Originais Reprovados #14

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EDITORIAL Desde 2005 a Originais Reprovados traz ao público poesias, contos e crônicas produzidos pelos estudantes da Universidade de São Paulo. A revista é produzida anualmente pelos alunos do curso de Editoração, responsáveis por todo o processo desde a seleção de originais até a sua distribuição, passando pela revisão, diagramação e arte. Em sua 14º edição, trazemos aos leitores textos de diversos institutos da Universidade de São Paulo, sendo eles EACH, ECA, EEL, FAU, FFLCH, IF, IME, IRI e POLI, o que demonstra a diversidade de nossos autores, assim como dos assuntos retratados em suas produções. Os textos escolhidos abordam temáticas como a questão indígena, identitária e de saúde mental, importantes para a pluralidade de pensamento e de expressão. Acreditamos que a arte da escrita tem como objetivo causar emoções e reflexões, portanto organizamos a revista a começar por textos suaves, progredindo para os que promovem discussões sobre assuntos em pauta na atualidade. A edição digital contém mais treze textos que figuram a seção Escolhas da Comissão, além de artes estendidas que não puderam ser inseridas na edição impressa. A equipe agradece às autoras e autores que enviaram seus textos e deseja a todos uma ótima leitura! Equipe Originais Reprovados #14 https://issuu.com/originaisreprovados https://www.facebook.com/revistaOR


A Bola Azul

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Fogo

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Poema da Partida Praieira

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Casa da Dona Alice

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Soneto Espúrio

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O descalço, seu Emanuel

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A Bagunçada Casa de Rosemary

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Node

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A Lacuna

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Gramatura

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Poema Passageiro

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Sobre os Tamoios

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Sobre o Inalcançável Tempo

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Da Guerra às Rosas

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Zé Povinho

50

O Canto Maldito do Meu Corpo

52

O Pavó

54

A Boneca

58

Maria, Cave

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Hipótese

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Escolhas da Comissão Sonho da Vó

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Dia Comercial #001

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Ansiedade

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Poema Natimorto

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A Nota

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Você Cruzaria a Bifrost Sem Olhar Para Trás?

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Inveja

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O Quadrado de Sofia

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O Choro de Sebastião

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Chinelo Virado

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Árvores Não Reclamam

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Desenho

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Sol Salgado

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Autores

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Uma bola azul pula pelos campos de centeio. Para cima e para baixo sem parar, carregada pelo vento e pelo sonho de um menino. Em seu quicar incessante, cruza a fazenda toda e segue além. Atravessa o rio que marca o limite da propriedade e salta livre pela floresta adiante, incapaz de ser impedida pelas cercas de madeira, tão pequenas em comparação ao céu acima e ao caminho à frente. Passa por reinos encantados e sombrios bosques de elfos. Atravessa de uma ponta a outra uma nave espacial, e desliza suavemente a lateral de uma enorme pirâmide egípcia.

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A bordo de uma fragata, a bola azul enfrenta piratas e sereias. Desembarca na Inglaterra vitoriana pronta para resolver mais um mistério de Sherlock Holmes, depois voa pelo céu de Nova York tirando gatos de árvores e salvando garotas de vilões megalomaníacos. O vento sopra mais forte, e logo a bola está pulando pelos corredores de um hospital e curando as pessoas que aparecem machucadas. Com um giz, explica diante de uma multidão de crianças os mistérios do universo, mas não antes de mergulhar em um prédio em chamas para resgatar um bebê indefeso.

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Mas, como todas as coisas,

o ven to ac aba, ea cain d

o,

e cai

ndo,

e cai

ndo.

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bola se vĂŞ


Se espatifa diante de um prédio de escritórios na Avenida Paulista, e o som de seu estouro não é maior do que o estalo que o lápis faz ao perder a ponta na questão 54 da Fuvest. Mais de vinte anos se passam e a bola continua abandonada em um velho galpão. Sente falta do vento e do brilho do Sol, sente falta de matar os dragões que se escondiam por trás das nuvens e de resgatar as princesas indefesas dos castelos de diamante, sente falta do menino.

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Mais dia, menos dia, só o que há é a escuridão. Subitamente, as sombras são quebradas por uma estreita faixa de luz que entra por uma porta aberta. — Aqui, filho! Essa é a bola azul que eu te falei — diz o homem para o garoto a seu lado. — Posso ficar, papai? — Os olhos do garoto brilharam durante o pedido, e a bola sente uma leve brisa a agitar. — Claro! Divirta-se e tenha cuidado! Garoto e bola saem correndo pelos campos, e o vento traz de volta as aventuras do passado. Azul, a bola segue em direção ao horizonte. Azul, o céu se estende diante do menino. Azul, a lágrima escorre pelo rosto do homem.

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FOGO É um jantar de terça-feira O sol posto e a luz acesa Você chega na casa E acende a lareira Mesmo que seja só terça-feira

Você é madeira, brasa e silêncio É combustível da reação É latente, mas incendeia Me deixa livre na sua teia Guia o meu passo sem dar a mão

É casual e é rotina Eu quem começo, você termina E na lareira, a crepitar Tem fogo e luz, carvão, calor Fumaça, cheiro e o seu sabor

Pirotecnia nunca é velada A chaminé exala perfume seu A cada jantar, uma nova fornada A vizinhança sabe o que aconteceu Sentados à mesa, bocas ocupadas Quase nenhuma palavra foi dita A fumaça bafora calor pela casa Os vidros suam mensagem transcrita

É refeição que não sacia Eu mastigo, mas que comida? Apaga a luz que não precisa Nesse jantar, na nossa ceia O que alimenta é a fogueira

Fogo queima até ser apagado Chama se vai Cada um para um lado Tudo o que eu vejo é fuligem fina Eu quem começo

Língua de fogo sobre o carvão Eu sou agito, ignição Labareda que envolve a lenha Quando soprada, só queima mais Defuma, aquece e satisfaz

Você termina

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Poema da partida praieira Nesse movimento de onda, como quem não sabe se fica ou se resolve partir, eu tive uma escolha a tomar.

Eu, que tanto escrevi em tuas areias, apreciei os vários sons de tuas gaivotas e senti fundo a tua suave maresia, vejo que já não posso mais usufruir do calor de teu sol.

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A praia, desde que cheguei, já é outra. A maré também já não é mais a mesma, e outros banhistas requerem a minha e a tua presença.

Portanto, não cobrarei o mergulho nunca dado, apenas partirei. Mesmo assim, não penses que saio arrependida, pois, se o tsunami não vier, ainda serás uma praia a que posso voltar.

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Casa da Dona Alice Sabe, eu odeio aranhas. Não suporto olhar a sedução letal do caminhar daquelas oito patas. Mas tem uma aranha, percebi, que acho tão meiga! Não sei se por ela ou se pela situação em que a encontro. Essa pequena e preta aranha mora na campainha da casa dos meus avós. É tão simpático e inofensivo o seu comportamento… Ao mesmo tempo, reverente e cordial. Afinal, sou convidada de honra dos meus avós, que moram na casa da campainha onde mora tal dona aranha. E, vista a frequência com que nos encontramos, acho que já temos proximidade para que eu a declare “dona aranha”, e não mera “aranha”, não Aracnus sp. O estranho é que, apesar da nossa intimidade, ela ainda se intimida com a minha presença. O respeito que ela demonstra a mim se vê na seguinte forma: Parada na superfície da caixa antiga e envelhecida da campainha, fica, em formatinho aconchegado, na medida que permitem as suas articulações. Quando, naturalmente, aproximo meu dedinho do botão amarelado, que conta com uma mancha circular mais clara no meio, a moça aranha corre para um buraquinho da própria caixa do aparato e se esconde. Ou pensa que se esconde. Sei eu que ela deixa à mostra duas das oito patinhas torneadas, que ela deve crer ter conseguido ocultar E assim é toda vez. E assim era toda vez

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Acredite quem quiser, mas a modernidade atingiu a vizinhança dos meus avós, a qual é composta majoritariamente por tios-avós meus. A campainha antiga, com microfone de tirinhas vazadas, foi substituída por um proto-robô, com um botão de luz azul laser e um olho de big brother que até de noite enxerga. Enxerga bem, talvez melhor que meus avôs. Não sei, não sou avó pra saber. A princípio, melhor pra eles. Mais segurança. Não vão abrir pro “operador da Net” com um fuzil na mão. É, filhos e netos também piram com os perigos do mundo a fora. Mas depois lembrei!! Onde estaria ela? Será que ela foi morta como mártir silencioso frente ao avanço tecnológico desenfreado? Oh não, tão inofensiva… Se tem uma coisa que eu odeio mais que aranhas são as ausências. E de repente minha cabeça ia às voltas com preocupações injustificáveis ao mundo externo. Mas nesse mesmo repente estava abalada a minha estabilidade reconhecidamente privilegiada de, na mesma frequência das visitas à casa da aranha, visitar a casa dos meus avós, onde ficam escondidos, também pendularmente, os meus próprios avós. E se a aranha simplesmente não está mais lá, então nada impede que simplesmenEntre um emaranhado de passos vejo a aranha na laje da garagem. Minúscula aranha, ainda assim, figura consistentemente correspondente à anterior. Sou míope, mas sou neta, não avó, então as aranhas eu ainda destaco bem. E eu nunca agradeci tanto por ter visto uma aranha. Uma aranha acalentou o meu coração. Dias depois, eu tenho certeza que a vi, inclusive, de volta à campainha da casa. E disso não sei se tenho certeza ou se quero pensar numa lembrança de ter a visto ali. Não sei, não sou robô pra saber. Mas me bastam três presenças – na verdade, cinco, contando dois do outro lado e mais nenhum mascote – para eu ter a legitimidade autorizada de encerrar essa narrativa dizendo que, sim. A aranha continua na campainha.

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Soneto Espúrio Deste soneto os críticos dirão: “Só com rimas ricas ele foi feito; Todos versos regulares: perfeito! Já sabemos se ele é bom ou não.” Ele não fala do teu coração, Nem de tudo que escondo no meu peito. Na verdade, embora escrito direito, Este poema foi composto em vão. Pois quem decide investigá-lo a fundo Vê que apesar da métrica acurada, Ele não nos traz nada de profundo. É bonito, porém uma cilada: Como tanta gente no nosso mundo, Este poema não quer dizer nada.

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o

S E U

d e s c a l รง o

E M A N U E L

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nunca foi um homem comum. a começar que ele gostava de tocar clarinete enquanto observava, da janela da sala, seus amigos chutarem uma bola com os pés totalmente descalços. “por que não vai com eles, meu filho?” a resposta: não havia resposta, mas sopros melodiosos.

um dia molhado. senhores jogando xadrez de um lado, jovens esperando por suas caronas do outro. um cheiro forte de pipoca doce impregnado no ar. um garotinho segurava um saco e não queria dividir com seu irmão. muitos casais preenchendo o espaço, muitos casais e muita água, que caía do céu. seu Emanuel era o contraste daquele quadro. a pincelada que era, ao mesmo tempo, inexata e imprescindível, seus dedos sincronizados ao seu fôlego, que parecia infinito (foram anos de prática). uma mochila de pano repousava aberta à sua frente, quem passasse por ela, veria algumas notas e moedas jogadas em seu interior, algumas moedas escoradas pelo guarda-chuva fechado, mas, ao contrário do que muitos supunham, ele não estava lá pelo dinheiro – não que ele não precisasse – mas as verdinhas não eram seu principal propósito, aliás, nunca foram e, provavelmente, nunca seriam. algumas pessoas paravam para registrar essa figura atípica nos dias de hoje com uma câmera. ele olhava na direção delas, fazendo tais fotógrafos e/ou cinegrafistas sorrirem e logo irem embora satisfeitos com suas produções. alguns ainda pediam para seu Emanuel dar um sorriso também, mas ele não o fazia, não queria perder o ritmo da sinfonia. tais lentes o faziam lembrar de seus amigos. sim, aqueles que curtiam uma partida sem proteção alguma nos pés. a diferença era que as lentes não possuíam o brilho dos olhos de seus amigos, quer dizer, possuir possuíam – seus olhos que o digam! com aqueles flashes inusitados e inoportunos – mas não eram naturais.

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o mundo tem andado (mais) contraditório que o seu normal. grandes atos se tornaram efêmeros em importância, mas eternos tanto no temporal quanto no social. as fotos e, principalmente, os vídeos do seu Emanuel tocando clarinete naquele dia chuvoso já devem estar disponíveis no mundo virtual. alguma legenda bonita deve acompanhá-los, assim como algumas várias curtidas. aeu Emanuel não tem cara de quem tem conta em rede social e muito menos de quem se interessa em ter. talvez ele tenha um neto e talvez esse neto tenha uma rede social. quem sabe, algum dia, ele se depare com uma dessas recordações. quem sabe.

esse dia chuvoso foi há duas semanas. acredito que seu Emanuel ainda esteja tocando seu clarinete nos fins de semana – chuvosos ou não chuvosos –, enquanto observa os diversos actantes que frequentam aquela parte da av. Paulista. novas postagens devem ser feitas diariamente, assim como muitas curtidas devem ser dadas, a cada visualização que passa, mas – por mais segundos que ele possua de fama – seu Emanuel não vai tocar nas rádios, nem vai gravar um álbum, porque, ao mesmo tempo que, todos querem compartilhar seu talento, seja para mostrar sua “sensibilidade”, seja para apenas preencher mais um espacinho do seu álbum de fotografias online, ninguém pensa – de fato – em seu Emanuel e seu clarinete. tudo bem que alguns até param para ouvi-lo, é raro, mas acontece de lhe darem alguns trocados, mas ninguém o vê como os seus amigos o viam, já que todos usam algum tipo de calçado. sem drama, porque o seu Emanuel não liga para nada disso. “tecnologia? tô fora! prefiro meu clarinete.” fecha sua mochila após recolher a cadeira de praia em que se senta para tocar. ao abrir o guarda-chuva, algumas moedas caem. valia a pena sofrer com as dores das articulações para pegar um total de R$4? não. não porque não seria preciso. uma garotinha catou suas moedas e lhe entregou. ela estava descalça, apesar de usar uma sapatilha preta, igual a da mãe. seu Emanuel sorriu agradecido para as duas e seguiu seu rumo.

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as vitrines o faziam pensar. talvez compre um cigarro antes de entrar na rua de sua casa, talvez compre um jornal, mas nunca um sapato, gosta de sentir os afiados da rua, assim como seus amigos gostavam de escutá-lo enquanto disputavam uma partida. “ô meu filho, vai, vai jogar bola com os menino, faz bem pra saúde.” pisando no asfalto, úmido e gelado, seu Emanuel sorriu, foi um sorriso dúbio. quem sabe, se ele tivesse jogado alguma partida com os meninos, ele não estaria ali. quem sabe…

… no entanto, seria bem capaz de ele estar usando sapatos. tem coisa que vem com a idade, como as dores nas articulações e a leitura (quase) diária do jornal mas também tem coisa que se perde, como a inocência nos ouvidos daqueles guris que tinham a música de seu Emanuel como trilha sonora de suas partidas, e a coragem ao encarar o chão sem proteção alguma nos pés. por isso que seu Emanuel preferia comprar um cigarro ou um jornal,

mas nunca um sapato.

