos porões das casas, em barricas de areia, os recursos que haviam na época.” Dessas necessidades, surgiram várias receitas da culinária alemã. “Assim foi 106


WINDHUK

criado o sauerkraut, que nós chamamos de chucrutes. É uma forma de preparar o alimento para conservá-lo. Podemos citar também os embutidos, as geléias, as salsicharias. Inclusive o joelho de porco, que antigamente era enterrado no gelo e a natureza era responsável pela conservação do produto, criando a camada de banha e uma inferior de gelatina. São experiências que não vieram por acaso, mas sim de uma necessidade, e eles as exportaram para muitas partes do mundo.” A importância da culinária Francisco parecia feliz em compartilhar aquela história e eu em recebê-la, pois não esperava tantos acontecimentos ligados a um restaurante. A importância dos imigrantes ficou mais clara do que nunca, assim como a coragem de cada um de deixar seu país por vontade própria ou não, e a força com a qual cada um enfrentou os desafios impostos. “A presença do imigrante foi determinante, não só do alemão como também do japonês, italiano. Eles tiveram influência no campo, na indústria, em todos os segmentos” “É uma história realmente muito importante. A culinária é uma necessidade do nosso corpo. Primeiro o ar e depois o alimento. Eu acho que nesse campo avançou-se muito. Nós somos um restaurante tradicional. Preservamos a tradição. Às vezes não é tão fácil por conta de ser um mercado moderno, de tantas mudanças. Temos às vezes na mesma mesa quatro gerações, frequentam a casa há 30, 40 anos. Para nós isso é um orgulho” Danke, Krieger! Depois da incrível aula de história da imigração alemã e do desenvolvimento de São Paulo, Francisco mostrou-me foto a foto, contando mais algumas situações. Entre os quadros está o cartaz sobre o último cruzeiro do Windhuk. Saída dia 6 de dezembro de 1937 e retorno 29 de janeiro de 1938. Muitas das fotos do navio, inclusive no porto de Santos, foram entregues por tripulantes que as guardavam há anos. Nas paredes, matérias antigas sobre o navio e os campos de concentração brasileiros; registros da Avenida Ibirapuera, quando o Shopping, inaugurado em 1976, ainda não existia e, no lugar dos ônibus, havia bondes em uma São Paulo com menos prédios e carros; fotos dos encontros. Então, fui convidada a jantar e experimentar um dos pratos tradicionais da casa. O escolhido por Francisco foi o páprika schnitzel, filé mignon à milanesa ao molho de páprika, servido com bolinho de batata. Resumo: Hummm! Estava bom 107


CAPÍTULO VIII

e sai muito satisfeita de lá. Após três horas de visita, agradeci a atenção e a simpatia dos irmãos e voltei para casa feliz por ter escolhido, sem querer, o Windhuk como último lugar a ser conhecido. Danke!

Restaurante Windhuk Alameda Arapanés, 1400 Moema – Zona Sul 5044-2040 / 5044-6463 www.windhuk.com.br

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CAPÍTULO IX

Acrópolis

Fundado em 1959

“Eu sou mais brasileiro que grego!”

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dono Thrassyvoulos Georgios Petrakis

omo em boa parte do ano, São Paulo estava com o céu cinza. Uma garoa quase constante e tentativas raras de sol revezavam-se durante todo o dia. Numa segunda-feira típica, fui conhecer o Acrópolis, o restaurante grego mais antigo de São Paulo. Ele fica no Bom Retiro, e nada melhor do que metrô para chegar até lá sem sofrer com o lento trânsito da capital. A região está sempre lotada de pessoas e carros por ser um grande centro comercial de roupas, junto com pequenas indústrias de confecção e tecelagem, além de bons restaurantes como a Casa Búlgara (onde são feitas as burekas — massa folhada leve e crocante com diversos recheios) e o Shoshi Delishop (e seus deliciosos risotos e outras comidas judaicas). O bairro surgiu em 1820 e recebeu esse nome porque era uma área nobre com sítios e chácaras. Com a inauguração da Estação da Luz, em 1867, imigrantes de vários lugares passaram por lá. Italianos o transformaram em vila operária, judeus e gregos em comércio de roupas, e coreanos em mais comércio.


