Originais Reprovados #15

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Textos da comunidade uSp. Inscrições abertas todo ano em abril, consulte o regulamento. Envie seu conto, crônica ou poema! Crie, inove! Facebook: /originais.reprovados @revistaOR

Com-Arte Jr. Empresa júnior do curso de Editoração Revisão, diagramação, ePUB, design. Instagram: @comartejr Facebook: /comartejunior E-mail: comartejr@comartejr.com.br Peça um orçamento!


Nota Editorial

No ano de 2005, o primeiro número da revista Originais Reprovados foi lançado. 15 anos depois, em 2020, esse projeto permanece vivo num ano muito atípico, devido à pandemia e ao isolamento social, graças aos esforços e cuidados dos alunos de Editoração das turmas de 2019 e de 2020. Todo o processo de divulgação, seleção, revisão, arte, capa e epub– nosso primeiro! – foi feito à distância, e esse exemplar impresso em suas mãos é fruto de muita esperança durante aqueles momentos difíceis de COViD-19. Mas nada disso seria possível se não recebêssemos textos. Foram cerca de 200 textos (lidos, discutidos e apreciados) de estudantes da uSp de todas as áreas do conhecimento. Na OR#15, você encontrará contos românticos e fofos, como “Folhas Secas” e “Joelhos”, mas também irônicos e reflexivos como “O Cavanhaque do Diabo”, “O Final Feliz da História da Humanidade” e “Matéria Velha”. Assim, com uma revista de várias facetas, um projeto gráfico minimalista e uma capa escolhida pelo público, completamos nosso décimo quinto número. Nosso décimo quinto ano... Que venham mais 15!


Créditos Editoriais Editorial (Seleção e Revisão) Camila Somera (coord. seleção) Amanda Fujii (coord. revisão) Allanis Ferreira Anna Júlia Medeiros Bianca Ramos Brunna Carielo Camila Gonçalves Carolina Falvo Davi Bertholdo Santos Emily Macedo Heloisa Claro da Silva Isac Araujo dos Santos Laura Hirayama Letícia Pinheiro Luiza Badra Mariana Iazzetti Mayra Blaz Mirela Cavalcante Samantha Culceag Thiago Gentil Víctor Bittar Vitória Galindo

Capa

Camila Gonçalves (coordenação) Camila Somera Emily Macedo Letícia Pinheiro

epub Brunna Carielo Isac Araujo dos Santos

Arte e Diagramação

Brunna Carielo (coordenação) Camila Gonçalves (coordenação) Allanis Ferreira Camila Somera Carolina Falvo Davi Bertholdo Santos Emily Macedo Heloisa Claro da Silva Isac Araujo dos Santos Letícia Pinheiro Lucio de Godoy Mariana Iazzetti Mirela Cavalcante Vitória Galindo

Coordenação Marketing Brunna Carielo Camila Gonçalves Pedro Botton

Coordenação Geral Isac Araujo dos Santos Víctor Bittar


Sumário e Créditos Mais importante é o mundo todo y a gente que vive nele .............. 6 Renier Silva - Letras/FFLCH E-mail: renier.silva@usp.br Arte por Brunna Carielo

O cavanhaque do diabo .............................................................................. 8 Lucas Oliveira - Direito/ FDUSP E-mail: lucasoliveiraamaral00@outlook.com Arte por Letícia Pinheiro

Capim-limão ................................................................................................ 11 Davi Claro - Relações Públicas/ECA E-mail: clarodavi@live.com Arte por Davi Bertholdo Santos

Acalanto ...................................................................................................... 13 Pedro Vittorio - Jornalismo/ECA E-mail: pedrovittorio@gmail.com Arte por Camila Somera

Reflexão ...................................................................................................... 15 André Carlos Zorzi - Gestão de Políticas Públicas/EACH E-mail: andre.carlos.zorzi@gmail.com Arte por Davi Bertholdo Santos

Menino sem pipa ......................................................................................... 17 Diego Alves - Letras/FFLCH E-mail: diegoalvesamancio@usp.br Arte por Camila Gonçalves

Dance ............................................................................................................ 19 Ingrid Souza Lima - Arquitetura e Urbanismo/FAU E-mail: ingrid.caixeta@usp.br Arte por Isac Araujo dos Santos


Verão ............................................................................................................ 23 Isabella Oricolli da Silva - Gestão de Políticas Públicas/EACH E-mail: oricolli@usp.br Arte por Mariana Iazzetti

A cor da hora ............................................................................................. 25 Sérgio Cardoso - Pós-graduação em Educação/FEUSP E-mail: sergiocardoso@usp.br Arte por Mirela Cavalcante

Joelhos .......................................................................................................... 27 Andreza Silva - Letras/FFLCH E-mail: andrezassilvas@gmail.com Arte por Carolina Falvo

Cecília .......................................................................................................... 32 Dindara Galvão - Física/IF E-mail: dindara.galvao@usp.br Arte por Heloisa Claro da Silva

COHAB não é condomínio ....................................................................... 34 Vitória Maciel - Letras/FFLCH E-mail: Vitoriamaciel@usp.br Arte por Letícia Pinheiro

Sobre a cidade ............................................................................................ 35 Laura Lisboa - História/FFLCH E-mail: lauralisboa1934@gmail.com Arte por Emily Macedo

Matéria velha ............................................................................................38 Matheus Mitre El Tayar - Letras/FFLCH E-mail: mmitretayar@gmail.com Arte por Isac Araujo dos Santos


Folhas secas ................................................................................................ 40 Raphael de Lucca M. Jarcovis - Mestrado em Oceanografia/IO E-mail: raphaeljarcovis94@gmail.com Arte por Allanis Ferreira

A lua .............................................................................................................. 46 Letícia Medeiros dos Santos - Engenharia Agronômica/ESALQ E-mail: leticia.medsantos@usp.br Arte por Brunna Carielo

Teus ombros suportam o mundo ............................................................. 47 Peart - Publicidade e Propaganda/ECA E-mail: pedro.rezende039@gmail.com Arte por Vitória Galindo

Carta ao corpo ........................................................................................... 52 Helena - Relações Públicas/ECA E-mail: helenalpatrocinio@usp.br Arte por Allanis Ferreira

O apartamento do mago .......................................................................... 54 Felipe Serras - Mestrado em Ciência da Computação/IME E-mail: felipeserras@gmail.com Arte por Camila Gonçalves

O final feliz da história da humanidade ........................................... 58 Fernanda Fagundes - Letras/FFLCH E-mail: ff.perrin@gmail.com Arte por Lucio de Godoy


Mais importante é o mundo todo y a gente que vive nele Renier Silva não faço poesia faço feitiço não junto palavras junto pedaços na procura do que nem sabia que tinha perdido achei mais gente no caminho não faço poesia acendo vela desaprendi a escrever desaprendi a andar y todos meus hábitos [quotidianos mudaram acendo vela que guia o que veio, o que virá abandonei a casca antiga, joguei a pedra que caiu [amanhã quando cresce outra abandonei o tempo que não coexiste com os outros agora, aprendo com a terra como a fruta que foi flor planto a semente não faço poemas cultivo a vida

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conheço erva que mata conheço erva que cura na mata escura, no rio ou no mar como a fruta que será flor faço pé de – diverso faço pé de – amor não faço poemas

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O cavanhaque do diabo Lucas Oliveira O diabo está de cavanhaque. Ninguém ficou surpreso. Ora, queria dar razão aos fiéis que tanto associam sua imagem com a do bode. Ficou bonito, ninguém questionou tal fato. Mas a verdade é que... esse fato era o problema. No Inferno, começou um burburinho: o chefe estava ficando muito fresquinho com aquela barbinha. Ninguém sabia como se expressar direito, mas, no fundo, o que pensavam era que não basta ser o diabo, tem que se parecer com o diabo e, para isso, ele tem que ser tão feio quanto o pintam. Uma algazarra se instalou no principado das trevas: todos os funcionários eram contra o cavanhaque, desde os responsáveis pela admissão e catalogação das almas até os mais altos torturadores; desde os demônios burocratas até os demônios da segurança. Nenhum era favorável a tal atrocidade, mas também, nenhum deles era corajoso o suficiente para contrariar Lúcifer. O Sete Pele, por sua vez, adorava o cavanhaque. Eu não o julgo, realmente estava muito bonito, provavelmente encantaria qualquer mortal com sua beleza. Faria qualquer homem e qualquer mulher se apaixonar por ele à primeira vista. O diabo se sentia bem, estava autoconfiante, não tinha mais medo e não se importava pelo mau julgamento que recebia da humanidade. Afinal, esse juízo era fruto do livro que Emmanuel escreveu. Ele figurou como vilão, mas um dia escreveria sua resposta; só não a fizera ainda porque estava muito ocupado pela massiva demanda de almas. O diabo passeava pelo Inferno fiscalizando tudo e as almas sempre o viam. Antes do cavanhaque, a reação era horror, uma tortura instantânea, pois causava medo até nas entranhas. Porém, depois do cavanhaque, tudo mudou: as almas fingiam medo para não magoar Satã, mas ele não causava mais medo, e sim admiração. Até que um dia uma alma comentou com seu demônio torturador que não tinha mais medo dele, afinal o seu chefe parecia ser “mó de boa” e não tinha mais razão para obedecê-lo, e se caso não aceitasse isso ele que fosse reclamar com o diabo. A notícia logo se espalhou. 8


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Os demônios estavam assustados e com medo de uma possível rebelião das almas. Todos viam a necessidade de pedir, ou melhor, ordenar que Luci tirasse a barba. Mas quem faria isso? Bom, um demônio muito esperto sugeriu que se aproveitassem de uma Assembleia Geral dos Entes do Submundo, a qual ocorria todos os anos a fim de que o diabo possa saber como vão as coisas. Essa Assembleia contava com os mais importantes demônios, demônios poderosos, a maioria de famílias grandes e de nome no Inferno. Assim, quando foi dado início à Assembleia, um demônio encarregado foi ler a pauta preparada pelos membros. O primeiro item era a deliberação sobre a raspagem do cavanhaque do diabo. Luci estremeceu em seu trono. Como aquilo estava acontecendo com ele? Ele era dono do Inferno e não podia mandar no próprio pelo facial? Mas não podia intervir em nada, a Assembleia tinha caráter cogente e sua decisão era inviolável até mesmo pelo Príncipe das Trevas. Os demônios foram rápidos, tinham medo de o diabo dissolver a Assembleia por meio de um golpe, mas isso não aconteceu. Tudo deu certo, ordenaram que Satã raspasse o cavanhaque “por motivo de atentado à ordem pública e à reputação do Inferno, e por emanar beleza em demasia, fato danoso aos objetivos estabelecidos para o Reino das Trevas”. Chegou a hora de Lúcifer falar, dizer se reconhecia tal decisão. Alguns demônios se encolhiam, alguns choravam com medo da reação, mas a maioria estava preocupado com os sentimentos feridos do chefe. Satã foi breve e direto. Reconheceu a decisão como oficial, mas afirmou que seria incapaz de cumpri-la, pois teria desenvolvido “mais afeto pelos fios que saiam do seu queixo do que por reinar na terra que exala enxofre de seu solo” e por isso, estava renunciando ao cargo de Príncipe das Trevas. O diabo saiu do Inferno, assumiu forma mortal e permaneceu com o cavanhaque. Veio morar na Terra, teve muitos relacionamentos, beijou e transou com quem desejava e dizem que até hoje faz isso, tudo por causa do cavanhaque. No Inferno, tudo vai bem. Após a renúncia, a Assembleia tentou estabelecer uma oligarquia, mas o povo não deixou. A única justificativa para um governo repressivo estava na figura de Satã (que agora deve atender por outro nome). O povo tomou poder, aprisionou todos os participantes da Assembleia e estabeleceu um regime democrático social. Assim se deu a chamada Revolução do Inferno, tudo por causa de um cavanhaque.

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CAPIM-LIMÃO Davi Claro ele me leu como quem pega um livro solto numa estante sem dono. cada página, um riso de rodapé ele me ouviu como quem escuta algo novo familiar? não sei de onde. cada nota de um dueto de silêncios ele me viu como quem enche os olhos de céu ligando pontos em corrente. cada pinta, uma estrela a costurar

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ele me provou como quem passa café cedinho cabeça longe no depois. cada gota, um amanhã pingado ele me tocou como num abraço de querer bem senti o arrepio de longe. cada dedo que ficou sem estralar antes de encostar seus cílios nos meus.

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Acalanto - Pedro Vittorio

Báiu, báiuqui, baiú1 Um menino sem papá Tinha um prato e um pano azul E cachinhos de enrolar.

Báiu, báiuqui, baiô Bate forte no portão Pede um gole de chocô E um pedacinho de pão.