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a bagunรงada casa de Rosemary

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Rosemary morava numa casa muito bagunçada. Gastava grande parte do seu tempo tentando manter a casa em ordem e morria de medo de que alguém entrasse e a bagunçasse ainda mais. Por isso, mantinha sempre a porta da frente trancada. Quando alguém batia, ela sempre olhava pelo olho mágico e, somente depois de verificar se era seguro, deixava o visitante entrar. Não podia ser qualquer um, era perigoso que um desconhecido não confiável tivesse acesso à bagunça que era sua casa. Certo dia, a fechadura da porta da casa de Rosemary ficou com problema: ela não trancava mais; por isso, Rosemary teve de começar a deixar a porta somente encostada. Agora, às vezes, o vento batia e a porta abria. Então passava horas aberta até que Rosemary percebesse e fosse fechá-la. Foi num desses dias que tudo aconteceu. Rosemary estava concentrada limpando um espelho, um de seus objetos favoritos de toda a casa: ele era grande, com uma moldura prateada e ficava de frente para a porta. Lá estava Rosemary, concentrada e dedicada, arrumando sua casa, limpando seu espelho, quando algo lhe chamou a atenção. Refletida no espelho estava a porta, aberta, e parado a poucos passos de sua soleira estava um moço. Ela encarou assustada o reflexo, virou-se e olhou fixamente para ele. Ao vê-la, ele sorriu um sorriso largo e luminoso.

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Rosemary caminhou até a soleira da porta para poder falar com o estranho que ali aparecera. O moço de sorriso luminoso conversou com ela como se há muito já a conhecesse. Rosemary o achou um tanto abusado. Ele conversava com ela como se eles fossem amigos de longa data, embora estivessem se vendo pela primeira vez. Depois da conversa, o moço de sorriso luminoso foi embora deixando Rosemary levemente atordoada. Ela encostou novamente a porta e voltou aos seus afazeres. No dia seguinte, a porta tornou a se abrir sozinha e de trás dela, agora alguns passos mais perto, estava o moço. Rosemary foi falar com ele novamente, dessa vez menos ressabiada, mas ainda o considerando muito abusado. E assim sucedeu. A porta sempre abria e detrás dela sempre estava o moço, cada vez mais perto da entrada. Até que um dia ele entrou. Passou pela soleira da porta e colocou os pés na bagunçada casa de Rosemary. A moça achou que ele não devia entrar assim em sua casa, mas no fundo não se importou tanto. Sua presença não era mais ameaçadora, ele era bem-vindo. Rosemary deixava agora sua porta sempre aberta para que o moço de sorriso luminoso pudesse entrar quando bem quisesse. Se ela estivesse encostada, ele mesmo podia empurrá-la e entrar; e se ele batesse, a própria Rosemary a abria sorrindo, contente com sua visita. Aos poucos, a dona da casa bagunçada foi gostando mais e mais da companhia do moço sorridente. Ela gostava de conversar com ele enquanto tentava pôr em ordem sua casa que estava sempre, inevitavelmente, bagunçada. Ela limpava e organizava e mostrava a ele as fotos antigas nas paredes, que ela tirara com antigos visitantes. Rosemary permitia que ele visitasse todos os 24


cantos da casa. Ela queria que o moço ficasse mais e, às vezes, quando ele anunciava que iria embora, pedia, com olhos de criança que não quer ficar sozinha: “Fica mais um pouco, vai...”. Ele suspirava e ficava. Rosemary tinha o profundo desejo de que o moço de sorriso luminoso se mudasse para sua casa de vez. Para isso, tentava, cada vez com mais afinco, manter a casa arrumada; porém, a casa não contribuía. Rosemary queria mostrar ao moço que conseguia manter sua casa harmonizada, mas, toda vez que ele estava lá, algo insistia em ficar fora do lugar: um quadro torto, uma mesa bamba, um prendedor de roupa em cima da cômoda... O moço, por sua vez, também não contribuía em nada para que a casa ficasse arrumada. Ele trocava de lugar os bibelôs, mexia no arranjo de flores, revirava as almofadas do sofá... Entretanto, para nada disso Rosemary ligava, desde que ele permanecesse. Na verdade, ela até gostava; talvez o que o moço fizesse não fosse bagunçar sua casa, mas arrumá-la ao seu próprio modo. Assim transcorriam os dias de Rosemary e do moço de sorriso luminoso na casa bagunçada. Mas, já dizia o poeta, não há mal que sempre dure, nem felicidade que nunca se acabe, e os dias de Rosemary e do moço na casa bagunçada chegaram ao fim. Era um dia comum, os dois conversavam e tudo corria bem, até que o moço fez o que não deveria ter feito. Ele esbarrou no espelho de Rosemary. O espelho foi ao chão e se partiu em mil pedacinhos. Rosemary caiu de joelhos e observou o espelho espatifado; ao tocar em um dos cacos cortou o dedo indicador. Ela começou a chorar e, então, levantou e encarou o moço com olhos furiosos. Aquele era seu espelho favorito, aquele era o espelho onde ela o vira pela primeira vez e ele o havia quebrado. O moço, de início, não entendeu muito bem o porquê de Rosemary estar 25


tão irritada e tão triste, era um só espelho afinal. A tristeza de Rosemary foi algo que o moço só compreendeu muitos anos depois, relembrando o ocorrido. A dona da casa bagunçada fitava o moço com o semblante raivoso e desolado. Os dois discutiram, falaram muitas coisas e Rosemary pediu que ele se retirasse de sua casa, embora seu verdadeiro desejo fosse que ele a ajudasse a juntar os cacos do espelho e depois ficasse para sempre. O moço concordou e se retirou da casa de Rosemary deixando-a sozinha, agora com uma bagunça que não era mais só sua e que ela não mais compreendia, com o espelho favorito em pedaços e um dedo cortado.

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NODE Caminhando através do Node Expulsa do Jardim, condenada à morte E bradando contra a detestável maldição Planejo dançar com os animais até cair a noite – Cada uma delas junto a Lillith – Em seu leito perfumado e verde Sem temer os colmilhos da serpente Ou o olhar vazio da besta condenada; Ambos sabemos que sempre preferi O

Leste.

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A Lac


cuna


Quando eu tinha 12 anos, percebi que havia um pequeno orifício no meio do peito. Estava, tranquilamente, tomando banho quando, ao passar sabonete, meu mindinho ficou preso mais ou menos entre os seios, ligeiramente mais à esquerda. Surpresa, olhei no espelho e me apavorei ao ver como a água se comportava naquela ligeira descontinuidade e a dor aguda quando o tempo mudava nas primeiras vezes, mas, depois, como os adultos se acostumam com o sufocar de seus sonhos, me acostumei com aquele orifício. Ao longo dos anos, percebi que o orifício estava aumentando, logo o anelar cabia nele, e, lá pra adolescência, cabia um polegar! Meus amigos gostavam de olhar através dele, como um olho mágico numa porta de carne e osso e frustrações. Um dia, explorando minha sensualidade, descobri que línguas preenchiam satisfatoriamente esse buraco e resolvi preenchê-lo com o máximo de línguas que conseguisse, mas essa era uma satisfação temporária; sempre voltava pra casa com o buraco ainda aberto, e alguma enzima na saliva desses semidesconhecidos, que emprestavam seu órgão palatável, parecia catalisar a dilatação daquele buraco. Em determinado período, comecei a achar divertido medir periodicamente esse buraco, anotando qualquer mudança de tamanho com uma fita métrica que chamavam de poesia. A essa altura, já cabia uma mão inteira nele, e começava a ser difícil tapá-lo com a mão nos dias de frio mais intenso. E, em vez de línguas, 30


passei a buscar mãos bem grandes pra me ajudarem a tapar o buraco, mas havia algum problema, como um campo magnético que fazia essas mãos emprestadas dos novos semidesconhecidos escorregarem pra o lado achando mais interessante a sensação tátil dos meus seios. Havia ainda aqueles que resolviam brincar com o buraco, alargando-o mais, achando divertido tentar descobrir quanto do pulso podiam colocar nele. Mas o buraco pareceu não gostar, e o ritmo em que ele se dilatava ia se acelerando mais e mais e junto a ele meu desespero... e agora não havia palma humana capaz de tapar essa dor. Um dia, nesse processo de desistir da busca por palmas largas o suficiente e no cansaço de um desabafo amigo, adormeci. Quando acordei, aquela sensação desconfortável do buraco havia sumido, o que era estranho já que o incômodo havia se tornado como um barulho branco pra mim. Apreciei a sensação que não sentia há muito tempo sem querer abrir os olhos, adivinhando que era o torpor do sonho que trazia tal alívio. Mas, ao abrir os olhos, encontrei o amigo com a cabeça repousada sobre o buraco, perfeitamente encaixado, e foi o mais próximo que já estive, desde que aquele mindinho cheio de sabonete encontrou o mini orifício, de preenchê-lo. A paz que me inundou naquele momento foi inigualável, e por mais que tenha durado meses, talvez anos sem que o buraco se dilatasse... Era só questão de dias até que aquela cabeça não coubesse mais no buraco, por mais confortável que tivesse sido, o buraco não parou de crescer, só tinha diminuído o ritmo. Isso se repetiu algumas vezes com crânios diferentes, até que finalmente desisti de preencher o buraco, aceitei a sensação e parei de lutar contra ela. E, por algum motivo, nesse exato momento, o buraco parou de crescer. Hoje ele não cabe mais um dedo, uma língua, uma mão, nem uma cabeça... E tem dias de frio extremo que o vento sopra por ele e dói muito, dói tanto que dá vontade de morrer, e ainda solta um assobio horripilante de melancolia. Mas também 31


tem dias em que num abraço o calor e o carinho das pessoas conseguem aquecer minhas entranhas através do buraco. E há outros dias ainda, ensolarados, em que me deito na relva, sozinha, e as plantas rasteiras fazem cócegas no buraco e o sol incide, competindo com o toque frio do orvalho deixado pela manhã anterior. E esses dias, esses poucos dias, quase fazem tudo valer a pena. Quase.

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Gra ma tura

Não lê mais, porque as palavras pesam. O peso da brisa curiosa de criança ansiava por palavras que a encaminhavam por um mundo de novos “olás” e “contudos”. A criança que olhava o mundo e o conhecia sussurrado por dentre espaços e capítulos, identificando na compreensão a vitória de sua capacidade. A criança que não queria sentir-se criança e então, lia tudo que lhe botassem na frente.

Quando não entendia, contentava-se em passar os olhos pelos símbolos e admirá-los. Não abandonava os livros. Reconhecia as palavras e pedia por mais. Mais, mais, mais. A criança que tinha cabeça e, de longe, via a dor do incômodo passar. A criança que arregalava os olhos em estantes e que tudo queria. O saber a maravilhava. As coisas talvez não fossem tão difíceis assim. Ler era conhecer e era fácil. Criou-se um mundo por fora dos livros e por dentro do externo. Palavras que se combinaram e se empilharam e se engruvinharam e se formaram. O presente que aconteceu e a fez perceber que não era somente observadora. Daí sua sina: leu demais. Por própria demanda, tornou-se eterna leitora. O esplendor de tocar a textura explicava-se: nem tudo era feito de páginas. As palavras nem sempre existiam em portas e cabelos, estavam dentro dos ouvidos e debaixo do piso acabado. 33


Sendo indivíduo crescente, encontrou na necessidade de existir o seu purgatório. Viver não era fácil como a leitura a contara. Viver estava fora de capas e não seguia ordem de parágrafos. Olhando para os lados, percebeu que muitos não usavam letras maiúsculas após pontos finais. Alguns sequer finalizavam períodos. Assustou-se. Nada disso havia lido em suas revisadas linhas. Viver passou a ser a vida. Palavras grafadas passaram a ser adendos. Sua energia não sustentava dezenas de páginas em pontos de ônibus. Fechou os olhos e dormiu, inúmeras vezes. Livros que não passavam poucas semanas parados na cabeceira se acomodaram ali por meses, acabaram empoeirados. Nunca deixou de ter conhecimento. Conhecia aulas, trabalhos, pessoas. Conhecia decepções. Conhecia o céu, os ônibus, o acordar e a vida. O ler, contudo, tornou-se denso. Entrelinhas. Ler não é vida; é algo em si mesmo. Letras são seu reconhecimento. Não é corriqueiro ou nem cotidiano. É um estar além, é estar sendo. Não lê mais porque se reconhecer é doloroso. Viver em um mundo que exige o existir torna pesada a ponderação. Nem sempre tem energia para ser. Cada vez mais dias exigem apenas sua permanência. Não lê mais porque virou peça íntima. Impulsionada por necessidades de roteiro, trocou a narrativa pela personagem. Ser narrativa, portanto, exige. A migração de fora para dentro, de superfície para atmosfera, mostra-se fatigante. Não tem no calendário espaço para voltas. Procura brechas. Personagens não têm brechas, quando fora de cena, eles desaparecem. Fecha os olhos. E dorme.

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Poema Passageiro Eu queria ter essa paz de quem recosta a cabeça na janela do ônibus e dorme. — Não é paz. É sono. Diz a mulher de uniforme. — Não é sono. É cansaço. Diz o homem no celular. — Não é sono. Tampouco cansaço. É desesperança. Diz a vida a contragosto.

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Sobre os Tamoios Ei, você, universitário, estudante, professor. Você tem uma folha de fichamento? Não é pra me emprestar não, é pra você mesmo. Sabe, aquelas menores e um pouco mais durinhas, que a gente usa pra escrever o que é importante? Então. Aquela folha tem uma marca: Tamoio. É, esquisito mesmo. Tamoio. T-A-M-O-I-O. Tamoio costumava ser índio. Faz tempo, já. Na época da chegada ao paraíso, do novo mundo que logo virou mundo branco. Uma folha de papel, com nome de índio. Papel? Não, papel não. Árvore, galho, folha, raiz, terra, água. Vida. Tamoio não é marca de folha de papel. Tamoio é gente. Já foi gente, muito tipo diferente de gente. Já foi gente que viveu em paz, já foi gente que guerreou. Já foi gente que teve que engolir seco e se juntar ao inimigo para lutar pela sobrevivência. Tamoio já foi francês. Tamoio já foi inglês. Até, por um momento, foi português. A única coisa que Tamoio não é, é Tamoio. Ninguém deixa, né? E quando tenta ou morre, ou vira santo. “O último Tamoio”, derrubado em meio às árvores e aos rios que tanto o fizeram crescer. Quando a natureza morre, o Tamoio morre junto. E quando o Tamoio morre, a América morre junto. — Ah, mas pera aí, tá viajando, a América não morreu não! Morreu, camarada. Morreu sim. Essa América aqui? Eita, aqui já é depósito. Depósito de carga que o primeiro mundo não quer mais. Depósito de doença que o velho continente cansou de ter. Depósito de bala que a raça pura cansou de carregar no bolso. — Ah, mas também é porto, sabia? Mas aí funciona diferente, é porto de retirada de tudo que os iluminados querem. De tudo que eles gostam e precisam. E sabe aquelas baratinhas, escondidas no cantinho da carga, que só assustam a gente e tiram um tempo danado nosso? Joga inseticida em cima. Mata de uma vez, não importa não, assim a madeira fica até com cheiro bom. Tamoio é barata também. Folha de papel e baratinha de cozinha. Tamoio é tudo que a gente não gosta, mas que precisa. É árvore que a gente gosta de pegar pra fazer folha de papel e escrever sobre os Tamoios. — Arre, vá lá e plante umas mudas então. Mas depois tire, que eu preciso do espaço pro gado comer. E tire rápido, que se não selvagem vem pra cá e acha que a terra é deles.

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Tamoio é árvore também. Folha de papel, baratinha de cozinha e árvore. Mas gente não dá pra ser, ah não... ser gente já é demais. Tratar como gente é achar que tem direito de andar, de comer, de rir e chorar. Direito de FALAR? Não, não… é demais. Como é que vai ser gente também, se não tem espaço pra viver e nem família pra criar? A terra virou pasto, a família virou pintura, a oca virou prédio e o cemitério virou metrô da zona sul. É ideia, só. Ideia que a gente usa quando quer ser patriota, quando quer comer macaxeira e quando quer passar na faculdade. Tamoio é folha de papel, e não me invente mais nada. Cala-te e continua a escrever. Tamoio, “boas impressões”.

