Originais Reprovados #12

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Nota Editorial Nesta edição, implantamos diversas mudanças: modificamos o logo e a identidade da revista, para refletir o espírito jovem e arrojado dos universitários dos mais diversos campi. Essa edição conta com textos de autores da ECA, FFLCH, ICMC, EESC, EACH, Poli, EEL, IEB, PGHEA, desde alunos de graduação até de pós-doutorado. Como resultado, temos uma revista heterogênea e extremamente plural, tanto no conteúdo dos textos quanto nas formas. Encontros sobrenaturais, assassinatos, dimensões paralelas, epifanias…esses são alguns dos temas que permeiam as páginas da 12ª edição da Originais Reprovados. Nós agradecemos a confiança que mais de 120 autores depositaram na Equipe OR! Boa leitura!

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SUMÁRIO A Criança Anarquista | 10 Asas de Anjo | 16 BMA | 18 Escárnio ao Sono | 19 Hibiscus | 20 Jardim do Éden | 22 Jornal | 34 Marília | 35 Medo do Mar | 40 Mudança | 42 O Espelho e a Mosca | 44 Pietá | 50 Miragem | 51 Psicologia de um Letárgico | 52 5


Tempo | 54 Irmãos | 59 Vitrine Não Estou Vendendo Nada | 60 Yuki-Onna | 64

ESCOLHA DOS EDITORES Azul | 71

escolha de Mariana Lari Canina

Bons Tempos, Aqueles | 73

escolha de Nathália Caixeta Francisco

Concurso de Afogamento de Pássaros | 75

escolha de Pedro Tajiki Salles

Convidada | 78

escolha de Letícia Yumie Iasukawati

Córnea | 79

escolha de Karen Kuniyoshi Nakaoka

Inconfessável | 80

escolha de Júlia Gretz

Em Branco | 89

escolha de Giovanna Romera Rossi

Maus Poemas | 91

escolha de Thaísa Carvalho de Oliveira

Mentira | 92

escolha de Eduarda Figueiredo Ribeiro

Morfologia | 93

escolha de Gabriela Almeida Mendizabal

Ódio ao Terceiro Mundo | 95

escolha de Maria Beatriz Rosa

Relacionamento | 98

escolha de Victória A. M. Gerace

Poema dos Dias | 103

escolha de Michelle Mayumi Oshiro

Remendos | 106

escolha de Gabriela Barbugian Azevedo

Ruídos | 108

escolha de Larissa Prada

Três Canções em Mi Menor | 112

escolha de Heloísa Fernandes Muriano

Triálogos da Mobília | 114

escolha de Elisa Kemil Casotti

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Os autores A Crianรงa Anarquista Autor: Leonardo Piana Ribeiro E-mail: lnrd.piana@gmail.com Asas de Anjo Autor: Andri Carvรฃo E-mail: andricarvao@hotmail.com BMA Autora: Daiane Lima E-mail: daiane.lima.s.2010@gmail.com Escรกrnio ao Sono Autor: Igor Dovizio E-mail: igor.dovizio@usp.br Hibiscus Autora: Maria Scarte E-mail: mscarte@outlook.com

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Jardim do Éden Autor: Daniel Goldner E-mail: dbgoldner@uol.com.br Jornal Autor: Thomas Prado E-mail: thomas.prado@live.com Marília Autora: Natalia Ribeiro da Conceição E-mail: natalia.conceicao@usp.br Medo do Mar Autor:Vinícius Souza E-mail: viniciussas@gmail.com Mudança Autora: Thais Rocha E-mail: thati_rocha@hotmail.com O Espelho e a Mosca Autor: Pedro Schimidt E-mail: schimidtpedro@outlook.com Pietá Autor: Pedro Mohallem E-mail: pedromrd96@gmail.com Miragem Autor: Hadriel Theodoro E-mail: hgtheodoro@gmail.com Psicologia de um Letárgico Autor: Pedro Oliveira E-mail: pedro.siqueira.oliveira@usp.br

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Tempo Autora: Renata Conde E-mail: renata.conde2006@gmail.com Irmãos Autor: Felipe Marcondes da Costa E-mail: felipe.marcondes.costa@usp.br Vitrine Não Estou Vendendo Nada Autora: Liana Ferraz E-mail: lianaferraz@gmail.com Yuki-Onna Autor: André Carvalho E-mail: apereiracarvalho2010@bol.com.br Azul Autora: Carol Borges E-mail: carol_bor_ges@usp.br Bons Tempos, Aqueles Autor: Eduardo A. A. Almeida E-mail: edualmeida@artefazparte.com Concurso de Afogamento de Pássaros Autora: Caroline Policarpo E-mail: carol_policarpo2@hotmail.com Convidada Autora: Daiane Lima E-mail: daiane.lima.s.2010@gmail.com Córnea Autor: Pedro Oliveira E-mail: pedro.siqueira.oliveira@usp.br

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Inconfessável Autor: Jeferson Santiago de França E-mail: santiago.cabureiwa@gmail.com Em Branco Autora: Caroline Fortunato E-mail: ana.caroline.bueno@usp.br Maus Poemas Autor: Wanderley Corino Nunes Filho E-mail: wcorino@gmail.com Mentira Autor: Pedro Oliveira E-mail: pedro.siqueira.oliveira@usp.br Morfologia Autora: Hadassa Paravizo E-mail: paravizohadassa@gmail.com Ódio ao Terceiro Mundo Autor: João Pedro Campos E-mail: camposjpl@gmail.com Relacionamento Autor: Daniel Goldner E-mail: dbgoldner@uol.com.br Poema dos Dias Autora: Dayane Arena E-mail: dayane_arena@hotmail.com Remendos Autor:Vinícius Souza E-mail: viniciussas@gmail.com

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Ruídos Autora: Raphaela Ikeuchi E-mail: raphaela.ikeuchi@gmail.com Três Canções em Mi Menor Autor: Henrique Balbi E-mail: henriquebalbi92@gmail.com Triálogos da Mobília Autor: Fabio Moura Cavalcante E-mail: fabiomouracavalcante02@gmail.com

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I R C A Q R A N A


A Ç IAN A T S I U Q


Maria, Maria, o que é liberdade? Eu que trabalho das oito às oito trancada aqui na casa do teu pai vou lá saber? Vai brincar, vai, menino. A mulher ergueu os olhos e esfregou forte a bucha cheia de espuma na panela. O rádio portátil da Maria, apoiado na janela da cozinha, tocava À janela, do Roberto Carlos. O menino não conhecia a música. Começou com da janela o horizonte, a liberdade de uma estrada eu posso ver. O que é liberdade? Maria cantarolava junto, quantas vezes eu pensei sair de casa, mas desisti. Ele gostava da voz dela. Sentou-se no chão e ficou escutando. O que é liberdade? A louça limpa escorrendo e Maria com a mão apoiada na lombar. Ela foi à sala e se sentou na poltrona do canto, que minha coluna não é boa, já te disse, menino, preciso descansar um pouco. Ele foi atrás, ficou vendo Maria sossegar. E como gostava dela que era tão esperta, havia lhe ensinado tantas coisas ainda que não soubesse o que é liberdade. De olhos fechados, Maria roncou baixinho. Ela mesma lhe havia dito que quando a gente tá descansando não tem que fazer barulho, tem que deixar descansar. O que é liberdade? Não lembrava onde havia escutado a palavra. Pensou que foi na TV, em que as pessoas certamente deviam ter muito 15


disso. Alguém disse que era a melhor coisa do mundo, então ele também queria. Mas o que era? Como era? Como se escrevia? Foi ao quarto à procura do giz-de-cera, porque ele já sabia o alfabeto e talvez a coisa viesse com a palavra. Escreveu as letras tortas com a mão esquerda, LIB. Faltava alguma coisa na palavra que ele não sabia. Repetiu em voz alta: liberdade. Li-ber-da-de. Não se lembrou do erre e continuou assim mesmo. Da-di. LIBDADI na parede ao lado da cama, o giz vermelho que era sua cor favorita. O que é liberdade? As letras não lhe disseram nada. Distraiu-se com as cores e acontece que do nada lhe vinha uma vontade de pintar tudo. Aobra de arte foi na parede: o azul-claro para o céu, o verde para pintar a árvore do quintal e então do lado vinha ele, boneco-palito porque era como sabia fazer, mas até que achou bem parecido porque era magro e Maria havia dito que precisava comer mais, tá muito magrinho e daqui a pouco vai sumir. Ele não queria sumir. O que é liberdade? Foi à cozinha, abriu o armário de baixo que era o que alcançava. Tinha Passatempo, o pacote aberto, pela metade, o resto da embalagem vazia enrolada, cerrada com o prendedor de roupas. E quando não tem ninguém vendo, lhe dava uma vontade de comer bolacha. Mas ele sabia, era só no lanche da tarde e só quatro,porque a Maria disse que era porcaria, não pode comer muito. Ele não queria sumir. Para isso tem que comer. Sentou-se no chão e o banquete foi ali mesmo. Gostava mais do recheio. Abriu as bolachas, uma a uma, ignorando os desenhos dos animais na parte clara, meio sem gosto – meio sem graça, e raspou o maxilar superior na parte que teve a sorte do recheio para que a massa de chocolate caísse dentro da boca. O que sobrou deixou de lado, no chão mesmo. Foram pedaços abandonados, quebrados e farelo de bolacha.Terminou com os dentes sujos, cobertos por crostas marrons, e não percebeu. Alimentado, não sumiria. O que é liberdade? Lembrou-se da música do rádio, que falava de liberdade, de janela, de estrada e alguma coisa mais da qual não se lembrava. Decidiu desenhar tudo, a coisa-liberdade tinha que vir. No quarto, a obra inacabada já lhe enchia os olhos, o pai e a mãe ficariam tão felizes, tão bonito era o seu desenho. Do giz preto ele não gostava muito, mas para janela e para o caminho até que servia. Um quadrado torto e tinha a 16


janela. A estrada começou na parede branca do quarto, o giz correu pela porta de madeira, pelo corredor todo branco que ficava até mais bonito, deu a volta na sala do lado oposto da poltrona onde Maria descansava, subiu no sofá que estava no meio e deixou o risco descontinuado, e chegou na porta da sala que dava para o quintal. Era um caminho tão bonito que os pais nem acreditariam que foi ele quem fez. Já podia imaginar o sorriso e o beijo da mãe, a mão do pai fazendo carinho na cabeça, um bom trabalho, filho. Estava ansioso para que vissem. Contudo, os pais chegavam em casa sempre quando já estava escuro e ainda não estava muito. Vai demorar? Entediou-se. O que é liberdade? Foi até o quarto, lá estavam as duas caixas de brinquedo e nem pôde escolher. Virou ambas no chão e foi tanta peça grande de encaixar, super-heróis eram vários, tinha carrinho e até umas coisas coloridas de chacoalhar para fazer barulho que ele havia dito para Maria que não gostava mais porque era brinquedo de bebê. O que é liberdade? De vez enquanto, em seu íntimo, dava uma vontade do som dos brinquedos de bebê. Era sua saudade secreta. Chacoalhou a cabeça de palhaço e riu. Foi sua sinfonia. Chacoalhava e ria cada vez mais. Mas parou porque não era mais bebê, era pequeno, sabia que ainda era criança, mas era maior que os bebês. Já tinha cinco. Observou a própria mão aberta como Maria lhe havia ensinado para mostrar a idade. Contou os dedos devagar. Cinco, e já era muito maior que os bebês. O que é liberdade? Viu a porta do quarto do pais aberta e veio então a ideia de brincar que era a mãe tão bonita, que feliz ela ficaria quando visse. Pegou ao lado da cama os sapatos que ela usava para ficar mais alta, os que ele achava mais bonitos, e o batom que deixava a mãe tão bonita que havia ficado sobre o criado-mudo. Levou tudo para o seu quarto, os brinquedos no chão e Maria não ia gostar nada disso, mas deixou para arrumar depois, que já estava ficando escuro e os pais chegariam logo. Colocou os sapatos no chão, um do lado do outro e foi com cuidado que os pés entraram porque o mundo ficava de repente alto demais. Tentou um passo e caiu. Com os sapatos não tinha dado certo e, frustrado, partiu para o batom. Girou o bastão com cuidado e passou majestosamente em volta da boca sem olhar no espelho. Achou que a boca 17


havia ficado vermelha como a da mãe, tão bonita como quando ela sai de casa. Foi quando ouviu o carro estacionando na garagem. Esperou no quarto porque queria fazer surpresa. Que felicidade seria. Ouviu a porta da cozinha abrindo, os passos avançando. Um grito da mãe na cozinha e ele se assustou. Maria, o que aconteceu aqui? Foi grito do pai bravo e ele não gostou nada. Passos em dupla vindo pelo corredor e a mãe não estava nem acreditando. Nem ele. Que anarquia é essa? A mãe olhou em volta e o pai entrou atrás. O que você tá pensando? A mão grande de machucar segurou o braço magro dele tão apertado que os dedos ficaram marcados na pele. A dobra entre as sobrancelhas, a voz grossa e os olhos que davam vontade de chorar. Não conseguiu olhar de novo para os olhos do pai. Que anarquia é essa? Ele queria a Maria e a voz gostosa cantando com o rádio: coisas da vida, choque de opiniões. Encolheu-se no canto, o rosto ficando molhado. Os pais olhavam em volta. Porque é a Maria quem vai limpar tudo isso, não é? Ele queria não ter comido a bolacha para sumir um pouquinho. Não queria que Maria limpasse nada. O que você acha que é liberdade? A voz do pai tão alta que dava medo. Não sabia. Não respondeu. O pai empunhou o giz preto no chão, apertou na mão dele com força e guiou pela parede: CASTIGO. Agora vira homem, engole esse choro e lê. Ele não conseguiu ver nada. A mãe saiu, o pai atrás bateu a porta. O que é liberdade? Sozinho no quarto, tudo dentro doía. Virou homem de cinco anos, batom vermelho na cara, bem-alimentado, sua tela impressionista na parede, saltos perdidos em meio aos brinquedos, choro amansando, inengolível e tinha até tentado. Coisas da vida, coisas da vida. A Maria trabalhava das oito às oito. Tomara que volte amanhã. Perguntaria de novo: Maria, Maria, que é liberdade? O menino só não sabia que os pais já planejavam a substituição por outra Maria, mais jovem, mais barata, com menos irmãos para cuidar. A nova Maria não escuta Roberto Carlos no rádio. Talvez não saiba responder ao menino o que é liberdade, mas certamente tem a coluna boa.