Báiu, báiuqui, baí A menina diz que não: “Se eu divido, falta aqui Pra mamãe e o meu irmão.”

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Termos inspirados na canção de ninar russa Bayu, Bayushki, Bayu.

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Báiu, báiuqui, baiê O menino quer chorar Mas tem fome e quer comer Deixa a lágrima secar.

Báiu, báiuqui, baiá Vou na rua e vejo então O menino sem papá Não é um, é multidão.

Báiu, báiuqui, baiá Vou na rua e vejo então O menino sem papá É mais um na multidão.

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Reflexão

André Carlos Zorzi

aviso de gatilho:

este texto apresenta uma temática que pode ser considerada perturbadora (violência doméstica).

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Vejo uma mulher com olhar desorientado e desesperançoso. Permanece de pé, imóvel, com hematomas nos braços, pernas, costas e pescoço, emanando tristeza e fitando o horizonte, como se não soubesse o que fazer com sua vida. Não chorava. Mas parecia ser mais por incapacidade do que por falta de vontade. Sua expressão é característica de quem quer gritar ao mundo todas as dificuldades pelas quais vem passando, mas acaba convertendo-as em mal-estar e apenas guardando tudo dentro de si. Pelo que a vizinhança diz, tem vontade de denunciar o marido à polícia, mas lhe falta coragem. O mesmo vale para expulsar de casa seu único filho, que perdeu às drogas. Olhando no fundo dos meus olhos, pergunta: — Onde foi que eu errei? Não sei o que responder. Termino de limpar o espelho e vou me deitar.

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MENINO SEM PIPA Diego Alves menino sem pipa olhou para o céu lotado de pipas

k

um carrossel girando, girando as pipas no céu

os outros riem “olha aí o menino sem pipa”

k então vem o cerol e leva de troféu uma, duas, dez pipas

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°z k e o céu parecia tirar o chapéu mostrando a careca

k

k

e todos os meninos ficaram meninos sem pipa

uu

ele não riu mas disse “a minha pipa não tem carretel”

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D nce Ingrid Souza Lima

A primeira vez em que decidiu ir a uma festa foi em novembro. Os amigos insistiam para que os acompanhasse desde março, mas até então ela não havia sentido a urgência de escapar (do dia a dia, da sua zona de conforto, talvez de si mesma). Mas enfim, as decepções da própria vida haviam-na alcançado e era necessário ser outra pessoa, mesmo que só por uma noite. A experiência toda exigia que ela lidasse com muitos medos de uma vez só, sendo o primeiro deles pegar o metrô com as amigas às onze da noite. Mas a verdade é que muitos temores não são assim tão grandes quando os encaramos e, conforme encontrava os colegas no caminho, ela sentia mais confiança de que o que estava fazendo era completamente normal. O namorado dela era um introvertido que detestava festas e álcool e que, mesmo que não dissesse nada, jamais aprovaria os planos que ela tinha para aquela noite, por mais que as luzes neon e a multidão no prédio em que ela estudava todo dia tornassem a experiência bastante mágica. Mas mesmo se 19


amasse a vida noturna das cidades, ele não poderia acompanhá-la, de tão longe que esteve nesse último um ano e meio. (A solidão era mais uma razão na lista de decepções das quais ela gostaria de fugir naquela noite.) Outra situação que a atormentava, desconhecida por quase todos entre os seus amigos mais próximos, era um outro menino. Esse amigo era o mais insistente quando o assunto era convidá-la para festas. Ela não entendia muito bem qual era o interesse dele nesse assunto, mas como ela sempre recusava, ele a convidava para almoçar nas tardes de sexta-feira. Ela se sentia particularmente feliz nesses momentos que eram só deles dois e em que discutiam as aulas de história da arte, os livros que leram, as experiências que sino Médio, os problemas amorosos que tinham. Ele tiveram no Ensino se encontrava atualmente entre duas meninas e não podia, ou não queria, escolher. Ela lhe dava conselhos para tentar desenrolar a situação complicada, mas tudo permanecia o mesmo, ainda que fosse desconfortável. Na verdade, o que ele passava era quase igual ao seu próprio desconforto. Às vezes ela se pegava olhando demais para ele durante as aulas e desejando que fosse ela sentada ao lado dele, torcendo para que conversassem no intervalo. Mas não seria ela, que, segundo ela mesma, não o amava, que alimentaria tais sentimentos de ciúmes. Era por tudo isso que ela imaginava onde estaria ele. Por meses ele a quisera encontrar em uma festa, e agora ela não desejava nada mais do que ser encontrada. Talvez finalmente descobrisse por que ele queria tanto vê-la no meio da noite. No entanto, ele demorou a aparecer, e ela se esforçou para esquecer os milhares de olhos ao seu redor para que fosse capaz de dançar com os amigos. Não foi tão difícil quanto ela imaginava, talvez porque havia tanta gente junta que era quase impossível se mover sem esbarrar em alguém. Todos ali estavam imersos em suas próprias histórias de decepção e amor e ninguém tinha tempo para reparar nos passos tímidos que ela tentava dar.

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Quando seus olhos finalmente o encontraram, a sensação que a inundou foi uma mistura de alívio e ansiedade. Ela sabia que a felicidade dele em vê-la era genuína quando ele a abraçou e gritou por cima da multidão “Que bom que você veio!”. Ela não sabia exatamente o que esperar desse encontro, mas que ele pedisse para dançar com ela não era uma das opções mais prováveis em sua mente. No entanto, foi exatamente o que ele fez, e ela jamais lhe negaria uma dança. As leis de atração exigem que os corpos se unam. Os pessimistas podem dizer que foi o álcool, o sono ou a adrenalina a razão de tudo, mas ela sabia que não se luta contra a ciência. Dois corpos não ocupam o mesmo espaço, mas dois corpos se abraçam e se tocam na multidão que dança: esses dois corpos quase se fundem. É natural que o ser humano dance, e ele a faz voltar para o seu estado original: ela não tem medo nem vergonha de dançar se os braços dele a seguram contra si mesmo. Nunca sua mente ficou tão vazia, nunca um momento foi tão importante que ela simplesmente o vivesse sem depois, sem poréns. Nada era mais urgente que as mãos dele nas suas costas, o corpo contra seus seios pequenos, as mãos nas suas coxas, seu corpo movimentando-se contra o dele, as mãos segurando as suas. Sua mente trabalhava acelerada para guardar a imagem do menino: a camisa e o peito abertos, os óculos de aros redondos, a fina camada de suor sobre sua pele, a voz dele que cantava ao som da música que eles dançavam. Não havia futuro, não havia outros nem outras, não havia qualquer tipo de dificuldade: enquanto dançavam, ela sabia que pertenciam um ao outro. Depois que a música acabou, eles permaneceram juntos por alguns momentos até naturalmente seguirem a corrente de seus próprios caminhos. Cada um tinha seus próprios amigos, mas a verdade é que ambos sabiam que não eram completamente livres para que continuassem juntos. Foram capazes de se convencer disso pela duração de uma música, mas seria diferente acreditar no sonho a noite toda. Uma hora o encanto passa e os mundos que se colidiram seguem a própria órbita.

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O resto da noite foi longo e demorou a amanhecer. Quando se viram de novo, no ponto de ônibus que os levaria para casa, ela estava abraçada a uma amiga pelo frio e pelo cansaço. Ele estava abraçado a uma menina que não era nenhuma das duas entre as quais estava dividido. Eles se cumprimentaram e se falaram como o fariam em qualquer outro dia de aula; e quando o ônibus lotado chegou, não se viram mais. O dia clareava timidamente, como se também se sentisse culpado de quebrar aquele encanto. E ela sabia que a luz do sol traria a força que precisava para enterrar seu amor por ele. A noite acabou, logo seria segunda-feira e a vida retomaria seu curso usual com a amizade simples que os unia. Mas a relatividade do tempo e do espaço tornou infinito aquele momento na memória dela.

Dançar nunca valeu tanto a pena.

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Verão

Isabella Oricolli da Silva “Da beirada da minha janela, observo-os dançar na chuva de verão. Os meninos do bairro se juntam para dar boas gargalhadas e agradecer o milagre que cai do céu. Eles aproveitam com euforia a simplicidade da vida. Alegres, comemoram a delícia da infância. Eles pulam sem parar e riem despreocupados... O riso doce de quem tem convicção de que a vida pode ser uma tremenda festa. A chuva vai ficando mais fraca. Sentam-se no chão e deitam na calçada molhada, com a serenidade que só a criança tem. Sentem o frescor da grama úmida, o cheirinho de terra abençoada por Deus. Ainda possuem o mesmo brilho de antes, mas agora pulam amarelinha embaixo das cores do arco-íris. E é tudo é tão singelo e luminoso... Até que subitamente, sentem chegar a fome. Seus pequenos olhinhos estão sedentos por algo que sacie a vontade de ter algo para mastigar. Procuram repouso em vão. Estão ávidos e agitados. Entram com toda a fúria na casa da avó, de onde vem o cheiro de bolinhos recém tirados do forno. É muita doçura em apenas uma cena! Se posicionam todos os cinco em volta da mesa redonda com a toalha de xadrez vermelho. Estão todos com as testas brilhando, roupas molhadas e os pés descalços. Em cima do antigo móvel está a cesta de bolinhos, o bule com um café doce e cheiroso, e o vaso com lírios da minha avó. Ela é gentil, carinhosa... Seus movimentos são delicados e amorosos. Ela sente-se realizada ao ver os meninos com as bocas cheias de porções de sua melhor receita. Volto a olhar pela janela e percebo que o dia já está se pondo, as nuvens esquadrinham uma colorida aquarela no céu, que a cada minuto forma uma imagem diferente. Hoje, a tarde foi sublime!...”

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Li hoje esse registro em meu diário de quando eu era apenas uma adolescente e sinto um deleite, um aconchego na alma quando percebo que sou capaz de recordar cada cor, cada luz daquela tarde de férias no sítio. Percebo o quão amável a vida pôde se mostrar para mim, em cada detalhe do que me rodeia... Apesar de sentir saudades da avó Lúcia e daquela tarde inesquecível de verão, sei que pude sentir o amor da família e a doçura de cada momento especial que vivi. Hoje em dia, sou eu quem faço os bolinhos.

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A COR DA HORA SÉRGIO CARDOSO

às cinco, retintos às seis, mestiços às sete, morenos às oito, pardos às nove, aloirados às dez, brancos no ponto, o despertar das cidades, o clarear do dia, o trabalhar de manhãs bem frias desacobertam hierarquias – desigualdades colonialismos – colorismos até que ponto? a cor dá a hora de acordar de cada ser, de cada tez de cada sono, de quem somos


que horas são? repara: a cara, o corre o carro, o cargo a cor, a dor a fome, a hora que dorme as que vagam as que servem as que atendem as que planejam as que mandam as que desfrutam relógios até param; porém, pigmentos fazem privilégios funcionarem impecavelmente em ponto!


Joelho�

Andrez� Silv�


Se lhe pedissem para dizer qual a sua coisa favorita em Theresa, o que mais lhe chamava a atenção nela, ele diria: “os joelhos!”, com a consciência de toda a confusão e estranheza que tal declaração seria capaz de causar. Quando pensava em Theresa, a primeira imagem que vinha à sua cabeça não era outra que não os joelhos da moça. Muito provavelmente esse tipo de afirmação causaria um grande rebuliço na cabeça daquele que ouvisse, principalmente se a pessoa em questão conhecesse Theresa; o cidadão ficaria abismado: como era possível que ele preferisse os joelhos aos belos olhos verdes que ela possuía? Ou às pernas que, diferentes das de Teresa do Bandeira, não eram estúpidas, mas estupendas? Talvez fosse um pouco mais aceitável preferir as mãos ou até mesmo os pés, fetiche um pouco esquisito, mas já largamente conhecido... Porém, o que ele gostava mesmo em Theresa eram os joelhos. Pode ser que essa fixação nos joelhos adviesse da forma que os dois se conheceram muitos anos atrás; na realidade, tudo começou exatamente nesse dia. Sergio conheceu Theresa quando ambos não tinham muito mais do que dez anos. O garoto voltava para casa depois de passar grande parte da tarde jogando futebol com os amigos no parquinho do bairro. Como toda boa criança de dez anos que se preze, Sergio se deslocava para todos os lugares que podia correndo, e dessa vez não foi diferente. Mal se despediu dos seus amigos, iniciou uma carreira, acabando por pisar em seu próprio cadarço desamarrado, indo diretamente ao chão. Enquanto cuspia poeira – as ruas do bairro eram de chão batido – e limpava a boca, Sergio ouviu uma voz hesitante interrogá-lo: “Hey, você tá bem?”. O menino levantou a cabeça levemente e seus olhos se depararam com um par de joelhos. Magros e ossudos, eles se colocavam entre as canelas finas e as coxas de pele morena bronzeada. Sobre eles, a bainha de um desbotado vestido de florezinhas minúsculas. Os olhos de Sergio se demoraram naqueles joelhos, observando as marcas e arranhões presentes neles. Em um dado momento, duas mãos foram colocadas sobre os joelhos e um rosto de garota, com duas esmeraldas no lugar dos olhos, chegou próximo ao seu, questionando-o novamente: “Você não me ouviu? Você tá bem? Precisa de ajuda?”. Theresa estendeu uma das mãos, mas Sergio, com todo seu orgulho infantil, dignou-se a responder que estava bem, ignorando a mão da garota e se levantando sozinho. Ao se içar do chão, armou nova carreira em direção à sua casa, deixando a garota plantada no meio da rua. Sergio, no auge de seus 28


