FOTOJORNALISMO EM COMUNIDADES QUILOMBOLAS: O registro do ocaso de uma cultura

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FOTOJORNALISMO EM COMUNIDADES QUILOMBOLAS: O registro do ocaso de uma cultura
Priscila
Silva
Kauany
da

FOTOJORNALISMO EM COMUNIDADES QUILOMBOLAS:

O registro do ocaso de uma cultura

Kauany Priscila da Silva UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SANTOS

ÍNDICE PREFÁCIO ............................................................................. COMUNIDADES QUILOMBOLAS ......................................... CULTURA ............................................................................... CULINÁRIA ...................................................................... AGRICULTURA E PECUÁRIA ......................................... ARTESANATO ................................................................ RELIGIÃO ....................................................................... TRADIÇÕES .................................................................... AMEAÇAS ............................................................................ EMPREENDIMENTOS ................................................... LEGISLAÇÃO E INTRUSÃO .......................................... FALTA DE INFRAESTRUTURA .................................. PAINEL DE FOTOS ............................................................. 3 4 6 7 9 12 16 18 19 20 21 23 24

PREFÁCIO

As comunidades remanescentes de quilombos existem desde o período colonial. Apesar dos séculos de existência, estes assentamentos ainda preservam a cultura que se desenvolveu ao longo do passar dos anos, ditando o modo de viver das comunidades e as tradições passadas de geração para geração, como a culinária, a religião, festividades, agricultura, artesanatos, entre outros elementos. Tais costumes estão ligados diretamente à terra, visto que, durante e após a Abolição da Escravatura, este era o único instrumento que os quilombolas possuíam além do próprio conhecimento.

Hoje, a perpetuação desta cultura é ameaçada de diversas formas, pois os quilombolas convivem com desafios que os forçam a abandonar seus territórios, enterrando os costumes de seu povo, visto que estes são passados oralmente. Ou seja, quando os quilombolas se dissipam, este conhecimento se esvai também. Esta perda é inestimável para a cultura brasileira, visto que ela carrega elementos provenientes da cultura negra, a base da Nação.

Para preservar esses conhecimentos, é preciso não só investir na garantia dos direitos quilombolas, mas trabalhar na disseminação de seus costumes. Pensando nisso, este livro traz, em suas páginas, uma pequena amostra visual e contextual de elementos que tornam a cultura quilombola tão rica. Este material é fruto do Trabalho de Conclusão de Curso da aluna Kauany Priscila da Silva, da Universidade Católica de Santos, para formação no curso de Jornalismo, que registrou os modos de vida das comunidades Quilombo Sertão do Itamambuca, em Ubatuba, e Quilombo Bairro Peropava, em Registro, ambas no Estado de São Paulo.

O objetivo da pesquisa foi unir o fotojornalismo à documentação de costumes que vêm se perdendo com o tempo, mostrando a importância de disseminar parte tão essencial, mas tão desconhecida, da história brasileira. Desta forma, a preservação da cultura quilombola se aproxima mais da concretização, pois permite que as pessoas conheçam tais comunidades e seus anseios, mesmo que à distância, e passem a apoiar essa causa, que é, ou deveria ser, de interesse nacional.

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COMUNIDADES QUILOMBOLAS

Os quilombos eram formados por negros escravizados, fugitivos que, em meio a florestas, buscavam a liberdade que nunca poderia ser alcançada no ambiente aberto das cidades. Ao fugir dos senhores e se agruparem nas matas, os negros desenvolviam seu próprio estilo de vida: plantação para subsistência; confecção de artesanatos com técnicas trazidas do continente africano; prática da capoeira, como forma de defesa; e de religiões de matriz africana, todas características formadoras trazidas de sua terra natal.

Apesar da perseguição sofrida pelos quilombolas nos tempos da escravatura, o que os obrigava a mudar constantemente de local, muitos quilombos resistiram e existem até os dias atuais. Não com negros escravizados, mas com seus descendentes. Hoje, esses agrupamentos são chamados de “comunidades remanescentes de quilombos”, cujo termo também se aplica a comunidades formadas posteriormente a Abolição da Escravatura, por negros que permaneceram nas terras de seus senhores após terem sido abandonados por eles e por negros libertos, que não dispunham de emprego e nem terras para construir uma vida após terem sido dispensados sem dinheiro ou posses, tendo que procurar terrenos isolados para morar e sobreviver.

