Narrativas periféricas e formação humana no Pré - Pós UFPR

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Organizadores Wilker Solidade da Silva Maysa Ferreira da Silva Miriam Aparecida Graciano de Souza Pan Paulo Vinicius Baptista da Silva

NEAB Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná



ORGANIZADORES

Wilker Solidade da Silva Maysa Ferreira da Silva Miriam Aparecida Graciano de Souza Pan Paulo Vinicius Baptista da Silva

Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR


Catalogação na Fonte: Sistema de Bibliotecas, UFPR Biblioteca de Ciência e Tecnologia

N234

Narrativas periféricas e formação humana no Pré - Pós UFPR [recurso eletrônico] /. – Wilker Solidade da Silva ... [et al.] (Org.). -- Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná - NEAB. – Superintendência de Inclusão, Políticas Afirmativas e Diversidade - SIPAD. – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2020. 279 p. : il., color. ISBN: 978-65-86233-19-3 (Versão digital). 1. Educação - Estudo e ensino (Pós - graduação). 2. Educação inclusiva. I. Silva, Maysa Ferreira da. II. Pan, Miriam Aparecida Graciano de Souza. III. Silva, Paulo Vinicius Baptista da. IV. Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná – NEAB. V. Superintendência de Inclusão, Políticas Afirmativas e Diversidade SIPAD. VI. Universidade Federal do Paraná. VII. Título. CDD : 370

Bibliotecária: Vanusa Maciel CRB- 9/1928




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Apresentação

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Das tessituras das vozes, o processo de criação Wallisten Passos Garcia Escrever, fundamentalmente, é dizer o que eu penso e o que eu sinto: penso, sinto, logo escrevo! Alego, porém, que há diferentes modos de eu dizer algo, a partir dos diferentes lugares que eu ocupo. Reconhecer este lugar do qual eu falo é imprescindível no processo de tornar-me escritor, mas não é suficiente, pois sempre digo algo para uma outra pessoa que, como eu, também ocupa um lugar específico. A alteridade aqu i é condição da qual eu não tenho escolha. Destarte, as palavras que eu falo não pertencem apenas a mim, estão sempre direcionadas a outrem, situadas em uma “arena” de vozes, algumas consoantes, outras dissonantes em relação à minha, e nesse diálogo infindável, do qual não posso desprender-me, sentidos vão sendo construídos e compartilhados por mim e pelos outros. Afeito a isso, escrever também é compartilhar o que eu (nós) penso (pensamos) e o que eu (nós) sinto

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(sentimos), mesmo que o outro pense e sinta diferente de mim. Minha voz se faz presente nos meus textos e comporta outras vozes. Minhas narrativas trazem as marcas da coletividade. Nesse processo, eu encontro em minha história a história de tantas outras pessoas. Nessa lida com as palavras, mesmo permeado por diferentes vozes, eu preciso direcioná-las em minha escrita. Eu escolho com quais vozes quero dialogar, concordar ou discordar. Algumas eu silencio, outras eu faço ressoar. Algumas eu mostro de imediato, outras eu vou aos poucos deixando fluir, podendo passar até desapercebidas. Com o direcionamento dado às vozes, eu produzo sentidos em quem me lê e provoco emoções! Na tessitura das vozes, ocorre o processo criativo, eu desponto como autor. No autor-criador que emerge em mim, eu deixo espaços, silêncios, para que aqueles que me leem, descubram vozes que eu não deixei tão audíveis, ou que eu nem mesmo percebi que estavam presentes, mas que estão lá, em descanso, prontas para serem ouvidas e sentidas. O outro conquista, assim, lugar privilegiado no meu texto, dialoga comigo produzindo novos sentidos. O outro, sem o qual não posso escrever, torna-se cocriador do meu texto. Nesse emaranhado de vozes, um questionamento: onde se encontra o eu no meu texto? Ao final da minha escrita, vem a minha assinatura, eu torno-me responsável por aquilo que escrevi. Eu assumo as escolhas que eu fiz o direcionamento das vozes que eu criei - me posiciono a partir de um lugar que outro, diferente de mim, não pode ocupar. Tomo posse daquilo que eu penso e sinto! Não há álibi que me livre desta responsabilidade. Minha escrita é um ato, validado e inserido em um contexto. Depois dessa labuta verbal, me percebo em processo de tornar-me escritor, sim, processo, pois chego a um final, mas que é sempre provisório, como um porto aonde ancoro e dialogo

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com diferentes vozes, mas que, findado o tempo lá, parto em busca de outras vozes, outras narrativas, outras histórias, novos sentidos...