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E L


quela não era uma sexta-feira qualquer. Depois de um ano e meio passando raiva usando um relógio falsificado, Gabriel decidiu comprar o original. Agora que tinha certeza que queria aquele modelo, o preço parecia o menor dos problemas. Cento e setenta reais por um Casio era pouco perto do poder que teria de acompanhar o tempo com exatidão, sempre que quisesse, mesmo a cinquenta metros de profundidade, minuto a minuto e sem atrasos. Poderia cronometrar seu tempo de trabalho no banco, controlar seu intervalo e atingir mais rápido as metas – sempre para ontem e sempre inatingíveis. Saiu da Frei Caneca feliz, mas atrasado.

A

Atravessando a Augusta em direção à Rua da Consolação, Gabriel sentiu aquele curioso sentimento de usar algo recém-comprado. Tinha a sensação de que todos olhavam e percebiam seu novo relógio, mesmo sabendo que não era verdade. Repetia em sua cabeça os argumentos sobre a necessidade de tê-lo comprado: o preço em promoção, os defeitos do relógio falsificado que usara, a pontualidade que teria no trabalho. Naquele momento, Gabriel distraiu-se ao ver passar um rapaz da sua idade dirigindo um carro importado, entrando na Bela Cintra. “Como já conseguiu dinheiro para isso?”, e lembrou de seus amigos médicos e engenheiros que, também com sua mesma idade, já tinham uma vida mais resolvida. Diante desses pensamentos, percebeu que estava mesmo atrasado. Precisava pensar nas novas metas do ano fiscal e, quem sabe, conseguir uma promoção ainda naquele ano. Chegando na Luz, olhou novamente para seu Casio: sete da noite.

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O

Conseguiria pegar o trem e chegar em Jundiaí antes das nove. Às sextas-feiras, à noite, Gabriel sempre pensava que São Paulo se tornava uma espécie de prévia do fim do mundo – todos querendo voltar para casa o mais rápido possível, seja por debaixo da terra, pela superfície ou pelo ar. A estação estava lotada. Pessoas com mochilas ou carregando sacolas, cansadas do trabalho, velhos, crianças, cada um com um destino. O trem chegou e rapidamente as pessoas entraram. Era velho e antigo. Gabriel viajaria em pé. Olhou novamente as horas. Sete e vinte e nada de o trem partir. A cada minuto que passava, o vagão enchia mais de pessoas. Gabriel já não conseguia se mexer. Optou por se segurar com a mão esquerda, assim conseguiria checar o relógio em seu pulso com mais facilidade. Sete e vinte e oito e o trem partiu, depois de mais de quinze minutos parado na estação. Saiu lotado. Gabriel decidiu pensar positivamente: “Pelo menos estamos no inverno e não vou morrer de calor com todas essas pessoas”. O vento frio entrava pelas janelas velhas e emperradas do trem. Parece que todas as janelas emperradas de ônibus e trens velhos travam pela metade. Nunca travam todas abertas ou todas fechadas. Essa estranha regra só existia na cabeça de Gabriel, que tentava se distrair no longo trajeto que mal havia começado. trem estava demorando mais que o normal em cada estação. Checou o horário. Já eram oito e meia da noite quando chegou

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na Francisco Morato. Sem se dar conta, parou de pensar em janelas emperradas. Precisava chegar em Jundiaí até as nove. No dia seguinte, sua namorada teria uma importante entrevista de emprego por Skype e ele havia combinado de ajudá-la a ensaiar algumas falas. A entrevista já era de manhã bem cedo e por isso não podia chegar tarde. Era muito importante para ela. Desceu do trem para a baldeação e percebeu que estava ainda mais frio. Colocou o capuz e fechou todo o casaco. Não era o suficiente. O vagão que pegou em direção a Jundiaí chegou rápido e estava completamente vazio. E frio. Gabriel tremia. ontou: três estações até Jundiaí. Mais dez minutos e estaria lá. O Casio marcava oito e quarenta. Justo agora que faltava pouco, parecia que o trem viajava ainda mais devagar. Lembrou-se de quando era criança e sentia uma súbita vontade de ir ao banheiro. Quanto mais se aproximava de casa, mais forte ficava a vontade. Seis minutos se passaram e o trem parou na Botujuru. Não havia ninguém para entrar e ninguém para sair. Por um momento, Gabriel esqueceu-se do horário e só desejava que as portas se fechassem para diminuir o frio.

C

Olhou para o relógio. Dez para as nove e algo estranho aconteceu: trem chegou novamente na Botujuru. Gabriel não entendia o que estava acontecendo e conferiu três ou quatro vezes no mapa do metrô e no relógio. Não fazia o menor sentido. A próxima estação era Campo Limpo. O trem se movimentou e Gabriel ficou de pé. “Como pode o trem chegar na mesma estação da qual havia saído?”, pensou. Decidiu mandar uma mensagem à sua namorada, mas não havia sinal da operado-

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ra. O relógio marcava nove horas. O trem parou. Novamente, Botujuru. Gabriel parou de achar curioso e começou a se preocupar. Não havia uma só alma viva em seu vagão para dividir a preocupação. Colocou o rosto para fora do trem em busca de alguém na estação. Nada, apenas o frio. E nada de sinal no celular. Voltou ao interior do vagão. Pensou em sair do trem, mas, naquele momento, estava paralisado pelo frio e pela situação. Olhou novamente o mapa da CPTM. O trem andou. Tudo ocorria de novo. Seu relógio marcava nove e meia, nove e quarenta e cinco, dez da noite, dez e meia. Continuava sem poder de reação, nem mesmo para descer do vagão em pelo menos uma das inúmeras vezes em que o trem parou na Botujuru. Pensou em como sua namorada ficaria chateada com seu atraso. Teria seu novo relógio alguma coisa a ver com aquilo? Seria essa a sensação da síndrome do pânico de que todos tanto falam? O relógio marcava onze da noite e o trem chegou, uma vez mais, na Botujuru.

G

abriel, agora sentado, não mais olhava o relógio. Era inútil. Reparou que o tempo corria, independente daquela estranha situação. Minutos passavam, mesmo Gabriel não alcançando nunca seu destino. Seu coração batia forte, a ponto de doer em seu peito. Não era ansiedade, era o mesmo desespero das vezes em que foi assaltado. Suas pernas formigavam e estavam fracas. O frio de sua pele contrastava com o calor que percorria o interior de seu corpo. Percebeu que o medo nunca foi do tempo. O medo era de nunca chegar.

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Da Guerra às Rosas

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I - Recrutamento

Para sermos sempre os mais duros, Soldaram nosso coração...

Soldadinhos pequenos Marchando em linha reta, Mantendo sempre o tom marcial.

II - Antes da Tempestade

(São Paulo, março de 2018)

(São Paulo, março de 2018)

Na traseira do caminhão Ao qual fui escalado, Faz um frio infernal. Carregando pelotões e pelotões, Uma fileira de caminhões levam Todos os jovens recrutas à batalha. A noite é escura sobre nossas cabeças, Não há cobertura... E quantos ainda manterão A mesma cabeça após a ofensiva...

Nos convocaram a servir... Nunca nos perguntaram Se queríamos... Nunca se importaram Se queríamos ser outra coisa... Artista, escritor, pai ou amante? Nada importava para o comandante. "Em marcha! Sentido!" Em prantos, senti... "NÃO! Em posição, atirar" Posso, com paixão, amar? "Soldado 2, há algum problema?" Não, senhor... "Então por que choras, teu merda? Um soldado não deve chorar Nem demonstrar sentimentos!" Mas... "Calado! Agora, engole esse choro. Soldado não deve ter sentimento, Ou como vai ser homem de verdade?"

Agarrando-se aos fuzis, Como criança às pernas do pai. Não se via os rostos à nossa frente Até aquele instante... Trovões e relâmpagos! Clarões de luz a longa distância. Nos campos, A única luz que nos aproxima E revela os rostos aterrorizados! "Diga-me o que há, irmão" Dizia eu para o líder do pelotão, Que era uns anos mais velho, Mas era o que tinha mais medo. Parecia que ia chorar... "Nada, soldado! Pergunta tosca"

Como seria um homem de verdade? Eu não sei, nem nunca soube, Mas estava encaminhado à Guerra, Encaminhado ao mundo... Precisava ser grande, precisava ser forte, Como o comandante me ensinou, Sem fraqueza! Só assim alcançaria o respeito Dos outros soldados.

"Irmão, achei que ia chorar..." "Eu não choro, soldado. Agora pare antes que me enfureça!" "Não quer alguém para conversar? Para falar como se sente?"

E agora entendo o nome, Entendo "soldados": 45


Minha caneta é um fuzil. Minha tinta é sangue... Sou artista da morte.

"Não! Já disse que não! Agora cale a boca, subordinado. Não quero falar com ninguém! Sou um homem completo, Não preciso disso..." E, assim, antes de começar, A primeira batalha foi vencida Pelo silêncio. Salvo os trovões martelando Incessantemente sobre nossas cabeças...

Finalmente, sou quem nasci para ser. Agora, entendo meu treinamento, Subjugar tudo e a todos, Mostrar para que vim ao mundo. Toda vez que te chutar, teu verme. Ninguém pode competir comigo. Sou grande, sou primeiro, sou alfa... Sou filho de um demônio. Minha força é insuperável. Minha autoridade é férrea. Todos sabem que não podem Me desafiar. Pois sou seu senhor... E domino todos vocês... Que não são "homens de verdade"...

III - Filho de um Demônio (São Paulo, abril de 2018)

Os trovões nunca pararam. Em questão de minutos, chegamos. Estamos no nosso destino. Tudo até aqui foi para este agora...

IV - Sabor da Terra

Ouço sons de tiros, Ouço sons de gritos. O som é ensurdecedor. O medo é a própria dor.

(São Paulo, maio de 2018) Deus não fez os homens, Mas estes que O criaram À sua imagem.

Mas, e agora eu perco o medo? Porque o perdi. Não sinto medo, nem amor, Somente ódio e rancor, Este sentimento agressor...

Eles O inventaram Para fazer o sacrifício Que eles não queriam fazer: Perdoar os erros do homem Sem que o dano precisasse reparar...

Estou conquistando o que é meu E não é de mais ninguém! Que passem pelo meu cadáver! Seus fracos, inúteis. Frágeis! Vocês não são nada... Só um assoalho para minha bota. Esmago vocês...

Eles inventaram o mundo Ou o mundo que viemos a conhecer, Para que do trono Nós jamais precisássemos descer...

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O céu não guarda a história. Talvez o céu não seja taõ diferente da terra, Mas é fato que ele cura suas feridas Numa velocidade que o chão não acompanha.

Estava no topo do mundo. Mas caí tão fundo, Que rezei para atingir logo o chão. Mas lembrei que Deus era ilusão...

Eu estou assustado com minha distração Em nunca ter olhado tão fundo Para o alto do céu.

Quatro cavaleiros chegaram Na dobra do horizonte. Eles me destronaram Capturaram, Torturaram, Violentaram, Quebraram...

Tento me erguer. Ainda vivo, mas meu corpo, Meu corpo está doendo. Sinto a dor de voltar a viver. Sinto a dor que é perder. Mas a maior dor que sinto, É a dor de ter vencido.

Mas o que mais doeu, Foi o que o mais cruel deles Me disse, Enquanto a sola de sua bota Imprimia um novo rosto em mim.

Enfim, de pé. Os corpos preenchem a terra, Como podem haver Tantas mortes numa só vida? E, se tivesse morrido antes de tudo Tantas vidas em uma só morte? Os corpos preenchem a terra. Crateras, trincheiras, cadáveres. A terra está devastada. O espetáculo de ontem foi uma tragédia E sei que ainda vai ocorrer de novo, Desta vez uma farsa...

"Eu sou seu pesadelo, Mas é você quem foi o horror De tantos outros..."

V - Dialética de Nuvens Brancas (Santos, julho de 2018)

Sinto cheiro de terra, Sinto cheiro de pasto, E sinto o cheiro de corpos.

A terra ainda carrega na memória A dor e o dano trazido a ela. A terra possui uma história. Esta que escreve Que ela é do primeiro e não do segundo E nunca de todos... Ela tem a cicatriz, ela tem um preço Medido em dólares, medido em vidas A terra nunca teve paz.

Deitado e quebrado. Estendido sobre esta grama, Cujo verde começa a tender Ao amarelo, Abro os olhos sob um largo céu: Este eterno azul. Vejo nuvens esparsas. O mesmo céu que no passado, Que ontem, foi um campo de batalha. 47


E, nesse meio, quem sou eu? Caminho entre céu e terra por um motivo, Sou a metade dos dois. Escolher ter a paz do céu Ou entrar para a história da terra? Meu corpo é terra, tão devastado quanto; Minha alma é céu, tão pacífica agora. Minha própria síntese. A dialética entre: História e paz Terra e céu Corpo e alma Morte e vida Eu e você Guerra e rosas

Porque eu não sou mais homem, Não sou "seu homem" Eu sou um alguém. Eu sou minha história e meu futuro E nada mais... Estou nu, estou vulnerável Porque estou feliz com quem sou. Não preciso de máscaras, Não preciso de rótulos. E se um dia eu aprendi Que eu aguento apanhar, Não significa que você deva Me bater mais forte.

VII - Cicatrizes/Primavera

(São Paulo, setembro de 2018)

VI - Se Despir

(São Paulo, agosto de 2018) Estou me despindo Num vasto campo Sob um céu azul de um dia dourado. Estou me despindo De toda violência que cultivei Ao longo da minha vida.

Eu passo meus últimos dias Curando cicatrizes. Observando o passado, Talvez olhando o futuro. Comparados com o presente, Sabemos a altura deste arco. Eu ainda surjo com novas feridas, Novas dores.

Estou desistindo De tudo o que me foi ensinado Sobre quem eu era, Sobre quem deveria ser. Estou desistindo do meu culto à agressão, Dessa minha juventude em vão.

Ainda tenho meus acessos. Ainda encontro meu passado. Às vezes perco minha razão. Há dias no qual sou fraco. Há dias de conflito, Mas há dias de paz.

Estou me desligando De crenças tão antigas, Tão externas a mim Que não me compreendem, Não me sustentam, não são reais. Hoje eu sou um homem novo

Passaram meus dias de começar guerras. Meus irmãos em armas se foram, Mas todos os dias chegam Semeadores, agricultores. Cultivando esse campo comigo, Onde eu e tantos outros morremos 48


No passado. Esse campo foi tão devastado, Mas agora ele se abre Para dar vida a algo novo E abraçar a mudança De uma nova primavera.

Com toda sua dura fragilidade, E eu te diga. Que agora, finalmente, Eu cheguei.