Com o passar do anos, os quilombolas ganharam uma série de direitos. O mais importante para os descendentes foi o direito de permanecer nas terras de seus ancestrais, concebido pelo Artigo 68 (ADCT) da Constituição Federal de 1988. Porém, apesar da promessa, um levantamento de 2019 da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), órgão responsável por emitir os títulos de terras pertencentes aos remanescentes de quilombolas, aponta que apenas 6 das 61 comunidades quilombolas existentes no Estado de São Paulo foram tituladas.

Mesmo diante do descaso, as comunidades resistem e persistem num modo

de viver específico, que ultrapassa gerações e que é mantido até os dias de hoje. São propriedades praticadas de modo praticamente contínuo, que utilizam a terra onde os quilombolas vivem como fonte de vida, de renda, de diversão e de cultura, guiados pela natureza.

Os demais aspectos da cultura remanescente, como culinária, artesanato, agricultura familiar, tradições, entre outros elementos, também são desenvolvidos de acordo com a terra e região onde as comunidades estão localizadas, e por isso variam de quilombo para quilombo. As comunidades que vivem perto das praias, por exemplo, vivem da pesca no mar; aquelas onde há mais cultivo de bananas, esta se tornou a fruta-base da alimentação; onde os quilombolas comercializavam seus produtos, as habilidades de confeccionar itens de forma artesanal são mais afloradas; e etc.

Por mais antigos e tradicionais que sejam os costumes das comunidades quilombolas, essa cultura permanece desconhecida para a população que vive fora destas áreas. Em razão disso, muitos povoados que contribuíram para o desenvolvimento da história do Brasil foram apagados pelo tempo e pela ação do homem, visto que a cultura negra sempre foi alvo de preconceito e constante desvalorização em diversos níveis perante o restante da sociedade.

Atualmente, com a velocidade da internet no compartilhamento de informações e ferramentas acessíveis para registro, como câmeras fotográficas e filmadoras, a disseminação da cultura quilombola além das cercas das comunidades se tornou mais fácil. Porém, ainda é necessário que haja insistência nesse processo, visto que tudo aquilo proveniente da cultura afrodescendente ainda sofre intolerância por parte da sociedade, não só brasileira, mas mundial.

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Maria Izidoro Alves, de 62 anos, pega os frutos secos de café nas sacas para mostrar a José Cabral, 65. Os dois quilombolas moram na comunidade Quilombo Bairro Peropava, em Registro (SP), e se conhecem há décadas. Assim como eles, o restante da comunidade mantém boa relação de amizade.

CULTURA

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Maria Regina (Foto 1) aprendeu a produzir alimentos a base de mandioca ainda jovem, no Quilombo Bairro Peropava (Registro, SP). Hoje, sua família fabrica a farinha da planta para vender e, com a goma, preparam receitas como a tapioca (Foto 2).

AGRICULTURA E PECUÁRIA

Na grande maioria das comunidades, a agricultura familiar é a principal atividade. Cada família do povoado conta com o próprio pedaço de terra para cultivar diferentes tipos de grãos, frutas, legumes e verduras, além de animais. As plantações mais comuns são de arroz, feijão, milho, café, cacau, mandioca, banana, cará, palmito, cenoura, abóbora, alface, cebolinha, batata, beterraba, couve, jaca, goiaba, limão e etc.

Cada espécie possui o próprio período de plantio, de acordo com as especificidades da planta. Não só isso, como também contam com rotinas diferentes de rega, adubação e desinsetização, técnicas também passadas de geração para geração. Em alguns locais, até mesmo o governo, em diferentes esferas, oferece oficinas e cursos de agricultura para contribuir com as práticas dos quilombolas, como no caso do Quilombo do Bairro Peropava, em Registro (SP), cuja capacitação foi ministrada pelo Governo do Estado de São Paulo.

Em muitos locais, a técnica de plantio é a roça de coivara, que consiste na derrubada de um pedaço da mata nativa, seguida por queima controlada, cujas cinzas fertilizam o solo e por isso não há necessidade de adubação. Depois, é realizado o plantio e a colheita, e a terra é abandonada para a vegetação se recuperar, enquanto outro local passa a ser utilizado para plantação. Além da agricultura, os povos quilombolas também costumam pescar e criar animais como porcos, galinhas, peixes, ostras e até abelhas, tanto para consumo próprio quanto para comercialização.