dez anos, teve certeza de que nunca mais encontraria a garota em questão. Porém, qual não foi sua surpresa quando a garota apareceu em sua escola no dia seguinte. Inicialmente, ele não a reconheceu, mesmo ela tendo se sentado ao seu lado e o cumprimentado com um simpático “oi”; contudo, quando se abaixou para pegar o lápis do chão e seus olhos visualizaram os joelhos da menina, foi impossível não se lembrar de onde a conhecia. A princípio, Sergio não queria muito papo com Theresa; seu orgulho infantil o impedia de iniciar uma amizade com uma garota que o conhecera caído no chão e com a boca cheia de terra. Entretanto, Theresa insistia em tentar se aproximar de maneira simpática, de modo que, com o passar dos dias, Sergio não conseguiu mais resistir aos comentários espertos e à risada dela. Uma vez vencido o orgulho, Sergio e Theresa tornaram-se amigos inseparáveis. Sergio já não se lembrava mais de como era correr e brincar por aí sem Theresa ao seu lado, os joelhos morenos e ossudos sempre um tanto ralados, a risada alta soando em seu ouvido. Enquanto Theresa e Sergio cresciam e se divertiam juntos, os anos correram mais rápidos do que Sergio corria no dia em que conheceu Theresa. Então, um belo dia, Sergio se deu conta de que eles não eram mais crianças e seu olhar se deslocou dos joelhos para o sorriso, os olhos verdes e a maneira como Theresa colocava o cabelo atrás da orelha. Sergio se viu irremediavelmente apaixonado. O garoto ficou aturdido com tal revelação e relutou em se declarar. Sua percepção adolescente lhe dizia que Theresa jamais poderia ter o menor interesse em um amigo de infância que certa vez se estatelara no chão a ponto de comer terra. Entretanto, quanto mais o tempo passava, mais Sergio via-se fascinado por aquela garota da qual sua primeira visão fora os joelhos, de modo que, um certo dia, não aguentou e acabou se declarando. E qual não foi sua surpresa ao descobrir que era correspondido?! Sergio e Theresa, então, iniciaram um namoro, tornando-se, se possível, ainda mais inseparáveis. E assim, cinco anos se passaram, até que Sergio decidiu que desejava passar o resto de sua vida ao lado de Theresa. Obviamente, o jovem demorou a tomar coragem para pedi-la em casamento; porém, tal como da última vez, um certo dia aconteceu: Sergio foi agraciado pelo “sim” de Theresa. E tudo isso 29


transcorreu sem que Sergio deixasse de se lembrar que a primeira parte de sua noiva que ele tinha visto na vida havia sido os ossudos e bronzeados joelhos. Entretanto, o apreço que Sergio nutria pelos joelhos não era do conhecimento de Theresa. Por isso, quando foi inquirido, dias antes do casamento, acerca do que mais gostava em sua noiva, Sergio entrou em pânico. Seus neurônios travaram e sua boca ficou seca enquanto ele pensava no que deveria dizer. Com o rubor subindo pelo rosto, Sergio gaguejou, sem olhar para a noiva, uma resposta óbvia e aceitável: “seus olhos.”. Então, devolveu a pergunta, apenas para retirar a atenção de si. A resposta de Sergio foi recebida por Theresa com um ar quase entediado, mas ao ver-se obrigada a responder a mesma pergunta, a moça lançou a Sergio um olhar esperto. Um leve rubor subiu pelo pescoço de Theresa e um sorriso displicente brincou em seus lábios quando ela respondeu: “Seus joelhos!”



Cecília Dindara Galvão

Cecília, Ano passado eu te jurei que não me apaixonaria de novo. Mas hoje eu fui ao mercado E até perdi o papel em que havia marcado A lista de compras. Meus dedos esbarraram, por acaso, na superfície grossa de uns [calos protuberantes. Ensaiei uma desculpa, mas desde a primeira troca de palavras [senti a acidez de seu tom impaciente. De quem não poupa palavras para dizer o que pensa, cada uma [cortante, fatiando meu coração. Subi o olhar lentamente, e, quando meus olhos o beberam por [completo, foi impossível não o amar desde o primeiro instante. Seus olhos duros, mas que de alguma forma escondiam uma [maciez quase líquida entre os sulcos causados pelo tempo na face. Quis espremê-lo em meus abraços imediatamente, até que nós dois nos convertêssemos em líquido ali mesmo, na seção de hortifruti. Seus olhos redondos, amarelos, vivos e vibrantes pesavam sobre [mim mais do que os quilos de batata no meu carrinho. Mas fizeram carinho também, por um nanossegundo, antes de [rolarem para outra direção. Ou seriam verdes? Apesar do enigma verde-amarelo, Acho que ele não era brasileiro não. Tinha um quê de persa, árabe ou indiano... Ou seria alemão?

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Cecília, para falar a verdade, hoje eu me apaixonei por [um Limão. Cecília, um limão! Ah! Cecília. Eu o amo. E por hora tenho-o firme em minhas mãos, mas tenho medo [de abri-lo e oxidá-lo e mais medo ainda de que ele apodreça [entre os meus dedos antes de revelar-se.

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Vitória Maciel

Ele morreu dentro do próprio apartamento. Foi tiro, e nesse caso, contrariando todas as estatísticas, não foi bala perdida. Só é perdida quando encontra um corpo cheio de melanina e sem dinheiro. Tiro perdido chega pros que moram em favela, ocupação, COHAb, prédios altos com apartamentos minúsculos como o meu. Não tô falando dos arranhacéus do centro. Eu falo das moradias onde a tinta tá descascando, dos barracos de madeira e madeirite, das pichações em código nos muros altos. A morte de quem ocupa esses espaços não comove. Mas a dele comoveu, porque foi de terno. Não foi com uniforme como a de tantas crianças voltando da escola, como a de tantos pais e mães ao voltar do trampo. Não foi a caminho da pracinha precária da esquina, do campo de futebol ou indo pra roda de capoeira. Foi dentro de casa. Como tantos outros, mas aqueles não têm repercussão, não tem choro nacional, muitos não chegam nem a ter investigação. Pobre que morre na favela morre só por ser quem é. Já o cara que morre no alto de sua quitinete hype no Jardins, com todas as câmeras e seguranças armados, esses caras com dinheiro pra caralho só morrem quando mexem com alguém mais rico ainda. O mesmo rico que, no auge de seus milhões construídos em cima de corpos pobres, financia lentamente, dólar por dólar, bala por bala, a nossa morte.

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laura lisboa

Sobre a cidade São Paulo. A cidade que carrega dinheiro, pessoas, quiçá um país inteiro. A gente acha que não, mas cidade carrega história também. Em todo caso, quem acha que é dono de São Paulo acha também que é dono da história dela, e por isso apaga com tinta as coisas que não gosta. Deixa eles. Rua das Palmeiras. Cheiro gostoso, de feira, de fruta. É coco que dá em palmeira, né? Pois sim. Se tiver vontade, vá na rua das Palmeiras e elimine seus anseios. Ué, não achou? Ah, é. Esqueci de avisar. Agora, na Rua das Palmeiras o que tem é comércio. Academia, depósito e alguns brechós, pra informar quem não tem dinheiro e foi procurar coco na rua das Palmeiras. Árvore mesmo, acabou. Tá, pra não dizer que acabou, tem uma. Sem fruta, sem folha, sem cor, sem vida. É enfeite, porque dá trabalho demais mudar o nome da Rua das Palmeiras.


Tatuapé. Tudo de terra, lama e grama, mal dava pra andar descalço que vinha um tatu morder seus dedos. — Nossa, mas andar a pé é coisa de índio. Já parou pra pensar que tudo que é sinônimo de natural, pejorativamente, vira coisa de índio? Bom, pouco existe agora pra saber. Tatu e índio. Prossigamos. Rua Imaculada. Aquela que não cometeu o pecado. Que não é suja ou impura, sem nódoas ou arrependimentos. Mulher de Deus, da Igreja, exclusivamente serva do Senhor. Hoje, perduram servos que, em momentos de inseguranças políticas, clamam pelo Messias. Para que ninguém descubra que a moça, que um dia foi chamada de Imaculada, perdeu a pureza forçada pela bondade dos servos de Cristo num beco fechado, em um dia de chuva, naquela praça vazia que fica entre a Igreja e o Purgatório. Rua Imaculada. Não mais. Chora Menino. Chora, menino, chora. Mas chora escondido, daqui a pouco você vira homem e homem não pode chorar. Aqui tem um cemitério também, sabe? É esse o motivo das lágrimas? Cemitério Chora Menino. Mas só chora menino pobre, viu? É cemitério de deslizamento, de assassinato pela polícia, de traficante de drogas que portava dez quilos de produto de limpeza na bolsa. Chora menina também, porque a cada duas horas entra lá uma mulher assassinada pelo homem de bem, que matou por amor. Então chora menino, chora menina, chora São Paulo. Mas chora mais pela perda da SUV na enchente do que pela morte dos nove que, tentando ouvir música, saíram do Paraíso direto pro Inferno. Chora de felicidade, pelo fim da bandeira vermelha, mas pelo fogo e pela lama que fizeram a cidade dormir às 15h, não cai uma lágrima. Chora, São Paulo. Mas chora só pelas coisas que importam. Não precisa chorar por gente morta na favela, não. Ou por mulher morta dentro de casa, pra que isso? Vagabunda é o que não falta nesse país. Ou por homem que sai com o namorado, mulher que sai com a namorada, ou por quem foi lido como homem mas nasceu mulher. Esses aí decidem se arriscar saindo na rua e dá no que dá, né. Quis correr risco. A gente avisa, não quis escutar, né? Então agora aguenta. Ninguém mandou querer ser diferente.


São Paulo, a cidade que não para. Pra quem merece.

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aviso de gatilho:

este texto apresenta uma temática que pode ser considerada perturbadora (violência doméstica).

Matéria velha

Matheus Mitre El Tayar

Ele chegou todo feliz. O auge do conhecimento em seus 8 anos: aprendeu que o aumentativo de homem era homenzarrão; de casa, casarão; e muitos outros de que agora ele não se lembrava. Veio a testar os conhecimentos da mãe: — Mãe, qual é o aumentativo de cidade? A mãe, encabulada, responde que cidade não tem aumentativo. — Mas ué?! Não tem nada que seja maior do que a cidade? — Até tem — ela disse, e entendendo a ideia. — Então, mamãe, qual é o aumentativo de cidade? — Estado. — E de estado? — País. — E de país? — Continente. — E de continente? — Planeta. — E de planeta? — Galáxia. — E de galáxia? — Universo.


— E de universo? — Povos. — E de povos? — Amor. — E de amor? — Ódio. — E de… O barulho da porta de casa batendo quase ensurdece os dois. Ele não termina a pergunta, porque sabia que o aumentativo de ódio era o papai.