CAPÍTULO IX

E, mais recentemente, também há os bolivianos que oferecem serviços de corte e costura. O restaurante Caminhei pela Rua Três Rios até a Rua da Graça, número 364. Cheguei ao Acrópolis às 10 horas da manhã. Entre lojas de roupas, carros e muita gente, num lugar com aparência de bar, mas bem mais arrumado, fica o restaurante com suas paredes e toalhas brancas e azuis (as cores da bandeira grega), quadros com as seleções grega e brasileira de futebol, fotos da Grécia, de fregueses e amigos, prêmios como os do Guia Quatro Rodas e da revista Veja São Paulo, reportagens e outras coisas. Thrassyvoulos Georgios Petrakis, 93 anos, mais conhecido como seu Trasso, logo veio ao meu encontro. Infelizmente estava de saída, tinha que comprar algumas coisas para o restaurante, então combinamos uma nova visita às 3 horas da tarde. Assim fiz e, quando cheguei, ele estava sentado à mesa conversando com um freguês. Mudou de lugar e veio falar comigo, sempre sorrindo, muito simpático e prestativo. É com “i” ou com “e”? Sobre o nome do restaurante, difícil saber se é com “i” ou com “e”. Na entrada está escrito com “i”, no site, com “e”. Mas Trasso afirmou que “é com ‘i’, porque com ‘e’ quer dizer muitas acrópoles e o restaurante é um só”. Então melhor usar Acrópolis mesmo. Trasso não parava um só instante de ajeitar as mesas, as toalhas, as garrafas de vinho e azeite, pratos e talheres. Colocava tudo em seus devidos lugares e os deixava sempre limpo. Mas logo a sua atenção se voltou para mim por alguns instantes e histórias foram surgindo aos poucos. Thrassyvoulos Seu Trasso chegou ao Brasil com 43 anos, em 1961. Veio da Grécia com sua esposa Popi e uma filha visitar a cunhada, que chegara ao Brasil em 1956 e morava no Tremembé. “Minha cunhada nos convidou por carta. Minha esposa queria vir porque estava com saudades dela. Aceitei e acabamos ficando por aqui, 112


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pois só precisava falar português e trabalhar, não tinha segredo. Fizemos uma viagem de 15 dias. Primeiro até Genova, depois pegamos um navio italiano, e, finalmente chegamos ao Brasil, no porto de Santos. Meu cunhado tinha uma adega. Aqui conheci bastante gente, comecei a fazer amizade com os brasileiros e a fazer perguntas”, dessa forma, Trasso conheceu o Acrópolis e lá foi trabalhar como garçom. Tudo andava bem, quando uma tragédia aconteceu em 1969. Trasso estava trabalhando em São Paulo e sua esposa, filha, cunhada e seu sobrinho foram passar as férias escolares das crianças em Santos. Enquanto dormiam, começou um vazamento de gás. Ao acordarem, acenderam a luz e a casa pegou fogo. Não sobreviveram. Ele continuou a vida, virou gerente do Acrópolis, depois sócio, até tornar-se o único dono no início da década de 70.

“Aqui eu não abandono! Eu sou mais brasileiro que grego. Tenho 93 anos e trabalho, acordo cedo, saio de casa, como bem, durmo bem e assim está bom... (...) O que eu quero mesmo é trabalhar. Quero agradecer ao cliente, conversar com ele, saber como está o serviço da minha casa”

Thrassyvoulos Georgios Petrakis

Com o passar do tempo, Trasso encontrou outra companheira, Célia, que lhe deu uma filha, Aglaia Claudia, que hoje ajuda o pai com o restaurante. Ele também ajudou a cuidar das duas filhas que Célia já tinha. A união acabou, mas ele ainda mantém contato com as enteadas. “Eu não podia ficar sozinho, tinha que arranjar alguém para cuidar de mim. Encontrei uma pernambucana, Maria de Fátima, e tive duas filhas com ela, Niqui Zoi e Katherine.” Maria mora há 18 anos na Grécia e Katherine, que ajudava o pai a cuidar do restaurante, foi viver com a mãe. “Quando dá, eu vou para lá.” Então uma jovem entrou no restaurante e Trasso disse animado: — A Niqui chegou! 113