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Cacau Banana Chuchu Roça plantada Fruto do café Mandioca Café torrado Roça de coivara pronta para plantação

Os porcos são vendidos ou consumidos pelos próprios criadores; já as galinhas geram ovos e frangos, também para venda e consumo dos quilombolas; enquanto as abelhas são fonte de mel, geralmente comercializado. Na Foto 2 é possível ver a caixa onde as abelhas são mantidas e na Foto 3 há um fumigador, equipamento essencial na apicultura, visto que a fumaça produzida por ele afeta os insetos e diminui o risco do apicultor ser ferroado durante o manejo da caixa.

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ARTESANATO

Os artesanatos também são parte da tradição quilombola. Produzidos com matérias primas naturais, se tornam objetos que auxiliam no dia a dia da comunidade e geram renda para as famílias. São confeccionados, na maioria das vezes, acessórios e produtos para a casa, mas algumas comunidades também desenvolvem atividades diferentes como pintura na telha e produção de remédios e cosméticos com ervas medicinais.

Com a palha da bananeira, é possível confeccionar uma série de objetos, desde cestos e esteiras para uso próprio até acessórios, como bolsas e cintos, e itens para casa, como almofadas e tapetes. Variados tipos de bambu e cipó também são usados constantemente para a produção de cestos, balaios, vasos e outros objetos decorativos. Além da produção de bijuterias, com conchas e sementes nativas, e objetos de pano, como bonecas, almofadas e até roupas.

Em razão da produção artesanal, as peças não costumam ser produzidas em larga escala, mas sim por encomenda. Também é comum que os objetos sejam expostos em feiras e festas tradicionais, além de vendidos por lojas de artesanato e lembranças das cidades - com menos frequência.

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Benedito Domingos Leite (Foto 1), de 69 anos, aprendeu a fazer artesanatos quando ainda era pequeno e hoje produz as peças por hobby ou quando recebe encomendas. Ele, que mora no Quilombo Sertão do Itamambuca (Ubatuba, SP), fabrica cestos e balaios nos mais variados modelos e tamanhos, com diversos tipos de materiais, todos encontrados na natureza: imbé, timbopeva, taquarussu, fibra de banana, folha seca de palmeira (Foto 3) e bambu. A esposa de Benedito, Paula Maria Vieira Leite, 58, mostra algumas das peças nas Fotos 2 e 6. Na comunidade Quilombo Bairro Peropava (Registro, SP) também há moradores que produzem as peças artesanais. Jaredes Maria Izidoro Cardoso, de 55 anos, na Foto 5, é exemplo disso. Assim como Benedito, ela fabrica os produtos por encomenda.

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O quilombola Thiago Bruno, 75, da comunidade Quilombo Bairro Peropava (Registro, SP) mantém uma casa de farinha em sua residência, com equipamentos feitos artesanalmente pela sua família há algumas décadas. Apesar de produzir a iguaria raramente, ele guarda os objetos como lembrança e como forma de manter viva sua cultura ancestral.

Este pilão rústico, também produzido pela família Bruno, está guardado na casa de Thiago. Hoje existem versões mais modernas, que são pintadas, bem acabadas e enfeitadas com entalhes, porém, este exemplar demonstra a simplicidade com a qual eram produzidos os alimentos nas comunidades quilombolas antigamente.

Este pilão moderno acompanha socadores, também entalhados em madeira, artesanalmente, para moer diversos tipos de alimentos, como mandioca e arroz. Ambos os produtos são utilizados em diversos pratos típicos da culinária quilombola.

RELIGIÃO

Apesar das religiões de matriz africana terem sido trazidas pelos escravos e permanecido em algumas comunidades quilombolas, boa parte delas perdeu as raízes ancestrais e passou a seguir religiões cristãs como resultado da influência portuguesa trazida ao país e da forçada devoção dos negros a santos católicos durante o período nas senzalas.

Entre as religiões afro-brasileiras seguidas pelos quilombolas, se destacam o candomblé e umbanda. Já entre as cristãs, a maior parte segue o catolicismo e evangelismo. Porém, há grande sincretismo religioso nas comunidades, unindo tais religiões por meio de pontos convergentes entre as diferentes fés.

Este sincretismo pode ser visto em ritos e festividades religiosas tradicionais nas comunidades remanescentes de quilombos, como nas festas de Santo Antônio, Divino Espírito Santo, Recomendação das Almas e a dança de São Gonçalo, que mesclam o catolicismo com a cultura africana.