FOLHAS SECAS

Raphael De Lucca M. Jarcovis



Eu ainda me lembro daquela época em que estudamos na mesma escola, na mesma sala. Na verdade, eu me lembro especificamente de um dia. O dia em que você aceitou sair comigo depois da aula. Naquele dia, depois de ouvir o barulhento sinal que indicava o fim da última aula, saímos da sala conversando como sempre. Mas dessa vez não seria igual aos outros dias, não iríamos direto para casa como de costume. Seria nosso primeiro encontro e eu tinha esperado muito tempo por isso. Andamos pela calçada, conversando alegremente. Nossas mãos se encostavam de vez em quando, porque estávamos bem perto (algumas vezes eu encostava um pouco de propósito), mas eu nem tentei segurar sua mão, a timidez não deixava. Eu lembro que tinha algumas folhas secas no chão e então você falou, como quem confessasse um segredo íntimo, mas, ao mesmo tempo, falasse algo completamente cotidiano: — Eu adoro pisar nas folhas secas, você não gosta? Eu olhei para você por um tempo em silêncio, porque achei engraçado. Nunca tinha pensado que alguém pudesse gostar de pisar em folhas secas. Eu apenas pisava nelas quando estavam no caminho, não porque gostava. — Eu nunca sequer pensei sobre isso. — Respondi, contendo o riso. — Como não? Eu faço isso desde criança. Sempre que vejo uma folha seca no chão, eu piso. É tão legal ouvir esse “crec-crec” que elas fazem quando a gente pisa nelas. Por que você não tenta? Eu fiz que sim com a cabeça e pisei em algumas folhas secas que estavam na calçada, mas elas não fizeram nem um “crec”. Você, percebendo meu desapontamento, falou rindo: — Nem todas fazem “crec”. A graça é pisar até achar alguma que faça! Assim, fomos andando por todo o caminho pisando em todas as folhas que a gente encontrava na calçada, pulando de folha em folha até que alguma fizesse “crec”, e então nós comemorávamos. Quem olhasse de fora poderia estranhar a gente gritando enquanto pisava em folhas no chão. Mas naquele dia, não ligamos para isso. Nós chegamos à lanchonete que tínhamos combinado de ir, suando e um pouco ofegantes depois de termos pulado em várias folhas pelo caminho. — Você deve estar achando um ótimo primeiro encontro. Fiz você pular em folhas secas e ainda por cima suar! — Você zombou, dando risada. 42


— Eu adorei! Vou começar a pisar em folhas secas sempre a partir de agora. — Falei e não estava mentindo, realmente tinha gostado. Você sorriu. Você tinha um sorriso lindo. Por fim, sentamos à mesa e fizemos nossos pedidos. Conversamos sobre tantas coisas, mas eu confesso que não prestei muita atenção, porque não conseguia parar de olhar para você e reparar no jeito que você falava, no jeito que você dava risada, no jeito que você mexia no cabelo enquanto dava risada. Quando tínhamos acabado de comer e beber, pedimos a conta, pagamos e fomos embora. No caminho de volta, mais folhas secas no chão e nós pisávamos nelas novamente. Até que nos olhamos por alguns segundos e foi aí que aconteceu: nós nos beijamos. Não sei se foi seu primeiro beijo, mas foi o meu. Foi diferente do que eu pensei, nossas línguas se enrolavam de um jeito que eu não fazia ideia se estava fazendo direito. Foi um beijo com sabor do suco de laranja que tínhamos acabado de tomar misturado com um pouco do gosto salgado do suor por ter corrido tanto pisando em cima das folhas. Continuamos a andar em silêncio, dessa vez de mãos dadas. Minha mão tremia um pouco no começo, mas depois comecei a relaxar. Nossas casas ficavam no mesmo caminho, porém a sua ficava um pouco antes da minha. Quando chegamos à sua casa, nos despedimos com mais um beijo e eu continuei meu caminho. Quando entrei em casa, só conseguia pensar em como aquele dia tinha sido incrível. Foi o auge dos meus quinze anos de vida. Queria muito viver aquele dia novamente. Na verdade, foi o que aconteceu. Nós saímos mais algumas vezes, nos beijamos mais algumas vezes, pisamos em folhas secas mais algumas vezes. Mas como tudo que é bom dura pouco, paramos de sair depois de algum tempo. Você encontrou outra pessoa para pisar nas folhas secas com você. Hoje penso nesse dia de uma forma diferente. Não com paixão, muito menos com rancor, mas com saudades. Não com saudades de você, mas com saudades dessa lembrança. Não tem uma vez que eu vejo uma folha no chão e não me lembre desse dia. E agora eu estou aqui, quinze anos depois, na mesma lanchonete em que fomos naquele dia, e você está a duas mesas na minha frente. Você não me vê, mas eu te vejo. Incrível como você não mudou nada. Ainda é o mesmo jeito, a mesma risada, a mesma mão no cabelo quando ri. Faz um tempo que a gente perdeu contato, eu não sei mais nada sobre você. Será que está com alguém? Será que foi para a faculdade? Se formou? Conseguiu emprego? Será que você está feliz agora? Será que você ainda pisa nas folhas secas que caem no chão? 43


Eu queria ter feito todas essas perguntas. Eu até cheguei a me levantar da cadeira e pensei em ir até a sua mesa, perguntar se você ainda se lembrava de mim e depois perguntar tudo que eu queria. Mas a lembrança daquele dia tomou conta de mim e eu me dei conta de que você era apenas isso, uma lembrança. Uma lembrança como tantas outras. Achei melhor deixar assim. Voltei a me sentar, olhei para você uma última vez, pedi a conta, paguei, me levantei, fui até a porta e saí. Enquanto andava pela calçada, ouvia o “crec” que fazia cada folha seca em que eu pisava pelo caminho e não consegui conter um sorriso.

CREC CREC



A Lua Letícia Medeiros dos Santos

Somos de ciclos. Sem nem entender um pingo do mundo, corria a chorar ao colo da Mãe pelas mágoas de brincadeiras de crianças mimadas. Céu limpo e tempestade. Em menos de um dia, iam e vinham pelas conversas deturpadas entre Mãe, filha e Dor. Casa devastada, não sobra nem suspiro daquele lar que habitava. Deserto de águas formado pelas lágrimas, procura respostas entre antepassadas na esperança de desatar nós e conversas quebradas. Ao abraçar de outras Mães, retorna à morada depois de tanto perambular. As mães, avós, tias, primas, irmãs. Retorne para casa e seja o colo que outras mulheres vão precisar. Pois somos de reinícios.

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Peart


A mulher repentinamente se viu em uma espécie de sala de espera, com todas as paredes pintadas de branco. Uma porta, a única que havia no recinto, abriu-se, revelando a imagem de um indivíduo de estatura mediana e feição serena. — Ângela? — Perguntou a pessoa enquanto olhava para uma prancheta em seus braços. — Sou eu. — Respondeu a moça. — Ótimo. Estávamos esperando por você. Assim, o indivíduo materializou uma poltrona em sua frente, sentando-se nela. — Q-que... Que é que foi isso? Onde eu tô? Quem é você? — Indagou Ângela, com suas vistas assustadas olhando para todos os cantos. — Eu sou Guia e estou aqui para lhe dar boas-vindas ao Depois. Resumindo: você morreu. — O quê?! — Tecnicamente, ainda não morreu. Mas vai morrer. Eu estou aqui para ajudar na sua transição do plano terreno para o Depois. — O Depois? — Uhum. O Depois nada mais é do que o plano espiritual para onde as pessoas vão depois que morrem. — Então, é tipo um Céu? — Depende. O Depois se adapta às crenças que o morto possui. Para você e outros cristãos, o Depois se apresentará como o Céu. Por outro lado, para espíritas e umbandistas, o Depois poderia ser a etapa de transição até a reencarnação, e por aí vai. — E quem não acredita em nada? — Se é o nada que o morto espera, então, no Depois, nada o morto terá. — Calma aí, eu não posso ter morrido! Eu saí da faculdade, entrei no ônibus... E-eu até cumprimentei o Nestor, um cara que estudou comigo. E aí…

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— E aí o ônibus derrapou na avenida, chocando-se com um caminhão. Você agora está na UTI de um hospital com nenhuma chance de sobrevivência. — Não, não. Isso deve ser um sonho. Eu devo ter cochilado no ônibus! — Não é um sonho. Se quiser ter certeza, tente levantar e correr. Sem pensar duas vezes, Ângela pôs-se a correr pela sala, surpreendendo-se ao ver que suas pernas funcionavam normalmente, algo que não acontecia em sonhos. — Okay, talvez isso não seja um sonho. Mas você disse que eu tô na uTi, então eu ainda tô viva, né? — Não. — M-mas… Guia apontou para uma das paredes da sala, fazendo surgir uma espécie de televisão. Dentro dela, passava-se a visão de um enfermeiro que estava cuidando dos ferimentos de Ângela, cujo corpo jazia na uTi totalmente desfigurado. — Você ainda acha que está viva? — Bom... Dá pra viver sem um braço, né? Mas tô falando sério: eu não posso morrer! — Por quê? — Eu tenho 29 anos. Eu tô prestes a terminar meu mestrado e… — Em Direito Penal, certo? — Perguntou Guia, voltando à prancheta. — Sim! E eu ainda nem concretizei o meu sonho! — Qual é o seu sonho? — É... Meu sonho é poder tornar a vida das pessoas melhores. Fazer um grande gesto pro mundo. — Isso é bem audacioso. E como você pretendia fazer isso? — Eu pretendo dar apoio jurídico pra quem não possui condições de contratar bons advogados. Eu espero, assim, poder combater algumas injustiças.

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— Certo, mas você não pode fazer mais nada agora. — Eu posso sim, eu preciso voltar! — Por quê? — Porque senão a minha existência no mundo não vai ter feito nenhum sentido! — Exclamou Ângela, com as vistas marejadas — Eu terei simplesmente existido na Terra sem deixar nenhuma marca! Sem ter colaborado mesmo que minimamente pra tornar o mundo melhor! Qual é o sentido de viver se não esse?! Guia respondeu com um silêncio. Permanecendo dessa forma, Guia ergue sua mão, mudando o “canal” da televisão. — O que foi? — Está enganada, Ângela: você não faz ideia da grandeza dos seus atos. Com isso, Guia mostrou para a moça cenas envolvendo diversas pessoas com as quais ela teve contato em sua vida. — Observe. O rapaz que você citou, Nestor, acabou de receber alta do hospital. Ele estava mais para trás no mesmo ônibus. Porém, Nestor se salvou por conta de algo que você emprestou a ele quando os dois ainda estudavam juntos na 8ª série. — O que era? — Um livro. Senhor dos Anéis. O primeiro. Você ficou brava na época, pois ele nunca devolveu. Acontece que a grossura do livro, que estava na mochila dele, absorveu o impacto, salvando-o. Mas você sabe por que ele carregava esse livro, mesmo depois de anos? — Hm... Não. — Talvez você não saiba, mas Nestor era agredido pelo pai constantemente. O livro era a única coisa que ele tinha para o desconectar da sua realidade terrível. Tanto que, quando ele ficou mais velho, Nestor se convenceu de que ele queria escrever histórias grandiosas como aquela que leu. Ele estava no ônibus saindo de uma editora interessada em publicar um

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livro que ele escreveu. Logo, se não fosse aquela sua “mínima” ajuda, Nestor poderia ter se perdido para sempre. — E-eu... Não fazia ideia. — Não acaba aí. Durante todos os seus 29 anos, você ajudou pessoas que precisavam de ajuda ou, simplesmente, de algumas palavras de carinho que só você podia oferecer. Foram parentes, moradores de rua, pessoas desconhecidas, até mesmo uma ex-namorada. São pessoas que você salvou, mesmo que indiretamente. — Tá... Digamos que eu concorde com você, o que acontece? — Existe uma política aqui no Depois de que ninguém além do morto pode ter controle sobre a sua morte. Logo, só você pode autorizar que o seu corpo seja desconectado do plano terreno. — Disse Guia, estendendo uma folha sobre a sua prancheta, junto a uma caneta — Se te serve de consolo, nós nunca estaremos prontos para morrer. Sempre iremos achar que resta algo a ser feito no mundo, quando, na verdade, nós já fizemos tudo que podíamos fazer. — E-eu... Sempre achei que ia virar verdade, sabe? — Disse Ângela, com lágrimas nos olhos — Que a minha vida toda me levaria ao momento em que eu realizaria um grande gesto. — Eu sei, todos nós queríamos ter mais tempo. Mas você irá embora com a certeza de que não carrega arrependimentos. Você não precisou esperar ter dinheiro, tempo ou recursos para fazer grandes gestos. Você os fez durante toda a sua vida. Não há mais nada para ti nesse mundo. Ângela hesitou, mas não teve medo de concordar com o seu destino. A caneta desenhou sua assinatura e, instantaneamente, a moça se sentiu mais leve. Era a sensação de não mais sentir o mundo em suas costas.