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Boa me na me mmoa wo Nathalia de Medeiros Santos Durante três meses, em uma roda de conversa, aprendemos junto com os cursistas sobre as diferentes formas de escrita, mas acima de todas as técnicas apresentadas, a roda era um momento de motivação e troca de experiências. Começamos a oficina com uma média de trinta cursistas, tivemos a oportunidade de conhecer as histórias e bagagens de cada um. Das mais diversas histórias, algumas palavras se repetiam constantemente, entre elas se destacavam: fome, preconceito, pobreza e família. Os cursistas relatavam suas histórias e por trás de cada uma podíamos notar que as razões de terem concluído a graduação também se resumiam em poucas palavras: determinação e família. O termo “falta de oportunidade” era levantado em inúmeros momentos pelos cursistas e o nosso maior desafio era conseguir fazêlos enxergar o potencial já existente em cada um deles.

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Oportunidade, no dicionário, se descreve como: “substantivo feminino. Qualidade, caráter do que é oportuno. Ocasião azada; circunstância oportuna, favorável para a realização de algo, ensejo”. Escolho essa palavra para descrever as oficinas de escrita científica. Todos os cursistas que concluíram, do início ao fim, a oficina, tiveram uma grande evolução. Tínhamos uma turma mista, com os mais diferentes cursos, como graduados em direito, TI, artes, pedagogia, contabilidade, informática e alguns ainda estudantes da graduação. Devido à nossa heterogeneidade, aprendíamos juntos sobre os mais diversos temas das outras áreas, muito além do nosso conhecimento. Para sermos mentores dessa turma tão diversificada, foi necessário imergirmos no universo de cada área e estudarmos cada tipo de metodologia utilizada. Além das áreas, o nivelamento da turma era distinto. Numa mesma turma tínhamos cursistas definindo o programa de pós-graduação, definindo linha de pesquisa, tema e objeto; também tínhamos aqueles com os projetos em andamento e poucos que iniciaram a oficina com o seu projeto concluído para ser aperfeiçoado. Os mentores também eram de diferentes áreas: eu como farmacêutica, uma antropóloga e a terceira era advogada. Nesse contexto tão complexo e com áreas tão opostas, tivemos o melhor guia, nós tivemos um psicólogo como mentor oficial das oficinas. A turma que inicialmente começou com uma média de trinta alunos, terminou com pouco mais de dez. Os alunos que ainda estavam na graduação se mantiveram na oficina por um curto período, aproveitaram os conteúdos administrados para aprimorar seus conhecimentos, aprenderam que o planejamento para se chegar na pós-graduação se inicia ainda na graduação e a maioria desses alunos, com a exceção de um, conseguiu, antes do término da oficina, um estágio para a Iniciação Científica. Devido à baixa estima, já mencionada, tivemos alguns alunos que desistiram a partir do