O quilombola José Cabral, do Quilombo Bairro Peropava (Registro, SP), mostra o local onde ficava a antiga igreja da comunidade, derrubada após conflitos com o terceiro que se apossou da terra onde esta estava situada. Apenas o fundamento do imóvel ainda permanece no lugar. Uma nova igreja já foi construída em outro local da comunidade.

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A maior parte dos moradores do Quilombo Bairro Peropava (Registro, SP) frequenta a Congregação Cristã no Brasil e por isso esta é a única igreja localizada no território (Foto 1). Essa igreja também está presente no Quilombo Sertão do Itamambuca (Ubatuba, SP), na região mais acima do bairro, chamada pelos quilombolas de “Casanga”. A comunidade ubatubense também abriga uma pequena igreja, hoje abandonada (Foto 2), que os moradores pretendem reformar e voltar a utilizar, visto que a Assembleia de Deus que havia no bairro, a qual a maioria costumava frequentar, foi derrubada por estar em área de preservação ambiental.

Nas Fotos 3 e 4 é possível ver o estado da igrejinha por dentro.

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TRADIÇÕES

Além da roça de coivara, culinária típica e artesanatos produzidos com matérias primas naturais, as comunidades quilombolas mantêm outras tradições que variam de localidade para localidade, como a capoeira, os ritos e festas tradicionais, que envolvem diferentes tipos de atividades, como dança, atos religiosos e produção de pratos típicos.

As festas mais populares são aquelas dedicadas aos santos cultuados pelas comunidades, bem como aos padroeiros, como São Pedro, Nossa Senhora de Aparecida, São Sebastião, Santa Cruz, Divino Espírito Santo, entre outros. Seguindo as tradições afro-brasileiras, as festividades costumam acontecer nas datas dedicadas a cada santo e envolver atividades como missas, procissões, cantoria, quermesses com forró e culinária típica, bingos e leilões.

Também são comuns ritos como a Folia de Reis, realizada próximo ao Natal para comemorar a visita dos Reis Magos ao Menino Jesus, com melodias e instrumentos musicais, e a Mesada dos Anjos, realizada para pedir aos anjos proteção à roça em troca de um banquete com doces e pratos a base de porco e frango, engordados durante o período de cultivo; entre outras festividades.

Além das danças, como a Mão Esquerda (espécie de quadrilha) e a Dança de São Gonçalo, oferecida ao santo com o objetivo de pagar promessas e agradecer pelas graças. A última possui raízes europeias e foi trazida ao Brasil durante o período colonial, se tornando comum em vários estados brasileiros, assim como nas comunidades remanescentes de quilombos.

FOTO: PAULO ZUMBI

A festa do Dia das Crianças, bem como as demais celebrações da comunidade de Ubatuba (SP), atrai centenas de pessoas ao campo de terra do território, onde as crianças costumam brincar. Povoados tradicionais do entorno, como indígenas e quilombolas de outros assentamentos, também comparecem para festejar com seus “irmãos”.

FOTO: REPRODUÇÃO/FACEBOOK
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AMEAÇAS

EMPREENDIMENTOS

Grandes empreendimentos como mineradoras, hidrelétricas e siderúrgicas ameaçam constantemente o modo de vida tradicional de milhares de comunidades remanescentes de quilombos. São uma série de malefícios que incluem não só danos ambientais que impactam negativamente os quilombolas, mas a pressão imposta pelas corporações para que os povos concordem com a construção dos empreendimentos e/ou se desloquem de suas áreas para não interferirem no funcionamento dos negócios.

Além das barragens, que podem se romper a qualquer momento, as empresas causam uma série de danos à natureza, que acabam impactando diretamente nos costumes dos assentamentos: poluição e desvio de canais fluviais, que impedem o abastecimento das casas e colocam em risco a alimentação desses povos, que não podem usar a água para cozinhar e veem os peixes e outras espécies aquáticas, que são parte crucial do cardápio quilombola, morrerem antes de chegar à mesa.

A saúde dos quilombolas também é constantemente ameaçada pela contaminação presente, não só na água, como no ar, causando problemas respiratórios. Além disso, para a instalação destas empresas, muitas áreas são desmatadas, espantando os animais que ali vivem e dizimando árvores que dão frutos, frutas, sementes, óleos, entre outros produtos naturais, consequências que também colocam em risco a segurança alimentar das comunidades, que por vezes têm o costume de viver inteiramente da terra.

