Phil Hine, Pseudonomicon

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PHIL HINE

Pseudonomicon

TRADUÇÃO

Adriano Scandolara REVISÃO DA TRADUÇÃO

Douglas Mattos e Rogério Bettoni


SUMÁRIO

Advertência Agradecimentos Introdução 1 A loucura de Cthulhu 2 Invocações da alteridade 3 A mitologia e a magia 4 Os Grandes Anciões 5 Transfigurações 6 Desintegração proposital 7 As terras noturnas 8 Zonas sombrias Apêndice Bibliografia e recomendações de leitura Agradecimentos da editora

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INTRODUÇÃO

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A

magia não é algo que se pode conter. Ela logo transborda sobre as demais áreas da vida, eventualmente pega os desavisados de surpresa e impulsiona quem a pratica para um espaço liminar de sensibilidade intensificada e consciência de outras presenças, outras possibilidades. A percepção de que “tudo é vivo e significativo”, como disse William S. Burroughs, está logo ali. É preciso dar apenas um passo para adentrar o reino feérico. A magia não é algo que alguém simplesmente “faz” —ela é pessoal, íntima. Ela nos vira do avesso e distorce nossa percepção das coisas, mergulhando-nos em um mundo de sinais e presságios. Um território de símbolos insondáveis, de mistérios que espreitam nas sombras. Magistas são hipersensíveis à implosão súbita de significados, o que é ora uma bênção, ora uma maldição. Como dar sentido a esse mundo mágico e simbólico? O que faz com que uma experiência seja válida e outra não? Apesar do empirismo defendido por magistas da modernidade, não se trata de um processo racional. Ao adentrar o domínio da magia, a racionalidade se torna uma ferramenta limitada e, muitas vezes, é difícil comunicar a alguém o porquê de uma experiência ser significativa, até mesmo a pessoas que partilham de perspectivas semelhantes. Para mim, a significância de algo é determinada pelo grau de gnose, ou revelação. É uma experiência que nos impele à ação, seja esta uma reflexão, uma consideração ou a abertura de uma nova área a ser explorada. O importante é que seja uma verdade pessoal, algo que “parece o certo” —o que não significa que não possa ser questionado. É importante contestar essas experiências ao mesmo tempo que as valorizamos, pois a maldição dessa sensibilidade à significância das coisas é a obsessão. Magistas se afogam muito facilmente num oceano de significados intensificados, e aí todo encontro ao acaso se torna uma reunião com um adepto do plano interior, toda letra de música traz uma mensagem pessoal direcionada a nós, todo animal é um espírito familiar e todas as pessoas que consideramos amigas foram


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magistas em uma encarnação passada. Tudo se torna significativo, não só em nível pessoal, mas também numa escala cósmica. É assim que nasce o fanatismo —pessoas que não aproveitam mais a magia, mas, em vez disso, padecem dela. Os territórios fictícios de H. P. Lovecraft —as colinas assombradas de Dunwich, as florestas de Arkham, o oceano profundo e as zonas urbanas labirínticas retratados em “O horror em Red Hook” ou “O modelo de Pickman”— dão a constante sensação de presenças à espreita, de que alguma consciência oculta permeia a atmosfera. A descrição de locais e ambientações combina a precisão dos sonhos com um grau de ambiguidade que permite ao leitor preencher as lacunas, por assim dizer. Os protagonistas adentram esses territórios como forasteiros, apenas para descobrir de forma gradual (e chocante) o que jaz escondido, até que a significância total da realidade dos Grandes Anciões recaia sobre eles, transformando-os para sempre. Eles adentram um mundo do qual não se pode voltar, perturbados por segredos impossíveis de compartilhar com quem não tenha vivenciado a mesma revelação ou sido arrebatado por completo por esse mundo de seres longínquos e seus aliados. A mítica de Lovecraft é um território de insinuações e convocações. As revelações últimas que acometem os narradores nunca são enunciadas com clareza, e os “livros proscritos” encontrados em bibliotecas sombrias nunca revelam a verdade, deixam apenas pistas e despertam mais perguntas. O panorama de sinais permanece misterioso, e precisamos construir nossos próprios significados em vez de conferi-los no manual mais próximo. Assim surge Pseudonomicon —um apanhado experimental de cartões-postais advindos das minhas próprias excursões pelo imaginário lovecraftiano.