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Escutava música no volume máximo, com a tevê ligada no canal de notícias inventadas, enquanto lia em voz alta o livro invisível da vida, peripateticamente, caminhando para lá e para cá que nem barata tonta, feito o pêndulo de um relógio de tempos passados. Começou devagarzinho, uma coceirinha nas costas... uma coceira... uma coceira dos infernos! Há um bom tempo não roía mais as unhas, precisava cortá-las. Mas, de certa forma, foram úteis para coçar, coçar e coçar essa coceira in-su-por-tá-vel nas costas. Como as unhas não davam conta, tirou a camisa e esfregou as costas nas paredes da sala. Arranhou... raspou... lanhou... suas costas ficaram em carne viva! Começou a dobrar-se sobre si, jogado no carpete, em posição fetal, a rolar e a contorcer-se como a convulsionar-se. Desesperador! Atéquenfim, desmaiou. Apagou-se. Será que está vivo? Não. Quero dizer: não foi dessa vez. Está vivinho da silva, pra lá de Bagdá, mas inteiro. Quero dizer: todo quebrado, mas inteiro. Digo: partido ao meio. Duas penas, – duras penas –, uma de cada lado das costas, romperam sua pele, 19


rasgando seu coro sem dó e, junto com elas, duas sequências de penas brancas formaram uma plumagem alva. As asas brotavam como pétalas de flores, copos de leite, lírios líricos. De forma crescente e cada vez mais rapidamente, suas asas foram ganhando corpo e avolumando-se, movendo-se, movimentando-se, como a adquirir vontade própria, vida própria, prestes a alçar vôo. Ele, desmaiado, e as asas, vivas, balançavam-no como uma marionete. As asas imensas batiam intensas, de modo a erguerem o homem, dois pés deixando o chão. Desarmado, desalmado, desmaiado, com a cabeça pensa, de olhos trancados, ignorante de si, de sua condição, e do mundo que o cercava. Suas asas, batendo agitadas como as asas de um avestruz desastrado em desabalada carreira, tocavam do chão ao teto, derrubando objetos. Essas asas batiam como um coração assustado, surtado. Não havia uma alma quando mais se precisava dela. Não havia a quem pedir auxílio. Não havia ninguém naquele momento, naquele apartamento suburbano caindo aos pedaços, cortiço, favela vertical. Não havia – ah, não – assim como não há. Os olhos sonolentos, marejados, abriam-se lentamente, pisca-piscando, como a quererem sair das órbitas, mas mal resistindo à letargia. Sua alma penada o sustinha. Um levante do além. Seus pés fora do chão, levantados pelo bater incessante das longas e largas asas. Nuvem e neve. Alvo algodão. Limpeza hospitalar. Agitação intensa. Pânico! O homem só. Ele não estava mais só. Suas costas. Elas se abriram. E ele pariu. Um anjo. Um demônio. Uma mulher? Um alien. Um ser. Uma criatura. Um monstro. Aquele outrem. Aquilo. Inominável. Despregou-se, desprendeu-se, destacou-se, desatou-se. Algo descarnou de suas costas. Brotou de sua cratera, caverna interior. Batendo as asas atabalhoadamente e, com um impulso dos pés, usando sua lombar como trampolim, a coisa levantou voo ao mesmo tempo em que largou seu corpo ensanguentado no chão. Escapou, escapuliu, escalpelou-se pela janela, estilhaçando-a, ziguezagueante, febril, rumo ao desconhecido. Durante o voo cabe o silêncio e nunca palavras, palavras, palavras a mais, vazias de significados. Menos é sempre mais.

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I. Os homens sem nome que entrevejo Através das grandes janelas abertas, Quando adentram o solene silêncio Habitado das bibliotecas do centro, Obrigam-me a parar o que leio E a acompanhá-los agora de perto. Penso que isto está ao meu alcance: Ouvi-los e não mais apenas aos livros. II. Dos sons que pouco ouvimos, E não digo dos ruídos da cidade! Uma gaita me afaga os sentidos, Faz vibrar o que me tem sustentado... E abraça o silêncio colecionado Como retratos sobre as mesas.

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Malditos sejam Hipnos e seus oneiros, Que sejam atirados ao mais profundo canto do Tártaro, Que me mantêm cativo, como carcereiros, Que não tenham para esconder-se ânfora ou cântaro. E ainda que rejeite toda e qualquer vontade Fazem-me refém da intrínseca necessidade, E apenas o seu obscuro e temido gêmeo Oferece a saída como o derradeiro prêmio.

SCÁRNIO AO SONO 22


Hib aviso de gatilho: este texto apresenta uma temática que pode ser considerada perturbadora (aborto).

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Acordei sentindo umas dores e enxergando tudo escuro. Era uma e vinte e duas da madrugada. Meu corpo estava quente - parecia fabricar algo mais quente ainda. Consegui abrir os olhos e esticar o braço para pegar o remédio amarelo. Engoli a gota dourada com um pequeno gole de água quase morna, quase fria. Senti o peso dos músculos se derramarem na cama novamente e meus olhos se fecharam. A fabricação dentro de mim continuava macia, velada pela proteção embriagada do meu sono. Não deixei de ver o escuro, mas agora via uma flor, um grande hibisco vermelho flutuando na água limpa e negra. A flor se confundia com carne, suas pétalas pareciam suportar veias que carregavam vida por todo seu vermelho rosa.


biscus Um primeiro pedaço caiu, mergulhou na água escura e eu senti seu calor em meu ventre se derretendo até virar uma gota de sangue vermelho, vivo, quente e em seguida ser lavado pelo líquido escuro. Logo caiu outra pétala, se transformando em gota de pulsações que pude sentir no meio das minhas pernas. Assim se seguiu, até que caiu todo o corpo do hibisco. Voltei a enxergar o negro. Sem gotas vermelhas, sem flor vermelha. Não despertei, mas sabia que estava viva. 24


JARDIM DO ÉDEN

aviso de gatilho: este texto apresenta uma temĂĄtica que pode ser considerada perturbadora (estupro)

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(A MENTE DE UM DESEQUILIBRADO) Eu a despi totalmente enquanto ela se debatia. Éramos eu e ela somente, ninguém nos incomodaria. Vou contar para vocês uma linda história de amor. Começo então: Era uma vez eu e Eva, a minha flor. Em pouco tempo ela cedeu à minha superioridade. A todo o corpo dela o meu punia, com suavidade. Um pro outro fomos feitos. Éramos pura harmonia, um casal mais que perfeito, tal qual rimas de poesia. 26


Em seus olhos senti o apelo, na contração de suas pupilas. Acariciei, então, seus cabelos, suave aroma de camomila. Eva, mulher maravilhosa. Eva, minha prima-dona. Linda, divina, formosa, do meu coração era dona. Perdi a noção da hora corrigindo a aviltada. Culpo, pela minha demora, ela, até então calada. Fazia-lhe serenatas, cobria-na de presentes. Festejava nossas datas, amava-a completamente. Conforme o meu procedimento, agora hei de abandoná-la, humilhada, ao relento, seguido da seguinte fala: Adorava ouvi-la falar. Sua voz, doce melodia, tal qual sabiá num pomar celebrando o nascer do dia. “Não venhas me incriminar, tiveste o que merecia. Quiseste sozinha andar na noite escura do dia.” Que eu a amo é irrefutável. Que eu a amo é iniludível. Eis meu medo insuperável: o próprio amor, imprevisível. 27


De uma coisa eu estava certo, desta mulher eu era rei. Dela, então, cheguei bem perto e minha fala continuei: Certo dia, o meu temor foi, enfim, concretizado. Quando Eva, para minha dor, disse-me: “Está acabado”. “A dor que sentes agora é pífia em comparação a de quando Eva foi-se embora e dilacerou meu coração.” Disse-lhe que a amava. Ela chamou-me possessivo. Disse-lhe que a idolatrava. Ela: “Platônico compulsivo”. Humilhada, decomposta, após meu didático ensino, a ela, então, virei as costas. Minha morada é o destino. Aprendi desde criança. Papai, à mamãe castigava, era dele a liderança. Mamãe, ao papai respeitava. Após alguns passos dados ouvi um som vindo das trevas. Um pranto bem chorado, idêntico ao de minha Eva. Acabado? Mas que desgosto! Acabado? Mas que piada! Dei-lhe um forte tapa no rosto, levando aos prantos minha amada. 28


Doce choro em lá sustenido, agudo som que ela emitia. Quando chegou aos meus ouvidos, extasiou-me em demasia. Doce choro em lá sustenido, Agudo som que ela emitia. Quando chegou aos meus ouvidos, extasiou-me em demasia. À mulher eu me voltei, fonte deste som excitante. “Chore mais”, ordenei. Obedeceu-me a imunda errante. Sinestésica diversão ouvir, de Eva, os prantos implorando libertação, com angelicais encantos. Lembrei de tempos antigos, quando comigo Eva estava, e meus didáticos castigos, com os quais ela tanto chorava. A macieira do meu quintal era dos meus locais favoritos, onde eu, de forma fraternal, amordaçava Eva, aos gritos. Decidi que esta mulher que acabei de educar – sim, uma estranha qualquer – iria para o meu lar. Fazia isso porque eu podia, inata superioridade. Esta mulher me pertencia, faria as minhas vontades. 29


Carreguei seu corpo duro. Nunca fizera isto antes. Eu e ela, no beco escuro, parecendo dois amantes. Nós íamos muito bem na nossa paixão intensa, até minha linda refém causar-me cólera imensa. Acomodei-a no meu carro, sou seu grande condutor. Ofereci-lhe um cigarro; acabamos de fazer amor. Seguindo a mesma rotina, quando acordei de manhã fui ver a linda menina presa à árvore de maçã. Eva não me respondeu. Que falta de educação! Com um forte tapa, eu a fiz chorar outra canção. Mas o que eu vi no local fez-me perder as estribeiras: Eva, estirada em meu quintal, jazida à sombra da macieira. Após linda sinfonia, chorada magistralmente na minha plácida moradia, cá chegamos, finalmente. Quando esta cena eu vi, meu nobre coração parou. Rapidamente concluí: Minha amada me abandonou. 30


Retirei-a do automóvel, na macieira a acorrentei. E olhando ela ali, imóvel, da minha Eva eu me lembrei. Do amor que me restava fiz-lhe um enterro decente. À árvore que lhe acorrentava, Eva serviria de nutrientes. Eu punia sem pudor a minha ilustre visitante. Por ela eu não sentia amor não como por Eva, não como antes Em meu coração partido, a tristeza e a desesperança viraram, após o ocorrido, forte desejo de vingança. Por um tempo ficamos assim, num sério relacionamento, mas não sei se ela gosta de mim, dado os diários espancamentos. Não ter mais Eva pra chorar não era nem um pouco justo. Queria alguém para castigar. Queria alguém a qualquer custo! Num certo dia banal, estava eu, com a presa minha, corrigindo-a no quintal, quando ouço o som da campainha. Num certo dia banal, sozinho eu estava, sem ninguém. Maçãs comendo em meu quintal. Puro pecado, nenhum bem. 31


No interfone perguntei quem era e o que queria. Foi então que me deparei com uma voz grave, que dizia: Essa depressão atroz levou-me à constatação de que Eva era meu eterno algoz, e eu era seu eterno Adão “Tenho um mandado de prisão. Não há mais onde se esconder, célebre estuprador Adão, trate já de se render!” Sim, aderi ao nome Adão. Minha triste vida eu ironizo. Desde que Eva, minha paixão, abandonou-me no paraíso. Sim, aderi ao nome Adão. Minha triste vida eu ironizo. Desde que Eva, minha paixão, abandonou-me no paraíso. Paraíso esse deprimente. Sem choros, sem felicidade, que me deixou deveras carente em expor minha superioridade. Prodígio entre os policiais, o corpulento jovem fardado, ainda movido por seus ideais, deixou-me até emocionado. Eis a minha saída final: Justiça com as próprias mãos. A qualquer fêmea emissora do mal eu aplicaria exemplar punição. 32


Sabia que fugir era inútil. Ainda mais de um tira honesto. Então, deixei-o sentir-se útil, e de algemação lhe fiz o gesto. Após descobrir a minha sina, iniciei minha vigilância, caçando perversas meninas, na cidade, em abundância Levou-me até a viatura como se eu fosse um criminoso, e da mulher foi à procura. De si devia estar orgulhoso. A primeira alma que salvei foi de uma linda jovem mulata. No escuro, ao acaso a encontrei, sozinha em uma rua pacata. Chegaram tempos depois. Ele a carregava com cautela, e logo eu senti pena dos dois: “O pau-mandado e a cadela”. Cheguei por trás, curto e grosso. Ela desabou no chão. A segurei pelo pescoço, evitando qualquer reação. Eu fui no banco de trás e os dois tolos na minha frente, achando ela que teria paz e ele, que viraria tenente. Ambas as calças abaixei, e ambos os ventres uni. Até a hora que me levantei e as seguintes frases rugi: 33


Chegamos à delegacia. Despedi-me da desgraçada. Disse-lhe que um dia eu voltaria para lhe dar umas palmadas. “Não venhas me incriminar, tiveste o que merecia. Quiseste sozinha andar na noite escura do dia.” O jovem muito se irritou com este meu singelo recado, e no meu ouvido sussurrou: “Há de pagar por seus pecados.” “A dor que sentes agora é pífia em comparação a de quando Eva foi-se embora. Prazer, eu sou Adão.” Mandou-me ao interrogatório, lá de mim iriam cuidar. Eu, um homem tão simplório, sem nada a se condenar. Se pensas que sou descuidado, contigo serei muito franco. Nunca vi ser condenado homem da classe média, e branco. Apareceu o delegado; do local, a entidade. Ele estava encarregado de me pôr atrás das grades. A mulata foi só a primeira das muitas garotas malvadas que, à minha dócil maneira, foram devidamente exorcizadas. 34


Levantei-me e nos abraçamos. Que saudades do meu amigo! Por horas e horas conversamos, e este foi o meu castigo. Mas algo ainda me incomodava. De minha Eva eu sentia saudade, pois nenhuma delas chorava com sua musicalidade. Conversa vai, conversa vem. Enfim chegamos à concordância: Por míseras dez notas de cem, nada daquilo teria importância. Mas não deixei isso atrapalhar a eficiência do meu serviço. Meu destino ainda era encontrar o som que tanto cobiço. O delegado é uma graça, até me fez um desconto. Já que tudo por ele passa, é com ele que sempre conto. Numa noite como outra qualquer, patrulhando a rua, meu domínio, deparei-me com uma mulher que me causou completo fascínio. Por fim, ele me tranquilizou sobre a mulher e o policial: “Livrar-me-ei do que dela sobrou, e dele corromperei a moral.” Parei meu carro no meio da via e segui a pé em sua direção, não sabendo que esta seria minha mais exemplar punição. 35


Meu amigo de novo abracei. Fui libertado de forma legitima. Lembrei de Eva e me perguntei: Quem será a próxima vítima? Eu a despi totalmente enquanto ela se debatia Éramos eu e ela somente, ninguém nos incomodaria.