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Carta a Sinto que preciso pedir perdão Perdão por te ter magoado Por ter sonhado com outro em seu lugar Por ter sonhado em te modificar desde o princípio Me perdoe por ter deixado te atacarem Por não ter me afastado de quem tanto diz me amar, mas que tanto [te quer mudar Ora, não é você uma parte de mim? Me perdoe por ter acreditado em todas as palavras que disseram [sobre você E por tê-las repetido Me perdoe por ter aceitado todas as palavras cortantes voltadas a [nós Por ter sonhado em mudar sua cor Sua forma Seu som Suas marcas


o corpo

Helena

Minha nova missão é mudar esse cenário E não você Minha nova meta é te amar mais do que a qualquer outra opinião [indesejada Sonho em largar o velho hábito de odiar você Que sempre esteve aqui comigo Que esteve comigo em todos os tropeços Em todas as brigas Que me manteve de pé em todas as lágrimas Que me manteve forte Você Que me mantém firme em todas minhas decisões Que me mantém firme enquanto escrevo estes versos Finalizo esta carta, então, Com um simples obrigada E mais um pedido de perdão


O apartamento do mago Felipe Serras


O apartamento descansava sob o crepúsculo. As sombras dos móveis agigantavam-se gradualmente até tomarem tudo, fazendo daquele pequeno lar mais uma estância do infindável Reino da Noite. Apenas uma luz leve e dourada irrompia o breu, vinda da porta de entrada feita de resina branca e lisa. Na porta não se via fechadura ou maçaneta, mas ela havia sido hermeticamente fechada por um feitiço. Era a presença da magia que brindava o cômodo com os raios dourados, que delimitavam tudo que lá se encontrava. O silêncio se esvaneceu quando a luz dourada falhou, permitindo que a porta abrisse. O mago entrou. Com um movimento de suas mãos, ele fechou a porta atrás de si, selando-a novamente com a aura dourada de antes; com outro, fez acender as luzes da sala, revelando o sofá, a poltrona, a televisão, as mesinhas e o tapete, todos de desenho anguloso e colorido. Suspirou, massageando as sobrancelhas e tirando seu chapéu cônico estrelado, apoiando-o sobre a bancada que dividia a sala da cozinha. “Que absurdo”, pensou, encarando o chapéu, “que eu tenha, eu mesmo, que lavar e cuidar do meu próprio equipamento de segurança de trabalho… E talvez nem valha muito a pena”. Ele deixou o corpo cair sobre a poltrona, descansando seus sapatos pontudos de pano azul na mesinha de centro, e estendeu a mão à geladeira, que abriu os olhos e a porta, cuspindo uma garrafa de Vinho Sangue-de-Dragão para ele. Ele olhou a garrafa: — Barato e ruim, mas bom. — Cochichou para si mesmo enquanto dava os primeiros goles. Percebeu que dois pequenos morcegos esperavam na varanda, cada um carregando um pergaminho. Com um movimento dos olhos, fez abrir o vitral, permitindo que as criaturinhas entrassem. O primeiro trazia uma mensagem de sua mãe, pedindo que ele não se esquecesse de mandar um morcego de aniversário para sua tia. “Faço isso depois”, ele pensou, mas não o faria. O segundo morcego, mais arisco, sentou-se em seu ombro e soltou um pequeno cocozinho, entregando o pergaminho a ele em seguida. O mago revirou os olhos, sabendo de quem era. Só existia uma pessoa que enviava morceguinhos cagões propositalmente, e esse era seu melhor amigo, Jorge. A mensagem de Jorge, entretanto, o surpreendeu. Ela continha um retrato de duas crianças, ambas vestidas de mago, fingindo fazer magia, muito antes de aprenderem a fazê-la. Abaixo do retrato, o texto de Jorge dizia:

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“Encontrei isso hoje nas coisas de minha mãe. Achei que você gostaria de ver o quanto sonhávamos com isso quando crianças. No final das contas, posso não ter conseguido, mas você, sim; parece que às vezes os sonhos realmente se realizam. (P.S.: É impressionante como você era uma criança adorável, nem o feitiço mais poderoso poderia te curar dessa tragédia chamada puberdade)”. O mago ficou consternado ao ver a alegria de seu eu-criança sonhando em fazer magia. Há muito não lembrava que um dia sentira tal sentimento, que um dia sonhara com a vida que agora ostentava. Mesmo assim — ele olhou ao redor — parecia vazia e mundana. Em que momento aquela alegria se perdera? Em que momento o devaneio havia dado lugar ao cansaço e ao desgosto? Fora na escola? Na universidade de magia? Talvez depois. No primeiro emprego, como engenheiro de pontes dimensionais, ou no segundo, como fiscal de uso abusivo de magia? Talvez até no terceiro, e atual, como testador de poções? Não sabia ao certo, só sabia que quando criança sonhara com a magia como ferramenta da vontade, mecanismo que ele usaria para reescrever o mundo. Esticar indefinidamente o tecido do tempo dentro do intervalo que compunha as férias, criar um lobo mágico para proteger as pessoas dos assaltos ou conjurar um palácio de chocolate para resolver o problema da fome haviam estado entre seus projetos prioritários, mas nada disso encontrava lugar em seu presente. Seja por falta de tempo, vontade ou ingenuidade, ele não fazia nada que não fosse estritamente útil e necessário. Levado por essa linha lógica, ele desatinou a pensar: “Que magia poderosa seria essa, capaz de transmutar o sonho de uma criança na utilidade de um adulto? Tal feitiço exigiria um ingrediente potente, sem dúvida. Qual seria ele? O poder dos poderosos, as crenças dos clérigos, a fraqueza dos pequenos ou a habilidade dos roteiristas de mentir o mundo?” Silêncio. “Talvez uma combinação de todos”, concluiu o mago, mas o cansaço não o deixou prosseguir. Ele resolveu ligar a televisão e se distrair com sua série de fantasia favorita: a que contava a história de um mun56


do sem magia, onde as pessoas dependiam de máquinas inteligentes para tudo que faziam. — Que coisas fantásticas seriam tais máquinas — Ele disse para si mesmo — Que incrível o mundo seria se elas realmente existissem! O mago assistiu até adormecer e os morcegos ao seu lado esperaram indefinidamente pelas respostas.

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O final feliz da história da humanidade Fernanda Fagundes

Às vezes eu penso que a humanidade é só um daqueles pedidos complicados que seu chefe de vez em quando te faz. Você tenta tocar como pode, mas cedo ou tarde vira tudo uma grande cagada e só resta torcer para esquecerem que você era o encarregado. Eu consigo ver Deus, em seu cubículo cercado por janelões do chão ao teto, estremecendo toda vez que o CEO da coisa toda passa no corredor. “Não vem falar comigo”, Ele reza baixinho, tentando ignorar a ironia. (Deus detesta ironia.) Há 30 anos, Ele tinha uma desculpa na ponta da língua, caso fosse questionado: sim, as coisas tinham saído um pouco de controle, mas elas estavam melhorando; fomos corrigindo a trajetória, estou otimista, as instituições estão funcionando. Mas agora? Deus agora… Não tem muito o que falar (e Ele sabe — uma das desvantagens de ser onisciente).

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Eu não posso negar que sinto certa compaixão. A humanidade é uma tarefa muito grande para uma pessoa/ser espiritual onipotente só. Tem o Espírito Santo, certo, mas acho que ele está mais para estagiário. De todo modo, foi muito afobado fazer tudo em sete dias. Todo mundo avisou. Mas Deus achava que era capaz. Ele é aquele tipo de funcionário que se o chefe dá um prazo de um mês, entrega com três semanas. Quer mostrar serviço, ganhar uma estrelinha. Nunca é convidado para o happy hour. Agora ali estava Ele, arrogante demais para pedir ajuda, desprezado demais para ser ajudado. Monoteísmo, que ideia estúpida foi essa? Vai ter que se virar sozinho, campeão. Durante muito tempo, a chantagem emocional funcionou bem com a humanidade. Toda vez que o pessoal começava a sair da linha, era só pedir o sacrifício de um filho, lançar uns gafanhotos, nos casos mais extremos inundar a Terra toda. Enfim, técnicas rudimentares. Com o tempo, o ser humano foi sacando o esquema. A ser humana, para ser mais específica. Conforme a incoerência entre teoria e prática divina foi ficando mais clara, Deus foi se acanhando. Não bastava o pessoal da firma, agora até os animais que criou estavam olhando meio torto para Ele. Foi aí que Deus resolveu deixar a humanidade de lado, dar um gelo para ver se ela sentia falta. Enquanto Ele curtia seu momento boy lixo, a humanidade não só não se importou como foi curtir a vida adoidada. Você quer brincar de gelo, lindo? Me deixa então ver sua cara depois que a gente derreter umas calotas polares. Quando Deus resolveu finalmente maximizar a aba humanidade, a máquina deu tela azul. Desesperado, Ele lembrou que Jesus foi o último que salvou o arquivo. A pane durou uns 10 minutos, 10 anos em tempos terrenos. Por sorte, uma cópia de recuperação foi salva automaticamente. Ao reabrir o arquivo, porém, o frio na

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barriga: algo estava errado. A humanidade havia voltado a acreditar em neoliberalismo e horóscopo. Alguns países estavam sendo comandados por formas de vida que Deus não tinha certeza se eram inteligentes. Milhares de espécies extinguiam-se, mas a quantidade de gatos se multiplicava. Todos os filmes eram da Disney, e eram os mesmos de 20 anos atrás. Deus gostava de ficção científica, era uma das invenções humanas das quais mais se orgulhava, mas esse enredo era apenas perturbador. E assim voltamos ao começo da nossa história: Deus sozinho, em seu cubículo janeludo, com uma humanidade corrompida em mãos e nenhuma desculpa para dar a seu chefe. Como Ele gostaria de poder abortar o projeto… Ah, como Ele detesta ironia. Sem ter para quem pedir ajuda, Deus buscou inspiração na própria humanidade. Foi assim que resolveu que minimizaria a tela de novo e dali em diante jamais a abriria novamente, contando com o esquecimento do chefe. Se porventura-talvez-um-dia-quem-sabe fosse questionado, responderia: “chefe, você não lembra que eu te falei que o arquivo está com a Ti?” Desse dia em diante, Deus passou a ser convidado para o happy hour, e esse é o final feliz da história da humanidade.

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Sumário e Créditos dos textos onlines A gata preta ……………………………………………………… 63 Andreza Silva - Letras/FFLCH E-mail: andrezassilvas@gmail.com Arte por Heloisa Claro da Silva

Bolo de vó ………………….........………………………………… 66 Marcella Georgini - Artes Cênicas/ECA E-mail: mageorgini@usp.br Arte por Carolina Favo

Cemitério vizinho ....................................................................................... 69 Lucas Oliveira - Direito/FDUSP E-mail: luscasoliveiraamaral00@outlook.com Arte por Camila Gonçalves

Correnteza ................................................................................................... 72 Thiago Sena - Letras/FFLCH E-mail: sena.thiago.silva@gmail.com Arte por Mirela Cavalcante

Especial ......................................................................................................... 73 Pedro Bomfim - Letras/FFLCH E-mail: pedrodbomfim@gmail.com Arte por Isac Araujo dos Santos

Fortaleza ...................................................................................................... 77 Decco - Administração/FEA E-mail: matheusdecco@usp.br Arte por Vitória Galindo

Meu olho mágico ........................................................................................ 79 Dindara Galvão - Física/IF E-mail: dindara.galvao@usp.br Arte por Camila Somera


O contador de histórias ............................................................................ 81 Alcino Salviano Cavalcanti - Ciência da Computação/ICMC E-mail: alcino.cavalcanti@gmail.com Arte por Lucio de Godoy

Realejo .......................................................................................................... 84 Lívia Gouvêa - Letras/FFLCH E-mail: livgouvea@usp.br Arte por Mari Iazetti

Vênus ............................................................................................................ 87 Pedro Vittorio - Jornalismo/ECA E-mail: pedrovittorio@gmail.com Arte por Emily Macedo

Viagem .......................................................................................................... 90 Davi Claro - Relações Públicas/ECA E-mail: clarodavi@live.com Arte por Brunna Carielo


A gata preta Andreza Silva Ela gostava de gatos. Embora por muito tempo tenha preferido cachorros, acabou descobrindo, inevitavelmente, que sua personalidade combinava mais com felinos empertigados. Se ainda gostava de cachorros? Sim, gostava. Entretanto, sentia-se mais confortável na companhia de gatos e não podia lutar contra ou negar esse fato. Tudo aconteceu quando, certa vez, encontrou-se casualmente com uma gata. Ela possuía uma pelagem escura e brilhante e um par de olhos de cor âmbar extremamente vívidos. Num primeiro momento, humana e gata entreolharam-se brevemente, não dando muita atenção uma à outra. Porém, pouco a pouco, seus encontros foram se tornando mais e mais recorrentes. Antes que percebesse, a gata, que parecera em um primeiro instante extremamente arisca, já passava pela garota e soltava um miado cordial, como se a cumprimentasse. Depois, os miados rápidos e cordiais foram sendo substituídos por uma sucessão de miados mais longos e olhares mais demorados, e a humana já se via agachada e conversando com a gata como se fossem velhas amigas. Lentamente, ela começou a sentir que os olhares da gata instauravam em seu coração uma sensação calma e confortável. Quando deu por si, já se via ansiosa esperando o momento que encontraria com a gata e perguntava-se se deveria começar a comprar petiscos para a felina. Também questionava-se o porquê de ficar incomodada quando via a gata dar atenção a algum outro transeunte que lhe oferecesse algo comestível. A esse desagrado somava-se um profundo desejo de acariciar a gata, deslizar os dedos pela sua forma esguia e pelos macios, pegá-la no colo e.... talvez a levar para sua casa, para que assim pudesse alimentá-la e cuidar dela devidamente. 63