VIII - Florescer/Rosas

(São Paulo, 21 de setembro, 2018) Acabou o inverno. Finalmente, rosas. Depois de tanta história, Eu termino Dizendo que a nossa história Ainda não acabou E não irá tão cedo. Há tantas coisas a se mudar. Mas a mudança mais trágica, A mais dura, já terminou. Minhas armas se tornam arados, Trincheiras se tornam campos floridos. Um espaço novo de minha ruína. Minha vida é destruição criativa. Coloco pontos finais Para pôr fim ao meu arco. Eu, que nasci no outono, Passei dez anos no inverno. Quero que o sol queime o meu rosto. Abandonei o exército, Meus "parceiros" e minha vida toda Para trás. Meu maior aliado é a paz E quero dividi-la contigo. Te esperar chegar à minha vista E te entregar essa rosa branca, 49


Zé Povinho O morador do número 17 acordou com o som de vozes altas que vinham da rua. Tinha dormido cedo de forma que, quando foi acordado, ainda eram 20h19. Foi à janela ver do que se tratava o falatório. Acendeu a luz do quarto e chegou a cortina para o lado, viu três jovens altos cercando um mais baixo. Apesar de não conseguir distinguir o que falavam, sabia que estavam irritados. O menor só balançava a cabeça com as mãos para o alto, de vez em quando era empurrado por um dos que o cercavam. O morador do 17 viu que não era o único a assistir aquilo. Viu que havia outras duas ou três janelas acesas no quarteirão. Podia enxergar sombras nelas.“ Tudo Zé povinho!” pensou o morador do 17, “qualquer coisinha já saem pra bisbilhotar, amam baixaria”. No Brasil era sempre assim. A discussão ficou mais acalorada. Um dos três estava gritando e o morador do 17 conseguiu distinguir uma fala: — VOCÊ SUJA NOSSO PAÍS! O menor recuou alguns passos, mas foi empurrado para o centro de novo pelo jovem que estava atrás. O morador do 17 olhou de novo para os outros vizinhos e pensou “Não vão fazer nada para ajudar. Típico. Nunca fizeram nada pra ajudar os outros.” O que tinha gritado da primeira vez gritou de novo: — ACABOU PRA VOCÊS! Reconheceu a voz, era o Fernandinho, filho do Seu Paulo. Bom garoto. O morador do 17 viu ele crescer e entrar na faculdade, fazia medicina, tinha um bom futuro. Sempre se cumprimentavam na igreja no domingo. Bom garoto mesmo. Por que será que fazia aquilo? “O cara deve ter provocado eles. Se eles tão gritando com ele, coisa boa não fez.” Neste momento um dos três jovens socou o menor na barriga e os ou-

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tros dois se juntaram. Eles gritavam coisas indistinguíveis enquanto o espancavam. O menor apenas protegia seu rosto o melhor que podia, mas não conseguiu evitar uma joelhada na cara e caiu desorientado. O morador do 17 não conseguia ver seu rosto, só que era fraco. Pensou: “Deveria levantar e lutar por si próprio. Se esperar esses vizinhos vai morrer, eles nunca ajudam ninguém!”. Olhou de novo para as outras janelas, mais algumas estavam acesas. Falou baixo para si mesmo: “Pelo amor de deus, vocês não vão fazer nada?”. Não fizeram. “Vou fazer eu mesmo, então.” Andou em direção ao telefone para ligar para a polícia. Tirou o telefone da base, discou o número, mas colocou-o de volta antes que fosse atendido. “Não posso fazer isso.” Pensou: “Vou acabar com a vida do Fernandinho por causa de uma briguinha de rua? Não. Não seria justo.” Ele seria um médico de respeito. Era apenas um garoto e garotos brigam de vez em quando. O menor conseguiu escapar dos três e, cambaleante, correu para o portão da casa número 17. Chacoalhou as altas grades que protegiam o morador e gritou: — ME AJUDA, POR FAVOR! O morador do 17 respondeu estendendo a mão para o interruptor e apagando a luz, fingiu não estar ali e fez silêncio. Os três jovens arrastaram o menor para o meio da rua e terminaram de espancá-lo. Deixaram-no ali no meio do asfalto desacordado ou pior, não dava para dizer pela janela. O morador do 17 ligou para o SAMU irritado, e enquanto aguardava ser atendido pensou: “Ninguém mandou sair essa hora. Se tivesse em casa essa hora não teria acontecido isso. Essa hora na rua, coisa boa não tava fazendo. Agora eu que tenho que ligar para resolver isso.”

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O canto maldito

Leva-me O silêncio m Não a pureza primordial d Mas a dureza oca da A palavra o Aquela qu Preciosa, br Brota será de alg Nascente inc Transbordan Nos confins de d Lá esta Fraca, si Palavra romp Minha Gruta escu Tanto canto, Vozes d’out Broto-me Erupção é Vibro e No canto Do meu

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do meu corpo

a palavra me atordoa do canto-silêncio de Oxalá a boca que me cala. onde está? ue me faz: ruta, fugaz. gum olho d’água? consequente, nte, corrente dentro de mim. ava ela, ingela… e terra bruta, a cela. ura recolhia tanto pranto tros cantos. insistente meu grito insisto o maldito u corpo.

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O Pavó Gustavo estava no zoológico com seus pais. Era mais um daqueles pas-

seios para suprir a ausência deles em casa. Como sempre, seu pai digitava no smartphone e sua mãe estava numa ligação, falando sem parar. Mesmo assim, o garoto sentia-se animado, aquele era seu passeio favorito. Quando não estava na escola, estava na frente da TV assistindo àqueles canais sobre a vida animal. Toda vez que ia ao zoológico era como se fizesse parte de um daqueles programas. Sempre ia vestido a caráter. Roupas camufladas, botas de aventureiro, binóculos pendurados no pescoço e uma câmera fotográfica profissional presa no pulso. O menino conhecia cada animal que visitava, seus pais o seguiam como cães adestrados. Algumas vezes, ele falava sobre os hábitos alimentares ou sobre alguma curiosidade que conhecia, mesmo sabendo que ninguém o ouvia. Chegaram na ala das aves – seus animais favoritos. Havia um enorme galpão montado com um cartaz que dizia “Exposição Asas da Metrópole, venha conhecer os pássaros da nossa São Paulo”. Entraram e deram de cara com um grande corredor cheio de gaiolas de ambos os lados, que abrigavam centenas de aves. A maioria piava e voava de galho em galho. O barulho era ensurdecedor e o cheiro sufocante. O garoto ignorava as duas coisas. Estava contente por não ouvir mais a voz da sua mãe falando sem parar, ou a gargalhada exagerada de seu pai quando via algo no celular. Passava por cada gaiola citando os nomes das espécies sem precisar ler as placas. O colorido dos pássaros o fez sorrir pela primeira vez naquele dia. — Vamos logo, Gu — disse sua mãe, mal humorada, o empurrando. Não conseguia mais ouvir sua ligação. Seu pai seguia os dois às cegas, não fazia a menor ideia de onde estava. Participava de um debate acalorado sobre seu time de futebol num grupo de Whatsapp.

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Gu acelerou o passo, mas não parou de citar os nomes. — Cardeal, Bem-te-vi, Anu-branco, Pica-pau-barrado... — Ele parou de repente. — ESPERA! — Teve que gritar para que sua mãe parasse de empurrá-lo. — É o Pavó!? — Desta vez leu a placa para ter certeza. Na gaiola à sua frente havia apenas um pássaro. Estava parado no meio do poleiro, cabisbaixo. Era todo negro, com as garras e o bico cinzas e o peito coberto de penas vermelhas. — É um Pavó, mãe — disse animado. — Está em extinção... — A ave solitária estava de cabeça baixa. — Tá, tá, eu vou esperar lá fora... — ela respondeu saindo, passando a mão automaticamente em sua cabeça. O pai tirou os olhos da tela. Não sabia se seguia ou se ficava. Quando percebeu seu filho parado, aproximou-se dizendo: — E aí, garotão, vamos? — Olha, pai. É um Pavó. — Gustavo apontou. Neste instante, o pássaro ergueu o olhar. — O peito desse é diferente, mas na placa ta escrito Pavó. — É... bonito né, filho? Vou comprar um pra você, tá? Vamos? — disse afastando-se. — Ele tá em extinção pai. Não vende. O garoto ficou ali, parado, observando o Pavó, que não piava e nem se mexia. Ele então decidiu pegar sua câmera para registrá-lo. Quando o olhou através da lente, se assustou ao perceber que os pequenos olhos do animal estavam focados nele. Começou a sentir um incômodo, como se alguém se aproximasse por trás. A sensação de proximidade foi aumentando cada vez mais, até o momento em que ele se virou de uma vez, sobressaltado. Atrás dele havia somente uma gaiola vazia, e seu pai estava mais adiante no corredor, gargalhando para o celular. Ele voltou a atenção para a ave, mas assim que ergueu a câmera novamente, ela desligou. “Sem bateria”, acusou. Gustavo achou estranho, ele tinha certeza de tê-la carregado completamente antes do passeio, e essa era a segunda vez que a usava. Ao perceber que o pássaro ainda o olhava fixamente, sentiu um calafrio subindo-lhe pela espinha e saiu correndo até seu pai. — Vamos - disse já pegando sua mão. Seu pai se soltou irado. — Mas que po... Desligou!? O quê...? — Seu smartphone se apagou. — Sem bateria? Que absurdo. Estava 80% agora…

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Saíram de mãos dadas. A mãe se surpreendeu com a cena, porém não percebeu o rosto furioso do marido. Nem a expressão assustada do filho. — Que coisa linda vocês assim... Eu falei que esse passeio seria bom — disse se aproximando com o telefone na orelha. — Alô? Rose? Ro, tá aí? Sem bateria? Mas… — Sério!? — o pai interrompeu sorrindo. — O meu acabou de desligar também. — Deve ser aquele carregador que você comprou! Eu disse que não valia nada… — É? Na próxima vez eu não compro nada pra você então. — E o que você compra pra mim? Eu lá preciso do seu dinheiro? E assim começaram a brigar. Gustavo já estava acostumado com aquilo, todos os passeios em família terminavam quando a discussão começava. Sua mãe agarrou sua mão livre e os três foram em direção ao estacionamento, os adultos foram discutindo por todo o caminho. No fundo, Gu agradecia por aquele desentendimento entre os pais. Assim, iriam embora dali de uma vez. A imagem do pássaro não saia de sua cabeça. Se arrepiou ao relembrar o que sentiu quando encarou a ave. De vez em quando olhava para trás e para os céus procurando algum sinal do Pavó, pois tinha a sensação de estar sendo seguido. No carro, a discussão aqueceu. Agora o motivo era ver quem iria carregar o celular primeiro. O pai se preocupava com o que seus amigos estavam pensando sobre seu silêncio no grupo. A mãe só queria ter alguém que a ouvisse sem interrupções. O garoto estava de coração acelerado, preso ao cinto do banco de trás, em silêncio. Procurava, no céu, seu perseguidor. O pai só saiu com o carro quando conseguiu se manifestar no grupo. Gravou um áudio cheio de palavrões e falas maliciosas, na intenção de provocar a mulher. Ela, por sua vez, conectou o celular no carregador, mas ao invés de ligá-lo, resolveu discutir sobre a atitude do marido. Ele dirigia falando cada vez mais alto. O casal estava naquela fase em que nenhum cede e as discussões viram verdadeiras provas de resistência. Gustavo estava sentado no meio do banco traseiro, se esticava de janela em janela, observando o céu, ainda preocupado. Cada quilômetro de distância do zoológico era um alívio a mais para o garoto. O carro saiu da estrada e seguiu por uma avenida até parar num cruzamento sem semáforo. Gustavo sentiu um aperto no estômago quando

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viu, sobre a placa de “Pare”, o pássaro encarando-o. Tinha certeza que era o mesmo de antes. Dentro do veículo, a briga ficava cada vez pior. O pai, revoltado, arrancou a toda velocidade, sem se preocupar em olhar para os lados. Um caminhão vinha em sua direção e por muito pouco não atingiu a lateral do carro. Nem os gritos dos seus pais, nem as buzinas estridentes distraíram o garoto. Sua atenção era toda da ave, que, apesar do caos, continuava tranquila sobre a placa, seguindo-o com os olhos. Ele ficou de joelhos no banco retribuindo o olhar, até um carro cruzar sua visão e o Pavó desaparecer novamente, para o seu desespero. Gu voltou a se prender no cinto de segurança. Não se preocupava mais em saber do pássaro, pois tinha certeza que ele estava ali. Seus pais estavam distraídos demais para reparar em como as pupilas da criança se dilatavam, ou no tom pálido que tomava sua pele, não viam nem o suor que escorria de sua testa ou pelo menos a tremedeira de seu corpo. — Mãe... Pai... Ele... tá aqui. O Pavó... — Sua voz era um sussurro fraco e perdido entre as palavras gritadas que se digladiavam no ar. Mesmo sentado, Gustavo sentia a mesma presença de antes. Dessa vez, se aproximava ainda mais. Seu corpo estava paralisado, seu coração batia no limite do possível. — Estou aqui, Gustavo. — Um sussurro se fez em seu ouvido, ao mesmo tempo em que uma mão terna tocava seu ombro. Seus pais só perceberam algo de errado com o filho quando este se atirou por entre os bancos da frente, rasgando o cinto que o prendia, e ficou se debatendo descontrolado em seus colos, arranhando e chutando os dois enquanto gritava até perder a voz. Quando o carro colidiu contra a parede de um prédio luxuoso, ouviu-se no ar da capital, além do estrondo do ferro se retorcendo, um piado melancólico, seguido do bater de asas de um Pavó solitário.

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aos abandonados Maria, cave essa cova Maria seu nome era Lucas Maria cave um pouco mais Maria, cave Maria, cave mais Maria, eu te amei Maria, cave nossa cova Maria seu nome era Lucas Maria, te amo Maria, você me amou Maria, você mudou Maria, sinto sua falta Maria, cave essa cova Maria, cave nossa cova Maria, eles estão vindo Maria, eles querem nos matar Maria, eles vão nos pegar Maria, cave nossa cova Maria, eu te amei Maria seu nome era Lucas Maria, você me deixou Maria, por que me matou? Maria, você me matou

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Me dizem, Maria, que você existiu na minha cabeça Eles dizem que você me matou Me dizem, Maria, que você que me dizia para morrer, que você me matou

Maria você me matou na luz de setembro naqueles bosques de maio

Me dizem, Maria, que você não existia, que você me matou

Maria, te amei Maria eu te vejo às vezes naqueles relances das luzes de dezembro, nos sonhos Maria, eu te vejo.

Te amei, Maria Maria eu não sei mais Maria seu nome era Lucas Maria eu morri numa tarde de setembro naquele bosque ensolarado na luz de maio

Maria, seus olhos eram lindos Maria seu nome era Lucas Maria eu te vejo nos meus sonhos, às vezes quando durmo lembro de você, mas só quando durmo, você aparece e me lembro de você. Maria seu nome.

Maria eu te queria tanto Maria seu nome era Lucas Maria, por que me matou?

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Maria eu morri naquele dia que você me deixou nas luzes do bosque de maio

Maria seu nome era Lucas

Maria você cavou nossa cova mas você está viva e você não me ama, eu te amo Maria Maria você me deixou Maria não me deixe Maria volte Maria cave, Maria cave, Maria cave Maria eu te quero Maria você me matou Maria você me deixou Maria, eu te queria

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Maria, seu nome era Lucas. Maria, seu nome era Lucas. Maria, meu arrependimento ĂŠ ter te feito feliz enquanto eu estava triste.

Lucas, seu nome era Lucas.

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C

heguei em casa cansada do trabalho. Cansada de discutir com meus irmãos sobre a herança, cansada das contas, das metas, dos remédios... cansada de estar cansada. Depois de passar um tempo elástico no sofá, suficiente para me cansar mais ainda, levantei para tomar o meu banho. Passando pelo corredor, percebi, semidesperta, que havia se passado mais tempo do que eu pensava ter contado. Era horário de verão, mas o apartamento já estava escuro, e nada em mim pedia para que as luzes fossem acesas. O barulho da porta do box me despertou um pouco e a água quente lavou o resto do meu torpor, me deixando tão relaxada que conseguia sentir, mesmo com o ruído do impacto das gotas sobre a minha pele, os meus batimentos cardíacos palpitando na minha cabeça e o sangue correndo nas minhas veias. Saindo um pouco mais desperta e presente na realidade, consegui acender a luz. Meu rosto, agora mais claro no espelho, não agradou. Eu ainda percebia meus batimentos e isso me remetia a velha tentação. Cedi. Tenho 25 anos, e carrego no olhar o desespero e despreparo da minha geração; o espelho insistia em mostrar. Sou psiquiatra, ironicamente. Passei a reparar nos detalhes, nas rugas e até nas ranhuras das íris dos meus olhos. Descendo, acariciando o meu reflexo com um olhar carinhoso, finalmente cheguei onde queria: o pescoço, estremeci de prazer.