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Phil Hine, 2004


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A LOUCURA DE CTHULHU

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C

ada deus traz consigo sua própria loucura. Para conhecer o deus, ser aceito por ele e sentir seus mistérios, precisamos deixar que essa loucura recaia sobre nós e nos atravesse. Nenhum livro de magia diz isso. Por quê? Além disso ser o tipo de coisa que precisamos descobrir por conta própria, é tudo muito fácil de esquecer. Há também as pessoas que gostariam de transformar a magia em uma coisa asséptica, cobrindo seu lado selvagem com explicações emprestadas da ciência ou da psicologia pop —afinal, a loucura é algo que ainda tememos: o grande tabu. Então por que escolhi Cthulhu, o sumo sacerdote dos Grandes Anciões? Ele que jaz a sonhar o “sonho da morte” na cidade submersa, esquecido sob as camadas do tempo e das águas. Soa simplório dizer apenas que eu ouvi o seu “chamado” —mas foi isso mesmo. Os deuses geralmente não têm muito a dizer —porém, quando dizem alguma coisa, vale a pena ouvi-los. Lembro-me de certa noite no flat de um amigo. Eu estava “trabalhando” com Gaia, e não tinha nada a ver com a figura da mamãe new age que transmite mensagens sobre salvar as baleias ou jogar o lixo no lixo. Senti uma pressão crescente na cabeça —algo imenso que tentava se derramar por dentro de mim. Sensações da passagem do tempo geológico —camadas que se precipitavam através da minha consciência. O calor do magma; a fricção lenta da deriva continental; a miríade do zumbido de insetos. Nada nem remotamente humano. Esse tipo de experiência me ajuda a esclarecer meus sentimentos sobre Cthulhu. Alienígena sem ser alienígena. Uma grande massa que se agita na boca do estômago. Um batimento cardíaco lento, muito lento, que rebenta em ondas. O olho revirado que perscruta a escuridão em camadas, passando pelo mundo,


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pelas cidades, pelas pessoas a caminhar lá fora, vagarosamente. Perscruta toda a minha vida, todas as memórias e esperanças que culminam num choque contra esse momento, até que desperto do sonho enquanto sinto um movimento —uma inquietação incômoda: minha total fragilidade atirada contra mim mesmo pelo rebentar de ondas de silêncio. Este é o sentido da loucura de Cthulhu. Corta. Passos pela floresta. Chove torrencialmente. A lama viscosa revolve sob meus pés, as árvores estão despidas de folhagem. Vejo-as como dedos crispados tentando agarrar o céu, tentáculos sinuosos. Cthulhu está em toda parte. É um ser cefalópode, bestial, com asas de dragão, uma imagem teriomórfica, mas coisas assim estão sempre ao nosso redor na forma de árvores, insetos, vegetação, e também dentro de nós na forma de bactérias e vírus incubados —vão nascendo pouco a pouco como efeito das transformações alquímicas que ocorrem no meu corpo, inclusive enquanto escrevo. Escondidas. Em sonho. Prosseguindo sem que percebamos. Seres desconhecidos, com propósitos desconhecidos. Esse pensamento se intensifica e desvia meu curso para uma revelação: a natureza nos é alienígena. Não é preciso procurar por dimensões ocultas, planos superiores de existência ou mundos perdidos da mitologia. Está tudo aqui —basta parar, observar e sentir. Os deuses antigos estão por toda parte; suas feições estão delineadas na rocha sob os nossos pés. Suas assinaturas estão rabiscadas no contorno fractal das margens costeiras. Seus pensamentos ecoam pelo tempo, cada tempestade de raios é uma erupção de lampejos neurais. Sou tão pequeno, e isso (Cthulhu) é tão vasto! Que um ser tão insignificante esteja na mira daquele olho semicerrado que perscruta através de éons e éons —bem, isso me coloca no meu lugar, não? O meu si-mesmo mágico, alimentado com tanto carinho (“Eu consigo comandar estes seres, eu consigo!”), entra em sobrecarga por um momento e então desaba, exaurido pelo influxo da eternidade. Fuja. Esconda-se. Tentei quebrar o ciclo e acabei eu mesmo quebrado. Minha inocência perdida me leva a gritar internamente. De súbito, o mundo é um lugar ameaçador. As cores são fortes demais e, em todo caso, não posso confiar nelas. As janelas são particularmente fascinantes, porém também se tornam objetos dignos de desconfiança. Não podemos —eu, você— confiar no que vem pelas janelas. Podemos olhar através delas, para fora, mas outras coisas também podem olhar de fora para dentro. Levo a mão à janela. Que segredos estão trancafiados nessas folhas finíssimas de matéria? Eu adoraria ser como vidro, se pudesse, mas tenho medo.