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jornal

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hoje de manhã cerca de 33 crianças fortemente peraltas invadiram o supremo tribunal sideral os juízes foram rendidos pela realidade enquanto as crianças abriam os arquivos e confeccionavam aviões de papel ainda não se sabe o número de vítimas legais


I. o mar já coube todo numa concha o filho, maior do que a mãe, já coube todo no útero universos em expansão sob constantes de ouro a natureza inúmeras iterações de uma mesma essência 38


estirpe físico-química de astros decadentes II. às vezes eu ficava a espreitar as margens do riacho sendas sem ondas dos oceanos esperando tu emergires vênus lua nua pura Marília em pé sobre pedra a pele orvalhada enquanto cantavas com tua voz frugal a quem ninavas com melodia tão doce? eras, certo, 39


sereia em sua pedra insular eu, marujo entorpecido III. o encaracolado de seus cabelos endêmicos do cosmos redemoinhos trançam o vento em espirais de sonho o som propagação de ondas a pedra mergulhando na água o caramujo meditando no oco de sua concha – como seus irmãos

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marinhos resistem ao sal? IV. corpo estendido boca aberta a abocanhar areia aspirante a suicida refugado pelo mar as ondas, nunca as mesmas, repetindo saudades as ondas parte de um mesmo todo trazendo de outras costas o tempo no eco das conchas eu ouço – ĂŠ tarde, arde, arde...

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na minha solidĂŁo, concĂŞntrica ao pulsar no peito, murmuro teu nome Marilha

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MEDO DO

mar

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Quando eu era menino pequeno E não custava nada sonhar, Eu tinha medo do último aceno E do que guarda a solidão do mar. Sempre percorri as beiras das praias Procurando atento ao mais ínfimo brilho, Quem sabe encontrar o mais belo estribilho, Numa velha garrafa adornada de arraias. No ninar das ondas, o instante derradeiro: Um navegante perdido, como último intento, Faz daquele papel seu terno testamento De uma vida repleta de acenos lisonjeiros Num mundo que se entristece apenas ao ver o sol repousar. Nunca encontrei esse pergaminho. Ainda procuro por entre pegadas perdidas, Porque talvez algumas memórias bonitas Apenas o mar seja capaz de guardar.

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Aquela porta nem sempre fora vermelha. Eu passava todo dia por ela, fizesse chuva ou sol, fosse inverno ou verão. Antes ela não era vermelha – fora sempre uma porta simples de madeira, envernizada e brilhante. Foi um choque tão grande para mim que parei de andar, o canudo na lata de refrigerante a poucos centímetros de minha boca aberta, antes pronta para agarrá-lo. A porta estava vermelha. Olhei ao meu redor, procurando mais alguém que tivesse notado a diferença, assim como eu. Porém ninguém demonstrava ter notado. Todos continuavam seus caminhos. Ninguém mais fora tão impactado quanto eu. Atravessei a rua para me aproximar. Vermelho. Rubi. Escarlate. Vivo como o sangue pulsando em minhas veias. Perdi alguns minutos apenas encarando-a, tentando entender aquela mudança tão súbita, tão profunda, mas não havia mais nada de diferente além dela, da porta. A escadinha em frente era a mesma, o capacho ainda dizia «bem-vindo», as flores na jardineira da janela ao lado ainda eram jasmins de um azul pálido. Nada havia mudado. Sorri. Nada havia mudado, exceto pela porta. Ela agora era vermelha. 46


o espelho

e a mosca

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Talvez a mais plausível explicação para meu constante nervosismo fosse a maldita sirene. Há mais ou menos um ano, por um motivo desconhecido por mim, alguém que também não sei dizer quem decidiu que todo dia, às 23h20, uma sirene tocaria três vezes por toda a cidade. Sem aviso nem explicação. Fato é que todos assumiram aquilo como um toque de recolher e, depois deste horário, todos se trancavam em suas casas. A cidade sempre foi muito perigosa e um toque de recolher até que faria sentido. Eu, porém, ficava sempre trancado em casa, há muito tempo, quando meu tio morreu. Ele deixou o sobrado, a mobília e uma boa quantidade de dinheiro como herança, e eu, cansado e deprimido, me demiti de meu trabalho e passei a viver apenas lá. Pagava para me entregarem comida, pagava para me entregarem cigarros e bebidas, e pagaria para finalmente morrer, se tivesse coragem. Sobre o dinheiro, a casa e grande parte da mobília, não há nada curioso para salientar. Mas havia um espelho. Com uma moldura dourada já velha e um pequeno furo no vidro, ele me foi dado como herança de maneira especial, citado separadamente da mobília, nomeado apenas como “meu espelho”. Como acreditava que ele era de grande estima de meu tio, deixei-o no mesmo lugar em que sempre ficou e nem cogitei consertá-lo. Na verdade, de espelho ele mal poderia ser chamado.Velho e sujo, com poeira sobre poeira sobre o vidro, não se via reflexo algum, somente

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um borrão disforme. Confesso que ele me causava arrepios, e me causou mais ainda quando um dia criou vida. Que eu não tocasse nele, isto já era de se esperar, mas o espelho não era visitado nem pelos insetos que mais e mais apareciam na casa Lembro-me de um dia em que vi uma lagartixa correr pela parede, parar e, confusa, desviar do espelho o máximo que conseguia; depois seguir seu caminho e desaparecer. A poeira também não parecia se renovar. Intacto, como se uma redoma o protegesse do mundo que se deteriora. Mas, naquele dia, o espelho deu seu primeiro sinal de vida, e bem à minha vista. Pois estava eu indo em direção ao meu quarto e, quando seguia pelo corredor, encarando o meu não-reflexo naquela coisa, estaquei. Do pequeno buraco no vidro saiu calmamente uma mosca. Ora, uma mosca não é algo que cause alarde, mas aquela não era uma mosca qualquer. Fisicamente, sim, mas seu zumbido era um tanto quanto suave e baixo, como um grilo ao longe. E ela saía justamente do lugar mais inimaginável. Depois de levantar meus pensamentos, tentei ignorá-la, mas foi impossível. A mosca saiu voando pelo corredor e me seguiu até o quarto. Deitei e tentei dormir, mas a falta de sono e o zumbido hipnotizante dela não me deixaram. Levantei e fui atrás da tal criatura, sacudindo travesseiro, toalhas e mãos pelos ares, tentando pôr fim naquilo. Tudo em vão. Ela saiu do quarto, e agora eu poderia apenas fechar a porta, mas estava cheio de vitalidade. A morte daquela mosca era meu objetivo primo. Fui atrás com uma toalha, batendo nas paredes, e ela escapando. Até que pousou novamente no espelho e entrou, não no furo de onde saíra, mas no vidro, por baixo daquelas camadas de poeira. 22h40. Esfreguei incontáveis vezes meus olhos e tentei me convencer de que aquilo não passava de uma peça pregada pelo sono. Mas não havia sono. Poderia ser a bebida. Mas não havia bebido naquele dia. Poderia ser a loucura. Poderia? Não! E se não, então era verdade. E se era verdade, então era loucura! Como uma mosca poderia entrar no vidro de um espelho?! Talvez ela tivesse apenas se escondido naquele monte de poeira, e, com um sopro, ela se revelaria ainda viva e esperando sua morte pelas minhas mãos.

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Cheguei enfim ao espelho. Olhei, olhei, e não pude notar uma alteração sequer na superfície. Onde estaria aquela mosca maldita? Assoprei para ver se monstruosa criatura acordaria, mas nada. Nem mesmo a poeira, encalacrada pelo tempo, se moveu. Tudo estava parado. Até o ar parecia estagnado. Assoprei novamente, mais forte, e nada. Dei algumas batidas na parede próxima, a fim de que o espelho se movesse e a mosca saísse, mas nada. Bati mais forte, e nada. Só havia uma solução. Respirei profundamente, como se pudesse haver medo do que eu estava planejando fazer, mas de fato havia. Fechei os olhos e toquei. Este momento se seguiu atrasado, descolado, suspenso do tempo como o conhecemos. Pude sentir cada milímetro de minha pele transpassando cada camada de poeira e meus outros sentidos degustando as épocas em que aquelas poeiras eram recentes, jovens. Eu sentia o cheiro dos anos 40, o gosto dos anos 30, eu via as cores dos anos 20 e ouvia os ruídos dos anos 10. Senti a poeira acabando, o frio do vidro tomando minha pele, mas não senti rigidez. Pelo contrário, percebi, ainda com os olhos fechados, que minha mão atravessava o vidro e se entregava para o vazio. Não podia voltar. Fui seguindo até que meus braços, meu ombro, meu corpo todo estava dentro do espelho. Então abri os olhos. Loucura, apenas! Obviamente. Como alguém pode entrar num espelho? Isso é impossível. Quando abri os olhos, estava eu de frente para o corredor, na mesma casa, com o mesmo espelho, a mesma poeira, só não mais com a mosca. Então, decidi ir para meu quarto. No caminho, notei que o ar estava totalmente parado e úmido. E fedia. Notei também uma certa dificuldade em respirar, talvez devido à umidade. Entrei em meu quarto, deitei na cama e olhei uma última vez para o relógio: 23h00. Vinte minutos e eu ouviria a sirene, aí então poderia dormir sabendo que nada me atrapalharia. Bebi o copo d’água que ficava em meu criado-mudo, revisitei as memórias do dia, e acabei dormindo. Quando acordei, olhei assustado para o relógio, que marcava 16h35. Como eu não havia acordado com a sirene? Talvez o cansaço finalmente tivesse me vencido. Levantei, comi, fiz minhas leituras e decidi abrir a

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janela para que aquela umidade passasse. Era final de tarde, segundo o relógio, mas noite, segundo o céu. Lá fora a cidade toda entregue ao breu, a uma noite sem lua. O ar também era úmido lá, e eu não entendia como tudo aquilo era possível. Sentei na cama pasmo, com a janela aberta, encarando atônito o relógio, aguardando até que o dia viesse e eu pudesse arrumar as horas. O dia nunca veio. Quando o relógio marcou 23h20, a sirene também não veio. Visitei todos os outros cômodos da casa onde havia relógios e todos marcavam o mesmo horário. Lá fora, o mesmo breu. No mundo, o mesmo silêncio. Resolvi correr para a porta, mas algo me fez parar no corredor. Olhei para o espelho. O mesmo espelho, intacto e empoeirado, com o mesmo furo. Tirei um cigarro do bolso para que me acalmasse, mas ao riscar o fósforo, a chama nasceu e logo morreu, como se não achasse oxigênio suficiente para abastecê-la. Tentei novamente, e novamente em vão. O desespero começou a me tomar. Queria ir para a porta, mas não ia. Queria sair de lá, voltar para o quarto, mas só ficava parado na frente do espelho. Creio que fiquei um dia inteiro medido pelo relógio parado ali. O breu ainda era o mesmo lá fora. O silêncio também. Era como se não existisse nada além daquelas paredes da casa de meu tio. Então, vinda do nada, apareceu a mosca. Agora era silenciosa, totalmente silenciosa, e pousou nesse mesmo silêncio em meu ombro. Quando a olhei, pude ver o reflexo do relógio de meu quarto na maçaneta da porta. Eram 22h40. A mosca começou a descer pelo meu braço, enquanto este se levantava em direção ao espelho e meus olhos se fechavam. Não era o que eu queria! Então, pude sentir. Pude sentir cada milímetro de minha pele transpassando cada camada de poeira e meus outros sentidos degustando as épocas em que aquelas poeiras eram recentes, jovens. Eu sentia o cheiro dos anos 40, o gosto dos anos 30, eu via as cores dos anos 20 e ouvia os ruídos dos anos 10. Senti a poeira acabando, o frio do vidro tomando minha pele, mas não senti rigidez. Pelo contrário, percebi, ainda com os olhos fechados,

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que minha mão atravessava o vidro e se entregava para o vazio. Não podia voltar. Fui seguindo até que meus braços, meu ombro, meu corpo todo estava dentro do espelho. Então abri os olhos. Loucura, apenas! Obviamente. Como alguém pode entrar num espelho? Isso é impossível. Quando abri os olhos, estava eu de frente para o corredor, na mesma casa, com o mesmo espelho, a mesma poeira, só não mais com a mosca. ...16h35... lá fora a cidade toda entregue ao breu, a uma noite sem lua... silêncio... a chama nasceu e logo morreu... fiquei um dia inteiro... a mosca... 22h40... não era o que eu queria! Então, pude sentir... transpassando cada camada de poeira... 40... 30... 20... 10... não podia voltar... loucura... na mesma casa, com o mesmo espelho, a mesma poeira... 16h35... lá fora a cidade toda entregue ao breu, a uma noite sem lua... silêncio... a chama nasceu e logo morreu... fiquei um dia inteiro... a mosca... 22h40... não era o que eu queria! Então, pude sentir...

