Phil Hine, Caos Primordial

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PHIL HINE

Caos primordial aventuras na magia do caos

tradução

Rogério Bettoni e Johnny Miranda


nota do autor Até o menor conhecimento é algo perigoso (nas mãos certas). —Thessalonius Loyola Em Caos condensado, meu primeiro livro, busquei introduzir os princípios básicos da magia do caos e fornecer práticas suficientes para quem quisesse dar seus primeiros passos nessa abordagem mágica. Agora, em Caos primordial, busco trazer um texto que seja não só uma extensão, mas também um manual ou guia prático do livro anterior. Meu intuito aqui é explorar as possibilidades oferecidas pela perspectiva do caos sobre magia moderna, concentrando-me especialmente em magia ritual, no trabalho com outras pessoas (seja em grupos ou na sociedade como um todo) e na relação da magia do caos com tendências mágicas modernas, como o discordianismo e a mitologia de Cthulhu.


SUMÁRIO

Prefácio, Grant Morrison Introdução

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PARTE I: O CAOS ESTÁ EM TODA PARTE Aventuras na magia A dinâmica da feitiçaria Iniciação Experimentações com crenças

31 37 53 63

PARTE II: DINÂMICA DOS RITUAIS Introdução Principais elementos dos rituais Componentes dos rituais Exemplos de rituais Invocação Evocação Magias astrais

79 83 91 113 125 141 149

PARTE III: EFEITOS DE GRUPO Introdução O que é um grupo? Como os grupos se desenvolvem Problemas específicos aos grupos de magia Conduzindo grupos

159 165 173 179 189


PARTE IV: LIBER NICE & LIBER NASTY Liber Nice Liber Nasty

211 225

Referências e recomendações de leitura Agradecimentos da editora

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PREFÁCIO Grant Morrison Julho de 1998

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os rituais do chöd tibetano, as pessoas que se iniciam devem passar por uma experiência visual em que o corpo físico é desmembrado e devorado por demônios enquanto o “eu superior” assiste a tudo, indiferente à horrível destruição de sua carne. Esse tipo de experiência, comum à tradição xamânica, demonstra a natureza às vezes violenta e contundente da mudança “espiritual” ou “paradigmática”. Depois de surgir das misteriosas zonas lunares entre as chamas antagônicas do punk rock e os anos de demência de Margaret Thatcher, a magia do caos cresceu, expandiu e se diversificou, desdobrando-se através da mente de quem a pratica; ela não tem forma —propaga-se como um fractal e se altera à medida que avança. Atualmente, ela incorpora aspectos de diferentes abordagens: thelema, xamanismo, programação neurolinguística, terapia corporal reichiana, pensamento oriental, vodu, situacionismo, H. P. Lovecraft, Clive Barker, Walt Disney e tudo mais que quisermos adicionar a essa lista. O caos, sempre bem-humorado, que ao mesmo tempo rompe e unifica, fornece um modelo útil para o próximo estágio da elevação coletiva da consciência humana. A sociedade humana tem observado os primeiros sinais de que a síntese criativa de posicionamentos aparentemente contraditórios se tornará fundamental para o nosso pensamento. Acontece que hoje, na subcultura da magia, nada se equipara ao alcance enciclopédico e à criatividade de Phil Hine. Na minha opinião, Phil Hine é o principal intérprete do paradigma do caos. Suas pesquisas, em terrenos atormentados pela confusão e carregados de glamour, são extremamente lúcidas e de uma leitura agradável —além de serem inovadoras e imaginativas, elas também são livres de dogmas e estão longe de serem presunçosas. Phil nos oferece informações práticas e detalhadas sobre como a magia funciona, e sugere experimentos que podem (e devem) ser replicados e verificados. Sem jamais tornar algo obscuro nem se alongar demais em pontos


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desnecessários, ele consegue surpreender com a profundidade de sua experiência e o escopo de suas especulações. Caos primordial arranca os véus puídos e empoeirados da magia para expor e descartar grande parte da teatralidade pseudogótica que ainda dificulta sua compreensão —e isso sem jamais perder de vista o maravilhamento, o terror e o assombro da verdadeira gnose. Phil traz humanidade, sanidade, insanidade e sagacidade para um assunto que, acredito, penetrará mais profundamente no tecido da nossa vida, à medida que a ciência adapta seus limites para acomodar algumas das conclusões a que magistas já chegaram, e à medida que a magia deixa de lado os aspectos “ocultos” que antes protegiam quem a praticava contra o poder de uma igreja totalitária, mas que hoje servem apenas para gerar mais obscurecimento. O confronto direto com o caos é inequívoco e está disponível para qualquer pessoa que esteja preparada abrir as portas e enfrentá-lo. Este livro representa a vanguarda da teoria e da prática da magia; nele, você encontrará tantas chaves quantas precisar —no entanto, como se sabe, a teoria pode inspirar a imaginação, mas de modo algum substituir a experiência pessoal. Leia, e PRATIQUE. O pênis do presidente dos EUA é tema central do debate jornalístico; um astro do futebol inglês anuncia à imprensa que seu corpo foi possuído por cinco demônios; uma princesa de conto de fadas é morta por câmeras fotográficas. Se alguma vez houve um momento propício para que a corrente do caos se expandisse mais amplamente, esse momento certamente é o agora. Charles Fort fez a aforística observação de que só se descobre o uso do motor a vapor quando chega a hora do motor a vapor. Pois então, esta é a hora do motor a vapor, e o ritual chöd já começou para a cultura global. O mundo que passou agora assiste à sua própria desintegração com horror e alegria. Que possíveis transformações teremos pela frente quando finalmente deixarmos para trás o velho cadáver? Nada é verdadeiro, tudo é permitido. Enquanto a montanha-russa ganha velocidade rumo ao futuro, Caos primordial é um manual de sobrevivência para o século XXI.