a loucura de cthulhu

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Dormir não traz alívio algum. Meus olhos começam a revirar antes mesmo de cair no sono. Me sinto girar como um pião, cambaleando e caindo em algo que não sei o que é. Toda a pretensão de ser magista fracassou. É algo grande demais. Não posso bani-lo e, mesmo que pudesse, tenho a forte sensação de que não deveria. Fui eu que abri essa porta e passei por ela sem me dar conta, como se tivesse pisado de propósito numa poça d’água e depois descobrisse, de repente, que estava me afogando. O batimento cardíaco de Cthulhu ecoa devagar ao meu redor. Cthulhu sonha comigo. Eu não tinha ciência disso. Agora tenho, nitidamente, e desejo muito não ter. Quero afundar de volta na inconsciência. Não quero saber disso. Eu me pego desenvolvendo rituais por hábito: verificando as tomadas para evitar uma descarga elétrica inesperada, evitando árvores particularmente perigosas, esse tipo de coisa. Eu me enxergava como uma estrela em ascensão, mas acabei reduzido às quatro paredes do meu quarto. Porém, nem mesmo elas são capazes de barrar esses sentimentos. Lentamente, algum mecanismo de autopreservação começa a agir. A loucura não é uma opção. Não posso ficar assim para sempre —mais uma vítima daquilo que nunca mencionam nos livros de magia. Começo a recuperar os padrões que deixei de lado —me alimentar regularmente (nos horários mais ou menos corretos), tomar banho, sair para caminhar. Conversar com as pessoas —esse tipo de coisa. Tenho a sensação de um olho sem pálpebras a perscrutar do fundo dos abismos do tempo e da memória e descubro que consigo encarar aquele olho (aquele “eu”) com firmeza. O meu ambiente deixa de ser uma ameaça. Os rituais de autoproteção (obsessões) vão embora... mas o que há, afinal, para ser protegido? Os sonhos mudam. É como se eu tivesse atravessado algum tipo de membrana. Talvez tenha me tornado vidro, no fim das contas. Os pensamentos que Cthulhu agita lá embaixo na escuridão não causam mais medo. Descubro que consigo cavalgar o pulso dos sonhos. O que é aquele olho sem pálpebras se não o meu próprio “eu” espelhado pelo reflexo do medo e da autoidentificação? Não sou mais assombrado por ângulos estranhos. Toda e qualquer resistência desmoronou, e, em seu lugar, encontrei uma dose de poder. Claro que esse tema já é familiar a todos nós —a jornada iniciática da travessia pela escuridão. Familiar por conta dos 1.001 livros que a mapeiam, analisam e, em alguns casos, até sinalizam o caminho a ser percorrido. E isso nos leva de volta a por que escolhi Cthulhu ou, melhor dizendo, a por que escolhemos um ao outro. Há algo de muito fascinante


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