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Morre Cristo. De sangue e lágrimas coberto, Dorme sobre o Calvário à nona hora do dia; Por três cravos suspensa, a Carne que tremia Cessa o tremor enfim, e o Espírito é liberto. “Por que me abandonaste, ó Pai? Por quê?”, gemia Pouco antes de expirar, havendo o seio aberto Aos vagalhões do oceano e à aridez do deserto. Sem resposta do Céu, chorou. E eis que Maria, Ao ver o Cristo em sangue e lágrimas desfeito, De pronto suplicou: “Senhor, dá-me essa cruz; Dá, que eu – Não Ele! – arrasto o mundo junto ao peito!”. E entre o escárnio da terra e o divinal exílio, Clamou em desalento o nome de Jesus, Que, antes de Redentor e Deus, era seu filho. 53


A porta se abre para a estação vazia. No vagão, completamente só, percebo com espanto o deserto onde me encontro. Estende-se por todos os cantos em seu silêncio amorfo. Não fosse o leve respiro metálico do trem, como se recuperasse o fôlego antes de retomar a corrida, poderia jurar ser um sonho. É estranha a sensação que me bate contra o peito. Sou o único passageiro, talvez o último, e agora, sequer tenho a certeza do meu destino. Para onde vão os trens? Olho o relógio em meu pulso frágil. Já é tão tarde! Tenho vontade de gritar para que se apressem, que partam logo, mas sei que as máquinas não me ouviriam e que a tentativa seria em vão. As portas continuam abertas e o deserto lá fora se agiganta. Vou me sentindo fraco, invadido por um temor de algo que não conheço bem. É como se aos poucos o deserto também crescesse dentro de mim, transformando-me vagarosamente em areia e pó. Suplico em segredo e desespero pelo movimento, uma prova qualquer de que não será este o fim. É então que o vejo! Emergindo do nada, move-se com extrema calma em minha direção, feito deslizasse sobre dunas. Aprumo os óculos no rosto. Sim, ele está bem ali. Avança em meneios cadenciados, uma dança bela apesar de eremítica. Ao longe, ele me vê. Seus olhos negros encontram meus olhos por detrás das lentes sujas. Quem será ele? Eu me pergunto. Parece abatido, cansado. Eu sustento o olhar, como a lhe dizer que não fuja, que estou desarmado, que não há mais medo nenhum. Ele sustenta o olhar, como a me dizer que o caminho foi muito longo, que está feliz por me encontrar, que tudo ficará bem. Mas, de repente, um estampido agudo rompe esse fio invisível que nos une. O trem vai partir! Ele começa a correr. Eu salto do banco.Talvez tenha uma esperança! Mas a porta se fecha em um instante e o trem se lança mecanicamente pelos trilhos veloz, veloz, veloz e a distância só aumenta. Parado no meio da estação ele vai se desfazendo, até não ser nada além de uma 54


PSICOLOGIA DE UM LETÁRGICO 55


penduro aqui a minha consciência, insônia e sua onipresença, e afirmo cansado: a diferença da faca pro cigarro é só urgência me faltam sonhos; mas a sua ausência dá espaço aos pesadelos; não me deixam, com tanta autenticidade que puxam de minhas cicatrizes, inocência na vigília que me causei, procuro, em reflexões imersas no escuro, um eu sonhador; um ativo eu mas meu olho já não é mais o mesmo. nublado, me traz um borrão a esmo. talvez deva me acostumar ao breu.

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t•e•m•p•o aviso de gatilho: este texto apresenta uma temática que pode ser considerada perturbadora (estupro).

Meus pés estão alcançando o chão. Papai disse que, quando isso acontecesse, teria chegado a hora de me casar. Nunca me contaram o que significa isso de me casar. Aqui em casa a gente amarga um gosto de pobreza na boca. Mamãe é cuidadosa, costura e nos ensina a não falar. Me belisca por me dizer curiosa. Diz pra gente se calar por que assim vamos aos poucos parando de pensar... Eu venho me pegando distraída com frequência e assim estou por me esforçar em não pensar. Mamãe diz que assim é melhor pra casar. Levanto meus pezinhos. Como estão pesados! Ando tão cansada... Não quero que papai chegue e perceba que estou assim, crescida. Olho minhas mãos. Nessa nossa cidadezinha nossas unhas estão sempre denunciando nossa terra roxa. Nesse pedaço do mundo as paredes e as crianças são vermelhas de terra. O suor também escorre delicadamente vermelho. Os velhos tentam enxugar a testa com as costas de suas mãos e assim pigmentam também suas rugas. As tosses e cuspes são assim tingidos. Nossa cidade ferve em pó. Mamãe busca sempre o branco. Nos faz esfregar todas as paredes, cantos e detalhes até sair a vermelhidão. Enquanto nossos bracinhos se movimentam para cima e para baixo, como um suplício, um sacrifício; a 57


gente sente a poeira chegando e nos envolvendo. Vem até o gosto vermelho na boca. A gente arranca o vermelho que o ar delicadamente deposita em cada superfície. Não sei se sinto carinho ou raiva desse pó! Me dá uma raiva desse atrevimento que passivamente tinge todas as bordas. Mas, me dá uma ternura, essa insistência toda. De qualquer forma, nossos corpinhos não podem parar e seguem na limpeza até a exaustão.Vermelha. Mamãe! Não vê que isso é loucura?! Este vermelho é uma mácula incrustada. Acho que é a mancha de dentro da gente que ela quer limpar. É esse o não pensar? Será isso o casamento? Meus pezinhos no chão... Olho pela janela. Está chovendo. A chuva amansa a poeira.Vemos aquelas nuvens vermelhas deitando-se no chão. Só então podemos brincar. É só nesse instante que vivo. Hã! Ando tão distraída que nem percebi... Tem um homem ao meu lado no sofá. Me parece bondoso. Nunca o vi, mas, me causa uma sensação familiar... Quero olhar ele, descobrir sobre ele... Enquanto papai não chega posso encarar, curiosa. Ele também me olha fixamente. Meu Deus! Que olhar é esse que lança em mim? Nunca vi nada igual. Está me procurando dentro de mim. Sinto muito, senhor, eu sou vermelha por dentro... Ele estende sua mão, está tremendo. O que ele quer? São tão limpas as suas unhas. Hã! Que toque áspero! Mas... meu Deus! Sou uma menina! E se papai chegar?! Quem é esse velho? Deve ser um amigo de papai... Eu não consigo parar de olhá-lo. O que é isso que brilha em seu olhar? Ele se levanta devagar. Me estica sua mão, como um convite. É irresistível ir com ele. Mas, meu Deus! Meus pezinhos mal roçam o chão... Ele me ajuda a levantar. Devagar vai me conduzindo pelo caminho. Tudo parece tão branco... Seus olhos seguem fixos em mim. Estou com medo, senhor. Nem sei ao menos como é o mundo para além dessas margens. Como será o gosto das frutas de outras bandas? E a cor do céu? E das noites? São assim tão escuras? Os dias amanhecem todos os dias? Como é a sua história, senhor? Como é o corpo de um velho? Como é o corpo de um homem? Por favor, não me faça maldade. Para onde está me levando? Para o quarto?! Mas, mas... Como? Seus olhos são estranhos... Por que me sugam tanto? Mas, mas... Eu sou uma menina... Obrigada por me dar passagem. Mas... Não. Não vai entrar no quarto comigo. Os seus olhos... estão tão tristes... É isso o que sente? Eu não sei 58


decifrar olhares, senhor, estou aprendendo a despensar... Com licença, vou fechar a porta. Não, não vou abrir. Por favor, não insista. Papai pode chegar. Não, não por favor, pare de bater e de me chamar. Não. Não! Não!! Socorro! Tem um homem tentando entrar no meu quarto! Sai daqui! Socorro! Eu sou apenas uma menina! Sai! Socorro! Ei... por que está chorando... escuto seus soluços... te escuto acariciando a porta... por favor, pare... tenho medo... socorro! * O tempo sempre fala do amor. Nossos dedos enrugados, o corpo incomodado, o movimento descontinuado. Meu silêncio calado de quem prefere calar a falar a falha. Tenho vontade de tocá-la, amor; de acariciar seu rosto doce com minhas mãos ásperas e trêmulas. Outrora firmes. Sinto meu peso flácido jogado no sofá, no calor de um apartamento inusitado. Ah... Hoje é difícil me levantar. Mais vale deixar-me jogado ao bafo quente. Seus olhos estão baixos... São sessenta anos, querida! Não nos conhecíamos naquele tempo. nNão digo que não conhecêssemos um ao outro.; não conhecíamos a nós mesmos. Talvez porque simplesmente não fôssemos até então. Eu me tornei contigo. Foram seus toques que me deram um lugar no mundo. Meu pai me enviou à tua casa para tê-la em casamento. Acordos de dívidas. As perguntas eram proibidas. Fomos a cavalo. Eu, papai e um tio. Eu era o mais velho dos filhos. Você, sua mãe, pai e irmãos aguardavam em frente ao sítio. Seus cabelos estavam esvoaçantes com a nossa brisa de fim de tarde e noites frias. O seu penteado ia se desfazendo... A noite corria atrás de nós e o vento nos ultrapassara, levantando o seu vestido quando se deu nossa chegada.Vê-la à minha espera, me entorpeceu. Era vertigem aquilo. Senti a morte sussurrar ao meu ouvido. Seus olhos eram de pedra. Sua boca de segredos. Seus joelhos eram docemente tortos, pareciam se namorar, olhando um ao outro incessantemente. Esses joelhos me apaixonaram. Meu bem, você estava apavorada, enrijecida.

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Estiquei lhe a mão e você subiu. Sentou-se de lado. Seus cabelos eram longos e ásperos. Tinham um cheiro diferente de tudo. Você usava um ramalhete de flores na cabeça, que insistia em se dependurar, o que a obrigava a subir as mãos para ajeitá-lo. Este ramalhete... ah... me fez pleno de ternura. Vieram filhos. Dez. Primeiro meninas, depois meninos. Nasceu João. Chamado João porque nascido no dia de São João. Tinha medo de escuro. Eu temia que fosse medroso.Vi você acordando ao escutar o choro do menino. Era mesmo escura a nossa roça.Você foi até o quarto das crianças. Deitou-o no seu colo e rezou com ele. Ao final do pai nosso, te escutei dizendo: − Meu filho, há um segredo para espantar o escuro. Levante seu dedinho, aponte para o céu com firmeza e faça um furo no escuro.Você vai ver, surge um pouquinho de clarinho. Acho que é o amanhecer que entra, lembrando que tudo passa, até as noites mais escuras. E reparei que às vezes, no breu da madrugada, seus dedinhos subiam em riste. Me dá saudade. O tempo sempre fala de amor. A gente foi simplesmente vivendo e foi tanto tempo. Às vezes parece que estive sempre aqui nesse sofá, ao seu lado, olhando as formigas caminhando e as folhas voando. Foram gerações de formigas. E até de pessoas.Tanto tempo assim, ao lado de alguém nos faz ver que todo mundo é capaz de algo grande.Ver as noites passarem, as rugas chegarem, me fizeram te decorar. Seu cheiro, sua textura e seu soluço. São parte do meu corpo. Assim, tão de pertinho, você ficou linda. Ei... você está me olhando agora. Seus olhinhos sempre pequenos e desconfiados. Meu Deus! Estão de pedra! Como à beira do cavalo. São daquele dia! Sessenta anos atrás! Onde está sua memória, meu amor? Estico a mão para pegar na sua e beijá-la suavemente. Meu braço está tão devagarinho. Você anda confusa, meu bem. Repete as poucas palavras que diz. Às vezes reza mais de uma vez. Isso preocupou as crianças. Nosso filho rico te levou ao médico. Ele me explicou... Tem um nome em alemão... É como se... Tua cabecinha estivesse se comendo em alemão. Tem um monstro da memória se alimentando do tempo den-

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tro de você. Come como sopa, pelas beiradas. Assopra antes de engolir. E você oscila em saber onde está… e quem é você... Me dê sua mão, me deixe segurá-la aqui comigo. Assopre! Assopre! Segure esta memória! Ou pelo menos... este agora.Vem, aceita a minha mão esticada mais uma vez. Obrigado, meu amor. Que delícia é sentir sua mão cheia de calos... Sim, já era essa mãozinha calejada que segurava o ramalhete. Vem, vamos para o nosso quarto. Vamos nos deitar um pouco. Por favor, fique comigo. Eu te ajudo a levantar. Sim, sim, com calma. Cuidado. Isso. Seus joelhos. Marina e Rebeca saíram a você. Devagar.Vamos desviar da mesa. Seu corpo está tão rígido. Como naquele dia. Mais um passo, meu bem. Chegamos ao quarto. Deixe eu abrir a porta pra você. Isso. Entre primeiro, por favor. Querida, você precisa sair da entrada para que eu possa entrar também. Não? Por que você está fechando a porta? Querida? Seus olhos estão me atravessando. Por que tão duros? Querida, querida, por favor. Não, não feche a porta. Não! Por que você está gritando? O quê? “Socorro! Tem um homem tentando entrar no meu quarto!”. Meu bem, não! Sou eu! “Sai daqui! Socorro! Eu sou apenas uma menina! Sai! Socorro!”. Explodo em lágrimas. Por favor! Bato na porta, acabo acariciando a porta, para tentar te encontrar. socorro!