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momento em que começamos a exigir a produção de textos. Infelizmente, esses deixaram de aproveitar a oportunidade que tanto foi comentada. Por inúmeras vezes os mentores procuraram esses alunos para motivá-los, porém, problemas pessoais eram recorrentes e devido à gravidade de alguns, os alunos se viam sem alternativa. Em dois casos relataram depressão com afastamento médico. Aqueles que chegaram ao final da oficina tiveram os projetos concluídos ou em fase de conclusão, ou iniciaram alguma disciplina isolada na pós-graduação para identificação da área. Três alunos com grande dificuldade no ato de começar a escrever, conseguiram, nas duas últimas semanas, esboçar um projeto. Nesse processo, o incentivo da oficina foi fundamental, os cursistas já tinham adquirido todo o conhecimento teórico que necessitavam e o debate com outros cursistas em estágio mais avançado serviu como um termômetro para medir a confiança da turma e incentivar um aos outros, o companheirismo cresceu e o grupo debatia os diversos temas apresentados com maior desenvoltura. Na última semana tentamos simular entrevistas para a defesa do projeto, foi de suma importância poder participar da reação da turma, pois nesse momento uma boa parte dos cursistas com projetos concluídos estavam prestes a serem entrevistados. A última palavra que gostaria de citar é persistência. Durante as oficinas debatemos em alguns momentos pontuais sobre o perfil e rotina de um aluno da pós-graduação, em mestrado ou doutorado. A necessidade surgiu ao vermos que alguns alunos viam o mestrado como uma oportunidade de se aperfeiçoar, mas não compreendiam suas atribuições como pesquisador e acadêmico. Poder comentar como nós organizamos as nossas rotinas, como a leitura está presente em nossas vidas, seja ela de qualquer tipo, como necessitamos administrar o nosso horário entre pesquisa, disciplinas e trabalho, sendo mais ativos e persistir para

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atingir os objetivos esperados, pôde ilustrar um pouco do que será a pós-graduação. Com este cenário tentamos mostrar aos cursistas a necessidade da persistência até o resultado esperado, de caminhar com as próprias pernas e não desistir. Ser mentora de uma turma de inclusão de minorias no Projeto Pré-Pós foi um desafio prazeroso e compensador. Cada grupo recebeu um nome de origem africana, um adinkra. Nosso grupo era nomeado por “boa me na me mmoa wo”, seu significado, “ajude-me e deixe-me ajudálo”, traduziu cada momento vivido por essa equipe. Durante todo o projeto os cursistas se ajudavam, se consolavam e buscavam ouvir cada palavra dita, por cada mentor ou cursista como se cada momento presente naquela sala fosse uma oportunidade de vida. E para muitos foi a primeira vez que alguém tentou estender as mãos, foi a primeira vez que alguém ensinou pelo simples prazer de ajudar. Me envolvi e vivi cada história. Ver o crescimento individual, semana após semana, poder transmitir não só conhecimento como esperança a essas pessoas me fez repensar e me reinventar como ser humano.

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Cibelle Cibelle Santos de Oliveira Eu sou a Cibelle, nasci em 1981, na cidade de Curitiba, atualmente com 36 anos. Sou filha de Jorge Alves de Oliveira e Neiva Aparecida Gonçalves dos Santos. Meu pai tinha a 6ª séria ginasial e minha mãe tinha somente a 1ª série do primário. Em razão disso meus pais sempre cobraram que os filhos estudassem, pois com a falta de estudos não conseguiram muitas oportunidades de trabalho. Sendo assim, completei o Ensino Médio em 1999, tendo estudado a vida toda em escolas públicas. Meus pais não tinham condições financeiras para me auxiliar a fazer uma faculdade particular, então busquei uma vaga em instituições públicas. Fiz vestibular na Universidade Federal do Paraná em 2000. Minha primeira opção era o curso de História, como segunda opção escolhi Jornalismo. Não consegui a aprovação, posto que o nível de estudo exigido pelo processo seletivo era muito acima do que a escola pública

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me oferece. Só ingressei na faculdade em 2004, aos 24 anos, me formando em uma faculdade particular em 2009, aos 28 anos de idade, por meio do Programa ProUni, do governo federal. Em 2012 consegui concluir minha pós-graduação em Direito Previdenciário. Desde 2009 trabalho na Prefeitura Municipal de Adrianópolis/PR, cidade que possui 13 comunidades de remanescentes de quilombos. Por causa desta proximidade, minha monografia na pós-graduação em Direito Previdenciário foi voltada aos direitos previdenciários destes remanescentes. Sou militante da Marcha Mundial das Mulheres e filiada à Rede Mulheres Negras do Paraná. Atualmente concluí que se quiser prestar um melhor serviço, com cunho social, de abrangência maior, deverei prosseguir nos estudos através do mestrado e doutorado.