CAPÍTULO IX

E foi ao encontro da filha. — Vamos sentar! Vamos comer! – disse para ela. Antes veio terminar de contar sua história e a do Acrópolis. E comentou contente: — Niqui significa vitória... O que não falta é disposição Os 93 anos de Seu Trasso parecem não pesar. É ele quem abre o restaurante às 6 horas e o fecha à meia-noite todos os dias. Não para quieto um instante sequer. Está sempre ajeitando as mesas, recebendo, servindo e acomodando os clientes, além de conversar com todos com um grande sorriso. Qualquer pequeno momento de distração é o suficiente para perdê-lo de vista. Trasso, além de achar os brasileiros muito parecidos com os gregos por serem ambos comunicativos e simpáticos, apaixonou-se pelo país e seu povo e disse não largar o Brasil por nada. “Aqui eu não abandono! Eu sou mais brasileiro que grego. Tenho 93 anos e trabalho, acordo cedo, saio de casa, como bem, durmo bem e assim está bom... Dirigia até um ano atrás, mas agora minhas filhas não querem mais. O que eu quero mesmo é trabalhar. Quero agradecer ao cliente, conversar com ele, saber como está o serviço da minha casa.” Desde que o dono do Acrópolis chegou aqui, pensa ser esse um lugar privilegiado. “Esse país tem muita terra, uma natureza difícil de encontrar em qualquer outro lugar. Os estrangeiros que vieram para cá tiveram que trabalhar bastante para chegar onde estão. Tomaram uma atitude que pouca gente tem coragem. Trabalharam e fizeram economia. Também fizeram amizade com brasileiro, que é um povo maravilhoso. Nem vale falar de violência! Todo lugar tem ladrão. Na minha terra, somos cerca de 10 milhões de habitantes. Só São Paulo é bem maior que a Grécia. Ladrão tem em todo lugar!” E entusiasmado finalizou: — Antes de eu morrer, o Brasil vira uma potência. Ele tem tudo para isso! O jeito do dono do Acrópolis conquistou tantas pessoas que sempre é procurado por algum meio de comunicação para dar entrevistas. É só colocar seu nome em algum site de busca e encontrar as várias matérias feitas sobre o restaurante e Seu Trasso. Ele tornou-se uma figura tão marcante que ganhou o prêmio Comer & Beber da Veja São Paulo como a Personalidade Gastronômica do Ano. 114


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O grego chegou, inclusive, a inspirar Sílvio de Abreu, o autor da novela Belíssima, transmitida pela Rede Globo entre 2005 e 2006. Foi criado assim o personagem Nikos Petrakis, interpretado por Tony Ramos. “Não colocaram Trasso porque seria difícil de pronunciar, então escolheram o nome do meu irmão, Nikos.” A Grécia Trasso contou um pouco sobre a história da Grécia. “Acrópolis foi destruída na Segunda Guerra Mundial. É cultura grega, porque naquela época não existia cal, cimento, nem várias coisas para construir prédios. Eles trabalhavam só com mármore. Com uma talhadeira fizeram várias obras. A cultura grega é famosa! Teatro, Universidade...” Também falou algumas características de seu país de origem. “A Grécia vive com turismo. Muita gente vai para lá para aproveitar as ilhas, o mar, a cozinha boa. O melhor a se fazer é ficar na casa de alguma família para gastar menos, pois assim a pessoa come na casa da família, dorme lá e, quando quiser ir à praia, vai com eles.” Essas dicas ele deu para um casal de fregueses — que estavam em uma das fotos colocadas nas paredes. Eles passaram um tempo na Grécia e depois foram contar como foi o passeio. Bem tentadora a ideia, confesso! Antes de vir para o Brasil, Trasso tinha na Grécia uma peixaria e quitanda e também trabalhou como garçom. De repente, recordou-se de algo que passou durante a infância: “minha tia, quando eu era pequeno, me dava dinheiro para comprar um docinho, tomar refrigerante, quando saíamos. Mas eu guardava no meu bolso. Depois ela encontrava o dinheiro e falava que tinha me dado para gastar.” Entregou assim seu segredo para se adaptar a um país totalmente desconhecido. Nesse momento chegou uma cliente dizendo que a comida era muito boa, agradecendo pela atenção, pois Trasso levantou-se logo que a viu, e garantindo que voltaria no final de semana com toda a família. Realmente o Acrópolis faz bastante sucesso. Acrópolis O restaurante foi inaugurado em 1959 por Demitrios, cujo sobrenome Trasso não se recordava, mas afirmou ser ele “um cozinheiro que trabalhava no 115


CAPÍTULO IX

Hospital da Cruz Vermelha da Grécia”. “Ele fazia qualquer coisa e ficava uma delícia. As receitas são dele!” No ano passado, o Acrópolis ganhou uma filial da Rua Haddock Lobo, número 885, nos Jardins. Segundo Niqui, filha de Trasso, até um mês atrás, quem ficava no Bom Retiro era a Katherine, a irmã caçula, que já voltou para Grécia, e quem ficava nos Jardins era ela e Claudia. Hoje Niqui voltou para o Bom Retiro e Claudia fica no novo restaurante. No endereço original, trabalham com Trasso 11 funcionários. Durante a semana o trabalho é grande, mas nada se compara ao final de semana, quando senhas são distribuídas por ordem de chegada para que ninguém se aborreça. Dizem inclusive que Seu Trasso se zanga quando tem gente esperando e aqueles que já comeram ficam sentados, fazendo hora. “Aqui é pequeno, mas conseguimos atender todo mundo. O pessoal depois sempre volta!”