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Irmãos

um filho chorou quando proporcionou à sua mãe sair do lado dos que servem e pela primeira vez na vida estar ao lado dos que são servidos suas lágrimas seriam outras se a enorme emoção daquele momento não tivesse lhe impedido de notar que aqueles que serviam sua mãe também tinham filhos 62


vi tri ne aviso de gatilho: este texto apresenta uma temĂĄtica que pode ser considerada perturbadora (assĂŠdio). 63


nĂŁo estou vendendo nada 64


para um lado para o outro olho. parada. olho. atrás. um rosto. um cara. olhos que não chegam aos meus olhos. param. para quem quer pé para no pé que pé gostosinho pintadinho de vermelho te chupo esse dedão. para quem quer perna.perninha gostosinha e tem quem se irrite que a perna é fina perninha mixuruca vagabunda piranha da perninha fina. para quem quer cintura umbigo barriguinha de fora um olho parado no lugar onde dorme meu útero meu ovário onde dorme meu umbigo que foi ligação com minha mãe e eu quero não ter nada disso em mim para não ter que ter olhos parados nisso. sagrada imagem quebrada cacos. engole o choro menina. você só deu cinco passos. para quem quer peito.peitinho delícia pequeno tá com tudo em cima mulher tem peito peito teta seio que amamentou minha filha que tem que por paninho que tem você a ver com meus seios. queria não ter seios agora queria ter só lá naquele lugar onde os olhos se encontram. respira menina que ainda não andou um quarteirão. mimimi. tá pedindo. vagabunda. tá olhando de um jeito que quer. para quem quer pescoço. pescoço carne dura. tem quem veja tem quem grite tem quem sufoque. pescocinho delícia. tô te elogiando. você deveria agradecer. para quem quer rosto. uma boca aquela que tá em mim para que eu fale coma beije para que eu grite para que eu tenha a cor que quiser. boquinha bonitinha. adoro boquinha que faz biquinho. buzina. biquinho. gostosinha. 65


para quem quer tudo não tem tudo que tudo não anda na rua passando para ir ali. tudo para fala olha responde. para quem quer tudo não quer só a mudez da carne recortada em close de revista de moda de desejo que só vai e não volta. para quem quer tudo não sou vitrine. não sou açougue. não ando para estar à venda. não vendo abaixo cabeça. cabeça. cabelo. comprido. do jeito que eu gosto. tinha um poema aqui antes de você chegar e gritar que queria me comer. você não pode me comer. não sou comestível. não sou corte. não sou venda em embalagem. que susto que medo que dor. abaixo a cabeça. quanto tinha 14 anos quando tinha 20 quando tenho 30 quando terei 40. quando terei muito mais serei então a piada da véia da pelanca da teia de aranha da teta da louca. serei de novo vitrine do que não vendo só caminho pela rua. piada padaria esfria café doce. piada televisão fofoca recorte de novo. calma menina que a porta tá quase ali. fechada. soluço. reconectar todos os dias as partes fatiadas destrinchadas expostas em ganchos. olho no espelho. a parte de que não se fala se grita se buzina. a parte olhos sem venda. sem venda olhos no espelhinho do banheiro choram. salgam a carne. conserva. na carne curtida há mar. 66


YUKI ONNA

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Yuki Onna é um espírito encontrado no folclore japonês. Segundo a lenda, ela canta para seduzir homens fazendo-os se perder na neve.

Percebo o avanço dessa sombra que cruza a alameda de voluptuosos pensares, E de cujos foscos traços reconheço eu somente seu conjugado real pelo íntegro e compassado andar. Batizei-te Mariana dando à lídima viva forma espaço para cultivar uma sombra que não cessa a medrar, E ameaça, o arquétipo, findar a matéria prima que o motivou e que agora nutre a fim de em sua penumbra preservar o viciado da própria ilusão. Em verdade, Mariana, és quase tal qual as pétalas do lírio 68


cobertas pelo véu de delicioso mistério que possibilita ainda os devaneios de um amante e sua obsessão por uma sombra. Mas, querida, tirado o véu sabes tu que mesmo o lírio não é, em matéria de pueril beleza, ainda o branco inocente da neve que afigura-nos castidade, sendo na verdade graça de um passeio tão sublime do alto firmamento Onde, como uma criança perdida, Yuki-onna esqueceu suas cores e é agora a essência prismática de todas. Desfalece cansada num terreno de ideias melancólicas e faz-se tão logo sombra a cobrir um observador solitário, que no fim da tarde procura sem encontrar uma Mariana, diferente desta cá, a cada vez que se deixa sonhar.

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ESCOLHA DOS EDITORES


É interessante constatar o modo singular de operação da memória humana. Como determinadas situações não deixam vestígios em nossas mentes, nem digital nem DNA, de forma que chegamos a duvidar de sua ocorrência. Entretanto, alguns casos raros sobrevivem intactos à ação do tempo, tão detalhados quanto no momento em que foram concebidos. O dia em que conheci Clarice é um perfeito exemplo para ambas as argumentações. Não digo conhecer no sentido mútuo, em que ambas as partes tomam consciência uma da outra. Não. Fui a única a notar sua presença naquele velho vagão de trem. Ela estava sentada a alguns metros de mim, ouvindo algo em seus fones de ouvido que não lhe permitia abrir os olhos, uma dessas melodias que só são plenamente absorvidas pela escuridão por trás de nossas pálpebras. Seus cabelos negros caiam como avalanches sobre seus ombros, embaraçados de forma displicente por toda sua extensão. Estava a exatamente cinco estações de meu destino, sabia disso, pois a voz do alto-falante acabara de irromper pelo vagão, desembarque pelo lado direito do trem. Foi então que Clarice decidiu abrir os olhos. Lá estava ele! O azul mais azul que já vira em toda minha vida fincado como navalha em seu globo ocular. Olhava para o nada, algum segredo escondido no vazio a sua frente, mas, sem notar, eu agonizava em sua presença. Não sei explicar ao certo minha fascinação por seus olhos, nem o que me

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impeliu àquele tão derradeiro ato que estava prestes a se concretizar, mas, em minha defesa, digo que mesmo que tentasse impedir o final de meu relato, não seria capaz. Meu corpo já não era mais meu, era propriedade do azul de seu olhar. Quantas estações já havia andado? Perdera completamente a noção de tempo e de lugar; tudo ao meu redor parecia dissolver-se: as paredes escorriam, a luz escurecia e eu me afogava em um oceano azul sem fim. Desejava tocá-los! Por que não me concede o prazer de segurá-los em minhas mãos? Protegendo-os, então, de serem perdidos na escuridão de um piscar. Enquanto permanecia perdida em meus pensamentos, Clarice calmamente levantou-se de seu assento e rumou até a saída, desembarque pelo lado esquerdo do trem. Não! Não posso perdê-los de vista! Preciso segurá-la, protegê-la, sufocá-la... Neste momento preciso me desculpar, pois minha memória não permite que eu continue, é exatamente aqui que minha primeira argumentação fará sentido. Não me recordo do que ocorreu após deixar o vagão, por isso terei de avançar para a manhã seguinte. Acordei sem sentir qualquer desordem no ambiente, uma manhã banal como todas as outras. Minhas articulações doíam do colchão esburacado, algo facilmente resolvido; levantei-me e estiquei meus braços para o teto, como se tocasse o intocável. Espreguicei até ter o corpo todo alongado como uma flecha que espera os dedos habilidosos de seu arqueiro. E então senti o frio. Algo gelado escorria pelos meus braços até as axilas, provocando um inesperado arrepio. Não queria olhar por medo, mas foi inevitável, a trilha vermelha chamou minha atenção. Assustada, corri até o banheiro para lavar o sangue que constatei que não me pertencia... Mas então de quem era? Minha mente imediatamente lembrou-se da figura de cabelos negros. Clarice! Clarice? Como sabia seu nome? Nunca trocara uma única palavra com a mulher. Deixei a água lavar as evidências do dia anterior, o vermelho escorria pelo ralo. Mesmo após uma noite inteira de sono não estava descansada, as olheiras certamente alastravam-se por minha face. Levantei o rosto para averiguar meu reflexo e vi, lá estava ele, o azul mais azul que já conhecera. Os olhos de Clarice sorriam para mim, enterrados em minhas órbitas! 72


s n o B , s o p tem aqueles

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Minha avó e três dos seus irmãos juram de pés juntos que era um índio, ele se perdera da tribo e foi dar na cidade. Seus outros cinco irmãos, menos preconceituosos, falam num negrinho, só não têm certeza da origem. Meus pais sorriem da anedota. Todos concordam apenas neste ponto: a árvore genealógica da família teve um ramo enxertado, e daquele tio-avô, de que tanto falam e pouco sabem, resta somente uma fotografia embaçada, sem cores; um homem enrugado, com lábios grossos e chapéu de linho, que podia ser tanto índio quanto negro. Restou também um nome, Jacó Bento de Lima, que não devia ser negro nem índio, mas era. Falam da caridade do bisavô, que o adotara de imediato, ainda muito menino. Quantos anos? Ninguém sabe. Calam-se sobre a morte trágica da bisavó, afogada no poço da fazenda. Pensam na maldição que contaminou aquela água e a todos que beberam dela durante gerações. Sentem um arrepio. Que fazenda era essa? Virou cidade, não existe mais. Contam, orgulhosos, que o bisavô apareceu incerto dia com esse menino meio negro ou meio índio, botou no meio dos filhos, batizou com o seu sobrenome. Calam sobre o fato de que, daquele dia em diante, a bisavó viveu amuada. Onde foi parar esse homem? A família ignora minhas impertinências. Teve filhos? Onde estão meus primos índios ou meus primos negros? Minha avó e seus irmãos se entreolham, meus pais pensam um instante. Calam-se. Minha avó diz que, quando geava na fazenda, todos os irmãos corriam a acender tochas para proteger a plantação. Sim, claro, uma correria danada, eles se lembram muito bem. 74



as regras proibiam de cortar as asas dos pássaros ou previamente induzi-los ao desmaio. vivos, capazes de gritar e lutar pela fuga é que deviam ser afogados. os participantes dispunham de um aquário bem fundo e comprido e de suas mãos – hábeis, fortes, cruéis e indiferentes a bicadas, ou não teriam capturado vítimas o bastante. traziam suas gaiolas lotadas. dezenas ou centenas de serezinhos escolhidos e capturados por serem o que eram: alados. e belos, pois belos pássaros eram belos cadáveres em belas fotografias. cada um em sua mesa, diante de seus pássaros e de seu aquário. ao soar do alarme, com rapidez furiosa os arrancavam das gaiolas, os enfiavam sob a água, os seguravam submersos, até… alguns escapavam e voavam batendo nas paredes, no teto, tentando furar uma fuga. vãs batidas de asas. duas concorrentes se destacavam. uma foi a que não aguentou: após ter enfiado uns poucos pássaros no aquário, saltou para dentro do vidro e deitou-se lá no fundo, até seu corpo parar de tremer e descansar. a outra tinha o corpo todo firme, atento. aquelas unhas pintadas de preto, aqueles olhos que doíam em quem olhava neles. tinha uma força feroz, como alguém capaz de tudo. talvez fosse. e em suas mãos, os pássaros… os pássaros. por que ela os matava? por raiva? por raiva, ao pegar um na mão, teria na outra, pronta e afiada, uma faca para enfiar-lhe no peito. uma rápida, firme facada, que bastaria para causar ferida definitiva, mortal. por raiva… com os dentes lhes arrancaria as asas, pisaria neles com os pés descalços para sujar-se de seu sangue. por raiva, cravaria as unhas em seus pescoços. por raiva, se asseguraria de que não sobrasse no mundo um só pássaro vivo. por raiva, não seria capaz de engaiolar aquelas criaturas atrevidas, desesperadamente vivas e voantes. e o fazia, com calma, com paciência. inclusive, selecionava os mais fortes ao invés de capturar frágeis passarinhozinhos desinteressantes. escolhia aqueles que a encaravam como iguais, aqueles com tanta intensidade que quase a desmoronavam. ela, tão forte, tão exímia em se deitar na grama com pedacinhos de frutas ou de pão

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espalhados ao redor do corpo, em alerta espera. e então, quando vinha um pássaro, lentamente se sentava, lentamente esticava o braço e – ágil! – cerrava os dedos. tinha mãos fortes, firmes, seguras. era toda dura, confiante, enquanto outros concorrentes tremiam de nervosismo ou não aguentavam a dor das bicadas. afogava pássaros como se fosse esse o grande propósito de sua vida. afogava pássaros como se ao matá-los, de alguma maneira, se salvasse. ou talvez quisesse apenas não ter que suportá-los vivos. não comemorou a vitória, não considerava coisa comemorável. sequer sorriu. com a mesma dureza inabalável que mantivera ao afogar os seres alados, recebeu a recompensa pelo esforço: o mais recente e cobiçado par de asas mecânicas disponível no mercado. além de quantia em dinheiro suficiente para que, por muitos anos, pudesse sem preocupações aproveitar seu prêmio.