INTRODUÇÃO

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á se passou mais de uma década desde que Caos primordial teve sua primeira publicação em inglês pela Falcon Press. Agora em sua 3ª edição revisada, achei que seria o momento ideal para dizer algumas palavras sobre como o livro surgiu. Embora sua publicação tenha acontecido depois de Caos condensado, na verdade este foi o primeiro livro “grande” que escrevi, e sua primeira edição foi feita pela Chaos International em 1993. Seus principais temas, no entanto —a dramaticidade dos rituais, os processos em grupo e exemplos de figuras arcanas no campo fictício—, para mim remontam a um livro que comecei a escrever no final dos anos 1980 tentando reunir esses temas díspares em um todo coeso. Meu objetivo principal não era tanto apresentar uma “maneira de fazer as coisas” na magia do caos, mas sim de esclarecer algumas coisas que, na época, eu considerava importantes e relevantes para a exploração mágica. O coven wicca do qual eu era membro no início dos anos 1980 tem tanta presença em Caos primordial quanto A condição pós-moderna, do filósofo francês Jean-François Lyotard, que reli pouco antes de embarcar na revisão do texto para a segunda edição, publicada em 1999. Nunca foi minha intenção apresentar Caos primordial como um simples “manual” sobre magia do caos, até porque eu nunca pensei muito na magia do caos no sentido de ter uma metodologia específica, mas sim como um conjunto de atitudes para abordar práticas mágicas. Revisitar este livro agora é um pouco estranho para mim, pois eu praticamente abandonei a magia do caos como minha prática principal, e hoje sou muito mais crítico a alguns de seus aspectos —mais crítico do que eu era quando escrevi o livro. Quando comecei a ler textos sobre o caos, eu tinha a impressão de que o importante era: (a) fazer algo prático; (b) observar o que acontecia (se acontecia); e (c) não ter que aceitar as crenças de outras pessoas em relação a explicações ou teorias que, embora tratadas como leis ou verdades cósmicas, muitas vezes se baseiam em preconceitos ou dogmas. Como antes eu só havia lido autoras


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como Madame Blavatsky e Dion Fortune (ambas leituras pesadas sobre leis cósmicas e verdades esotéricas), considerei essa nova perspectiva um verdadeiro alívio. Olhando para trás, o que agora me parece óbvio é que, durante algum tempo, eu não apliquei os mesmos padrões críticos às ideias que eu estava adotando. Aceitei a visão de mundo da magia do caos (como a entendi) de coração aberto e a usei como um padrão para criticar outros aspectos do ocultismo contemporâneo, mas não a própria magia do caos. A antropóloga Tanya Luhrmann define o processo de assumir uma nova visão de mundo como uma deriva interpretativa: “a mudança lenta e muitas vezes inconfessa no modo de interpretar os acontecimentos à medida que a pessoa se envolve com uma atividade específica”,1 um processo que se acelerou para mim quando comecei de fato a conhecer outras pessoas na incipiente cena do caos no Reino Unido, bem como a conversar com elas e a participar de palestras e eventos. Acho que é válido encarar isso como uma forma de socialização que envolve a aquisição gradual de um novo esquema interpretativo, incluindo um vocabulário diferente e um conjunto de símbolos, e eu acabei usando esse esquema para interpretar e classificar minhas experiências na época, o que, por sua vez, me fez validar o esquema como legítimo. Além disso, eu estava me divertindo demais para parar e refletir além do básico. Muitas das minhas insatisfações com a magia do caos só ficaram claras em meados dos anos 1990, quando comecei a me retirar da “cena”. Durante alguns anos, eu me mantive muito ativo no circuito de workshops e fui percebendo aos poucos que o que motivava quase toda a minha prática mágica não era meu interesse ou o meu desenvolvimento pessoal, mas sim o objetivo de transformar o que eu estivesse fazendo em um workshop ou seminário. Então eu parei de oferecer workshops e comecei a refletir sobre o que eu queria fazer por mim mesmo, e isso envolvia tanto uma autocrítica quanto a capacidade de criticar as ideias mágicas com as quais eu havia me associado. (Acho curioso que, embora eu tenha passado quase dez anos sem escrever muita coisa para publicar, parece que praticamente todos os possíveis veículos de publicação se surpreendem quando digo que mudei de opinião sobre muitas de minhas ideias anteriores.) Por outro lado, e de maneira relacionada, eu comecei a me interessar cada vez mais pelo que talvez possa ser descrito como uma 1 Tanya Luhrmann, Persuasions of the Witch’s Craft, e-book, posição 820.7 / 1002.