“O restaurante é um consolo. Só tenho lembranças boas. A comida é maravilhosa. Moussaká, salada grega, as entradas, lula recheada, risoto de polvo, stifado de carneiro. Gosto de tudo. O ambiente é sempre alegre, sempre uma memória de uma viagem maravilhosa, um sonho realizado. (...) Perfeito!”

Elis Beletti

A crítica comprova o sucesso do Acrópolis. Ele é um dos oito restaurantes brasileiros da lista de roteiros do livro 1000 Lugares para Conhecer Antes de Morrer, escrito por Patricia Schultz. Ao lado estão os restaurantes D.O.M. e Figueira Rubaiyat. No Acrópolis o esquema é diferente. Nada de se sentar e pedir o cardápio. Lá o cliente vai até a cozinha e escolhe qual será a refeição do dia – e provavelmente fica em dúvida diante de tantas cores e aromas oferecidos de uma vez só. Entre as opções estão a moussaká (uma espécie de lasanha feita com camadas de batata, berinjela, queijo ralado, carne moída ou espinafre e creme de queijo), lula 116


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recheada, carneiro assado, risoto de frutos do mar, polvo ao vinho e outros pratos tradicionais. Como entrada pode-se pedir, por exemplo, tzatziki (coalhada seca com pepino) ou melitzanosalada (patê de berinjela assada, maionese e ervas finas). Para finalizar, oferecem sobremesas gregas como kataíf (massa de fios de anjo recheado com nozes) ou tradicionais como o arroz doce. “Não sobra nada”, afirmou o sorridente dono do restaurante. Para a minha felicidade, Trasso ofereceu-me uma sobremesa. Comi um cremoso arroz doce, ao qual, antes de me entregar, ele fez questão de acrescentar a canela. Assim a sobremesa estava completa! Enquanto eu saboreava o doce, ele almoçava com Niqui e a chuva começava a apertar. Porém, antes de partir, eu tinha que fazer alguns registros do restaurante. — Posso tirar uma foto do senhor agora? – perguntei. — Quer tirar uma foto comigo? — Ah, sim! Na verdade queria tirar foto só dele, não sou tão vaidosa assim a ponto de fazer questão de ter uma foto minha num trabalho feito por mim, mas nesse caso, foi impossível dizer não. Em seguida, despedi-me e ele rapidamente perguntou se eu tinha pegado “os papéis para fazer propaganda”. Então me deu alguns cartões com informações sobre o restaurante e os serviços oferecidos. Adiei a saída algumas vezes por causa da chuva e por ter vontade de ficar mais tempo por lá conversando com o Seu Trasso. Foi fácil descobrir o segredo do Acrópolis: o dono e seu jeito brasileiro de ser! Depois de muito adiar, eu disse até logo e ele reforçou: — Traga os amigos! Numa segunda-feira típica, a garoa fina virou um temporal... Mas tudo bem, pois eu finalmente havia conhecido o Acrópolis. “A mistura de simplicidade, aconchego e informalidade” Elis Beletti, 26 anos, tradutora e revisora, conhece o restaurante há cerca de 13 anos. Experimentou as receitas do Acrópolis após voltar de uma viagem à Grécia. Adorou a comida do país e foi atrás de algum lugar que servisse pratos semelhantes em São Paulo. Primeiro encontrou o Santorini, que fechou há quase oito anos, e depois um amigo lhe indicou o Acrópolis. “Posso dizer que é meu 117


CAPÍTULO IX

restaurante preferido da cidade. A comida é igual à que comi na Grécia. O ambiente lembra o país não só pelos posters e fotos, mas a própria organização do restaurante. A mistura de simplicidade, aconchego e informalidade.” Para ela seu Trasso é metade do encanto do lugar. “Na Grécia descobri que eles são muito simpáticos e hospitaleiros. O dono do Acrópolis é exatamente assim. Logo na primeira vez [que foi ao restaurante] ele veio até a mesa, conversou conosco. Quando falamos da viagem, ele ficou trocando histórias. Desde então descobrimos que ele é sempre assim. Acho que todas as vezes que fui ao restaurante, ele veio conversar. E muitas vezes ele mesmo nos serviu. Aliás, quando ele serve a salada e a entrada, elas vêm banhadas em azeite. Mais do que o normal. Já nos contou muitas histórias, entre elas a de quando saiu da Grécia, a de porque parou de fumar, a dos filhos.” É no Acrópolis que Elis comemora todos os seus aniversários. Também é para lá que ela vai para se sentir melhor quando acontece algo triste, como a morte de seu avô. “Fomos lá após a missa de sétimo dia. É um lugar que nos faz sentir melhor, lembrar bons momentos e lugares mais belos. Uma vez levei um namorado filho de gregos lá e foi engraçado ver o dono conversar em grego com ele.” Tudo no restaurante a encanta, o ambiente, a comida, o dono. “O restaurante é um consolo. Só tenho lembranças boas. A comida é maravilhosa. Moussaká, salada grega, as entradas, lula recheada, risoto de polvo, stifado de carneiro. Gosto de tudo. O ambiente é sempre alegre, sempre uma memória de uma viagem maravilhosa, um sonho realizado. Olhar as fotos nas paredes, a geladeira cheia de queijo feta e entradas gostosas. As garrafas de azeite grego, retsinas, metaxa e ouzo pelas paredes. Perfeito! Quer dizer, só não é perfeito porque as sobremesas não são do meu agrado. Mas até aí, sempre saio de lá direto para a Ofner.” Simples assim!