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A iluminação era fraca, mas eu consegui ver as palpitações que sentia desde o começo do banho ao lado da traqueia. Tateei meu corpo e tentei mensurar quanta dor separaria uma boa lâmina da minha jugular. Abri minha gaveta e peguei meu alicate de unhas hipotético, sabe? Não? Bem, ele não existe de verdade, é só uma hipótese, mas, ainda assim, um pouco mais real que qualquer fantasia barata. Olhando nos olhos do meu reflexo, toquei a ponta do alicate na minha pele; não estava tão frio quanto eu esperava, e até o incômodo da ponta picando a área sensível trazia certo conforto. Forcei uma vez, mas não tive coragem de ir até o fim. Mais uma vez. Baixei a lâmina, andei nua até meu quarto, peguei meu celular, coloquei a música apropriada e voltei. Três vezes e nada. Respirei fundo e desisti de me olhar nos olhos enquanto realizava o ato, seria até melhor me concentrar no corte em si. Na quarta vez, apenas hipoteticamente, consegui abrir um pequeno furo superficial, mas a dor aguda novamente me impediu. Felizmente, a música contava com tons mais graves, criando um equilíbrio muito digno do momento, fazendo com que, hipoteticamente, eu conseguisse completar o feito. O coração humano tem força para bombear o sangue em até 1,5 Km/h, então você pode imaginar como a hipótese do sangue jorrou, cobrindo o espelho e caindo aos montes na pia e no chão. Minha eu hipotética, agora, separada de mim pela proxi-

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midade da morte, sentou-se no chão para evitar a queda nos momentos finais. Fiquei ali, observando enquanto minha hipótese se tornava antítese. Este foi o dia derradeiro. A partir daí, tudo era hipótese, e, portanto, me separava de mim mesma. Eu acordava para ir ao trabalho, e, ao sair da cama, via uma hipótese de mim ainda dormindo ou esperando mais cinco minutos. Tomava meu café e via outra hipótese, preparando chá. Enquanto eu prescrevia o remédio para os meus pacientes, eu os via levando um receituário com nomes diferentes dos que eu lembrava ter escrito. Dos rostos que eu via na rua, a maioria eram meus, hipotéticos, caminhando para lá e para cá, esfregando na minha cara tudo o que eu não havia feito naquele dia. Resolvi, no fim de um dia, mudar meu caminho habitual. Claro que vi uma hipótese virar a direita depois do mercado e seguir para minha casa, mas me contive e fui para a casa que ficava ao lado do albergue. Quanto mais eu me aproximava, mais hipóteses surgiam. Desci do carro, uma ficou lá dentro. Caminhei diretamente em direção à porta, uma se segurou por um tempo na calçada. Toquei a campainha, uma resolveu mandar mensagem antes. Quando Paula abriu a porta, todas as hipóteses sumiram.

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— Amor? Como sabia que eu estava aqui? — Ela sempre estava lá, sempre mais no estúdio que em casa. Sorri. — Foi só uma hipótese. E ela a minha síntese.

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ESCOLHAS DA

COMISSÃO


SONHO DA VÓ Estão todos que são: eu, minha irmã, mamãe, minha vó materna e papai, na casa dos meus pais, aquela em nível mais alto que o da rua e que fica frente a frente com um ponto de ônibus na calçada oposta. A família reunida com muitas mulheres, são três dos cinco integrantes, e um homem que conta, e outro homem que só está na conta, e uma que também só está na conta, mas que está como elo entre as duas que serão contadas. E esta família tem seu privilégio de não estar no nível da rua, mas mais acima, assim os passantes têm que olhar para cima para poderem ver pela janela quem está lá dentro, e os que estão lá dentro olham da janela para baixo para ver quem passa. Aumentando ainda mais o conforto, o ponto de ônibus é bem perto, não precisa andar muito e dá para esperar de dentro de casa até ele passar. A vó está lá do jeito que ela é. Em um instante noto que ela não é mais do jeito que é, mas está uma senhora japonesa, e está preparada para ir, para onde ela ia não sei. Ela muda não sei como e nem por que, mas assim que mudou estava pronta, e sem saber da mudança. Mudanças nos aprontam para ir a algum lugar que vai mudar, mas quando mudar estará pronto. A irmã diz que vai passar no cinema um novo filme de um antigo anime que a vó assistia quando criança. O título do anime é Tammy Brown e é sobre uma mulher de meia idade de mesmo nome. A vó se orientou para Oriente e sua infância também era um pouco orientada. Anime parece elemento da infância da minha geração e não da infância da minha vó, mas ela mudou para o Oriente instantaneamente, logo poderia ter mudado a sua geração para a minha, vivido a infância junto comigo vendo os mesmos animes. Um anime que mudou de geração também, com título de nome de mulher em inglês, com a história de uma mulher de meia idade, todo ocidentalizado. Imagino minha vó menina, vendo algo do Oriente, mas sobre o Ocidente, e de uma idade que não é a dela, mas algo que ela pode ser, porque descobri que minha vó muda como se muda um antigo anime para um novo filme. Será que a vó veio mudando desde sempre?

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Vamos para frente esperar o ônibus, assim que chegamos no portão, o ônibus já vem, atravessamos a rua pedindo que ele pare, quando chegamos no ponto da calçada oposta, ele não para. Logo atrás dele, vem outros três ônibus juntos como um só e nenhum para, todos eles anunciam no letreiro o filme da Tammy Brown. Aproveitamos o conforto um pouco demais e acabamos tendo uma agitação e uma punição. É melhor abandonar um pouco do conforto para não ter desconfortos na frente, mas não foi assim. E a punição foi nada simples e direta, foi logo três ônibus. Como pode se colocar três oportunidades juntas de uma vez? Elas deveriam vir separadas por bastantes intervalos de tempo, para que aqueles que aproveitam um pouco mais do conforto possam conseguir em alguma vez. São três oportunidades perdidas, e não daquelas que pode se pensar em excluir, pois o destino é o mesmo: o filme da Tammy Brown, e é esse o destino da vó. É talvez por isso que ela se preparou e que ficou japonesa. Voltamos para dentro da casa, só eu e a vó fomos pela área externa. Noto que ela agora não é mais senhora japonesa e que está uma cachorra preta de médio porte de pelo brilhoso; eu abaixo e a abraço. Em um momento de tristeza, mudaram-se as coisas, eu e ela, por outro caminho, e ela não mais japonesa, a tristeza a mudou, melancolia de cachorro, penso então se poderia ter abraçado a vó se estivesse triste e ainda humana. Daria só um tapa no ombro e olharia consternado, mas agora como uma cachorra com o pelo de luto charmoso, desço ao nível do médio porte dela, igual quando estamos em casa e descemos a vista para ver a rua; e posso abraçá-la. É mais fácil demonstrar o sentimento com cachorros. Boa, é essa hora que o humano vira animal, que os códigos somem e é só expressar. Queria que também a mamãe, a irmã, e até o papai virassem cachorro, daria para se resolver qualquer coisa com uma coçadinha na cabeça, um carinho na barriga e um monólogo de voz aguda e prosódia alterada. A irmã grita que vem outro ônibus, eu saio correndo para tentar pará-lo, e vou por dentro da casa ao invés de ir por fora, que era onde estava e por onde o caminho é mais rápido. E, por dentro da casa, tenho que passar por três portas, que estão todas fechadas, vou abrindo com força cada uma quando passo. Desta vez não é dito, mas é gritado, o nível de preocupação aumenta, não se anuncia um filme novo que se quer assistir como se avisa

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a vinda de um ônibus que precisa ser tomado. O nervosismo me bloqueia o raciocínio, daí escolho o caminho mais longo. No meio do percurso, não adianta trocar, é preciso ir o mais rápido porque é para ajudar a vó, ajudá-la a ir. E como antes foram três oportunidades, agora são três obstáculos. E a cada porta aumenta a apreensão com o estrondo que elas fazem ao serem escancaradas. Me irrita sempre papai que mantém sempre as portas fechadas, porém ele mantém só a primeira e a última fechadas e não a do meio. Quem fechou a do meio? Não tem como saber, porque não voltei pelo lado de dentro. O ônibus é perdido. Depois vamos para o ponto e, dessa vez, a vó consegue pegar o ônibus, e no seu letreiro é anunciado outro filme: Bebe Bárbara, outro desenho que a vó assistia, porém Ocidental, como os cartuns antigos. Foi uma segunda perda, mas se é a próxima a terceira oportunidade a atenção é maior e não há alarde para o objetivo que se alcança após duas tentativas que ensinaram com o erro. O que muda no momento é o destino, não é mais o filme da Tammy Brown, é o de Bebe Bárbara, que é sobre uma jovem bonita e loira. Foi do Oriente para o Ocidente, e o Ocidente é ocidentado, provavelmente se ajeitou algo: sem forma e tema invertidos. Pergunto-me se a vó gostou mais ou menos da troca, porém só sabemos que a primeira leva de ônibus é para Tammy Brown e que o terceiro ônibus é para Bebe Barbara, não sabemos o que estava no letreiro do segundo ônibus, e não tem como saber, pois fui pelo lado de fora e o ônibus foi perdido. Dentro do ônibus é como num trem antigo, e a vó não é mais uma cachorra preta de médio porte, mas é uma senhora branca, vestida como nos anos cinquenta, e está flertando com um velho dentro do trem. Mudanças novamente, o ônibus mudou seu tempo de fora para dentro, e a vó mudou o seu com o modelito dos anos cinquenta, e mudou-se também, provavelmente, em função do destino. É estranho ver a vó flertando com um homem, é um lado dela que eu não conhecia, um segundo lado que não vimos no letreiro, ou um lado do meio que não sabemos quem fechou. Mas, antes de ir, a vó mostrou muito dela que não se conhecia, mudou muito, mudou para se ir e se foi.

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PRVAL:0430 801510 08.01.16

LACRE:20891715 TP->TS 18:15:46

dia comercial #001 28ºC. hora do rush. em sampa city. ônibus lotado. disse “boa tarde” ao motorista. “já é boa noite, moça. tá claro, mas já é noite, moça”. sorriso. cinco pessoas à frente e mais de cinco à volta. R$3,80. disse “boa noite” à cobradora. “noite? mas tá sol ainda! é dia, menina, é dia!”. é noite, mas é claro. é um paradoxo. o chamam de horário de verão. um homem de terno briga pelo celular. sua voz rouca é um eco. sua voz rouca e os ruídos sôfregos do coletivo são os únicos sons compartilhados por todos os passageiros. uma lata de sardinha. com cheiro de cansaço e salonpas. espirro. é a rinite. uma senhora asiática vê suas compras. ela parece com a minha avó. sorriso. dois senhores conversam. “ela não é comigo como é com os outros”. um aceno de cabeça. um aceno de cabeça que diz pelo silêncio o necessário. batidas de dedo em uma das poltronas. o baterista está ouvindo criolo. convoque seu Buda. inconfundível. volume no alto. mas o homem de terno continua a brigar pelo celular. está calor. o ar está pesado mesmo com todas as janelas abertas. espirro. é a poluição. você tem uma nova mensagem. uma lembrança súbita. uma lembrança súbita de um dia memorável. sorriso. “licença”. o senhor que lamentava a respeito da mulher desce. o lugar está vago. “pode sentar, moça”. um sorriso de agradecimento. o homem de terno finalmente finaliza a ligação. agora só as engrenagens do ônibus são ouvidas. trânsito intenso. um metro a cada dez minutos. a senhora asiática que lembra minha avó dá um nó em sua sacola. espirro. “saúde”. sorriso. o baterista agora ouve uma eletrônica. (tenho que ir para a porta). “licença”. “licença”. “ops, perdão”. “licença”. ufa. um cara com cara de youtuber assiste algo em seu celular. reconheço o arroto de Rick. riso. calor. calma. está chegando. parada solicitada. pela janela, um garoto de bicicleta. de carona um menino mais novo. muitas risadas. sorriso. ah, se eu pudesse camelar por aí. ah, se eu tivesse uma bicicleta. os dois vão ficando para trás. o ônibus vai parando. “obrigada”. um sorriso, outro aceno. “boa tarde!”. “boa noite!”. ainda é dia. dá para voltar tranquila.

Recarga: On BF700: On Net: Ruim

PW1000: Des EX700: Des 75


Você distribui facadas E eu mordo a boca Absorvendo tudo Tentando segurar dentro de mim A sua mão que prende o meu pescoço contra a parede No meu jardim secreto Sua árvore brilha E chama a atenção O que ninguém vê É que você rouba todos os nutrientes das outras árvores Para continuar brilhando Sentimento egoísta Que deixa tudo vazio ao redor Sufoca a grama Tira o foco das flores Até que eu mesmo Não consigo ver outra coisa Senão você E sua maldita luz

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ansied


dade

Troncos grossos e com espinhos Deixam machucados na minha pele Quando você me abraça Tirando o meu sossego Eu já não consigo nem mais saber o que é paz Quanto mais eu tento fugir do seu abraço Mais os seus espinhos me rasgam a pele Entre gritos e sangue Você sempre vence E no final Você sempre continua brilhando

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Poema Natimorto Este poema nasce em um dia de mau humor, Por isso morre cedo, sem desabrochar em flor.

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A Nota ra o findar de mais um dia e Samantha sabia o que a esperava. Andava a passos curtos porque não queria apressar o sofrimento que sabia ser inevitável. Chegou à porta de sua casa e respirou fundo. Em seu coração, esperava que a mãe estivesse dormindo para que não a visse e fizesse a pergunta. Aquela que, nos últimos meses, regia a sua vida, mas que parecia ter estado presente em todos os seus sete anos de vida. Entrou e foi sorrateiramente em direção ao seu quarto. Quem sabe sua mãe não desse falta dela, não é? Assim talvez, pelo menos por aquela noite, poderia dormir tranquila, sem chorar, sem sentir dor. Quando estava chegando ao quarto, ouviu uma voz atrás de si:

E

— Cadê o dinheiro? — a voz da mãe era seca. — E-eu só consegui isso aqui... — respondeu Samantha enquanto estendia as poucas notas amassadas de dois reais e gaguejava com sua voz trêmula — Têm umas moedas também. Olha essa aqui como brilha! — esperava tirar a atenção da mãe com aquele pedaço de metal brilhante. — MENTIROSA! Cadê o resto do dinheiro? Hein? — a voz estava se alterando e a criança sabia o que viria depois. — Eles só me-me deram isso, mãe. Eu juro... — a voz começou a ficar distante. — FILHA DA PUTA! É ASSIM QUE VOCÊ ME RETRIBUI?! COM NADA? — Pegou a menina pelo braço e começou a bater com um cinto velho já gasto de tanto bater em Samantha — ESSA É A ÚLTIMA VEZ QUE VOCÊ ME FAZ ISSO! VOU TE MOSTRAR! Puxou Samantha pelo braço em direção à cozinha. Uma colher estava sendo esquentada no fogão. Mesmo entre lágrimas, a garota percebeu que o ambiente fora previamente preparado para aquilo e, embora tenha es-

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tranhado, nada disse. Somente esperou o seu destino. A mulher pegou a colher, levantou o vestido surrado da menina e encostou em sua coxa. O grito dado pela criança assemelhava-se ao de um porco sendo abatido. A dor era indescritível e excruciante, mas antes que percebesse, a mãe colocou a mão em sua boca. — CALA A BOCA, MENINA! Quer que os vizinhos achem que você é louca? Samantha não respondeu. Somente lágrimas angustiadas escorriam de seu rosto. Depois disso foi levada ao banheiro para tomar banho frio e a água escorrendo pela ferida causava-lhe náuseas. Foi para o seu canto. Dormia em um colchão velho e sujo atrás de um guarda-roupa. Sentia que ali era o seu refúgio. Encostou na parede, pegou uma lanterninha e seu livro favorito: “Matemágica”. Adorava ler, mas gostava mais ainda de números. Aquele livro em especial era colorido e cheio de números das mais diversas formas. O seu favorito era o oito, pois, ao deitá-lo, parecia o símbolo de infinito. Será que só ela percebia isso? Dava risada ao pensar que sim. Gostava de contar. Dois mais dois são quatro. Quatro mais quatro são oito. Oito mais oito dezesseis. Dezesseis mais dezesseis trinta e dois... até onde iam? Somaria eternamente? Até onde se somaria para chegar ao infinito? Enquanto estava absorta em suas fantasias, ouviu sua mãe dizendo “ai” repetidas vezes. Sempre que um amigo de sua mãe ia visitá-la era assim. Samantha pôs a mão em cima de seu machucado. Imaginou que a mãe estivesse sofrendo muito mais do que ela, pois ouvia a intensidade de seus gemidos cada vez mais altos e rápidos. Sentiu muita pena, mas quem sabe a dor não fosse algo bom? Se sua mãe sentia dor quase todos os dias e, ainda assim, recebia os amigos, talvez fosse algo bom. “Mas por que eu não gosto da dor?”, pensava, “talvez eu seja diferente...”. Abraçou o livro e dormiu, mesmo em meio às estranhas vozes que ecoavam em seu quarto.