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Para a festa à fantasia, vestiu-se à sua maneira – estrela caída que era. De veludo azul escuro, o vestido que vestia caía-lhe macio e frio

C O N V I D A D A

sobre o corpo-astro. Sua luz própria – às cegas, guiava-a entre cometas e sentinelas fora de órbita; mas ao firmamento voltaria – e nessa hora, a noite faria-se dia. 78


CÓRNEA

páginas de tantos livros que nunca lerei se amarelando na estante com medo do outono e suas folhas marrons obedecem a lei de ventanias e abismos e poemas sem dono desenho em meu pulso com aquela cor de anil safira líquida que se opaca em minhas teias liquida teu nome na pele e começa o abril e tua marca em mim se disfarça de veias desavença essa entre pele e caneta que falha em refletir o que carrego o sangue e a tinta não ficam violeta e essa aquarela insolúvel me faz cego mas as pétalas caem por uma razão os galhos pelados trazem o inverno seus olhos secos pedem a união de cores frias na paleta do eterno

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Teu corpo alimenta meu espírito Teu espírito alegra minha mente Tua mente descansa meu corpo Teu corpo aceita o meu corpo como a um irmão Longe longe, estou em outra estação (Uma outra estação; Legião Urbana)

Pecado. O maior pecado de todos. O mais torpe, o mais podre, o pior. E o mais prazeroso. Não podia negar. Gostava. Doloroso era admitir para si mesmo que gostava. A noção de pecado sufocava o prazer. O arrependimento era quase mais doloroso que a atração sentida. Arrependimento. Pecado. Danação eterna. Atração. Desejo incontrolável. Paixão infernal. Amor. Fugia muitas vezes para não cometer o ato. Todas as vezes em que fugia era apreendido nas malhas do próprio coração. Vítima de um avassalador desejo. Loucura irreprimida. As sensações experimentadas não se comparavam com nenhuma outra que pudesse sentir de qualquer outra forma.

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O êxtase era onírico. Uma explosão dolorosa de angústia e prazer intensos. Algo além de sonhos e de compreensão. Paradisíaco. Infernal. Era o pior ser do mundo, alma apodrecida contaminando todos ao redor. Era a pessoa mais privilegiada, talvez fosse o único a experimentar tais sensações. Delícia e gozo da carne. Pecado e martírio da alma. Gostava. Não podia negar. E o irmão também parecia gostar. *** A primeira vez fora inesperada. Obviamente inesperada. Havia pouca diferença de idade entre os irmãos. O mais velho, vinte e um anos. O mais novo, dezenove. As pessoas não os achavam feios e tinham até razoável sucesso entre as garotas. Estranhamente, em certo momento, percebeu que sentia ciúme do irmão. Através do comentário de um tio: – Fiquei sabendo que está pegando todas as meninas do bairro! Fora o comentário. Surpreso, notou uma ponta de desagrado cutucar o seu coração. Achou que era inveja. Senso de competição. O irmão e ele já tinham saído com várias meninas. Muitas relações carnais. A partir daquele instante começou a prestar mais atenção no mano. Braços fortes. Pernas poderosas. 81


Tronco esculpido. Rosto. Nunca antes achara o irmão tão belo. Irresistivelmente belo. Dormiam no mesmo quarto. Filhos únicos que eram de um casal filosófico-político-religiosamente correto. Observava o irmão trocar de roupa. Sair do banho só com uma toalha envolvendo o corpo. Andar nu pelo quarto. Dormir sem noção de ser observado. Finalmente, percebeu que sentia-se atraído pelo irmão. O choque da descoberta aumentou o magnetismo do outro. Ele parecia inocentemente sensual. Inconsciente da fascinação que exercia sobre o caçula. Os dois sozinhos em casa. O pai e a mãe em visita aos avós maternos. Um jogo de futebol na TV. Lado a lado no sofá, torcendo por seu time em comum. As pernas do irmão atraindo o olhar. Os braços e o tórax. O inquietante e gostoso calor da proximidade. Os olhares se trombando no ar. Desviou os olhos. O coração acelerado. Medo de o irmão perceber os seus sentimentos. De repente, um gol marcado. A alegria. Um abraço de comemoração. Aqueles braços cingindo as suas costelas, as suas mãos apertando as carnes do outro, a quentura dos dois corpos, as coxas roçando, sexo contra sexo. O irmão sentiu a excitação do mais novo. Excitou-se também. O abraço completou-se com um beijo. Prolongado.

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Úmido. Correspondido. Foi esquecido o futebol. A atenção desviou-se do jogo. Não importava a derrota ou a vitória do time. Os calções foram ao chão. As camisetas ganharam o ar. A barba nascente roçando a pele do pescoço. Peito forte contra peito forte. Sexo possuidor. Sexo possuído. Libido inconsequente. Paixão desenfreada. Tesão a dois. Orgasmo inebriante. Carne. *** Não mudaram o modo de viver. Tinham os seus empregos. Os seus amigos. As suas garotas. No quarto em comum, se pertenciam. Amavam-se. Dois anjos. Dois demônios. Dois homens. Dois irmãos. Sexo. Paixão. Amor. Entrega absoluta. Questões fragmentadas. Opiniões em ruínas. Um segredo que os fazia felizes. Abraço sem medo. Beijo sem preconceitos.

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Carícia sem limites. Mal nenhum. Explorando os recantos da boca. Descobrindo as paisagens ocultas do corpo. Conhecendo o relevo da carne. Amor incondicional. Luz do dia. Trabalhos diferentes. Cerveja com os amigos. Garotas e sexo. Alta madrugada. O quarto fechado. O sono dos pais. Os dois em posse. Futebol no fim de semana. Academia de manhã, dia sim. Corrida ao pôr do sol, dia não. Sangue de macho. Suor em ebulição. Aos olhos da sociedade, bons moços. Dividindo o mesmo quarto, dois irmãos. Amantes. *** – Não podemos continuar com isso. – Por que não? – Não é certo. Somos irmãos! – Foi você quem começou... percebi os seus olhos nas minhas coxas enquanto a gente assistia ao jogo naquele domingo... – Eu sei... mas a gente tem que parar! – É? Você vai conseguir? – É pecado... – Será? – A igreja condena.

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– Eu não acredito na igreja. Não tenho religião. – É crime também. Incesto. – Não, não é. Somos maiores. – Isso não importa... – Claro que importa! Se você gosta e eu gosto e nós dois consentimos, não há por que não fazer. – Já disse! É contra a igreja e contra as pessoas... – Quem precisa saber? – Uma consciência pesada já é suficiente para que a gente pare! – Está arrependido? – Muito. – Não seja fraco, assuma os seus desejos! – Tenho namorada... você também... – Gostamos de homens e de mulheres. Se não fosse assim, a gente não fazia o que faz. – Chega! É melhor parar com isso, antes que piore. – Pior não fica. Só melhor... – Você é impossível! – E você? Me beija ou não? *** O arrependimento rasgava a alma. A noção de pecado apunhalava o coração. A perda do paraíso e a ameaça do inferno atormentando o espírito. E o irmão não levava a sério a sua recusa. O irmão mais velho, atraente, dominador, zombeteiro. E ele sem forças para resistir, sempre se entregando. Na ausência dos pais, o irmão exibindo-se no chuveiro com a porta aberta. Contra a vontade, ele arrastado para baixo d’água, com roupa e tudo.

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Na hora de dormir, o irmão desfilando de cueca pelo quarto. Difícil ocultar o desejo sob as cobertas, o outro sempre o descobria e acordavam pela manhã no mesmo colchão. Ou juntos no tapete. O irmão sabia ser indecente. E ele sabia ser carnal. Carnalidade e indecência. Alma e carne. Guerra sem trégua. Espírito em agonia. Lágrimas às escondidas. Deus punindo os seus pecados. O Diabo arrastando-o para o inferno. O irmão mais velho sentado despudoradamente no sofá. O calção marcado pelas carnes volumosas. O irmão mais novo apreensivo, certa ingenuidade arranhada nos olhos, atraindo o outro com a sua agonia. Libertinagem. Inútil negar a atração. O desejo explodia ao menor roçar de pele. Vício. Mescla de medo e coragem. Ousadia e remorso. Luxúria descomprometida. Arrebatadora depressão. *** – Vista a camisa! – Nem bem entrou no quarto e já está me evitando... – Pare com isso! Vista a camisa...

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– Que foi, irmãozinho? Não gosta mais do meu peito nu? – Não quero gostar. – Sinta, estou usando o perfume que você prefere. – E daí? – Cheire o meu pescoço. – Não chegue perto de mim! – Estou sem cueca, irmãozinho... só de calção... – Que inferno! Me deixe em paz! – Vou casar. – O quê? – Ficou surpreso, irmãozinho? É isso aí, eu vou casar. – Casar? – É. Esqueceu que já sou noivo? – Verdade... – Não diz nada? – Seja feliz, mano. – Vou te abandonar. – Quero que seja feliz. – Vou ser feliz. Tenho uma mulher que me ama... – E um irmão que te adora. – Adora mesmo, não é? Sabe, quando eu me casar, você pode ser meu amante. – Amante? – É... irmão e amante. – Não quero! – Tudo bem... Irmãozinho, seja feliz com a sua garota. – Não quero mais saber de relações carnais. – Como? – É isso, mano... Vou para o seminário. Já até vi sobre isso... quero ser padre! – Não acha que é tarde demais?

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– Preciso redimir os meus pecados, salvar a minha alma. – Você não pode fazer isso, irmãozinho. – Por que não? – Eu preciso de você. – E eu de você... mas não quero mais! – Preciso do teu espírito e da tua carne. – Você vai casar. Eu vou ser padre. – Não faça isso... eu nunca mais vou ter você? – A partir do momento em que eu cruzar a porta do seminário, vou apagar a carnalidade da minha mente. Quero me dedicar à religião. – Quando você for padre, eu vou me confessar com você. Só com você! E vou contar todos os meus pecados, os que cometi e também os que não cometi...Vou contar cada intimidade com a minha mulher, uma por uma... Confessarei os meus desejos todos... – Talvez eu me castre para não cair em tentação. – Não seja cruel consigo, irmãozinho! – Minha alma precisa ser salva. – O teu corpo não tem culpa. – O corpo é só um invólucro. A pele que a serpente abandona quando precisa crescer. – Teu corpo é lindo! – Mano, só mais uma vez... – Quero ser possuído. – Eu quero te receber em mim. – Um de cada vez, então... – Certo, mano. – Quieto... palavras são condenáveis! Os corpos falam por si mesmos.

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em branco


Pega um copo d’água. Sai andando pela casa enquanto o toma. Entretanto, derruba parte do líquido ao chão mediante seu então agitamento. Na escada, depara-se com alguém lá embaixo. Alguém que não reconheceu. Seria por culpa da distância? Distância astuta. – Quem é você? Então o homem – o desconhecido lá embaixo –, na verdade um senhor, que lia sossegado um jornal com auxílio de óculos, olha a menina um pouco perplexo, sem entender a pergunta, intolerante para brincadeiras. – Como quem sou eu? – Quem é você? Já disse! – agora o temor afasta-se dela, criando um tom autoritário e exigindo-lhe uma resposta exata. – Sou seu tio, oras! – perde a paciência. – Não está me reconhecendo? Será que está precisando de óculos também? – agora parecia mais compreensivo. Então a garota sai correndo de volta à cozinha (de onde emergiu). Estava aflita, temperada ao desespero. Sabia perfeitamente que enxergava muito bem. E que a questão não era essa: também não reconheceu a voz daquele senhor. Seria, mesmo assim, verdade? Era cética demais para lhe acreditar. Então, visando salvar seu pai (com quem vivia) do pior, busca pelo revólver que sabia que ele tinha em casa, onde, certa vez, ainda mais jovem, descobriu “por um acaso” o esconderijo do objeto – que, aliás, por falta de desconfiança, o pai nunca mais mudara de lugar. Mas não havia revólver. Será que o idoso ladrão disfarçado de seu tio já tinha se apoderado dele antes? Num repente, se lembra de que o solicitado revólver fora enterrado junto de seu pai. 90


Maus Poemas

De maus poemas — como este — se enche a vida. Há espaço pra cerveja, pro cinema, pra punheta e pra maus poemas. Os maus poemas e os beijos sem nome têm prazo de validade. São ocos, necessários, eles, os maus poemas.

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envio cedo as palavras para não ser tarde para as obras: quando te vi sozinha, segui com as minhas manobras, te sonhei e te servi; quando te tive, te perdi. erro por te chamar de dona, minha, lixa ou rubi?

mostro como teu nome circula em mim: engano ledo. quando tentei te transcrever, o papel cortou meu dedo. deixo manchado de sangue meu poema, não meu dia. não te encontrei no dicionário, e “karma” não servia.

quando vivias em outras bocas, eu não cria em ti. ouvia falarem, via te amarem, não te via em si. mas, com minhas mãos nessa cintura, a vontade veio de te falar, te consumir, te consumar sem receio.

e em teu seio fomentei nosso relacionamento. minha insônia é teu cheiro; até hoje és meu complemento. amônia ou brigadeiro, começas todos meus capítulos. versos nunca te explicam, esse direito é só dos títulos. 92


O OO RL MF Ele me disse: segura! E eu não obedeci.

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Segura não é mais uma ordem. Segura não é mais verbo imperativo. Segura, agora, é definição. adjetivo. Ele me disse, mais uma vez: segura!


O G O IA O choro, o corpo, a vontade, a voz E eu soltei qualquer fardo ou corrente. Ele gritou: segura!

E eu, tranquilamente, sussurrei: segura eu sou.