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ACRÓPOLIS

Restaurante Acrópolis Rua da Graça, 364 Bom Retiro – Região Central 3223-4386 Rua Haddock Lobo, 885 Jardins – Zona Sul 3063-3991 www.restauranteacropoles.com.br

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CAPÍTULO X

Hinodê

Fundado em 1966

Um pedaço do Japão no Brasil dona Kiyoe Sekiguchi

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chef Sekai Sekiguchi

ão Paulo é considerada a maior cidade japonesa fora do Japão e é no bairro da Liberdade que encontramos a maior representação desse país. Lojas, mercados, restaurantes, karaokês, tudo se volta para essa cultura milenar e é lá que eu passo vários domingos caminhando pela famosa Feira da Liberdade e comendo takoyakis e yakisobas. Entre a modernidade, tecnologia e jovens reunidos nas entradas do metrô — que se vestem de preto, usam cores exóticas de cabelo, maquiagem pesada e portam-se como personagens de animes (desenho animado japonês) —, encontramos a tradicional culinária japonesa no restaurante Hinodê, Rua Tomás Gonzaga, número 62. A entrada é toda de madeira, feita com uma técnica milenar de construção,


CAPÍTULO X

na qual as partes do material são encaixadas. Ao final da escada de acesso ao salão, um aquário. Ao lado dos bancos de espera, revistas japonesas. Enquanto aguardava o chef Sekai Sekiguchi, folheei algumas, “do final para o começo”, na ordem inversa da nossa forma de ler. Infelizmente só dei atenção às imagens. Ainda não aprendi a língua japonesa, mas me dou bem com a cultura deles — principalmente com a comida —, mesmo tendo aquela agonia que tinha com cinco ou seis anos de idade, quando ainda não sabia ler e escrever. Música, lanternas, símbolos, tudo nos remete ao país do sol nascente. Podese optar por sentar à mesa ou no ozashiki, ou seja, no tatame. O cardápio, com cerca de 90 pratos diferentes quentes e frios, e cheio de imagens, abre o apetite.

“O número de restaurantes em São Paulo cresceu bastante. (...) Tem muito lugar que serve comida japonesa perto do trabalho, de casa, no caminho de um para o outro. Para a pessoa desviar desse percurso e pegar trânsito para vir até aqui, tem que ter algum diferencial. Para mim, é o tradicional”

Sekai Sekiguchi

A imigração japonesa No final do século XIX e início do XX, em decorrência de um acordo entre o governo japonês e o brasileiro, muitos imigrantes daquele país chegaram ao porto de Santos. Após a abolição da escravatura e a expansão da economia cafeeira, as plantações paulistas precisavam de mão-de-obra e a solução encontrada foi trazer para cá europeus e asiáticos dispostos a trabalhar nas lavouras. O primeiro navio a aportar no Brasil com imigrantes japoneses foi o Kasato Maru, em 1908. Vieram cerca de 165 famílias que foram trabalhar nos cafezais do oeste paulista. Alguns imigrantes chegaram antes ao país, fundaram uma colônia agrícola no Rio de Janeiro, porém foi a chegada deste primeiro grupo que iniciou um fluxo contínuo de imigração de japoneses para o Brasil. Em 1920, a Rua Conde de Sarzedas e o entorno do bairro da Liberdade 122