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*** No dia seguinte, acordou e viu a mãe deitada desengonçadamente no sofá. Na mesinha a sua frente havia garrafas vazias e restos de pó branco. Foi em direção à cozinha, pegou um copo de água com o restante de um pão duro e comeu. Enquanto comia, a mãe chegou à porta. Samantha não estranhou seu cabelo extremamente desarrumado já que ela sempre estava assim. — Menina, se você não vier com pelo menos quarenta hoje, eu não sei o que fazer com você! — Olhou para baixo e depois olhou fixamente nos olhos da criança com frieza. — Estou cansada de cuidar de você, te dar um teto pra dormir, roupas pra vestir e você me retribuir com essa miséria de dinheiro que não chega nem a vinte reais — jogou as notas de dois reais e as moedas ao chão. — O mundo é mau, menina, e você deveria ser mais grata por eu te suportar em casa. — respirou fundo. — Se você vier com menos de quarenta você vai aprender a ser grata. Ah, vai sim! Se não aprendeu por bem, vai aprender por mal! Samantha tremeu e assentiu com a cabeça. Tinha que conseguir o dinheiro. Embora já tivesse pensado em ir embora e fugir para bem longe, sabia que ninguém iria quere-la, afinal, como sua mãe sempre dizia, ela era um pé no saco, um estorvo, um tormento... Quem iria querer alguém assim? Só sua mãe mesmo. Sendo assim, pegou seu melhor vestido e foi ao farol. O farol em que pedia dinheiro ficava em frente a uma praça onde se encontravam vários brinquedos e, consequentemente, várias crianças. Samantha sempre quis ir lá, mas nunca pôde: tinha que pedir dinheiro. Nesse dia em especial não havia uma nuvem no céu e o sol brilhava de forma linda. Samantha nunca desejou tanto brincar como naquele dia. Após várias horas em pé batendo de vidro em vidro, carro após carro, só tinha conseguido 24 reais e sabia que dificilmente aumentaria esse valor. No entanto, algo aconteceu para mudar totalmente o dia. Uma se-

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nhora muito simpática deu à garota uma nota de vinte reais. A menina ficou tão feliz quando viu que não podia acreditar. Aquela nota amarela com desenho de um macaco e com aquela faixa brilhante... Tão bonita! De repente percebeu que já tinha o dinheiro que precisava! Sua felicidade era imensurável. Todos os dias, ao final da tarde, a mãe de Samantha passava próximo àquele local a fim de verificar se a criança estava, de fato, pedindo o dinheiro. Sendo assim, a menina ainda tinha algumas poucas horas e não pensou duas vezes: foi direto ao parque. Foram as horas mais felizes de sua vida. O escorregador era incrível. E o gira-gira? Demais! Mas o melhor mesmo era o balanço. Uma coleguinha que conhecera enquanto brincava lhe deu a dica de colocar as pernas para cima enquanto subia e, pra baixo, enquanto descia, de modo que pudesse alcançar uma altura ainda maior. Comprou sorvete de chocolate e jamais tinha sentido um sabor tão bom. Tudo era novo e maravilhoso.

Pela primeira vez, Samantha foi criança.

Quando viu que estava próximo ao horário de sua mãe passar por ali, voltou ao farol, feliz como nunca. Conseguiu apenas algumas moedinhas, mas não se importava: já tinha conseguido o dinheiro. De repente, um carro preto e grande parou. Quando ela estendeu o braço, um homem muito simpático de terno e relógio grande falou com ela: — Oi, menininha! Que nota bonita é essa que você tem aí! O vestido de Samantha tinha bolso na frente, de modo que parte da nota ficava visível. — É a minha nota de vinte reais! — disse sorrindo e orgulhosa. — Olha aqui... – pegou duas notas de dez reais — Você não quer trocar comigo? Essas aqui são rosinhas!

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Samantha sabia que dez mais dez somavam vinte. Estranhou a atitude do homem, mas aceitou, afinal, não ficaria mais com aquela nota amarela por muito tempo. Estendeu a nota para ele e, quando ia pegar as duas de dez, ele acelerou e a deixou ali, com as mãos sob o nada. Sentiu como se o mundo tivesse acabado. Lágrimas começaram a brotar de seus olhos e a escorrer pelo seu rosto, pois já estava quase na hora de ir embora e jamais conseguiria o valor novamente. Colocou a mão sob a ferida. O que a esperaria esta noite? Não sabia. Só sabia que em breve teria que voltar para casa. Olhou para cima como que procurando ajuda, mas só viu as estrelas. Quantas estrelas tinham no céu? Chegava ao infinito? Infinito era o oito deitado...

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Você cruzaria a Bifrost1 sem olhar para trás?

“Eu estou te ligando do alto da ponte do arco-íris, Bibi. Isso não é incrível?” A beira de histeria nas minhas palavras me sobressaltou um pouco, mas não foi de todo inesperada. A passarela colorida debaixo das minhas botas de inverno contrastava com a paleta neutra e melancólica do céu acima do meu capuz. No meio de tudo isso, meu corpo era comprimido como o recheio branco de uma bolacha Oreo esmagada por uma bochecha de bunda contra um assento qualquer. Mentalmente calculei que horas deviam ser em São Paulo. A operação de subtração não levou mais do que dois segundos e foi menos dolorida do que a habitual multiplicação no supermercado. (Felizmente, dá para encher de graça a garrafa d’água na pia do banheiro das estações de trem.) A buzina abrupta e insistente de um FlixBus verde avisou aos passageiros que partiam a Bruxelas que era agora ou nunca. É engraçado como não importa em que país você esteja, impaciência soa sempre igual. Abigail riu, me lembrando de que, mesmo de tão longe, a bruxa ainda conseguia ler a minha mente nos momentos mais inconvenientes. Eu só tinha a voz dela no meu ouvido, mas minha memória reconstruiu com clareza a jogada para trás de cabeça, que sempre acompanhava aquele som. Eu costumava achar a risada dela tão gostosa. Não lembro quando foi que seus maneirismos inconsequentes começaram a me incomodar. “Deixa de piada, sua boba!” Ela me repreendeu. As palavras remetiam a brincadeira, mas o tom carregava um descaso velado que me irritou. “Me conta como está aí na Europa! Já conheceu muitas cidades? Pegou algum holandês gato?” 1 Na mitologia nórdica, Bifrost é a ponte que conecta o domínio dos deuses e a terra dos mortais.

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A Holanda é menor que o estado do Rio de Janeiro, pensei em dizer. Tem um aplicativo que te mostra em qual altitude em relação ao nível do mar você está. Não tem coisa mais esquisita do que constatar que, por mais que haja solo sólido sob os seus pés, a verdade é que você está a um dique de se afogar. Tem umas holandesas que são muito loiras e muito altas, mas as que eu acho mais bonitas são aquelas que sorriem com dentes tortos para mim, quando pergunto de que plataforma sai o trem para a cidade mais distante dali. Tem vezes que eu tenho vontade de me perder a caminho do aeroporto e não conseguir me encontrar. Tem vezes que eu me esqueço de colocar o celular para carregar só para poder ver quão grande será a minha lista de chamadas perdidas. Não sei por que continuo me surpreendendo quando a resposta é sempre a mesma. Não sei por que insisto em tirar e recolocar o chip crente que só pode ser um engano. “Todos os caminhos levam a Sloterdijk2, você sabia disso?” Interrompi a mim mesma quando percebi que não importava de onde eu partia, o destino era sempre o mesmo. O que eu queria dizer era que tinham muitas direções que eu gostaria de seguir, e apenas uma que eu estava com medo de encarar. Abigail soltou uma gargalhada. Sua súbita expiração beliscou o meu ouvido e eu tive que afastar o celular da orelha por um segundo, ou então correr o risco de vomitar bem na frente do guardinha da estação. Normalmente, eu não me importaria de passar vergonha diante de desconhecidos, mas naquele momento específico eu não conseguia me lembrar de como dizer: “não se preocupe comigo, estou bem”, em qualquer idioma humanamente compreensível. Acho que nem mesmo em português.

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Estação de trem/ônibus em Amsterdã.

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“Olha só! Já está até falando a língua local, né? Que bom!” Abigail continuou, nem me dando a chance de corrigi-la. A verdade é que ela nunca gostou das aulas de espanhol na escola (não como eu gostava, pelo menos), quem dirá das de inglês. “Aproveita muito aí viu, amiga! Quero ouvir todos os detalhes quando você voltar!” A saliva na minha língua era viscosa e pesada. Não sei se molhava minha boca para afinar um grito ou se entupia minha garganta para abafar um gemido. O lado bom de estar rodeada de estrangeiros é que, quando você se vê sem saber o que dizer, eles sempre assumem que se trata de uma barreira linguística, e não de uma deficiência interpessoal. Tenho a impressão de que as pessoas parecem mais dispostas a tentar interpretar os meus sorrisos, quando elas acham que existe uma frase eloquente e bem pensada por trás. Em casa, quando eu fico quieta, meus conterrâneos geralmente concluem que eu não tenho nada a acrescentar. Eles não percebem que não estamos falando a mesma língua. “Aprendi uma palavra nova hoje. Gezellig3. É uma palavra intraduzível para o português”, tentei explicar, mas saiu torto. O que eu queria ter dito é que saudade não tem um equivalente direto no holandês. Teve uma vez que um menino autista me contou que sentir saudades é amar quando se está longe. Pensei em falar isso a Bibi, mas achei melhor não. Ela nunca foi boa em lidar com meus sentimentos ambíguos. Mais uma risada desconfortável. Seguida por um silêncio constrangido. Será que você estava tão certa de que eu ia voltar e por isso nem se deu ao trabalho de me encontrar para dizer adeus? Ou será que tanto faz para você se eu estou ao seu lado ou a 9945 quilômetros de distância?

3 Palavra de difícil tradução que é usada para descrever ambientes aconchegantes, gostosos de estar.

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Abri a boca para lhe falar que andar de bicicleta sem capacete é menos perigoso do que fazer certas perguntas. Afinal, sobrevivi sem grandes sequelas a meu acidente em duas rodas, mas toda aquela conversa estava lentamente me matando. “Vou desligar agora, tá?” Abigail se apressou em dizer. “Só Deus sabe o quanto essa ligação deve estar te custando. Um beijo! Te amo!” Eu preferia que ela tivesse simplesmente desligado na minha cara. Antes de me mudar para cá, eu ouvia histórias tenebrosas de holandeses absolutamente sem tato que faziam os comentários mais obnóxios. Demorei a entender como a nossa costumeira “mentira branca” pode ser muito sombria. Às vezes, dói menos ouvir uma verdade obscura. Na tela do meu celular constavam exatos 60 segundos de comunicação. Me perguntei sobre as chances da Vodafone4 me reembolsar aquele minuto. (Veja bem, meneer5, houve um problema com a ligação. Eu não fiz a pergunta que eu queria ter feito. Eu não ouvi a resposta que eu precisava que ela me desse.) Da última vez que fui em uma das suas franquias, o mocinho no balcão elogiou a minha pronúncia da palavra alsjeblieft6. Não coube em mim mesma de tanto orgulho. Costumava ser tão difícil eu pedir coisas dos outros. Eu sempre ficava com medo de não suportar receber um não. (É que eu sempre completava na minha cabeça esses “nãos”: não estou com saudades, não volte para casa, não me importo, não te amo mais.)

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Companhia telefônica presente em alguns países da Europa. “Senhor” em holandês. 6 “Por favor” em holandês. 5

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Foi depois que eu fugi para a Holanda, para fugir de você, que eu percebi que só estava fugindo de mim mesma. Foi depois que eu quebrei o dente mordendo o seu nome que tive de me virar para encontrar um dentista que consertasse corações partidos. Foi depois que ameaçaram chamar a polícia para me prender que consegui erguer os ombros e falar “quem vai chamar a polícia sou eu”. E foi depois que roubaram todos os meus souvenirs dos meus tempos longe de casa que eu me lembrei de que, antes de aprender holandês, eu já falava um pouco de francês, e que lembranças são muito mais do que globos de neve feitos na China (apesar de eles serem ótimos também) e que diferentemente dessas bugigangas de água e vidro, verdadeiras lembranças são muito mais difíceis de serem despedaçadas. Mesmo quando são elas que estão te deixando aos pedaços. Tinha 2% de bateria no meu celular. Com o 4G ligado, pensei, é o suficiente para mandar uma última mensagem de WhatsApp ou para checar o horário de partida do próximo ônibus.

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Inveja Não aprendi a ser o que sou. Carrego, Desde a embriogênese do psiquismo, O irrefreável desejo profundíssimo De tornar-me meu ideal de ego. Ser o olhar d’outro, mesmo qu’inda cego – Que ideal extático anseio e cismo! – E teimo, e sofro, e suo, e limo (!) A fim de enfim chegar ao fim que enxergo. Que horror à vida, e que ódio à morte Ver n’outro não a minha própria sorte Mas o fulgente gênio que não tenho… Ser sempre o análogo, o galho seco Trazer no peito a peste em que me perco Trazer no cenho o sonho de outro cenho...

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O Quadrado de Sofia

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As mãos engorduradas de Sofia Mexiam seu cabelo em caracóis.

O quarto estava quente e quase opaco, Num abafado amargo sem janelas, E o tempo do relógio na parede Lhe dava mais que medo e excitação.

Sofia repetia a cada instante Que tinha que ser bela e pura e calma Pois pode dar azar a vez primeira Ser menos que um depósito de sonhos: “Tragédia no começo traz tragédia; O medo traz mais medo — assim pensou Se o homem se atrasou, problema dele, O tempo está correndo — ele é quem paga”.

No amargo do abafado, respirava; Sofia agora não pertence a si.

Sofia quis fumar, mas recordou-se Que aquilo iria contra as instruções. Mexeu nos caracóis, hipnotizada, Olhou seus tornozelos em talude

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E se sentiu tão frágil, tão ridícula Que quase levantou. Mas seu lençol Lhe dava a gentileza que faltava Ao ar do quarto. Respirou, tranquila.