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Cleusa Moreira Cleusa de Fátima Moreira Desde a infância tive muito apego pelo estudo, aguardava ansiosa e ao mesmo tempo agoniada pelo meu primeiro dia de aula. Achava que já devia saber algo para poder estar lá, para começar. Meus pais eram analfabetos funcionais e meus irmãos, mais velhos nesta época, já trabalhavam, de modo que nenhum deles podiam me ajudar. Mas me lembro de que tinha uma amiga que também estava para entrar na escola e que já sabia tudo que precisava, pensava eu, ela sabia as vogais e por algumas vezes tentou me ensinar, só não consigo me lembrar se aprendi algo com ela, a julgar pelo drama que fiz no primeiro dia de aula, não devo ter aprendido nada. Sim, o meu primeiro dia foi um grande drama! Lembro que chorei muito quando minha irmã mais velha me abandonou na sala de aula, onde não conhecia ninguém. O choro logo passou e foi assim que comecei

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a jornada de construção do meu conhecimento. Não me recordo de como foi meu desempenho no primário, era o ensino fundamental naquela época, aprendi a ler, a contar, porém, calcular não era muito o meu forte, além disso, tinha uma letra quase ilegível, que melhorei muito praticando no caderno de caligrafia, o qual eu adorava! Era fascinada por leitura e pelas gravuras da cartilha escolar. Depois disso veio o Primeiro grau, que era da quinta até a oitava série. Para mim foi um grande desafio, pois deixaria de estudar na escola do bairro para estudar em uma escola do centro da cidade. Estava me sentido muito independente e dona do meu próprio nariz (adolescente!), menos assustada dessa vez. Entretanto, comecei a perceber o quanto importava para algumas pessoas o fato de eu ser diferente, leia-se: negra. Contudo, fiz poucas, mas grandes amizades. Nesta época, lia muito e passava muito tempo na biblioteca pública, sonhava em ser uma grande escritora. Contei com o apoio financeiro da minha mãe, que trabalhava como diarista, para pagar minha mensalidade em um curso de segundo grau técnico, até que começasse a trabalhar, isto aos 16 anos. Fiz o curso técnico de Assistente Administrativo e Datilografia, porém não consegui me colocar no mercado de trabalho na área administrativa, continuei trabalhando em funções operacionais. Ao final disto, era o momento de fazer o vestibular para ingressar na universidade. Adorava todo e qualquer assunto relacionado a física e geografia, mas acabei prestando meu primeiro vestibular para Administração na UFPR. Mas, como era de se esperar, não passei, porque já tinha consciência que o meu segundo grau não me dava base para isso e para atingir este objetivo deveria ter feito um cursinho pré-vestibular, que os meus recursos não alcançavam. De qualquer forma, não conseguiria me manter na faculdade, não só pelos custos que se fariam necessários, mas pela logística da coisa. Precisava

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de dinheiro, por isso não poderia dispensar meu emprego para fazer um curso diurno, e o curso noturno também era inviável porque não havia ônibus para retornar para casa. Com isso fiquei um bom tempo somente trabalhando e quando enfim consegui um trabalho no segundo turno em uma indústria de materiais elétricos, optei por fazer um curso de técnico em eletrotécnica no CEFET PR no turno da manhã, adorei porque o curso tinha muito de física. Isto me rendeu uma promoção nesta indústria e fui trabalhar no laboratório eletromecânico. Comecei também um curso de inglês e estava cheia de expectativas para o futuro, pouco tempo depois consegui uma vaga para trabalhar no ramo automotivo como inspetora da qualidade e fui imergindo no mundo da qualidade enquanto ia me afastando da área elétrica. Fui me desenvolvendo e me aperfeiçoando na área da qualidade até me tornar Analista da Qualidade, realizando atividades de Gestão do Sistema da Qualidade, Qualificação e Desenvolvimento de Fornecedores, Atendimento a Clientes, Suporte à Engenharia no desenvolvimento de produtos e processos. Então, o momento e a oportunidade para fazer a faculdade haviam chegado, consegui ingressar na faculdade pelo sistema de cotas, optei por um curso que pudesse me dar uma segunda opção de profissão, assim comecei o curso de Tecnologia em Informática na UFPR. Já no primeiro semestre percebi que havia feito a escolha errada, pois não conseguia me adaptar, porque a maioria dos alunos já atuava na área e muitos deles só queriam o certificado, e isto fazia que o nível das aulas ficasse muito elevado e difícil de acompanhar. Já os que não atuavam na área, logo conseguiram estágio e tudo para eles foi se encaixando, mas eu não podia deixar meu trabalho por um estágio pela metade do que ganhava, pois não conseguiria me manter se assim fizesse. Havia decidido desistir do curso, mas encorajada por alguns colegas resolvi continuar, me formando no final de 2011.