Então, um dia, quando humana e gata se reencontraram, esta emaranhou-se em meio a suas pernas. A garota, recuperada do choque inicial, ajoelhou-se em frente à gata e ousou levantar a mão até a felina, que aceitou seu carinho e saltou para o seu colo ronronando confortavelmente. Naquele dia, a humana acolheu a gata. Comprou-lhe ração e caixa de areia e começou a adaptar sua vida àquele ser empertigado e fascinante. Não havia decisão que tomasse sem consultar a felina ou sem pensar em como a afetaria. A gata sempre a ouvia, soltando miados de aprovação e desaprovação, deitada em sua barriga no sofá. E a humana, por sua vez, acariciava a gata, lentamente, fazendo-a ronronar. Humana e gata conviviam confortavelmente num pequeno apartamento onde não se tinha nenhuma espécie de luxo, mas não faltavam sorrisos da humana nem ronronados de satisfação da gata. Os momentos que passavam juntas, acariciando e sendo acariciada, eram as horas favoritas das moradoras daquele pequeno e modesto apartamento. A cada dia que passava, a garota gostava mais e mais da gata, desejando poder congelar os momentos que passava com a felina no sofá. Infelizmente, a humana em questão era um pouco atrapalhada e, por vezes, sem querer, pisava no rabo da gata. Quando isso acontecia, apressava-se em pedir desculpas enquanto esperava que a gata a punisse com um arranhão. Porém, a felina apenas soltava um grasnado e ouriçava os pelos brevemente, antes de se aconchegar, mais uma vez, no colo de sua humana, como se compreendesse perfeitamente a culpa que a corroía. Mirando a gata em seu colo, a humana sorria aliviada e fazia uma nota mental de dar uma dose extra de ração e de afagos, para que a gata nunca esquecesse o quanto ela era completamente devotada àquela felina. A humana ansiava que ela e a gata pudessem passar longos anos juntas, fosse naquele apartamento modesto e mal decorado, fosse em uma casa maior. Porém, onde quer que estivesse, a deusa dos gatos parecia não concordar com os desejos daquela pobre humana tão dedicada a uma gata de olhos cor âmbar.

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De repente, a gata, sempre tão carinhosa, começou a ficar distante. A felina não mais se encarapitava na barriga da humana para ver TV nem se esfregava em suas pernas quando ela chegava em casa. A humana, percebendo o ocorrido, ficou preocupadíssima. Desvelou-se em mais petiscos, mais afagos e mais carinhos, tentando mostrar para a gata o quão apaixonada aquela pobre humana era por ela. A felina, entretanto, permanecia em sua posição distante, fitando a humana com olhos hesitantes e um tanto tristes. Até que um dia, soltando um miado dolorido, a gata preta deu as costas à sua humana e reclamou sua liberdade, saindo porta afora.

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Bolo de vó Marcella Georgini

Vovó sempre cozinhara de tudo. Mantinha na cozinha de sua casa um caderninho de receitas: as páginas amareladas e marcas de dedos sujos do alimento em preparo carimbavam o papel em camadas sobrepostas de experiência culinária. Bolo de cenoura era meu favorito: macio e fofinho, ao mesmo tempo que firme. Era também o favorito de minha irmã – e talvez de todos os primos. Certa vez inventamos, eu e ela, ainda pequenas, de querer cozinhar e elegemos o tal bolo favorito como primeira tentativa. A receita nós tínhamos – Vovó não se importou de nos deixar copiá-la do caderno. Fomos para a cozinha: minha irmã e eu, todos os ingredientes e uma receita infalível em mãos. Pensávamos que, com a informação (agora já não tão) secreta que guardava o velho caderno de Vovó, seríamos capazes de preparar o melhor bolo de todos – um bolo igualzinho ao dela. Executamos a receita passo a passo. Aguardamos o assar do bolo. Assou, cresceu... comemos: não falhamos. Havíamos seguido tintim por tintim da receita e, ao fim, comíamos um belo bolo de cenoura... um belo bolo, no entanto, não chegaria aos pés do bolo de Vovó. O que havíamos feito de errado?

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Vovó tinha experiência naquilo tudo. Era capaz de reproduzir, inventar e reinventar receitas de olhos fechados. Ela sabia o que fazia na cozinha. Conhecia o “ponto” de tudo quanto é massa. Ela cozinhava com o corpo todo: cada partezinha de seu ser podia sentir o que acontecia naquela pequena cozinha enquanto ela preparava algo. Já nós duas sequer conhecíamos aquele bolo por completo. Tínhamos a receita, é lógico, entretanto a preparação se deu, para nós, em etapas separadas: uma batia as claras em neve enquanto a outra preparava a cobertura; uma cortava as cenouras enquanto a outra untava a forma – ao final, uma mal poderia dizer como fora feito o trabalho da outra. Fragmentada a execução, arriscar-me-ia a dizer que ambas havíamos tido uma experiência parcial da execução do bolo: como não o fizemos todo em conjunto, mas dividimos suas partes, nenhuma de nós o conhecia por completo. Se desse algo errado, não saberíamos onde teria o erro acontecido. Se desse certo, ambas poderíamos dizer tê-lo feito, quando a verdade seria que havíamos dividido as tarefas de maneira conveniente para ambas as partes. Éramos apenas duas crianças que se aventuravam na cozinha. Fora em meio à aventura, no entanto, que entendemos a magia por trás do que chamavam “Receita de Vó”. As avós, pensávamos, tinham mãos mágicas. Eram feiticeiras capazes de arquitetar as mais harmoniosas refeições. Cozinhar com Vovó sempre parecia simples: ela era capaz de dizer o que faltava numa receita com apenas um olhar. Entendemos ali, minha irmã e eu, que o substantivo próprio “Receita de Vó” carregava mais que um conjunto de informações sobre ingredientes e modo de preparo. Não, não... A informação, em si, é rasa: qualquer um poderia abrir o caderno e decidir por se aventurar nas informações nele contidas. Mas mão de vó é mão mágica.

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Quando preparava algo, Vovó se utilizava de todos os seus sentidos. Ela sentia o alimento, e é por essa razão, acredito, que as receitas, na cozinha de Vovó, nunca foram estáticas. “A receita diz um copo de leite, mas vou colocar mais um golinho”. “Um golinho?”, perguntávamo-nos eu e minha irmã, sem entender que tipo de medida estaria ela usando. A questão é que pouco importava a medida. Vovó sabia que precisava de mais um golinho de leite. Ela simplesmente sabia, porque esse saber vinha da experiência vivida. Vinha do fazer o bolo com suas próprias mãos, vezes e vezes, ele todinho. Enquanto a receita (com r minúsculo, isto é, a informação) podia ser chapada numa folha de papel qualquer, pois era restrita ao campo das ideias e, exatamente por isso, era incapaz de contemplar a complexidade daquele bolo; a Receita (esta com R maiúsculo, porque é aquela que Vovó simplesmente sabia), esta era compreendida não só na mente, mas em todo o corpo – talvez até em sua alma. A Receita tinha nuances, podia ser influenciada pelo clima, pela cozinha, pela cozinheira, pelo forno, pela temperatura dos ingredientes... A receita era informação solta e rasa, que qualquer boca poderia dizer e logo se esquecer - a gente se esquece das coisas quando ficam só na cabeça. Já a Receita era viva e acontecia quando todo o saber de Vovó se fundia aos ingredientes – e essa não poderia jamais se perder. Mesmo que Vovó não se lembrasse se eram dois ou três ovos, dada a idade avançada, ela remexia a massa, observava a cor e assim sabia o que faltava. A informação fica na cabeça... mas o saber, este é experiência vivida.

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aviso de gatilho:

este texto apresenta uma temática que pode ser considerada perturbadora (suicídio).

Cemitério Vizinho Lucas Oliveira Morte, suor, falta de ar, agonia e dor. O primeiro era o que ele desejava, os demais eram o que sentia. A tinta da caneta ainda escorria para a folha. Azul. Tudo azul. Linhas tortas e letras feias, resultantes de um esforço tremendo. Escrevia, pausadamente, os nomes dos familiares, tentando reavivar a memória que há muito já morrera. O Alzheimer veio primeiro. Chegou sem mandar recado antes e se instaurou no cérebro como um parente indesejado que vem para o Natal e dificilmente vai embora. Mas a vantagem do parente é que ele é percebido desde o momento em que cruza o umbral da porta. O Alzheimer, não; no caso, demorou para ser notado. Vivia sozinho, a mulher falecera há anos, os filhos moravam longe e vinham nas férias com os netos. Seu contato social se resumia às palavras trocadas com o papagaio e os bons-dias dados à vizinha. Ninguém notou seus lapsos de insanidade porque não havia ninguém para notar. Não contava a ninguém o que se passava, pois acreditava que não era nada. Não ia aos médicos, pois esquecia-se das datas marcadas e, se anotava em um papel, logo mais o perdia e não lembrava onde o pôs. Seus esquecimentos eram esquecidos dentro da solidão solitária da casa onde morava. A culpa veio depois. Com o passar dos anos, meses, semanas, dias, quem irá saber, os nomes dos familiares começaram a sumir, como se todos estivessem escritos a lápis e um a um 69


fossem apagados, deixando apenas a marca fraca e borrada como lembrança. Quanto mais os nomes sumiam, mais a culpa crescia, pois Deus não tivera piedade e, ao invés de apagar de vez sua memória, permitia que ele lembrasse que se esquecia pouco a pouco de tudo. Não era digno nem de lembrar o nome da própria família, só se lembrava de que os esquecia e se esquecia de lembrá-los. Naquele dia, não suportando mais a culpa que apertava seu peito, pegou um caderno, uma caneta e escrevia qualquer lembrança que tinha dos nomes. Fazia um esforço tremendo, chorava, culpava-se e desejava a morte. Choro e tinta se confundiam nas folhas do caderno. Escrevia letras soltas, rabiscos, letras unidas inutilmente que não formavam nenhuma palavra, escrevia de tudo, menos os nomes. De tanto sofrer e chorar, talvez Deus ou o Diabo, quem sabe, tenha tido piedade desse homem, pois, após horas escrevendo letras e rabiscos desconexos, ele acreditou que aquela folha continha todos os nomes de seus familiares. Aquela folha rabiscada era um tesouro enorme, o bem mais valioso que ele já tivera nas mãos. O pranto secou, a agonia partiu e ele estava em paz. Mas os leitores bem sabem que a paz há de durar pouco quando se tem espaço para o medo de perder a paz. O velho foi dominado pelo medo, não queria perder a folha e não queria ter a sensação de esquecer os nomes novamente. O desejo pela morte voltou. Parecia ser a melhor saída, pois tudo terminaria com ele segurando a folha e feliz pela lembrança dos nomes. A caneta e o pescoço tiveram um encontro inimaginável. A tinta, que era azul, pouco a pouco 70


se tornava vermelha, e o sangue cobriu todos os rabiscos que ele escrevera na folha. Acordou sentado em uma cadeira branca. De um lado via Cristo crucificado; do outro, o Diabo sentado. Os dois perceberam que ele os via. O Diabo levantou, foi até Cristo, tirou-o da cruz e deu-lhe vestes. Já vestido, Cristo abraçou ao Diabo e o Diabo abraçou a Cristo. Os dois olharam para o velho como quem perguntava com quem ele iria seguir. O velho foi com o Diabo: assim como ele tirou Cristo da cruz, ele tirara o fardo de esquecer os nomes. No terceiro dia depois da morte, na Terra, o corpo fedia. A vizinha foi ver o que era e achou o corpo. Ligou para a polícia. No dia seguinte, o jornal contava a história de um morador de rua que invadiu uma casa no interior de São Paulo e foi encontrado morto, provavelmente ocorrera um suicídio e o instrumento foi uma caneta. Apesar de ser mendigo, ele tinha documentos; a polícia fez uma pesquisa e não encontrou parentes, não deixara filhos ou mulher, era completamente sozinho. Foi encontrado também um frango assado já velho e podre em um prato e do lado um papel escrito “papagaio”. A biópsia do iml concluiu que o falecido sofria de Alzheimer há anos. Foi sepultado no cemitério público da cidade vizinha.

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correnteza

THIAGO SENA

Nos teus olhos me enxerguei E o que havia represado desaguou. Límpida e nua estava: Invadindo o teu corpo sem rédeas, Ocupou o meu corpo sem pudor. Derramando meus eus entre barrancos Cachoeira inundou pelos cantos Afogada nesse deslizamento Teu corpo, terra encharcada, Me desgoverno. Derramo-me nos teus braços, Pedras molhadas, que amenizam Essa caudalosa corrente do meu desejo.