A esperança dos povos é a titulação dos territórios, que levam anos para serem concluídas, mas que dificultariam a influência desses negócios sobre as comunidades pois, de acordo com a lei, estes não poderiam mais se instalar em meio a tais povoados. Contudo, já foi visto que até patrimônios históricos já foram cedidos a essas empresas, mostrando que, às vezes, nem mesmo os dispositivos legais têm êxito nesta luta.

O Rio Ribeira, no Vale do Ribeira (SP), que abastece dezenas de comunidades quilombolas, é alvo constante de tentativas de construção de hidrelétricas.

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LEGISLAÇÃO E INTRUSÃO

As legislações ambientais ameaçam parte crucial da cultura quilombola: a roça. Mais precisamente, a roça de coivara, método secular que é passado de geração em geração e que garante a segurança alimentar de inúmeras comunidades remanescentes de quilombos. Por envolver a derrubada da mata nativa, seguida por queima controlada, a prática nem sempre é bem vista pelos órgãos ambientais, que frequentemente afirmam que o método é prejudicial ao meio ambiente e impedem o plantio. Porém, a literatura científica atesta que a mata retorna após o pousio, período em que a terra fica de repouso para regeneração e retomada da produtividade do solo.

O problema com o método secular de cultivo teve início com a demarcação das áreas de preservação ambiental, que não consideraram as comunidades que dali tiravam seu sustento e alimentação. Em razão deste erro, os remanescentes tiveram que começar a solicitar licenças para realizar o plantio, um procedimento burocrático cuja documentação frequentemente atrasa, prejudicando as roças, visto que cada etapa do cultivo necessita de um clima específico, que se altera de acordo com a estação do ano (Durante a pandemia de covid-19, os órgãos competentes liberaram as roças com o objetivo de garantir a segurança alimentar das comunidades diante de um momento tão conturbado).

Outro problema enfrentado pelos quilombolas são as constantes tentativas de invasão, sejam por empresas, fazendeiros ou pessoas de fora que buscam terras para morar, que além de diminuírem o território de uso dos quilombolas, ainda costumam manter uma má relação com os remanescentes. Segundo levantamento da Comissão Pastoral de Terras (2022), três quilombolas morreram em 210 conflitos por vários motivos, entre eles terra e água, no ano de 2021, sem contar os remanescentes que foram ameaçados, agredidos e aqueles cujas mortes não tiveram relação provada com o conflito por terras e seus tesouros naturais.

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Nas fotos abaixo, é possível ver o portão que isola a área de uma das empresas intrusas no Quilombo Sertão do Itamambuca (Ubatuba, SP), que impede o acesso dos moradores a locais antes utilizados por todos.

A pedra na foto ao lado, que guarda histórias do Quilombo Sertão do Itamambuca, é uma das áreas englobadas pelos intrusos, por onde os quilombolas não podem mais passar. Antigamente, quando ainda era possível caminhar pelo local, os quilombolas relatam que, à noite, podiam ver a sombra de uma pessoa sentada sobre a pedra, bem como ouvir gritos e barulhos de chicote por essas redondezas. Os antigos diziam que não era preciso ter medo, mas respeitar as entidades que por ali pairavam, pois eram seus antepassados que haviam sofrido no tempo da escravatura.

O Quilombo Bairro Peropava também sofre com intrusões. Na foto ao lado é possível ver uma plantação extensa de palmito. Ela pertence a um terceiro que usa a terra quilombola para tocar seu negócio sem pagar impostos.

FALTA DE INSFRAESTRUTURA

A falta de infraestrutura nos assentamentos remanescentes de quilombos é um fator que ameaça a perpetuação da cultura quilombola, pois muitos deixam suas terras em razão desses desafios que dificultam o dia-a-dia. Em busca de condições melhores de vida, os remanescentes acabam se distanciando de seus costumes, visto que boa parte destes é relacionada ao território onde estão agrupados. Entre a infraestrutura que falta nas comunidades, pode-se citar os equipamentos públicos, como postos de saúde e escolas, bem como estradas dignas, cobertura de rede celular e internet, entre outros.