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tornaram-se os lugares preferidos pelos japoneses vindos do campo, que encontravam por lá cômodos baratos para alugar. Aos poucos foram abertas lojas e restaurantes típicos. Eram pedacinhos do Japão para aqueles que sentiam falta do país de origem. O fim da Primeira Guerra Mundial aumentou o fluxo de imigração e, entre 1917 e 1940, vieram 164 mil japoneses para o Brasil. Além de irem para os cafezais, também trabalharam no cultivo de morango, chá, arroz e pimenta do reino, não só em São Paulo como também no Pará, Mato Grosso do Sul, Paraná e Minas Gerais. Na década de 1960, devido ao êxodo rural, São Paulo tornou-se a cidade com maior número de japoneses fora do Japão. Aqui trabalharam em setores ligados à agricultura (feirantes ou donos de pequenos armazéns de frutas, legumes ou peixes). Impossível negar a grande influência da cultura japonesa. Os japoneses trouxeram técnicas agrícolas, de pesca, criação de aves, culinária, pintura, vários tipos de alimentos, esportes, desenhos que marcaram a infância de muitas gerações etc. Kiyoe Entre os milhares de imigrantes que chegaram ao Brasil, estava Kiyoe Sekiguchi, 72 anos, atual dona do Hinodê. “Ela veio pela imigração de 1971, de Hiroshima. Presenciou a bomba quando tinha oito anos de idade”, contou Sekai, chef do restaurante e filho de Kiyoe. “Ela veio para trabalhar na lavoura, mas nunca mexeu com isso. Começou no antigo banco Itaú, primeiro em Santo Amaro e depois veio para a Liberdade, onde agora é o Hospital Bandeirantes. Na época não tinha tantas máquinas, então ela entrou usando o ábaco, lembra? Para fazer conta! Fizeram um concurso para saber quem usava o ábaco melhor. — falou sorrindo — Nos finais de semana, começou a trabalhar em restaurante. Ela já tinha experiência no Japão.” Sekai Após alguns anos trabalhando em restaurante no Brasil, o chef do Hinodê percebeu que era isso o que realmente queria fazer. Então foi para o Japão, em 1997, para aprimorar seus conhecimentos. Em Tóquio, estudou por um ano na Tsuji, a mais renomada escola de culinária do país. Trabalhou no restaurante Sushi 123


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Hikari, no Hotel Atami, na cidade de mesmo nome, e no Pan Pacific Hotel, em Yokohama. Também conseguiu a habilitação federal em culinária japonesa, o Tyourishi Menkyo Sho. Sekai é adepto da busca pela perfeição e para isso impõe grande esforço e treinamento diário para melhorar sua técnica, trabalho que pode ser comparado ao de artesões chamados Shokunins, que procuravam o constante aperfeiçoamento no trabalho de forma disciplinada e incansável, uma característica milenar. O sol nascente O Hinodê — sol nascente em japonês — foi inaugurado por Takeshi Amano, que desembarcou no Brasil em 1960 e hoje dá cursos de culinária japonesa. Kiyoe tornou-se dona do restaurante em 1999, após ser gerente e sócia de Amano. “Minha mãe trabalhou por muitos anos em restaurante, como gerente geral. No que ela trabalhou antes de vir para o Hinodê, o dono foi morar no Japão e ela tocava o restaurante sozinha. Depois ele voltou do Japão com o filho e quis tocar o restaurante com ele. Então ela saiu e começou a procurar um lugar para abrir o dela”, contou Sekai. Enquanto isso, ele fazia um curso de culinária no Japão e, quando voltasse para o Brasil, antes de abrir o seu próprio estabelecimento, queria trabalhar num restaurante para conhecer fornecedores e matéria-prima para se adaptar melhor. “Minha mãe perguntou para o senhor Amano se eu podia trabalhar aqui quando eu voltasse. Ele aceitou e perguntou se ela não queria fazer uma sociedade. Depois ele disse que ia vender o Hinodê e o passou para ela. Um dos requisitos era que não mudasse o nome.” O nome permaneceu o mesmo, mas o sistema foi modificado. “Quando pegamos o restaurante, era self-service. Tinha tudo pronto nos balcões. Minha mãe mudou para à la carte.” O diferencial: a tradição Há quase 10 anos comandando a cozinha do Hinodê, Sekai afirmou que o para manter a clientela e o nome, deve-se dar atenção especial à qualidade e à tradição. “O número de restaurantes em São Paulo cresceu bastante. Segundo a revista Veja São Paulo, são mais de 660 estabelecimentos japoneses na cidade, ou seja, é maior do que o número de pizzarias. Tem muito lugar que serve comida 124


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japonesa perto do trabalho, de casa, no caminho de um para o outro. Para a pessoa desviar desse percurso e pegar trânsito para vir até aqui, tem que ter algum diferencial. Para mim, é o tradicional.” Entre os pratos mais pedidos estão os mais comerciais, os combinados de sushi e sashimi. “O nosso forte é a grande variedade de pratos no cardápio. A clientela é bem variada também. Vêm japoneses, descendentes, brasileiros, casais, famílias, turistas.”