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Pedro Bomfim

Sempre que pousava perto de uma das humanas que andavam pela região, a pequena joaninha sentia a ansiedade de estar próxima de uma criatura tão grande. Bastava um simples peteleco ou um movimento desengonçado e a pequena seria arremessada muitos metros à frente, podendo até se ferir no processo. Mesmo assim, sabia que tinha que tentar. A humana tinha sob seus cuidados outra humana, menor e mais sorridente, mas ainda grande perante os olhos da joaninha. Tais olhos, simples mas detalhistas, viram a pequena menina crescer um pouco ao longo dos meses; logo ficaria próxima do tamanho de sua guardiã. Mas, ao contrário das duas, a joaninha não ficaria maior. Esse pensamento, apesar de tê-la entristecido no início, se aconchegou em sua mente, e a pequena aceitou-o como parte natural da vida. De qualquer maneira, a joaninha tentou se aproximar por uma razão bastante específica, cujo gatilho foi certo encontro com outra da mesma espécie, acontecido alguns dias antes. Especial

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— Você tem nome? — questionou a joaninha visitante, inspecionando a outra, que continuou calada e com os olhos fixos na carapaça vermelha e salpicada de pontinhos pretos da colega inesperada. — Acho que você não gosta muito de falar, né? Não me surpreende muito, tendo essa carapaça esquisita. Capaz até de ser muda! Com esse tom misturado de escárnio e desdém, a visitante terminou de falar e voou para longe. Um tanto incomodada, a anfitriã, cuja residência se encontrava ao lado de uma casa humana, decidiu ir até a janela mais próxima e averiguar a veracidade do comentário maldoso, afinal, já havia visto muitas joaninhas e, apesar de alguns olhares estranhos, não havia mantido contato tão próximo com uma. Aproveitando o final de uma tarde ensolarada, ela se pôs em frente à janela e se deparou com sua própria imagem. Nunca havia prestado muita atenção em si mesma até aquele momento – poucas foram suas interações com outros insetos ou mesmo outros seres vivos, preferindo limitar-se a observá-los. E, naturalmente, a imagem que alguém constrói de si mesmo é moldada, em parte, de acordo com a imagem que os outros constroem. A pequena percebeu que sua carapaça era inteira vermelha, sem nenhuma das pintinhas pretas que outras de sua espécie possuíam, e que brilhava bastante. “Ora, mas qual o problema?”, pensou. Era tão joaninha quanto uma joaninha pudesse ser, dizia a si mesma. Além disso, por que daria ouvidos aos comentários maldosos de uma qualquer? Foi somente quando viu através da janela uma parede cheia de pinturas de joaninhas que um sentimento sutil de tristeza despontou em seu íntimo. Todas com carapaças vermelhas e pintinhas pretas, todas semelhantes, todas irmãs. Como numa epifania, os olhares estranhos que já recebeu fizeram sentido. Especial

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Seria ela a única que não carregava os pontinhos pretos nas costas? Se sim, por quê? Se não, onde estariam as outras e por qual motivo nunca as tinha visto? O que ela faria? Tinha que fazer alguma coisa? Tantas perguntas surgiam ao mesmo tempo em sua mente que a pequena se sentiu desorientada, como num dia de forte ventania. “Tenho uma ideia”, refletiu logo que a noite tomou o lugar do dia. E se as suas manchas pretas estivessem perdidas, do mesmo jeito que a pequena humana sempre perdia as coisas pela casa? Era uma possibilidade, mas ela não fazia a menor ideia de onde suas pintinhas poderiam estar. Não se lembrava de quando era mais jovem e pouco pensava sobre seus parentes que haviam partido há muito. Ademais, como procuraria por algo tão pequeno? Um tanto sagaz, a joaninha, sempre observadora, sabia que a humana maior costumava ajudar a pequena a encontrar seus pertences perdidos. Talvez, então, pudesse ajudá-la a encontrar aquilo que lhe fazia falta... O que nos leva ao presente mais uma vez, no qual a corajosa aventureira busca por um pedaço de si mesma. Alguns dias se passaram até a joaninha encontrar uma oportunidade de se aproximar. Assim que viu a janela, outrora usada como espelho, aberta, planou em direção ao quarto. Tal qual uma minúscula pluma avermelhada, aterrissou com sutileza e viu a menina sentada numa cadeira cinzenta, desenhando em cima da mesa, no papel encapado. Ponderou por alguns minutos e decidiu se aproximar um pouco mais, pousando na extremidade esquerda da mesa. Demorou um pouco para que a menina percebesse a simpática observadora que ali estava. Quando enfim notou a joaninha, seus olhos escuros já refletiam o ponto vermelho cintilante no meio daquela massa cinzenta que era a superfície da escrivaninha. Interessada na pequena criatura, a criança, esperta, sabia que não teria outra chance e começou a desenhá-la com muita suavidade, temendo espantá-la caso fizesse qualquer movimento brusco. Especial

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A joaninha, por sua vez, se perguntava o que a menina tanto escrevia e se sentia apreensiva por estar tão próxima de uma pessoa que poderia esmagá-la com tanta facilidade. Perguntou-se, ainda, se a menina estava julgando-a em silêncio por sua aparência diferenciada e, se sim, o que ela pensava a respeito. Transcorreram mais alguns minutos até que a humana maior entrou no quarto e foi espiar o que a menina fazia. Olhando por cima do ombro, percebeu que ela desenhava uma joaninha totalmente vermelha, diferente de outras que já tinha desenhado antes. — Fernanda, o que você tá desenhando? — questionou numa voz doce, estranhando a falta de pintinhas pretas nas costas. — Uma joaninha ué! Igualzinha àquela que tá ali no fundo da mesa, viu? — e, com efeito, a mulher dirigiu o olhar para a ponta da mesa, onde ainda, aflita, repousava a pomposa joaninha. — Eu vi que ela pousou ali e achei ela bem bonita, diferente de todas as que eu já tinha visto. Ela brilha tanto! — É, brilha mesmo. Acho que ela é bastante especial, né? Nunca tinha visto uma sem as pintinhas pretas. Ela é tão bonita. “Especial e bonita”, pensou a joaninha. Será que ela precisava mesmo encontrar suas pintinhas pretas? Será que não poderia se sentir plena do jeito que era? Ora, claro que poderia.

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Fortaleza Decco


os músculos de um homem jamais foram sua fortaleza; de fato, generais ficam longe da guerra. há algo muito mais forte e impactante do que armas, granadas e bombas e é suave como uma pena caída pousando devagar em um muro. mesmo o dono do mundo, se este existisse, iria em pessoa ao inferno pela mulher que o domou. a verdade que os livros de história apagam é que qualquer figura como eu, submissa à inexistência de fraqueza, foi refém do amor e por si só arruinou-se.

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Meu olho mágico Dindara Galvão

Pensei ter ouvido uma batida. Te vi pelo olho mágico. Abri uma frestinha. Espiei você. Abri um pouco mais para te ver melhor. Em silêncio, você escancarou a porta e olhou para mim. Olhou diretamente para mim. Do outro lado do batente. Pensei que fosse entrar e fazer daqui o seu lar, mas não o fez. Tirou então um balde de tinta e um pequeno pincel. E começou a pintar o batente e a porta nas suas cores favoritas. A tinta muitas vezes respingava dentro, e você nem se importava. Nem considerava limpar. E eu estou sem saber por quê. Por que é tão importante suas cores na minha porta? Por que é importante continuar pintando? Estou sem saber se você vai entrar ou se vai embora depois de pintar. Pensei em fechar a porta, mas a sua tinta já respingou na dobradiça e secou. Não tenho forças para fechar ou para descascá-la. A brisa leve e o sol que, de fora, me tocavam pela porta aberta nos primeiros dias, agora ardem e esfriam todo meu corpo... A insegurança sopra meu rosto. E eu quase me arrependo de ter aberto a fresta. Mas aí eu olho a beleza das cores que está pintando e até parece que vale a pena toda essa sujeira. Quando você se inclina para pintar um canto especificamente escondido, minha respiração para na expectativa de que você vai, da ponta dos pés, cair e escorregar para dentro. Ou quando descansa da pintura, depois que começa a doer os braços, me dói só de pensar que pode dar a obra por terminada e partir. 79


A paz torturante do pincel no batente. Eu poderia tentar te puxar para dentro. Mas a porta não fecha, e tenho medo de qualquer movimento brusco te assustar e te fazer fugir. Então eu só sento e contemplo a você e à sua obra. E a sujeira consequente dela.

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O contador de histórias Alcino Salviano Cavalcanti

Jubileu sempre fora, desde pequeno, uma criança que muitos poderiam chamar de incomum. De certa forma, isso era verdade. Jubileu não era como a maioria dos garotos da sua idade. Não porque não gostasse de brincar e de se meter em confusão, mas sim porque tinha uma fascinação incomum por histórias. Jubileu amava o tempo que passava sozinho no quarto dividido com o irmão mais velho. Ele se jogava em um chão apinhado dos mais diversos brinquedos de segunda mão e se perdia por horas em sua imaginação. Muitas vezes, o garoto ligava uma velha televisão de tubo que ficava sobre uma grande cômoda e assistia aos mais diversos desenhos animados que passava em seu canal predileto. Gostava de se imaginar dentro das histórias que conhecia, passava horas perdido imaginando grandes aventuras, nas quais ele era um dos notáveis personagens. Isso, é claro, despertava a atenção dos outros que conviviam com ele. Jubileu era conhecido como um menino aéreo, que passava horas perdido no tempo. 81


Perdido ou não, Jubileu passou a criar as mais diversas histórias. Conforme crescia, elas iam se tornando maiores, mais intrigantes, e ganhavam vários outros personagens novos. Desde aventuras épicas em terras fantásticas distantes às mais simples estórias que se passavam no quintal de sua casa, a mente do menino ia crescendo e se tornando mais fértil a cada novo conto. De fato, as histórias do jovem Jubileu se tornaram tão fantásticas que ele passou a compartilhá-las com os outros amigos da sua idade. Muitos se deixavam viajar junto ao garoto e até ajudavam a criar parte delas, mas sempre se surpreendiam, com uma certa estranheza, com as ideias do menino. Sua fama de grande inventor cresceu e o acompanhou por muitos anos, assim como a sua máquina de pensamentos. Muitos acharam que essa fantástica imaginação de Jubileu o atrapalharia em algum momento. Afinal, como se pode pensar em crescer quando se vive sonhando? Mas, para a curiosidade de muitos, e para a do próprio Jubileu, posso dizer com certeza que ele teve uma vida verdadeiramente incrível! Jubileu se casou com uma moça não tão sonhadora, mas que amava passar cada segundo livre que tinha mergulhando nas grandes viagens dos ilustres heróis criados por ele. Jubileu também teve um emprego de incrível importância. Contabilizava números enormes e estranhos em grandes planilhas para a empresa em que trabalhava. Não era trabalho de muita imaginação, não para Jubileu. Mas ainda assim, gostava do tempo que passava trabalhando e das amizades que fizera no serviço, muitas delas gostavam de ouvir as grandes peripécias que o colega tinha a contar. E de fato, se divertiam um bocado com ele. O hobby do pequeno sonhador era passar as boas tardes de sábado na biblioteca da cidade. Ele gostava de se aventurar nas excelentes histórias que encontrava ali. Toda essa leitura, ao longo dos anos, fez com que precisasse usar grandes óculos com lentes bem grossas. A criançada da sessão infantil sempre amava ouvir as magníficas histórias que o homem com grandes óculos engraçados tinha para contar. 82


Jubileu só veio jogar sua primeira partida de futebol quando o seu filho nasceu. Jubileu era um jogador terrível! Se você visse ele tentando correr atrás da bola, com certeza teria um ataque de risos. Mas ele não se importava. O que gostava mesmo era de passar tempo com o seu filho. Ele não era de longe o grande sonhador que o pai era, mas sempre ouvia fascinado as diversas loucuras que o pai tinha a contar. Certamente, eles se divertiam à beça durante as férias escolares dele, sempre achavam um jeito de criar uma brincadeira nova e levar a mãe à loucura com a confusão que aprontavam. Jubileu jamais envelheceu. Tornou-se um senhor jovial e de grande imaginação, o que no fundo causava inveja nas demais pessoas que o conheciam. Nunca deixou de sonhar, e também nunca deixou de viver. Ele teve uma longa vida repleta de acontecimentos excitantes, com pouco espaço para a monotonia. Jubileu e suas histórias ficaram tão famosos na sua cidade que ele mesmo se tornou uma história. Todos os que passavam por lá ficavam sabendo das grandes aventuras daquele contador de histórias.