Sofia adormeceu, e nos seus sonhos Dormia. Em seu domínio, tudo é luz.

A trave do seu quarto azul bebê Guardava a porta fina de madeira Na qual ninguém passava há duas horas Marchando em frente, apenas, como espectros.

O gosto em seu sorriso se abalava Enquanto lhe cobrava a vaidade: “Tragédia no começo traz tragédia!” Pensou, e abriu seus olhos, assustada, E, ainda embriagada em mel de sono, Se levantou, coberta em seu lençol, Abriu a porta fina de madeira E olhou à sua esquerda — não viu nada. Mas uma voz tranquila e confiante De uma mulher nervosa e confiante Que, em passos alquebrados, sibilava

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A língua que, mexendo-se qual faca, Articulava, em frases flutuantes, Comandos — como códigos secretos Que tiram cada véu de força própria E botam, no lugar, feitiços prévios Que encantam e conduzem almas fracas A mares nebulosos — à direita Passando qual tufão macio da fala Dizendo “Vem Sofia, já acordaste! Sacode teus gambitos. Vem! dá beijo; E cumprimenta teu cliente: agora Que derrotou o trânsito. Que coisa! Mas gente grande enfrenta sempre entraves; É um homem importante. Não é mesmo?”

E, reparando o homem cima a baixo, Seus olhos injetados, seu bigode, As rugas no pescoço vil-vermelho, A faixa do chapéu roçando a testa Sem fios de quase nada e oleosa, E os riscos da barriga quase côncavos, E os tornozelos magros que vestiam Um par de meias caras cinza-claro E o terno cinza, as bordas do relógio

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De ouro e suas orelhas — e o bigode, Sentiu-se qual gazela na savana, Buscando a rota-fuga de um leão.

“Vem cá, Sofia, disse a cafetina, Não disse que era tímida? Mas calma, Pois ela já vem vindo. Não, Sofia?” E então, tal como flauta, miscizando A cobra com seu cobertor de urina, Sofia obedeceu em passos tristes E um pouco em descompasso. Disse oi.

O tempo dobra cinza a quem pragueja Mas, a quem sente o seio em rotação, É rubro — seu dobrar se faz veloz.

Passando o braço fino na cintura — Rezando que seu terno fosse grosso A ponto de abafar a tremedeira — Levou o corpo velho e enrugado Ao quarto — “Então é esse o desafio!, Coragem no começo traz coragem!” — E agora o segurava pelos dedos Das mãos engorduradas de menina.

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No pátio do motel, as solas quentes De tênis e sapatos crus e caros Faziam com que o som neon das luzes Se misturasse aos berros e gemidos Dos homens e mulheres de outros quartos — Daqueles, verdadeiros, destas, falsos — Se sobrepondo ao mudo tiquetaca De seus relógios postos como em série Nos cubos que guardavam velhos mundos Contíguos ao quadrado de Sofia.

Sorrindo, fez um gesto em ouro tátil, Dizendo ao homem velho que sentasse Na cama, ela voltava em um segundo. Mas ao virar-se, o tempo, servo e dono De tudo o que se eleva, fez mais forte Seu ritmo, e no seu seio, fez a sístole Acelerar seu ciclo, e ser mais duro Seu gesto, seu semblante — sua ternura! Que o homem não perceba! Pois tragédia No início traz tragédia, mas coragem... Coragem, seja minha — abriu a porta Do sanitário, e olhou em si, Sofia, Confia em seus segredos, diz, Sofia,

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Confia e faz, e abraça o seu destino, E sopra o semi-enredo de um fracasso Às margens de sua vida, sim, Sofia, Não há mais fome, não há mais sorrisos De mármore doente, não há câncer Da mente, não, Sofia, és pura, és grande, És bela, és forte, impávida Sofia, E olhando-se no espelho, teve medo Que o seu suor borrasse a maquiagem Do pulso, mas Sofia, vê, Sofia, Seus dados rolam, volta e faz, Sofia, Um homem ter prazer. Sofia, os olhos De sua alma saem pelos olhos Do corpo. Mas agora és bela e pura, E tens calor, e a tez macia exala Desejo e tentação — estava calma.

Então fechou os olhos. Em sua mente Sorria. Em seu domínio, tudo é luz.

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O Choro de SebastiĂŁo

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Sentado no sofá, bebia whisky, enquanto relembrava os risos altos que vinham lá do quarto outro dia. Morava de favor naquela casa da rua Real Grandeza - Botafogo, na qual praticamente todo dia alguém soltava risos, berros e gemidos (e os berros quase sempre eram do Fábio). O Fábio estava viajando. Agora, ele estava só, à noite. Olhava a própria mão de dedos gordos, enquanto imaginava repousá-la nas mechas do cabelo de uma amada. Não que jamais houvesse feito isso, já tinha certa experiência, veja, mas quando não se paga a companhia, talvez seja melhor, mais belo e calmo. Mas como poderia imaginar? A vida às vezes simplesmente escolhe alguns pra nunca ter felicidade. Largou o copo já vazio, deitou-se, tranquila e lentamente, com cuidado, pra não estragar no couro o black power. Sentiu no ar o cheiro do sovaco, tentando se lembrar há quanto tempo vestia aquela roupa. Não lembrava. Mas tudo bem, era por pouco tempo, e em breve tudo iria melhorar. Por ter deitado sobre o lado esquerdo, sentiu seu coração batendo forte. Estava muito próximo ao encosto, por isso, toda vez que respirava, sentia no nariz o próprio hálito, e por ter que deixar os pés pra fora, estava já com dor nos calcanhares. Ouviu pela janela o som do rádio, falando de um Mustang cor de sangue. Então se levantou, com raiva e úmido, abriu a porta azul do quarto grande, e disse com seu queixo lá no alto: “sou eu quem ri agora nesse quarto”. Ao se esticar na cama, suspirava, seus ossos estralaram, e suas costas, acostumadas a ficarem curvas, lembraram que estar reto era melhor. O travesseiro estava um pouco sujo, cheirando a Fábio e algumas outras nucas. Sorriu, pois algo em si já percebia que aquilo era o começo da virada, “se é pra apanhar calado, venham, batam, mas nunca parem, pois nesse momento terão que me aguentar bater pra sempre”. Mas quando percebeu que seu cansaço não pôde ser mais forte do que a ânsia de fazer algo, – agora! Alguma coisa! – se levantou e foi até o banheiro. Mijou no chão, na pia, na lixeira, só pela diversão, pela piada, se arrependeu e foi buscar um pano.

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No meio do caminho, viu o pôster de uma morena nua, que o olhava, em frente ao mar azul do Taiti. E a solidão bateu tão de repente, que de seus olhos não brotaram lágrimas, pois lágrimas são fruto da tristeza que assola o coração na superfície e aquela solidão era profunda de um jeito que não dava pra entender. E de uma vez, lembrou dos seus fracassos, da busca por sucesso e por amores, de estar de volta ao seu país apenas pra ver chamarem de Rei alguém tão falso, que não cantava bem, e era perneta, e o outro ingrato, a quem ele ensinara tocar o violão, os dois traíras, os dois negavam dar alguma ajuda, só porque ele era preto, e pobre, e gordo, e o Fábio só ajudava por ter pena, e o nosso herói cantava o blues maldito de quem precisa ser a própria casa. Sentia que que queria falar algo, mas não sabia o quê, nem quando, e como, mas ele deveria, sim, ter chance, pois todo mundo deve ter motivo, e ter direito ao sonho, um sonho belo, e as notas que tocavam, como harpa, seu peito que sentia a dor do mundo, pediam pra sair, não tinha jeito. Então Sebastião voltou pra sala, pegou seu violão e sussurrou: “Ah... Se o mundo inteiro me pudesse ouvir...”

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Quando

criança, costumava largar minhas coisas pela casa e tomar bronca por

isso. Minha mãe, muito supersticiosa, talvez por causa da influência dos meus avós, reclamava de tudo, desde guarda-chuvas abertos dentro de casa até chapéus em cima da cama. Mas nada a ofendia tanto quanto deixar chinelos de ponta-cabeça. Lembro da sua voz soar, não raivosa, mas como de traição genuína. — Você quer que eu MORRA, então? Isso que quer? Faltava à minha mãe a informação de que eu não sabia nada sobre essa superstição. Toda vez que eu esquecia-os virados, ela se ofendia e ia para outro cômodo com tanta raiva que eu preferia ficar sem saber o motivo a questioná-la naquele estado. Mas como a curiosidade era grande, procurei alguém que me contaria a verdade sem pudor algum, o vovô. Quando chegamos na casa dos meus avós numa semana qualquer, cor-

ri para perguntar-lhe. Eu tinha por volta de dez anos nessa época. — Vô, por que não pode deixar chinelo virado? Ele sorriu em resposta. — Sua mãe morre! — falou levantando as sobrancelhas como se fosse uma constatação lógica.

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— Mas por quê? — Depois do almoço eu te conto. — Ele sabia que aquilo me deixaria morta de curiosidade e que, quando chegasse a hora da história, eu prestaria atenção como ele gostava. Hoje penso que ele devia se sentir entediado quando não estávamos lá. Seus cães não lhe davam uma atenção tão apaixonada quanto a nossa e minha avó já sabia de cor suas historietas. Comi tão rápido quanto a curiosidade me tomava. Mal senti o sabor. Quando minha mãe se surpreendeu positivamente com o fato, meu avô disse sorrindo “de nada.” Quando ele pegou uma xícara de chá e seu cachimbo, eu soube que era hora. Segui o senhor que batia na barriga em satisfação até a varanda. Ele se sentou, acendeu o cachimbo, tomou um gole do chá e começou. — Bom, você sabe que nem todas as filhas são boas e doces como você, certo? — Me olhava por trás do princípio de fumaça do cachimbo, aguardando uma confirmação. Ele costumava levantar apenas uma sobrancelha quando queria uma resposta. — Acho que sim. — Isso. Há gente que acha que os cuidados das mães atrapalham suas vidas. Que horário para chegar em casa é bobeira. Tsc — Baforou uma bo-

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linha de fumaça — Em parte, é culpa dos pais por não explicarem. Outros filhos odeiam estudar, acredita? — confirmei apesar de não me surpreender com isso. Ir à escola era bem chato. — De qualquer forma, o que você faria se sua mãe te impedisse de fazer algo? Dei de ombros. — Machucaria ela? — Levantou a sobrancelha. — Não! — respondi chocada. Ele pareceu satisfeito. — Porque é uma ótima filha, mas nem todas são. — Olhando para o horizonte agora, tirou o cachimbo por um instante para tomar outro gole. — Há muito tempo, uma garota de uns quinze anos, se não me engano, queria muito ir a festas com seu namorado mais velho e os amigos dele. Sua mãe, que eu honestamente acho bem bacana, permitia, contanto que a garota voltasse até às 23h. É um horário ótimo para uma jovem de quinze anos, não acha? — Não me deu o sinal, então não respondi. — Mas a garota não estava satisfeita. Odiou a condição e achava que a mãe queria atrapalhar sua vida. Besteira! Mas, pouco a pouco, seu ódio pelo horário se transformou em ódio pela mãe e então, ela começou a escapar tarde da noite para a farra. Outro gole, respirou fundo e, fechando os olhos de leve, olhou direta-

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mente para mim e perguntou baixo: — Faria isso? Balancei a cabeça negativamente com bastante energia. — Boa decisão. Continuando, o namorado dela era, na realidade, o grande vilão. A garota, por si só, nunca faria nada demais, apesar do ódio. Contudo, o rapaz mal-intencionado fazia sua jovem cabeça e, somado à natureza vil da garota, deu no que deu. — Vovô — interrompi —, o que é vil? — Perdão, significa mal. — Ah. — Enfim, as escapadas não duraram muito. A mãe descobriu quando, numa noite fria, foi checar se sua filha estava bem coberta e descobriu a cama vazia. Após dar uma bronca na menina, passou a trancar as janelas e portas durante a noite e a proibiu de ver o rapaz. Não fosse o tamanho da vileza, digo, maldade do rapaz e da garota, teria dado certo. Mas daí os dois bolaram um plano cruel. — Neste ponto, percebendo minha tensão, sua voz ficou mais baixa e grave. — Seu namorado tinha livros estranhos, do tipo que ninguém deve ler. E num desses havia um encantamento. Magia sinistra. Não direi o nome, pois apenas isso já é o suficiente para atrair coisas ruins.

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Ele apoiou seu chá na mesa e olhou para trás verificando se alguém estava ouvindo. Quando viu que minha avó e mãe estavam longe, abaixou a cabeça e começou a sussurrar rápido. — Uma magia que chamava um ser da escuridão que tem apenas uma função: matar. — Eu estava inclinada agora, provavelmente boquiaberta.

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— Ela fez a magia, falou as palavras que não se deve pronunciar e esperou. — Ele falava olhando para os lados como se me contasse algo que ninguém deveria saber. — Para funcionar, ela teria que ficar no escuro e pensar em quem queria que morresse. Assim ela o fez. Meu avô voltou ao seu lugar e terminou o chá. — A criatura viria quando ela dormisse no escuro, cutucaria seu pé e sussurraria: “Já... posso?” — Nesse ponto fiquei tensa. Imaginar algo me cutucando e sussurrando no meio da noite me parecia terrivelmente assustador. — Quando ela estivesse decidida, como um sinal para que a criatura matasse quem quer que estivesse nos pensamentos dela, ela deveria virar um par de calçados ao contrário e a morte se concretizaria. Naquele momento entendi onde a história iria. — Ela virou? — perguntei sussurrando. — Sim — falou em tom severo. — E, na manhã seguinte, encontrou sua mãe fria e morta de olhos abertos com uma expressão de dor ao lado da cama. Uma pena. — Ele tencionou os lábios — O problema é que a criatura nunca fica satisfeita. Toda noite a acordava pelo menos três vezes perguntando: “Já... posso?”. Ela gritava dizendo que não queria mais matar ninguém, que já não precisava dele, mas ele tornava a acordá-la. A cada

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três horas. Toda noite. — Ela fez o quê? — perguntei. — Primeiro ela brigou com o namorado que num momento de raiva bateu nela. Ela ficou com tanta raiva que naquela noite pensou no nome dele e virou os chinelos. Aí já sabe. — Soprou fumaça e balançou a cabeça negativamente. — No fim, ela começou a ficar depressiva com tantas noites sem dormir e a atormentação sem fim e começou a desejar que ela mesma morresse, até que um dia a criatura não a acordou.

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— Por quê? — Nesse dia, estando muito cansada, ela esqueceu os chinelos virados e, ao deitar, pensou na sua própria morte. A criatura tinha o que precisava e assim, alguns dias depois, encontraram seu corpo na cama com uma cara de dor profunda. Por isso não se deve virar os chinelos. Não quer arriscar um dia ser acordada no meio da noite e ouvir sussurros ao lado da sua cama dizendo:

“Já... posso?”

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Árvores Não Reclamam

Uma luz irritante arde nos meu olhos No vislumbre de um sentimento sublime Eu estou vivo Tento absorver energias daquele sol Que brinca com a minha sanidade Aquele sol que já me viu chorar Que já me viu gritar Que já me viu humilhado

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Já me viu rir

Sorrir Agradecer Já me viu crescer É, meu amigo, muita coisa se passou E eu continuo irritado com a sua luz Por quê?