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ÓDIO AO

TERCEIRO MUNDO

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O

Em meu horizonte brilha em pedra a ponte sobre o metal Água cinza, nuvem prata, Cocaína corroendo minha carne, Sabor de língua, beijo e pelos sobre mim. De descer ao sul do trópico eu nasci errado, E da vontade de subir o monte, descobrimos que no fim Estamos todos iguais. Sina torta, essa de viver em pontes sobre abismos De cruzar de carro o caminho do mar Envolto em toda fumaça que podemos conceber. Aos 25 anos eu já me estou dissolvido E minhas vontades morrem no limite da sociedade que eu sou, Esbarram na moldura flexível em que pinto o quadro-eu. Nesta noite de não sermos nada, Neste terceiro mundo que já me foi muito cruel Vem-me a vida sem moral, A existência que de si não se declara. 96


Que sabe a vida da Times Square? E que sabe da vida a ponte Rio Niterói? Que sabe a dicotiledônea do resto que lhe cerceia? O bom da vida é que ela não julga, A miséria é que estamos acordados. Estamos acordados na luta de classes E vivendo imersos na consciência histórica, No saber que acima de mim os homens reinam E que abaixo de mim sou senhor de escravos. A treva da vida é que sem Deus Nossa única justificativa se tornou matar aos outros. E que nesse trópico decadente, ao sul do mar do sul, Onde São Paulo não é Atenas E o Rio me afoga em lama turva, Só escrevo uma ode Como outra maneira de odiar. Eis o meu lugar elevado em meio à decadência universal

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s.m. (relacionar + mento → lat. relatione) 1- Ligação de amizade, afetiva, profissional, etc., condicionada por uma série de atitudes recíprocas; relação. 2- Ato ou efeito de relacionar (-se). 3- Capacidade de comunicação.

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Parte 1: Ian

Para a tela do celular, sorrio São meia noite e vinte e dois Meu corpo treme, mas não faz frio Dormir? Isso fica pra depois Conheci Isa, moça elegante, Num app de relacionamentos Em dois dias de conversa incessante Dominou todos os meus pensamentos Dada a má fama do aplicativo Tão cedo o baixei, fiquei receoso De desenvolver sentimento afetivo Por membro com perfil enganoso Com Isa logo estabeleci diálogo Certamente seu perfil é original: Detentora de um gosto ao meu análogo, Seis fotos e uma descrição legal Nós conversávamos sobre tudo Como conhecidos de longa data Moça repleta de conteúdo Fora o jeito meigo como ela me trata Até mudei o plano de fundo Da nossa conversa virtual Para sempre embelezar meu mundo Isa, com seu olhar fenomenal

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Foi no final deste segundo dia Que tomei importante decisão E em um ato de pura ousadia Abri-lhe todo o meu coração “Ianzito”, “fofo”, “amor” e “lindo” Frutos de nossa intimidade Vocativos meus dela advindos Já compunham a nossa normalidade As três palavrinhas famigeradas “Eu amo você”, então digitei Temendo a resposta de minha amada Por quem em tão pouco tempo me apaixonei Tratando-se de sentimento tão belo Digitá-lo é, de fato, deprimente Não enviei um áudio em apoio à Isabela Que me disse estar bem doente Após segundos de nervosismo aflitivo Isa responde da melhor maneira Também tinha receio do aplicativo Mas sua recíproca é verdadeira Agora que já nos declaramos Todo aquele frio ficou bem quente Sensação nova em meus dezoito anos Não o amor, e sim ter pretendentes.

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Parte 2: Isa

Eu sou o César, um homem qualquer Divorciado e pai de dois filhos Cujas guardas são de minha ex-mulher E a minha história eu compartilho Eu não trabalho, desempregado Sei que pareço um homem banal Porém nada tenho de fracassado Tratando-se do mundo digital Barriga de chopp e calvície avançada Não possuo especiais adendos Jamais consegui namoradas Em plataformas de relacionamento Cansado de tanto descaso Ao meu aspecto físico antiquado Num tedioso dia, criei por acaso No app, um perfil falsificado Com seis fotos de moça aleatória E descrição feita com cautela Do primeiro nome que veio à memória Nasceu Isa, ou se preferir, Isabela O meu sucesso foi imediato Todo mundo gostou de mim Eu me senti um flertador nato A vida, afinal, não era tão ruim

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Temia que o sucesso fosse efêmero Por isso eu precisava ser pragmático Caso eu errasse a colocação de gênero Era só culpar o corretor automático A Isa (ou eu) acumulou (ou acumulamos) Dezessete crushes em apenas dois meses Sendo o critério de crush que decidimos Falar com a pessoa várias vezes Certos momentos me pego pensando Em como alguns caras são bonitos Mentira, devo estar delirando A Isa é só um perfil maldito O crush dezoito apareceu, então Ian, de amor muito necessitado Bastou um pouquinho de atenção Para ele ficar apaixonado Garoto deveras carente Seu desejo por áudios era um entrave Tive que inventar que estava doente Para não mandar meu vozeirão grave Em dois dias Ian se declarou Mais um nome em nossa lista comprida Isa ou César? Já nem sei quem sou Nem o que estou fazendo com a minha vida...

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P O E M A D O S D I A S 103


o corpo sente o pesar dos ciclos repetindo-se através dos tempos sente o passar de todos momentos sente o remoer dos acontecimentos o corpo, esse é o que mais sente sente frio, sente sede, sente dor ressoa no outono o ar empoeirado revive as canções de amor ele sabe, o corpo, quando terminou mesmo que, desavisada, eu ignorei os sinais que o corpo mesmo revelou esqueça da poesia que eu escrevi de mim mesma, me desfaça por aí

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porque ao menos eu tento reerguer a memória do nosso passado e da nostalgia que nos consumiu durante anos e anos. Por favor, deixe-me saber se você vaga por aqui, pois a vida tem roído minhas unhas desde que não tive tempo nem pra me despedir. desapodera de mim, que o corpo sente, sente frio, o corpo sente a garganta secar alérgica dos álbuns que os seus dedos gélidos me propõem agora relembrar não me reprova, pois ainda sou corpo sete palmos de angústia desço de novo desapodera de mim, pois me enfraqueço e não vou durar.

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RE MEN DOS 106


Fico imaginando como deve ser Costurar o céu, ponto por ponto, Reunir novelos, histórias e contos Num cenário perfeito Onde os sonhos também têm direito De revirar os medos e os próprios defeitos, Sendo a aquarela dos olhos que traçam O amanhã remendado ao som de uma prece. Delicada minúcia entre fios de areia, Emendas infindas sob o olhar inocente. Mortal como todos, cansa-se ao poente, Adormecendo na mesma carreira, Tecendo com dedos já desatentos O cobertor do mundo em seu repousar. E na imperfeição desse momento, Por entre pontos desses remendos, Surgem divinos brotos de luz Nessa costura divina da noite Que guia a esperança em mim. Pois, afinal, isso tudo me diz Que atrás deste tecido, Onde minhas histórias fazem sentido, Reside o teu sorriso feliz Que concede o brilho E esses pontos produz. Assim, nesses novelos do céu, Vou te seguindo distante de ti.

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D

Ruí os 108


Mais um dia de chuva, chuva intermitente. Uma hora, torrencial feito baldes d’água caindo do céu, outra hora um chuvisquinho miúdo, miúdo. Apoiando-se na janela aberta do quarto escuro, Tânia fumava um cigarro e escutava a água batendo no telhado. Sem aroma de terra molhada no ar. Em volta tudo concreto, concreto duro, cinzento e triste. Também, o que ela queria? Os cidadãos da urbe não tinham esse direito, tinham? O perfume da terra molhada, das flores, do mato? Não, não, nem pensar. Só ao ar poluído e ao fedor do esgoto é que tinham direito. Afinal, não tinham escolhido isso para eles mesmos? Ela suspirava entre uma tragada e outra. No entanto, não eram nem os cheiros que a incomodavam tanto, e sim os barulhos. Do que mais sentia falta era da quietude do interior, do céu pipocado de estrelas à noite no sítio, do cricrilar dos grilos, das mariposas se debatendo na lâmpada pendurada fora de casa. Já aqui na grande cidade com nome de santo (mas que de santa não tem nada), a jovem moça tinha de dormir com tampões nos ouvidos. Não bastasse o barulho dos carros, das buzinas ensurdecedoras, da música alta da rua, os vizinhos do apartamento ao lado viviam aos berros, fazendo um bafafá enquanto brigavam, quase que diariamente. Havia perdido as contas de quantas vezes tinha ido bater à porta deles. Nada se resolvia e as brigas entre o casal continuavam cada vez mais intensas, um quebra-quebra de utensílios domésticos sem parar, sempre perto da hora do jantar. Mas hoje, particularmente hoje, uma trégua havia se estabelecido, e então Tânia podia ouvir a chuva com tranquilidade. Terminou o cigarro e apagou a bituca num cinzeiro preto. Precisava parar com aquele vício, pensou. Ficou mais um tempo olhando para a chuva, refletindo sobre a vida. Os ouvidos atentos. Pelo quarto, uma porção de coisas se espalhavam: roupas sujas, copos e garrafas longneck de cerveja. Sobre a escrivaninha, pilhas e mais pilhas de papéis velhos, contas vencidas e notas fiscais amassadas. Precisava também dar fim naquilo tudo e arrumar o quarto, mas continuava protelando tudo o que era importante. Precisava estudar mais para a faculdade, precisava arranjar um emprego melhor, precisava sair mais de casa, precisava de tantas coisas, tantas, tantas, tantas. 109


– Que bagunça! — disse consigo mesma, quase num sussurro. Do meio do quarto, ficou olhando em volta. Não sabia nem por onde começar. Percebeu, então, que havia esfriado e pegou, do guarda-roupa de portas que rangiam terrivelmente, uma blusa de lã verde-musgo, a qual vestiu por cima da camiseta branca encardida que já estava usando. Calçou os chinelos havaianas e foi para a cozinha. Os pés se arrastando. Passando pela sala, avistou a amiga com quem dividia o apartamento, Marina, toda esparramada no sofá dormindo. Na velha TV de tubo, um filme de ação hollywoodiano com muitas explosões estava passando. Perguntou-se como é que Marina conseguia dormir com tanto barulho. Era um mistério. Prosseguiu para o outro cômodo. Abriu a geladeira, uma única cebola jogada na última prateleira. Suspiro. Então vasculhou os armários em busca de alguma coisa. Evitava ao máximo fazer qualquer estardalhaço. E isso não era nem por preocupação de acordar sua amiga, mas preocupação consigo mesma. Encontrou um pacote de bolacha de gergelim Piraquê. “Sorte!”, pensou. Pôs água pra ferver e decidiu acender mais um cigarro enquanto esperava a fervura subir. Ficou andando de um lado para o outro. Sem querer, esbarrou num copo que estava na beirada da pia e ele se espatifou no chão, fazendo um barulho estridente. “Merda”, pensou. Pousou o cigarro num pires que estava próximo e foi buscar vassoura e pá. Quando havia recolhido todos os cacos, seus ouvidos detectaram que a água na leiteira já borbulhava. Apagou o fogo e passou um café. Pegou a caneca e se sentou à mesa de madeira toda estropiada, ora bebericando o negro líquido, ora dando mordidas na bolacha. O relógio na parede indicava oito e quinze da noite. O ponteiro dos segundos corria ruidoso. A cozinha também estava uma bagunça completa. A louça se acumulando monstruosamente na pia. Em meio ao ruído da chuva lá fora, os ouvidos sensíveis de Tânia também identificavam o som de gotas pingando da torneira sobre uma tampa de panela. Aquilo a incomodava profundamente. Levantou-se e tentou fechar o máximo possível aquela torneira. O estampido parou. Ficou satisfeita com isso e deu continuidade à sua “janta”. Então, do outro lado do apartamento, ela ouviu o celular

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tocando. Só engoliu o café e saiu correndo para lá. Chegou esbaforida no quarto e, quando estava prestes a atender, o toque parou. Pegou o celular da escrivaninha e deitou-se na cama de solteiro. Na tela, um aviso de ligação perdida de um número bem conhecido. Ficou pensativa olhando para a tela brilhante por alguns segundos. Então o celular vibrou e três mensagens chegaram. Elas diziam: “Oi, T.! Eu sei que vc tá aí! Fala comigo, pfv!”. Não sabia o que responder. Desligou o aparelho e o enfiou debaixo do travesseiro. Fechou os olhos. Um turbilhão de pensamentos em sua mente. Não sentia um pingo de sono. Aliás, estava muito cedo ainda para dormir, não estava? Deitada de costas e de braços cruzados sob a cabeça, ficou ouvindo o som da chuva e as buzinas longínquas dos carros. E, de repente, também o ronco alto da amiga vindo da sala, as explosões do filme passando na televisão, os trovões, o tic-tac de um relógio próximo, pessoas conversando em algum canto da rua, cães uivando perdidos por aí, o samba alto do boteco da esquina, o próprio bater do coração aflito. Todos os sons e ruídos vindos de uma vez. Estava ficando louca? No escuro, tateou desesperada o criado-mudo ao lado em busca dos seus tampões auriculares. Fora o seu maior erro ter vindo para a metrópole? Não, não era isso. Era? Só queria paz, um pouco de paz consigo mesma. Estava tão cansada de tudo… Por fim, encontrou os seus tampões miraculosos. E, como em uma espécie de ritual, a cabeça ligeiramente levantada, colocou-os com o devido cuidado, primeiro no ouvido esquerdo, depois no direito. E, então, silêncio. O mais profundo silêncio.