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Em 2013 estava disponível no mercado de trabalho e então consegui uma vaga como terceirizado na Renault do Brasil. Fiquei muito feliz, pois esperava por esta oportunidade a muito tempo, porém, depois de um ou dois meses, descobri que estava grávida e pelos meus cálculos havia ficado grávida na mesma semana em que comecei a trabalhar e, obviamente, ficar grávida neste momento não era o plano, mas aconteceu e era algo com que sempre havia sonhado. Então me sentia dividida entre o desespero de estar perdendo a oportunidade de crescimento profissional e a infinita felicidade de ser mamãe. Conforme a data do parto se aproximava, a angústia aumentava, porque ficava mais e mais evidente que eu perderia meu posto de trabalho e que após a licença maternidade estaria desempregada, e assim foi. Como se isso não fosse o bastante, o país estava entrando em uma recessão, na qual se encontra até hoje, culminando nesta crise política, reduzindo ainda mais as minhas chances de recolocação no mercado de trabalho, pois com as empresas reduzindo seus custos ao máximo, sobra mão de obra qualificada, e eu ainda tinha (tenho) que ultrapassar as barreiras de ser mulher, negra e mãe. Diante disso, percebi que quando você alcança um nível de excelência naquilo que você faz, fatores como ser mulher e negra não têm tanto peso na concorrência, porém, ser mãe pesa muito, é como se a profissional se tornasse menos capaz, menos apta, menos comprometida, quando na verdade ter a responsabilidade sobre um ser indefeso reforça essas qualidades, de modo que você sabe que não pode dar um passo em falso, e, obviamente que não generalizando, concluo que a maternidade se contrapõe ao sucesso profissional. Em 2015 as expectativas para o próximo ano não eram das melhores, comecei a estudar para concursos públicos enquanto pensava em me candidatar para alguma vaga remanescente de graduação que me permitiria, quem sabe,

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atuar na área da educação, porém, na data não dispunha de recursos para a inscrição e posterguei para este ano de 2017 e neste momento de tantas incertezas chego ao de Pré-Pós da UFPR me sentindo muito grata pela oportunidade e cheia expectativas e vontade de mudar o rumo desta história, para quem sabe, escrever um novo capítulo cheio de novas descobertas e resultados positivos.

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Fabiana Fabiana Fernandes da Silva Eu sou Fabiana Fernandes da Silva, tenho 34 anos, sou advogada, catequista e, nas horas vagas, do lar. Nasci em Curitiba, fui criada com meus pais e irmãos, sempre tivemos muitos sonhos e apesar das dificuldades, ou melhor dizendo, restrições financeiras enfrentadas, tive uma infância muito feliz. Minha vida sempre correu no fluxo natural de uma pessoa de casse média baixa. Sempre estudei em escola pública, comecei a trabalhar aos 13 anos como babá, fiz estágio no ensino médio, trabalhei na área da telecomunicação e também na área da alimentação. Meu último trabalho formal e sem graduação foi em uma clínica cardiológica, entrei como recepcionista e permaneci durante aproximadamente 4 anos. Neste período algo dentro de mim me incomodava, foi quando eu decidi que deveria voltar a estudar.