Não te contei que às vezes me escondo para chorar no escuro Porque acho que você está cansado de ver minhas derrotas Eu também estou Meu coração até mesmo desacelera Como se também quisesse desistir Até você? Que sempre bate Firme e forte Me mandando prosseguir

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Cansei de te amaldiçoar, Vida Tem vezes que nos tornamos amigos dos nossos piores inimigos As lágrimas salgadas Não tão pesadas quanto as últimas Mas nem um pouco mais leves do que as próximas Cheguei à teoria de que A cada lágrima Uma gota de mim se vai E menos eu sou Eu

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Menos meu corpo quer se abalar Mais eu me sintonizo à calmaria de uma tarde de inverno E ao silêncio das árvores que não reclamam Pouco a pouco Eu estou indo Para só agora perceber Que nunca foi uma questão de vida ou morte A paz simplesmente encontra você Só quando ela quer.

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desenho

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queles fios de cabelo preenchiam completamente o seu campo de visão, atraindo o seu olhar como um ímã. Encarava, absortamente, a nuca da pessoa sentada à sua frente, sendo incapaz de desviar os olhos. Os fios eram curtos e negros, não completamente lisos, mas ondulados, desgrenhados, naturalmente despenteados.

A

Já fazia algum tempo que seus olhos haviam sido capturados pela silhueta dela: observava não apenas seu cabelo, cujas pontas se enrolavam ao fim das pequenas ondas escuras, tão finas e leves, como também a nuca alva, o pescoço e os ombros, as costas sempre eretas, as sardas do nariz, onde se encarapitavam os óculos de uma cor marrom, quase grandes demais para seu rosto... Tudo que vinha dela não podia ser descrito por outra palavra a não ser fascinante, desde a forma que se concentrava nas explicações do professor, passando pela maneira como ajeitava os óculos no rosto, até a mania de morder a ponta da caneta e o conhecido gesto de bagunçar os cabelos. Se alguém lhe dissesse, meses atrás, que haveria um dia em que admiraria um quadro vivo pintado dentro de sua própria sala de aula, negaria com veemência e riria de escárnio. Entretanto, dia após dia, mais o seu olhar seguia cada gesto da garota da carteira da frente. A primeira vez que a palavra capaz de nomear o que sentia pela moça perpassou seus pensamentos, apertou os olhos e balançou a cabeça com força na tentativa de espantar aquela ideia para longe, tal qual espantaria um irritante mosquito. Nunca uma garota lhe chamara tanto a atenção. Durante toda a sua vida, seus não tão longos dezenove anos, apenas meninos haviam despertado seu interesse. Porém, lentamente, ela se via mais e mais entorpecida pela simples presença daqueles cabelos negros. Quando Luiza entrava na sala, esse era o nome daquela capaz de lhe despertar até então desconhecidos desejos, todo seu corpo se tornava consciente da presença dela. Cada célula, cada poro da sua pele, desde seu dedão do pé até o último fio de cabelo, todo o seu corpo sabia e sentia a presença de Luiza, totalmente consciente de que ela chegara.

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Seus ouvidos conheciam o som dos passos da moça e se deleitavam com o tom da sua voz quando ela lhe dirigia a palavra. A garota pronunciava o nome da outra de forma muito carismática, acrescentando uma força maior à sílaba tônica. A maneira simples como Luiza pronunciava as sílabas de “Júlia” já era o bastante para deixar a dona do nome embevecida. Júlia adorava ouvir a voz de Luiza dizendo seu nome ao lhe falar animada sobre os livros que lia, assim como adorara o dia em que esta puxara um dos cachos dos volumosos cabelos de Júlia para baixo dizendo gostar muito deles, logo depois de elogiar o traço da mesma num dia em que a surpreendera desenhando. Por sorte, naquela vez Júlia desenhara um personagem comum, diferente do que normalmente acontecia, quando distraidamente desenhava a própria Luiza. Seus rabiscos, que antes se juntavam para formar paisagens e diferentes personagens, agora se organizavam para formar a silhueta daquela que tanto observava, seus cabelos, nuca, ombros e costas. Seus sonhos, anteriormente tão corriqueiros, também eram agora recheados de Luiza, nos quais ela se via sempre muito próxima da outra, às vezes até segurando-lhe as mãos, sentindo toda sua suavidade, tal qual acontecera no dia em que os dedos de ambas se encontraram ao tentar pegar a mesma caneta. Enquanto observava Luiza na aula, a voz do professor era apenas um chiado e Júlia se via controlando seu impulso de esticar a mão até a garota. Queria remexer-lhe os cabelos, inspirar de perto a fragrância de shampoo que deles se desprendia e o perfume amadeirado que ela exalava, descobrir qual gosto possuíam os lábios de Luiza... Ao se dar conta deste pensamento, Júlia enrubesceu. Por mais que tentasse afastar aquela palavra com P de sua cabeça, havia coisas que não podiam ser negadas: o discreto sorriso de Luiza era reluzente como o Sol. Inspirou profundamente, enchendo os pulmões de ar. Olhou para a folha de seu caderno onde não constava nenhuma anotação da aula daquele dia e começou a desenhar. Não um desenho de Luiza, mas um para Luiza. Um desenho convidando-a para sair. Uma vez com o desenho terminado, Júlia pensou em rasgá-lo, amassá-lo, dar um fim nele, talvez o engolir para que nunca mais houvesse nenhum registro daquilo. Entretanto se controlou. Esperou, ansiosa, até que 116


o burburinho da voz do professor cessasse encerrando a aula. Então, com o coração batendo tão forte quanto a percussão de uma bateria e seu peito pulando como um folião, levantou-se decidida. Não disse uma palavra, se tentasse falar nenhum som seria proferido. Passou pela carteira de Luiza e deixou o desenho, saindo da sala em seguida. E o estudante com quem cruzou no corredor no exato instante em que deixou a sala, contou para um amigo alguns minutos depois, que não havia muito se encontrara com uma menina negra de cabelos cacheados andando a passos apressados, com o rosto muito corado, cujas batidas do coração ele foi capaz de ouvir.

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Sol Salgado Trabalhavam há horas na plantação, Francisca segurava o filho pelo pulso, guiando-o resignada. — Mamãe… — grunhia Chiquinho com a boca seca — preciso descansar, mamãe... A mulher lentamente virou-se em direção ao pequeno e, sem dizer uma palavra, colocou-o sobre a arcada ossuda de seus ombros. Ainda havia algodão pra colher. Francisca sentia a respiração de Chiquinho no cangote e não sabia distinguir se a presença do filho a acalmava ou afligia. Se, por um lado, ele era sua única companhia no mundo; por outro, era fruto de sua carne. Companheiro de infortúnio ligado pelo mesmo sangue miserável. Enquanto caminhava, a mulher contemplava a imensidão do campo. A pureza daquele matagal a censurava com repugnância. Francisca passara a maior parte de sua vida devota a paixões narcóticas pelo centro da Grande Cidade. O seu grande amor foi a bebida: os encontros casuais começaram no inverno, época do ano em que os ventos gelados chicoteavam suas costas com tamanha impetuosidade, que ela se prostrava perante o frio como escrava suplicante. O gosto amargo do álcool descia por sua garganta queimando tudo em que tocava, acendendo no estômago vazio um fogo inebriante que logo a fazia dormir. Avistou no vasto campo um local com muito algodão a ser colhido. Retirou de seus ombros Chiquinho, cuja boca estava selada pela sede, e o acomodou num canto perto dela O sol estava a pino. Francisca pensou que deveria

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ser meio dia, e a confirmação do horário veio com uma dor azeda na côncava barriga. Pressionou suas mãos contra o ventre, a fim de atenuar as corrosivas pancadas da fome. Lembrou-se que tal gesto era, outrora, feito para silenciar suas gestações. Francisca havia engravidado diversas vezes no passado e atribuía a paternidade de seus filhos à bebida. Ela interrompia as concepções sem nenhum impedimento; recorria a métodos que, assim como ela, eram marginais e brutos. No que a gravidez de Chiquinho se distinguiu das demais? A princípio, em nada; mas aconteceu do menino ser resistente e após algumas tentativas falhas de se desprender dele, Francisca começou a desenvolver um rascunho de afeto por aquele ser amorfo. A mulher manuseava o algodão. Suas mãos ásperas estranhavam aquela suavidade quase celeste. Enchia o punho de bolotas alvas e habilidosamente as colocava na grande sacola. Chiquinho murmurou: — Mamãe, o Sol é salgado? Francisca interrompeu o trabalho e se aproximou do menino, que mais parecia estar dormindo: — Claro que não, meu filho... por quê? — Porque ele fez a boca da gente amiudar, amiudar... que nem quando comemos algo salgado. Preocupada, a mulher encostou a palma da mão na testa do pequeno: ele ardia em febre. Francisca olhou-o consternada. Aqueles olhos suplicantes... No dia do nascimento do menino, ela pensou que fosse morrer. Seu corpo raquítico parecia não dar conta de algo tão vigoroso quanto dar à luz um novo indivíduo, e até mesmo os próprios médicos já estavam certos de sua morte. Contudo, a hora de Francisca ainda não havia chegado e, após o parto turbulento, ficou duas semanas em total repouso sem ao menos ver o filho. Quando o encontro finalmente aconteceu, ela sentiu náuseas; o peso daquele corpo leve despertou nela sentimentos múltiplos que a fizeram querer vomitar toda a inquietação pra fora. Mas ao olhá-lo no rosto, reconheceu-se. Quis rir e apertar o seu pequeno... o seu pequeno o quê? Ele não tinha um nome. Francisca pensou muito, mas ela não conhecia tantos nomes assim. Chamou-o então de Chiquinho. O menino estava delirando. Francisca não tinha para onde correr nem a quem recorrer, estavam no umbigo da plantação e a carreta que os levava ao abrigo demoraria ainda para passar. Ela então aninhou o corpinho frá-

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gil no seu colo. O padecer de Chiquinho era sua culpa, pensou; havia sido ela quem condenou os dois àquele labor exaustivo. Depois que o menino nasceu, os dois ficaram alguns anos morando na rua e vivendo de esmolas. Ela havia largado a bebida e, desde então, aguentar o frio da Grande Cidade voltou a ser um problema. Não só um problema, como uma tortura: observar o próprio filho se contorcer em busca de calor e não poder fazer nada para apaziguar aquela situação, faziam-na querer gritar de agonia. Foi quando, há uns três meses, um homem engravatado a abordou na rua oferecendo emprego e moradia no interior. Francisca perguntou se poderia levar o filho e a resposta positiva do bondoso senhor encheu seu peito de esperanças. Na noite daquele mesmo dia, mãe e filho foram levados até uma espécie de construção maciça. Lá, encontraram outros miseráveis que, assim como eles, estavam fadados a uma vida de trabalho exaustivo e de necessidade extrema. Já fazia uma semana que não comiam direito; e para agravar a situação, o fosso de onde eles tiravam água tinha secado completamente nos últimos dois dias. O menino definhava por fome e sede. Chiquinho começou a sentir o salgado da boca tornar-se doce. Era como se as feridas esbranquiçadas de seus lábios estivessem sendo curadas por um mel que vinha de um lugar misterioso. A viscosidade daquele líquido açucarado, aos poucos, envolvia seu corpo modesto e saciava sua fome. Ele colocava a pontinha da língua em contato com o beiço para sentir melhor todo aquele mélico sabor. — Mãe, é doce, mã… — seus olhinhos já estavam praticamente fechados. O peito de Francisca ardia de tal maneira que álcool nenhum fizera arder. Mais uma vez, sentiu pesar em seus braços a leveza de Chiquinho. As costelas do menino haviam parado de subir e suas pupilas miravam o céu com indiferença. A mulher beijou a testa do cadáver, colocou-o no chão e continuou a colher o algodão. Ainda havia trabalho a ser feito.

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AUTORES A Bola Azul Theo Caram de Moraes Miguez theocmiguez@gmail.com

A Bagunçada Casa de Rosemary Andreza Silva andrezassilvas@gmail.com A Boneca Ingrid Souza Lima ingrid.caixeta@usp.br

A Lacuna Dindara Galvão dindara.galvao@usp.br

A Nota Sabrina Gonçalves sah_goncalves@usp.br

Ansiedade Felipe Enrico Perini felipeenricop@usp.br Casa da Dona Alice Ana Gabriela Zangari Dompieri anagabrielazd@usp.br

Árvores Não Reclamam Felipe Enrico Perini felipeenricop@usp.br Chinelo Virado Vinícius de S. P. Bonfim vdesouza0@gmail.com

Da Guerra às Rosas Thomas Fisch thomastvfisch@gmail.com

Desenho Andreza Silva andrezassilvas@gmail.com

Dia Comercial #001 Marina Kao marina.kao@usp.br

Fogo Isabel Villas Bôas Bonacella isabel.bonacella@gmail.com

Gramatura Marina Fodra marina.fodra@hotmail.com

Hipótese Marco A. B. Montevechi Filho marco.barra.filho@usp.br

Inveja Gustavo Oliveira do Nascimento gonascimento@usp.br

Maria, Cave Rafael Estevam Guerra rafael.estevam@usp.br

Node Giulia Jardim giulia.jardim.m@gmail.com

O Canto Maldito do Meu Corpo Thiago Sena thiago.sena@usp.br

O Choro de Sebastião Pedro Vittorio pedrovittorio@gmail.com 122


O descalço, seu Emanuel Marina Kao marina.kao@usp.br

O Pavó Marlon A. A. Souza marlon.souza01@yahoo.com

O Quadrado de Sofia Pedro Vittorio pedrovittorio@gmail.com

Poema da Partida Praieira Thayna Nascimento thayna.nascimento@usp.br

Poema Natimorto Daniel Gilio Tiglea daniel.tiglea@gmail.com

Poema Passageiro Solange Santana sol@usp.br

Sobre o Inalcançável Tempo Rodrigo Lyra roplyra@gmail.com

Sobre os Tamoios Laura Lisboa lauralisboa@usp.br

Sol Salgado Laura Fajardo Yamagishi fylaura@gmail.com

Soneto Espúrio Daniel Gilio Tiglea daniel.tiglea@gmail.com Você Cruzaria a Bifrost Sem Olhar Para Trás? Natasha Takuno Hespanhol natasha.hespanhol@usp.br

Sonho da Vó I. F. E. dos Santos ifeds@live.com Zé Povinho Vinícius de S. P. Bonfim vdesouza0@gmail.com

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EQUIPE COORDENAÇÃO GERAL Amanda Tiemi Nakazato Luisa Marcelino Silva EDITORIAL E REVISÃO Isabella Silva Teixeira (coordenação) Thais Moreno (coordenação) Amanda Fujii Amanda Tiemi Nakazato Arthur Pereira Trezza Brunna Carielo Camila Somera Camila Gonçalves Daniela Orlandi Iana Maciel Igor Souza Ingrid Dias Isac Araujo dos Santos Jade Magave Luisa Marcelino Silva Luiza Badra Mariana Gomes Thiago Gentil Víctor Soares Bittar

ARTE Arthur Pereira Trezza (coordenação) Amanda Fujii Amanda Tiemi Nakazato Beatriz Alves Brunna Carielo Camila Gonçalves Camila Somera Iana Maciel Isac Araujo dos Santos Isabella Silva Teixeira Luiza Badra Pedro Botton Thais Moreno Thiago Gentil

CAPA Amanda Tiemi Nakazato Camila Somera Isac Araujo dos Santos Luisa Marcelino Silva REALIZAÇÃO Com-Arte Jr. APOIO Artes Gráficas Giramundo

DIVULGAÇÃO Amanda Fujii Amanda Tiemi Nakazato Brunna Carielo Camila Somera Clara Suaiden Daniela Orlandi Igor Souza Isabella Silva Teixeira João Lucas Zuvela Kosce Luisa Marcelino Silva Luiza Badra Mirela Cavalcante Thais Moreno Thiago Gentil


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Rua Humaitá, 155 Bela Vista contato: (11) 3105-2807 giramundografica@gmail.com


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