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Mi menor Três em canções Com cuidado para não derrubar nenhum gole d’água, Mitsuo se sentou, enxugando o suor que escorria pelas têmporas. A dor nas costas e o cansaço apegado ao corpo não o impediram de erguer o olhar: em breve, não se veria ali a terra, coberta que estaria por um manto verde a se estender de rio a rio; flores despontariam, como raios de sol que desabrocham através de um céu cinzento; haveria calor, comida, festas. Mas, assim como os dias secos e curtos de agora, também a próxima estação passaria; quase nada, afinal, era igual à neve no topo de montanhas, sempre aninhada junto das nuvens, brancuras a se confundir. Mitsuo sabia que tanto ele quanto a futura vegetação perderiam o viço, com a diferença de que ela, pelo menos, o recuperaria com renovado vigor na estação seguinte. Ele tomou outro gole d’água, a sede já um pouco aplacada; por descuido, um filete gelado caiu e percorreu-lhe o pescoço e o peito. Então se levantou e voltou a trabalhar a terra. Até o sol se pôr, não ergueu mais o olhar. * * * Ao ouvir a chave se batendo contra a fechadura, dona Mirtes abaixou o volume da TV e ficou prestando atenção, como costumava fazer. Conhecia a tremedeira, o barulho dos sapatos à procura de apoio, os palavrões sussurrados (ele nunca se lembrava de que ela o esperava acor-

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dada). Com os olhos fechados, dona Mirtes fez suas orações, enquanto a porta se abria. Ele entrou, ela não resistiu; levantou-se para ajudá-lo, ouviu enquanto ele negava o óbvio, que não precisava de ninguém, podia se virar sozinho, que besteira. Dona Mirtes o ajudou a cambalear até a cama, a se desviar do balde (que ficava no lugar do antigo criado-mudo) e a se deitar de bruços. Ela levou-lhe um copo d’água antes de voltar para a televisão. Dona Mirtes ficava feliz que, por coincidência ou hábito, a chegada dele não interrompia o último bloco da novela. * * * Sentada na primeira fileira, Milena assistia atentamente ao último ensaio-geral. Em algumas horas, o auditório da escola se encheria de pais, tios, primos e avós, que se sentariam ao lado dela para prestigiar seus alunos e a adaptação deles da Odisseia. A ansiedade da professora procurava brechas e frestas para se desprender, partes do corpo que lhe servissem de veículo: ela dobrava e amassava com insistência um dos convites para a peça; depois, estalava os dedos; aí voltava a amassar o papel. No palco, Ulisses (de doze anos) contava a seu pai, Laertes (também na sexta série), um resumo de suas aventuras. Devia ser a décima ou vigésima vez que Milena via a cena, sem contar as montagens de outras turmas — ano após ano, seus alunos pareciam sempre se encantar com mitologia grega e sempre escolhiam a Odisseia como peça de novembro, assim como ela sempre ficava ansiosa com a reação das famílias à peça. Lembrou-se das diferentes versões de Homero que havia supervisionado: uma indígena, outra em São Paulo –ambientada no horário do rush–, outra no espaço… Crianças que se revezavam na pele de Ulisses, como as diversas vozes que contaram sua história ao longo dos séculos, os múltiplos leitores que decoraram os versos edições afora, os tantos atores que o encarnaram em diferentes filmes, vídeos, fitas e palcos. E, conforme sua imaginação atravessava tantas adaptações, ela guardou o convite na bolsa. Entrelaçando os dedos, sorriu e soprou para o Ulisses da vez uma fala que ele havia esquecido.

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Nadine morava sozinha e isso a aprazia; isso quer dizer que até mesmo Ezequiel, sua atual e duradoura paixonite, não era o bastante para fazê-la querer mudar tal situação. Agora, diante da porta da sua quitinete, ela buscava com os dedos roliços as chaves para poder entrar em casa e repousar em paz depois do expediente, antes que desse de cara com algum conhecido. Era um dia quente, e Nadine havia acabado de descer de um ônibus lotado, no qual ela viera espremida, segurando nas hastes verticais, já que as horizontais eram altas demais para ela. Por essa razão, ela agora estava suando na testa, nas axilas, nas costas e no desproporcional nariz. As mãos encharcadas de transpiração, assim como o resto do corpo, ergueram da bolsa um objeto brilhante que se encaixava perfeitamente na fechadura. – Com licença – disse para a porta e entrou. Sua porta era alta e exibia um ar de superioridade para Nadine que poucos conseguiam: nunca respondia aos cumprimentos da moça e tampouco dispensava os agradecimentos dela quando passava. Tinha uma bela tonalidade em mogno que causava um pouco de inveja em Nadine e linhas paralelas estéticas no batente contrastantes às curvas do corpo da moça. Ela só tinha um defeito: era caolha. – Obrigada! – agradeceu Nadine, fechando a porta enquanto olhava diretamente para seu único olho, repleto de constância e sabedoria. Ela era a maior conselheira de Nadine e, mesmo silenciosa, sempre apresentava seu ponto de vista quando alguém queria entrar, para que então ela pudesse decidir se ia atender ou fingir estar dormindo. Após entrar, Nadine observou que sua quitinete estava do mesmo jeito que ela havia deixado antes de ir trabalhar. Logo de frente da porta, ao fundo, sua cama estava mal arrumada, como sempre. Do lado, sua escrivaninha, ao contrário, impecavelmente organizada, com um computador sobre ela. Na parede contrária, o guarda-roupa permanecia costumeiramente fechado e acompanhado de uma mala verde musgo coberta por roupas amarrotadas. Por último, no meio do cômodo ficava parado um ventilador empoeirado e mirrado, provavelmente desprovido de tecnologias de ponta.

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A moça caminhou até a cama, se despiu e caiu sobre ela. Quando fazia isso no final do dia, só algo muito importante a fazia sair do lugar. Algo como se esquecer de ligar o ventilador. Assim, esticando a perna com esforço para não perder o equilíbrio, Nadine apertou o botão do meio do aparelho, que passou a gerar uma corrente de vento de baixa intensidade e alta sonoridade. – Será que vai fazer frio nesta semana? O ventilador cansado girava sua cabeça de um lado para o outro, soprando a resposta negativa: – Não. – Como você sabe? Eu li na previsão do tempo do jornal que vão ter pancadas de chuva amanhã – respondeu Nadine, com propriedade, se sentando sobre a cama e se abanando com as mãos, talvez por estar insatisfeita com o serviço do ventilador ou para provocá-lo por ter respondido discordando dela. – Quer dizer, eles costumam acertar... – Não. – Costumam, sim. A meteorologia é uma ciência exata que... – Não. – Você sempre me responde negativamente, ventilador. Não conhece outra palavra? Dessa vez ele não respondeu, e não precisou. Seu movimento para a esquerda e para a direita era bastante autoexplicativo, o que fez a moça sorrir empaticamente. Ela conhecia muito bem o companheiro ranzinza que tinha. Desde que o recebeu usado da sua avó, quando se mudou sazonalmente – de dezembro a fevereiro –, era seu melhor amigo naquele cubículo. O aparelho senil aparentava a idade que tinha, mesmo com as tentativas da moça para amenizar isso, como uma demão de tinta para as raízes de ferrugem ou mesmo uma prótese de hélices que ele naturalmente havia perdido com o tempo. Conformada com as respostas do ventilador e com a condição climática que aparentemente não mudaria, a moça se levantou e foi em direção ao banheiro, o qual se situava próximo da cama, para tomar banho. Após alguns minutos fechada lá dentro, ao som da água caindo do 116


chuveiro, ela saiu, acompanhada de uma nuvem de vapor. Coberta apenas com a toalha de banho, ela caminhou até a cama e arremessou sua roupa íntima na pilha de roupas em cima da mala verde musgo ao lado do guarda-roupa. – Ai! Que diabos? – Desculpe... – Mas o que é isso...? – respondeu a mala, com certa impaciência. Ela era relativamente grande, mas era mais alta do que espessa. Tinha um bom acabamento, mas não era das mais finas do mercado. Além disso, suas rodinhas estavam bastante gastas; mas, mesmo assim, era considerada uma senhora enxuta. – Ah, não, outra calcinha suja não! – Ora, você queria que estivesse limpa? – Eu prefiro, né, do tipo quando você volta da casa da sua mãe... – Então você fica reparando nas minhas roupas quando viajo? – É lógico – respondeu a mala, com deboche. – Todas as malas fazem isso... Nadine riu, um tanto pasma. Foi em direção à mala, pegou as roupas que estavam amontoadas nela à la Carmen Miranda e as jogou na máquina de lavar. – Para nós, malas de viagem, o que se carrega dentro de si é mais importante do que nossa aparência exterior. – É mais ou menos isso para a gente também, mas a maioria das pessoas não leva a sério – respondeu Nadine, resignada, pensando no rostinho perfeito de Ezequiel. – Bem, pelo menos parecem interessantes as conversas de vocês nas viagens. – Jamé! Um bando de nécessaires ranhentas fugindo das suas mães e causando um caos no bagageiro, um grupinho aqui ou ali mais jovem de malas de plástico estampadas em pop art reclamando que estão gordas... Dispenso comentários. Não se fazem mais viagens como antes. – Nossa! Por um momento achei que vocês fossem mais comportadas – disse a moça, contendo um riso. – Agora eu sei por que tudo chega numa bagunça...

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– Não nos culpe por sua falta de organização, querida – pigarreou com sarcasmo. – Mas, de qualquer forma, nem todos os objetos são o que parecem. – Como assim? – As toalhas de banho, por exemplo, detestam se aventurar por entre a anatomia humana. No entanto, elas são as maiores inventoras entre nós, pois têm acesso às melhores ideias durante o banho das pessoas... – disse a mala, enquanto Nadine se mostrava interessada. – Tem também as xícaras, que sabem mais da arte de flertar do que um simples “posso pegar um xícara de açúcar?” pode dizer. – Não acredito! – É, pode crer... As malas podem saber muito sobre o que é importante na vida das pessoas, o que elas mais carregam consigo. Mas nós infelizmente só temos olhos para suas roupas, sapatos, cosméticos... Aí acabamos nos tornando muito superficiais, sabe? – Eu sinto muito. A mala assentiu como se não ligasse muito para isso. – Hum... E as portas? – continuou Nadine, caminhando em direção à entrada com curiosidade, nas pontas dos pés, como se temesse que sua conselheira caolha fosse sair do lugar. – Elas não têm nada a dizer? A moça então parou próxima da porta esbelta, que continuava sem dizer sequer uma palavra. Com os pés, empurrou para o lado um caixote de uvas vazio, que ela pegara numa feira, deixando-o bem embaixo do olho mágico. Nadine era baixa demais para consultar o dispositivo e por isso precisava subir em cima do caixote para manter seu olhar numa altura digna do olhar da porta. – Ah, essas daí acham que são cheias de sabedoria porque quando se abrem são sinônimo de oportunidades... – disse a mala verde musgo, intrometendo-se. – Mas só sabem mesmo é ranger... – Psiu – disse Nadine. – Quero ouvir o que ela tem a dizer. – Nadine! – disse uma voz grave vinda da porta. A moça quase caiu para trás, segurando com força a toalha que a cobria, para não se despir. Com espanto, ela foi se aproximando da porta, 118


imaginando de onde exatamente o som tinha saído. – Eu achei que sua voz fosse mais feminina... toc! toc! toc! – Ah! – murmurou Nadine, subindo rapidamente no caixote e olhando pelo olho mágico. Ela viu uma barba bastante escura e falha, olhos verdes e um nariz romano que estava no limite para ser considerado ossudo, todos esses dispostos num rosto de expressão distante que pertencia a Ezequiel. Com um rangido em resposta às indagações anteriores de Nadine, a porta se abriu e ela pôde finalmente ver o rapaz de corpo inteiro. – Olá, Ezequiel. – Nadine. Escuta, por que você disse aquilo? – Ah, não era nada... – disse ela, surgindo um rubor em suas bochechas pálidas. Ainda não havia se lembrado de que só estava vestida com uma toalha. – Deixa pra lá. Em que posso ajudar? – Eu só vim aqui pra te ver, mesmo – respondeu, olhando para ela. Deixou de mirar em seu rosto e passou pelo corpo coberto pela toalha, até chegar às pernas nuas da moça. Houve um estalo quando se deram conta. – Putz, que vergonha! – disse ela, escondendo o corpo atrás da porta. – É brincadeira. Será que eu, er... – disse ele mostrando o objeto que estava em suas mãos, o qual ela sequer tinha notado. – Posso pegar uma xícara de açúcar? Com um olhar discreto aos companheiros de quarto, Nadine notou uma inquietação da mala verde musgo. Ao contrário do seu amigo ventilador, Nadine sorriu e acenou positivamente.

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A equipe Coordenação geral Victória A. M. Gerace Gabriela Almeida Mendizabal Editorial e revisão Victória A. M. Gerace (coordenação) Elisa Kemil Casotti (coordenação) Eduarda Figueiredo Ribeiro Érika Tamashiro Gabriela Almeida Mendizabal Gabriela Barbugian Azevedo Giovanna Romera Rossi Heloísa Fernandes Muriano Júlia Gretz Karen Kuniyoshi Nakaoka Larissa Prada Letícia Yumie Iasukawati Maria Beatriz Rosa Mariana Lari Canina Michelle Mayumi Oshiro Nathália Caixeta Francisco Pedro Tajiki Salles Thaísa Carvalho de Oliveira 120


Divulgação e redes Marina Fortes (coordenação) Victória A. M. Gerace (coordenação) Elisa Kemil Casotti Gabriela Almeida Mendizabal Heloísa Fernandes Muriano Letícia Shine Mariana Lari Canina Nathália Caixeta Francisco Arte Camila Lie (coordenação) Rafaella Carrilho (coordenação) Elisa Kemil Casotti Giovanna Romera Rossi Heloísa Fernandes Muriano Letícia Shine Mariana Lari Canina Nathália Caixeta Francisco Capa Camila Lie Rafaella Carrilho

Apoio Com-Arte JR. Orientação Prof. Dr. Thiago Mio Salla

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A Originais Reprovados é uma revista literária produzida anualmente pelos alunos do curso de Editoração da Escola de Comunicações e Artes e conta com textos escritos por estudantes de toda Universidade de São Paulo e com o apoio da Com-Arte Jr.

O curso de Editoração, oferecido na ECA-USP desde 1972, une a tradição acadêmica, literária e editorial às inovações constantes das áreas de comunicação e de design. Para além dos livros impressos, contempla a edição de revistas, ebooks e outros meios de comunicação.


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