Em levantamento realizado pela Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial em 2013, pelo menos 74,7% dos quilombolas vivia em situação abaixo da linha da extrema pobreza; 24,81% não sabia ler; 79,29% possuía energia elétrica; 57,98% queimava ou enterrava o lixo no território enquanto apenas 21,19% possuía coleta adequada; 54,07% não possuía saneamento adequado (15,07% possuía esgoto a céu aberto e 39% fossa rudimentar); 33,06% não possuía banheiro ou sanitário; 55,21% não possuía água canalizada; 48,7% possuía piso de terra batida. O levantamento foi baseado nos dados do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) de 80 mil famílias quilombolas (cerca de 37% da população remanescente de quilombos, visto que a estimativa é de que haja 214 mil quilombolas no país).

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A falta de infraestrutura, como equipamentos de saúde e sociais, é um grande problema enfrentado pelos quilombolas. Além das estradas de terra, que dificultam o acesso às comunidades em tempos chuvosos, lixeiras e pontos de ônibus também são produzidos pelos próprios moradores, utiliza ndo materiais encontrados na natureza, como madeira e bambu.

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A escola do Quilombo Bairro Peropava (Registro, SP) está abandonada há anos. O imóvel construído com dinheiro público hoje não possui utilidade alguma para a comunidade, tendo sido tomado pelo mato e pelas fezes de animais que ali se abrigam, como os morcegos, por exemplo. Enquanto isso, as crianças da área precisam se deslocar para estudar em colégios localizados fora do território quilombola.

PAINEL DE FOTOS

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José Cabral, do Quilombo Bairro Peropava (Registro, SP), mostra o local onde posiciona a caixa de abelhas que cultiva para a produção de mel (Foto 1) e a roça de coivara pronta para o plantio.

Nas casas de farinha, o fogão de alvenaria contribui na torra do produto. A moradora do Quilombo Bairro Peropava (Registro, SP), Olívia de Mello Bruno, de 69 anos, mostra o movimento que é feito com a espátula para mexer a farinha no tacho.

A moenda era um instrumento comum na casa dos quilombolas. Utilizada para moer cana de açúcar, a máquina garantia garapa fresca para beber e adoçar bebidas e receitas, como o café preto, por exemplo. Antigamente, o instrumento era feito de madeira, mas com o passar do tempo, a tecnologia evoluiu, e hoje já é produzido em metal, o que o torna mais resistente.

Remontando os tempos em que o gás de cozinha ainda não chegava às comunidades, o fogão à lenha ainda está presente em muitas residências quilombolas, mesmo que estas já possuam a versão moderna do eletrodoméstico.

Alessandra Aparecida da Silva, de 39 anos, revisita o rio fechado pela empresa intrusa na comunidade Quilombo Sertão do Itamambuca (Ubatuba, SP) e relembra os tempos em que os quilombolas procuravam crustáceos de água doce debaixo das pedras, iguaria consumida no passado pelo seu povo.

Alguns dos investimentos feitos pelo Governo do Estado no Quilombo Bairro Peropava (Registro, SP) são o trator e a padaria. O trator é utilizado para agilizar a roça, enquanto a padaria, apesar de não ser usada com tanta frequência, conta com ampla estrutura, com geladeiras, freezers e fogões.

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Prisciliana dos Santos Ferreira, de 90 anos, é uma das moradoras mais antigas do Quilombo Bairro Peropava (Registro, SP). Na memória, guarda os tempos em que as tradições ainda eram seguidas à risca.

No terreno da pequena igreja do Quilombo Bairro Peropava há um cômodo aberto que já serviu de sala de aula, reuniões da área da saúde, entre outras finalidades. Reformá-lo e retomar seu uso também é uma das metas da comunidade.

Os quilombolas não só trocam sementes originárias, como também cultivam mudas de plantas nativas. As espécies são vendidas e utilizadas no reflorestamento de áreas do próprio território.

Mesmo após a chegada da alvenaria nas comunidades quilombolas e a quase extinção das casas de taipa, alguns imóveis ainda contam com resquícios da antiga técnica de construção.

Materiais de construção pelas ruas do Quilombo Sertão do Itamambuca (Ubatuba, SP) indicam a expansão de imóveis no território. Alguns pertencem a quilombolas que retornaram à comunidade para reivindicar suas posses, outros são de intrusos que tentam se instalar na área a qualquer custo.

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Um campo de terra faz a alegria das crianças no Quilombo Sertão do Itamambuca (Ubatuba, SP). O local também é usado para eventos promovidos pela comunidade.

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Por residirem próximos à floresta, as comunidades quilombolas convivem, em harmonia, com os animais silvestres.

“Aprendemos a voar como os pássaros, a nadar como peixes, mas ainda não aprendemos a viver juntos.”
(Martin Luther King)

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