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Realejo

Lívia Gouvêa

Eu posso deitar na cama, fechar meus olhos e imaginar uma feira. Uma feira vasta, disposta em uma longa avenida, em que eu caminharia à procura de um sonho; um sonho vasto como a feira, sabe, comprido, comprido. De noite, essa feira estaria enfeitada com luzinhas piscantes por toda a sua extensão, e eu tenho certeza de que se eu parasse e olhasse para elas por tempo demais, minha visão desfocaria e o mundo se reduziria a bolinhas amarelas, vermelhas, laranjas, todas diante de mim e ao redor de mim. Seria uma paradinha, uma curta pausa, como aquela que fazemos em estradas para ir ao banheiro. Depois eu piscaria forte e voltaria a caminhar normalmente. Nessa feira, eu pararia em todas as barraquinhas. Na primeira, um jovem engraçado, bastante corado e esbanjando saúde e sorrisos, vestido com um macacão listrado, tentaria me vender uma cauda de sereia cheia de escamas brilhantes, lindas, rosas e azuis. O preço seria cantar dois versos da minha música preferida, só que ao contrário. Eu tentaria, aos risos, e ele gravaria em sua camerazinha de papelão. Mais para frente, eu seria surpreendida por uma velha tocando flauta. Mas essa flauta não seria comum: o som que sairia dela, na verdade, seria de baterias ecoantes, no compasso de um… de um bom progressivo, é. Criancinhas estariam sentadas ao redor da velha, encantados com as possibilidades de bumbos e chimbais e surdos e caixas, todos combinados. Uma das criancinhas, um miúdo garotinho ruivo com trancinhas no cabelo, se levantaria da companhia dos amigos, me daria a mão e me levaria até uma tendinha bem baixinha, onde uma moça vestida de cigana estaria conduzindo ioga e meditação para alguns cãezinhos de coleira. Me juntaria a eles, mas com um pouco de impaciência, pois ainda não tinha encontrado meu sonho em nenhuma das barracas. Eu desistiria da meditação rapidamente. Em minha caminhada, eu olharia tudo com calma e me deixaria dançar ao som da música que estivesse tocando. Teria curiosidade 84


sobre as pedras, os anéis, os vestidos, os talheres do século passado, as máquinas de escrever, as taças de prata, as espadas e tudo que estivesse sendo trocado por dinheiro ou outros gestos. Eu pararia para ouvir os teatros de fantoche e ajudaria os atores tocando música de cordel, quem sabe, num banjo, para tornar a experiência mais viva. Eu experimentaria qualquer coisa que me oferecessem para comer, e eu imagino que seriam pequenos insetos trazidos diretamente da Lituânia por algum peregrino, tipo besourinhos cromados e bem verdes. Eu compraria um pacotinho de veludo roxo cheio de pó de orquídea para misturar com leite porque dizem que isso cura febres. Eu não costumo ter febres, mas eu creio que, quando eu achar meu sonho, tudo pode acontecer. Eu acho que eu gostaria de me vestir com uma saia longa e branca com estampa de elefantes, uma saia tão longa que se arrastaria pela terra por metros e metros atrás de mim. Ela seria capaz de captar cheiros, sons e gostos de tudo que eu visitasse na feira, para que, mais tarde, eu pudesse me deliciar com tudo outra vez. Talvez eu até levantasse a minha própria barraca para vender pinturas, mas eu só pintaria umbigos de casais idosos ainda apaixonados que me contassem, em detalhes, as suas histórias de amor e de vida. Mesmo com tudo isso, eu continuaria a erguer meu pescoço como uma mãe ergue ao procurar o filho que se perdeu numa estação de trem lotada. Como se só olhando de cima fosse possível achar o que eu procuro. E no fim da feira, só no fim, eu avistaria um homem relativamente velho, cujo traje não poderia ser outro que não uma camisa abotoada e surrada, uma bermudinha marrom que iria até os joelhos e suspensórios pretos meio largos para o corpinho reduzido e magrinho. Também estaria usando uma boina de couro, sem dúvidas uma boina, também marrom. Eis o seu ofício: uma caixa ornamentada, parecida com um órgão de Igreja, com uma manivela do lado direito, em cima de um carrinho com duas grandes rodas de carruagem que o levariam para todo lugar. Em cima da caixa, uma pequena gaiola aberta com uma calopsita branca dentro. Na parte inferior da gaiola, uma gavetinha também aberta, cheia de papeizinhos enfileirados. — Boa noite, senhor. O que é isso? — eu apontaria para aquela estranha estrutura.

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— Um realejo — ele responderia prontamente — Seu corpo é tradicional, mas sua função é mais recente… Eu sorriria de orelha a orelha e ele entenderia. Eu daria a ele minha única moeda. Eu estaria curiosíssima para saber como aquele tal realejo funcionava. Ele giraria a manivela e uma sinfonia inteira sairia de dentro daquela caixa. Eu até fecharia os olhos e procuraria nela o que eu estivera procurando o tempo inteiro. No entanto, a música pararia e eu abriria os olhos. Nesse instante, a avezinha daria uns pulinhos para fora da gaiola e pegaria um dos papéis dobrados com o bico. O senhor pegaria e me daria nas mãos. — Boa sorte, mocinha! E no papel estaria escrito que a sorte só pode me dar um nome, Odessa, escrito em uma caligrafia perfeita. É meu nome. Nada muda e eu volto a abrir meus olhos na cama. Espero que você me ajude a entender…

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VÊNUS PEDRO VITTORIO

Estávamos ficando quase eufóricos sentados no auditório, às cinco horas, enquanto, engravatado num palanque, falava o professor Fidélio. Quando nos disse dos soluços de Ariadne, que esteve só na praia, abandonada por quem buscava o labirinto e o monstro — o Minotauro, filho de Pasífae —, e sobre todo um rol de mitos célebres, por horas viajamos pela Trácia, por Cálidon e as águas de Aqueloo, cerramos nossos dentes com relatos de guerras tão sangrentas quanto belas e lágrimas de ouro e dor pulsante. Às oito, o quórum já dobrara. Havia quem se espremesse pelo chão de taco, quem se esgueirasse em pé nas beiras, claro, e quem se acomodasse pela porta. Ao fim da noite, enfim anunciava que iria nos deixar; cerrou seus olhos por uns segundos, mas calou-se. Então abriu e disse, como quem confessa: — Um dia eu conheci o amor de Vênus. Há mitos vivos — lendas que ressoam — que fazem grandes corações pequenos. Os pés não mexem, mas as almas voam, se além dos frutos doces da Ventura, se colhe os velhos cânticos que ecoam. Não vou contar detalhes da aventura; talvez seja o delírio de um amante de todo mito e toda estória pura… E a multidão dizia: Conte! Cante! E o professor Fidélio novamente calou-se, mas depois continuou. — Aconteceu num tempo muito antigo. Eu era igual vocês, um ingressante; chovia e procurava algum abrigo.


O tempo foi apenas o bastante pra entrar numa salinha atrás do prédio, com pastas num arquivo, pó e estantes. Tirei o meu sapato cano médio, e a meia, pra secar meus pés molhados. Então ouvi do escuro: “Eu tenho tédio. Garoto melancólico e amuado, eu te concederei meu corpo inteiro. Mas tire a roupa e sente-se, calado.” E eu, espantado, quis fugir primeiro; mas como vasculhava e nada via, pensei ter me enganado. Então, ligeiro, abri a porta, mas não conseguia mexer meu corpo além do seu limite; então que percebi o que acontecia. Eu disse que era virgem; “Não se irrite”, a voz me disse, “Mas me importa pouco o que dirá; já tens o meu convite. E deixe de pensar que ficas louco: tu és um tolo, apenas, do Destino.” E eu já não suportava o meu sufoco. A deusa continua, em riso fino: “Prefere que eu retire? Há muita sorte no que terás; não aja em desatino.” Eu disse: “Mas... prazeres trazem morte. Eu não casei; somente o anel dourado permite à carne fraca ser mais forte.” O corpo dela enfim me surge ao lado. ‘Stá nua e tem, nos olhos, desalinho; e diz, de um jeito doce e inalterado:


“Não negue a rosa porque traz espinhos. Se és Kalinýchta1, aguarde o Kaliméra2; atenda à voz que guia o teu caminho. Tua alma traz vestígios de outras eras. Farei da tua vida um livro aberto, tecido pela mão das três megeras. Terás tolice em meio a tiros certos; terás beleza, cântico e coragem; farás crescer florestas no deserto. Mas tens de perceber o que é miragem; o que te faz morrer e o que te eleva; o que é prazer e o que é libertinagem.” — Aquele dia, alunos ingressantes, que aconteceu aqui do lado, vejam, há quase sete décadas e meia, aquele dia é tudo o que me leva a professar a cátedra dos dânaos! A dedicar a vida à luz de outrora! Eu fui e sou o amor que foi me dado! Agora venha, deusa do Destino, me leve uma vez mais, e quase, e sempre, o Tempo dobra, agora justo e frágil, meus olhos turvam! Vem, me faz ser puro, eu já sou satisfeito, acalme um tolo! Eu fiz o que devia, eu fui humano, eu dei e recebi o amor do povo, e agora devo ser de novo um servo! Por isso eu te ofereço o anel dourado que deste a mim há tanto tempo, Vênus! E agora há quem afirme, nos jornais, que o professor Fidélio delirava e então morreu de infarto. Isso é mentira. O público que estava no auditório jamais irá contar, mas todos vimos o professor Fidélio ser tragado num turbilhão vermelho, um vento sólido, e então sumir, deixando o corpo apenas. E após um mês ou dois, naquele mesmo lugar onde Fidélio se encontrava, abriu espaço em meio ao assoalho uma florzinha, assim, mirrada e tímida... 1 2

Boa noite, em grego. Bom dia, em grego.


VIAGEM Davi Claro Coloco uma playlist aleatória; chegue perto e ouça também:

Pure Heroine Lembro que o oitavo andar é longe do chão. Encosto no sofá, bem quando os acordes de Ribs arrepiam. Mais um dia longo, daqueles cheios de abraços largos. Nunca me senti tão sozinho… É estranho viver assim, cercado de amor, de cuidado, risos quentes que, no fundo, não escondem as frustrações – nem detrás dos tons amarelos. Ainda assim, não desgosto dos rumos de história. Minha história, digo. Não que tenha esperado o que hoje chamo “rotina”. O tédio agora era absurdo no cercadinho dos dezessete. Os dias fugidos que plantei cresceram raízes tristonhas. E a poda, inevitável como foi, doeu em parcelas. Saí de casa. Blefes e medos nas mãos.

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Amarelo O carreteiro manco de mais cedo era um post-it neon gritando: “tudo que nóiz tem é nóiz”. Lembrei quanto somos uma pilha de gambiarras. Eu então, que acabei numa escola de samba sem nem saber sambar. Marcar o tempo era coisa de relógio, mas, por acaso, meu pé tinha roubado o papel do gigante de concreto que guarda o caminho do bandejão. Reviver a tarde de ensaio me trouxe os domingos coloridos de volta. As horas no Brás, cantando plenos pulmões dum orgulho vermelho recém descoberto. Correr atrás de memórias lembra a tentativa ridícula de subir a escada rolante contra a corrente. O próximo passo fica mais difícil que o anterior e, quando percebemos, damos conta da energia gasta. Do tempo perdido. Já é noite. Sem carreteiros, domingos ou escadas para mim. Aliás, amanhecer nem mais importa. O amanhã descansa hesitante no balanço vazio entre as bandas do meu coração. O depois é indeciso, feito eu. Quer ser mil futuros num beco de nós cegos. Pausei a música para aplaudir baixinho os ensaios em rascunho. Apesar de Querer Não. Não? Não... Penso em muitos nãos. Chego a esquecer das coisas boas fácil demais, sabe? Acabo deixando um filtro nublado sobrepor as felicidades da vida em famílias. O plural importa. São várias as famílias que deságuam esperança em mim. Apesar do banho cinza, elas fizeram chover guache, glitter e amores em São Paulo. Não consigo tirar da minha cabeça. Gratidão é uma palavra com muitos bolsos.


Sintoma Toca O peso do meu coração. Ele varia feito as batidas da música. Será que segue aquele princípio do amido? Um que admirei há tempos numa feira do Fundamental... Pode não conhecer, então imagine o resto junto da minha memória turva: Você chega. Uma mesa te espera, emoldurando um pote sem graça. Meio cheio. Estranho. Nem se dê o trabalho de adivinhar. Siga as instruções: “desconte sua raiva” A agressividade costuma empolgar no primeiro toque! Você soca uma parede. Mas onde estão os tijolos? Como? A maizena que conhecia sempre foi maizena. Solta como mingau. Mas essa era dura... Mal sentimos o impacto tremer o punho cerrado, ele some. Tudo se derrete, escorrendo a integridade que nunca existiu. Sempre que lembro a sensação, costuro ela a outra ponta de mim. São fluidos não-newtonianos. A massa indecisa e meu coração: Duros ao toque até um querer se demorar. … Tiro os fones pensativo. De fato, a única clareza que carrego assina meu sobrenome.

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