introdução

abordagem híbrida à prática do tantra, com a qual eu começara a me envolver no início dos anos 1980, mas que, naquele momento, havia ganhado uma proporção maior. À medida que mergulhei mais profundamente nessa prática, descobri que muitas das suposições que eu havia formado sobre o tantra, derivadas especialmente de livros de ocultismo e de outras pessoas que praticavam magia, na realidade estavam incorretas, e comecei a ver o valor de estudar de fato como as práticas (e seus fundamentos filosóficos) surgiram dentro de seus contextos culturais (e como elas mudaram ao longo do tempo), e, ao fazer isso, descobri um leque riquíssimo e atordoante de diferentes ideias que eu jamais teria encontrado em livros de ocultismo. Como consequência, também fui me interessando cada vez mais pela história do tantra, não só no que diz respeito ao seu desenvolvimento na Índia, mas também em como ele foi imaginado de várias maneiras. Comecei a entender que a abordagem reducionista do tantra realmente deixa de lado uma série de coisas que, pelo menos para mim, eram importantes. Nesse sentido, o tantra pode se tornar nada mais que uma espécie de turismo, que se inspira em outras formações culturais sem necessariamente ser desafiado por elas, até porque qualquer técnica é considerada apenas uma variante de outra. De modo geral, o que se toma emprestado é julgado dentro de um esquema interpretativo que tende para o que é familiar, e não para o desconhecido —tende a considerar o que há de similar entre as técnicas, e não o que poderia diferenciá-las.

crítica ao caos

A magia do caos se concentra na técnica. Subjacente a todos os sistemas que poderiam ser usados por praticantes de mentalidade eclética —sistemas que vão da bruxaria à feitiçaria tibetana—, existe uma unidade fundamental da técnica prática que depende da visualização, da criação de entes mentais e dos estados alterados de consciência alcançados por meditações passivas ou extáticas. A perspectiva eclética pressupõe que a própria crença pode ser considerada uma técnica para alcançar nossos objetivos. Uma outra implicação do princípio de relatividade da crença é que todas as crenças são consideradas arbitrárias e contingentes.

—Peter J. Carroll, “The Magic of Chaos”

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Magia como tecnologia


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Usarei os temas dessa citação —o enfoque na técnica e a ideia de que todas as abordagens da magia compartilham as mesmas técnicas (universais), bem como a noção de “crença como ferramenta” e a ideia de que todas as crenças são relativas— para estruturar a discussão das minhas insatisfações em relação ao caos enquanto método mágico. A abordagem eclética tende à visão de que as técnicas mágicas, independentemente dos “sistemas” em que estão inseridas (sobre os quais falarei daqui a pouco), são essencialmente semelhantes, e que os contextos de origem dessas técnicas podem ser descartados ou ignorados. Vale repetir em outros termos: comecei a considerar essa perspectiva limitante e ingênua. Agora acho que ela promove uma espécie de abordagem “mercantil” às ideias mágicas. Além disso, ela não é tão diferente da afirmação perenialista de que todas as religiões compartilham a mesma verdade essencial —ou seja, ela se concentra nas semelhanças e ignora como as coisas podem ser diferentes. Já correram rios de tinta a dizer que essa seria uma característica peculiar à magia do caos, algo que outras abordagens mágicas de certo modo não têm, como se todas as outras formas de magia não fossem ecléticas por natureza. Parece-me que essa ideia está relacionada à crença generalizada de que as tradições mágicas não mudam. Costumo encontrar pessoas em eventos e reuniões dizendo que não fazem as coisas da maneira “tradicional”, como se o que é tradicional fosse um corpo distinto e consagrado de conhecimentos e práticas contra os quais o indivíduo se posiciona. Se eu digo que “não pratico magia tradicional”, estou fazendo uma declaração de independência e autonomia —e isso vem da inferência de que ser “tradicional” na prática mágica é ser antiquado e fechado a novas ideias. A tradição também funciona como um espaço identitário —ao dizer “sou membro de tal e tal tradição”, estou declarando uma afinidade com determinado conjunto de práticas e crenças, e possivelmente com outras pessoas que compartilham valores específicos. Até mesmo a magia do caos passou a ser descrita como uma “tradição”, e houve tentativas de identificar várias correntes dentro dela, como a de magistas do caos “tecnorracionais” e de magistas do caos “anarcorromânticos”. Na cultura ocidental contemporânea, as tradições mágicas têm muito em comum com as identidades de marca. De modo geral, magistas não gostam de pensar que o ocultismo esteja tão sujeito à mercantilização quanto qualquer outra parte da cultura moderna. Na minha opinião, no entanto, não há como negar a ampla e descarada proliferação e o


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