“O sushi era uma forma de conservar o peixe. Ou seja, na época não tinha geladeira, então pegavam o peixe cru, misturavam com arroz cozido e deixavam fermentar. A acidez produzida, o acido lático, conservava o peixe. Ele tem sua origem na China há mais de dois mil anos. Essa técnica passou para o Japão há mil”

Sekai Sekiguchi

O tradicional e o Período Edo De acordo com o dicionário, tradicional é aquilo “relativo à tradição”, “vindo ou conservado por tradição”, “proverbial”, “costumeiro”. Para Sekai, esse adjetivo relacionado à culinária japonesa pode causar algumas confusões, mas ele fez questão de explicar o que esse termo significa para ele. “Muita gente acha estranho usar frutas, maionese, cream cheese no preparo dos pratos. Cada um tem o seu conceito, o meu é com relação às técnicas culinárias. Ou seja, a cozinha japonesa é bem antiga, é milenar, e ela tomou essa forma atual há mais ou menos 400 anos atrás, no período Edo, no qual o país se estabilizou, acabaram as guerras e ocorreu um boom cultural.” Antes de continuar, é importante explicar melhor esse momento que foi bastante significativo para o Japão. O período Edo (Tóquio) — também conhecido como a era dos Tokugawa —, que durou de 1616 a 1868, pode ser considerado o início da era moderna desse país. Entre as mudanças que ocorreram estão: 125


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grande urbanização; população dividida em camponeses, artesãos, comerciantes e samurais; período de paz favorável ao florescimento das artes (teatro, pintura), da educação e agricultura etc. Os samurais, antes em guerra e agora com tempo livre, puderam dedicar seu tempo a outras tarefas, desenvolvendo assim as artes, principalmente da escrita, do chá, do teatro e da pintura. Nesse período, o Japão se isolou política e economicamente, expulsou o catolicismo e proibiu a entrada e a saída de qualquer pessoa, tendo o porto de Nagazaki como único ponto de ligação com o restante do mundo. A reabertura só ocorreu com a ameaça de guerra feita pelos norte-americanos. Agora sim, Sekai pode continuar explicando o que é ser tradicional. “Então nesse período se desenvolveu bastante a cultura e a culinária. Muitos pratos servidos hoje vêm dessa época. Por exemplo, sushi. Era uma forma de conservar o peixe. Ou seja, na época não tinha geladeira, então pegavam o peixe cru, misturavam com arroz cozido e deixavam fermentar. A acidez produzida, o acido lático, conservava o peixe. Ele tem sua origem na China há mais de dois mil anos. Essa técnica passou para o Japão há mil. Depois, com o passar do tempo, começaram a produzir o vinagre à parte, colocado no arroz e servido como conhecemos agora. O formato atual dele surgiu no período Edo.” Uma aula de história e cultura oriental que não parou por aí. Sekai também contou que essas técnicas de culinária foram passadas por artesãos, que dedicaram sua vida ao desenvolvimento da culinária, de geração a geração, e que, para ele, elas é que são tradicionais e não os ingredientes utilizados. “Com relação aos ingredientes, sempre pode haver novidades.” Como preparar o arroz perfeito Não que eu tenha tentado fazer sushi em casa depois da pequena aula de culinária japonesa que tive, mas o chef do Hinodê explicou a técnica do preparo correto do arroz. “O cuidado que se tem com o arroz vem desde a escolha, passa pela técnica de lavagem, de descanso, cozimento e mistura de ingredientes. O arroz tem que ser lavado e machucar o grão o suficiente para a água entrar no arroz quando ele estiver descansando. Se não fizer isso, não cozinha direito, fica macio por fora e duro por dentro. Depois tem a técnica da mistura do vinagre, do tempero, que 126


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quando feito frio, só fica por fora. Quando se tem esses cuidados, se conhece essas técnicas, eu considero tradicional.” Uma São Paulo diferente Sekai contou que, há cerca de 30 anos, os restaurantes que ofereciam comida japonesa se concentravam na Liberdade e normalmente eram só para japoneses. “Naquela época tinha mais de 400 multinacionais japonesas no Brasil, aqui em São Paulo, mais exatamente. Então aqui era praticamente um Japão. Tanto que minha mãe, garçonete naquele tempo, conta que tinha que falar o idioma e no cardápio era tudo escrito em japonês. Depois, em meados dos anos 1980, é que os brasileiros começaram a frenquentar esses restaurantes e hoje tem mais brasileiros do que japoneses, inclusive.” Pizza ou sushi? O considerável aumento do número de restaurantes japoneses e de pessoas que passaram a frequentá-los em São Paulo prova que a gastronomia japonesa — preocupada em ser agradável ao paladar, ao olfato e aos olhos, além de sempre saudável—, caiu no gosto do paulistano. Quantas vezes não fico em dúvida entre uma pizzaria e uns bons sushis e

sashimis? Preparação ao vivo e em cores Antes de partir, vi Sekai preparar sushis e sashimis para um casal. Fiquei realmente impressionada com a precisão de seus movimentos e a perfeição do prato. Era tudo, ao mesmo tempo, tão rápido e certo, que, quando percebi, o prato já estava pronto, com os mínimos detalhes impecáveis. Ainda tenho muito que aprender com a cultura milenar que “invadiu” o país há muitos anos. Até na culinária, cada passo tem o seu porquê, todos voltados para melhor aproveitar as características específicas dos alimentos (sabor, cor, vitaminas etc.). Talvez assim me torne mais disciplinada, mais concentrada, mais bem alimentada. No Hinodê comer é mais que encher a barriga, é restaurar as forças, como ocorria nos primeiros restaurantes surgidos na França.

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Restaurante Hinodê Rua Tomás Gonzaga, 62 Liberdade - Região Central 3208-6633 www.restaurantehinode.com.br

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Considerações finais

spero que este livro sirva para pessoas interessadas pelo tema e que ele deixe registrada a história de alguns dos restaurantes mais antigos de São Paulo, para que não se percam com o decorrer do tempo.



Bibliografia Livros DÓRIA, Carlos Alberto; A Formação da Culinária Brasileira; PubliFolha; São Paulo, SP: 2009. FREIXA, Dolores; CHAVES, Guta; Gastronomia no Brasil e no Mundo; Editora SENAC Nacional; Rio de Janeiro, RJ: 2008. LEAL, Maria Leonor de Macedo Soares; A História da Gastronomia; Editora SENAC Nacional; Rio de Janeiro, RJ: 1998. MARANHÃO, Ricardo; MELO, Josimar; História dos Restaurantes de São Paulo; Editora Terceiro Nome; São Paulo, SP: 2009. SAVARIN, Brillat; A Fisiologia do Gosto; Companhia das Letras; São Paulo, SP: 1995. SCHLÜTER, Regina G.; Gastronomia e Turismo; Editora Aleph; São Paulo, SP: 2003. SILVA, Siwla Helena; Restaurant à moda de Paris: Mudanças Culturais e o Surgimento do Restaurante na Cidade de São Paulo – 1855 1870; PUC-SP, São Paulo, SP: 2007. SPANG, Rebecca L.; A Invenção do Restaurante – Paris e a Moderna Cultura Gastronômica; Editora Record; Rio de Janeiro, RJ: 2003.


BIBLIOGRAFIA

Dicionários Houaiss: www.uol.com.br/houaiss Michaelis: www.michaelis.uol.com.br

Enciclopédia Larousse Cultural – Editora Nova Cultural: 1998.

Sites estadao.com.br folha.com.br gowheregastronomia.terra.com.br indexet.investimentosenoticias.com.br onne.com.br panelinha.ig.com.br preservasp.org.br revistaepoca.globo.com vejasaopaulo.abril.com.br

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Agradecimentos

amília (por tudo, principalmente pela paciência) • Mônica Ramos (por revisar tudo e pelas conversas intermináveis madrugada adentro) • Max Fischer (por todo o apoio, dicas e diagramação, mesmo sendo “corinthiano”) • Rafael Mendonça (por ajudar a organizar o trabalho, fazer capa e arte, emprestar o computador e a casa e pela presença) • Priscila Menegasso (por fazer os maravilhosos desenhos de última hora) • Elisangela Francisco Silva (pela amizade e empréstimos de gravador) • Bruno de Pierro (por revisar, me acalmar e apoiar) • Luana Santos (por disponibilizar sua casa e me fazer sair de vez em quando) • Letícia Peres (pelo carinho) • Ester Minga (por proporcionar momentos de sol e de cantoria) • Marcos Antonio Cardoso (pela trilha sonora de qualidade) • Renato Silva (pelo tema maravilhoso) • Marcos Cripa (pela orientação “mais ou menos” paciente, pressão e dedicação) • Sílvio Mieli (por estar disponível a ajudar sempre) • Valdir Mengardo • J. S. Faro• Laís Guaraldo • Eliane Robert Moraes • Josimar Melo • Ricardo Maranhão • Café Raiz • Elis Beletti • Eneida Mônaco • Fernanda Salvetti Mosaner • Flávio Moreira • Alexandre Félix • Fabiana Ghantous • Donos, chefes, garçons, clientes e familiares que mantêm vivos os restaurantes que contam uma parte da história de nossa cidade, São Paulo. Sem a ajuda e a dedicação de todos, este trabalho não teria tanta beleza e significado. Muito obrigada!



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