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Diante desta vontade, comecei a buscar quais seriam as faculdades que eu poderia cursar, pois de antemão eu mesma me exclui da UFPR por entender que era um lugar para quem estudou no Positivo (minha referência de alunos que frequentavam a UFPR). Decidi fazer a prova do ENEM e tentar uma bolsa de estudos, quase sem expectativas, mas com muita vontade de que ali iniciasse uma nova trajetória de vida. Iniciei minha graduação em 2009 e conclui em 2014, depois de tanto esforço e dedicação, fui em busca de passar no exame da OAB- PR. Após algumas tentativas, enfim, pude afirmar a todos que era Advogada! Porém, mais uma vez algo dentro de mim queria me tirar da minha zona de conforto e me colocar em busca de mais conhecimento. Sendo assim, me inscrevi no curso de extensão de Pré-Pós e hoje busco aprender tudo o que o curso nos proporciona e pretendo fazer meu projeto de pesquisa para tentar uma vaga no Mestrado.

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Lutar sempre! Joseane Maria Rachid Martins Em um lugarejo pacato da serra gaúcha, não tão quente pela época do ano, 19 de janeiro de 1973, ela chegou ao Rio Grande do Sul. Foi um parto difícil, demorado, depois de horas a parteira aliviada disse ter vindo um menino, pela posição que surgiu do corpo da mãe. Porém, para a surpresa de todos que estavam ali, uma menina surge ensanguentada e cheia de vida. Relato esse que mais tarde foi útil para a mãe tentar justificar/explicar sua condição sexual. A infância foi complicada por fazer parte de uma família muito pobre e também por conta de sérios problemas de saúde que a atingiu desde os primeiros dias de vida. Tais problemas levaram a óbito outros dois bebês que a antecederam, e, com isso, sua mãe passou a sofrer de distúrbios psiquiátricos. Após vários internamentos e péssimas condições financeiras, ela decidiu pedir que parentes cuidassem de suas três filhas. Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná

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Aos quatro anos de idade foi levada a Curitiba para morar com a irmã de seu pai, pai esse que os deixou quando completou um ano de idade para tentar a vida no norte do Brasil e não mais retornou. Essa tia a recebeu com alegria e lhe proporcionou boas condições de vida, alimentação, vestuário e uma boa educação. Boas escolas e muito esforço a levou à UFPR no curso de Ciências Biológicas. Foi um orgulho, primeira da família a concluir um curso superior, apesar de não ser o curso que dá dinheiro e status que sua tia almejava. O momento foi ruim, problemas econômicos atingiram a família, o que a obrigou a encontrar meios para se manter na universidade. Então, a oportunidade de monitoria apareceu e, em seguida, o tão sonhado estágio remunerado com bolsa de iniciação científica que a conduziu até a formatura. Inúmeras dificuldades sempre a rodearam, nada foi conseguido com facilidade. O estágio exigia muita dedicação, pois trabalhava com bichos vivos e tinha que mantê-los para dar continuidade à pesquisa. Por mais de três anos não teve férias, final de semana ou festas de final de ano. Encarou vários Eventos de iniciação científica, simpósios, congressos dentro e fora da universidade. Tudo parecia se encaminhar como o planejado: estágio-graduação-mestrado-doutorado. Será? A primeira seleção de mestrado se aproxima, por isso estudou muito. Curso de inglês, livros e mais livros, elaboração do projeto... Aprovada na proficiência em Inglês que era eliminatória, entrevista perfeita, projeto nota 10 e uma enorme decepção na realização da prova escrita, o que resultou em eliminação. Desistir? Nunca? Enfrentou mais um ano de estágio, agora sem remuneração, dando aulas como CLT em uma escola pública, como bico mesmo, pois o foco era o mestrado, afinal havia se preparado anos para ser uma pesquisadora. Chega o processo seletivo e, novamente, o fracasso!

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Problemas do orientador com o departamento? Problemas pessoais do orientador com membros da banca? Nova reprovação. Não havia mais tempo para tentar novamente, precisava dar continuidade à vida, ao trabalho... A escola passa a ser sua vida, a dedicação total a faz ser reconhecida como boa profissional. Aprovação no concurso do Estado, salário mais alto oportunizou procurar um canto sozinha e independente. Autoestima restabelecida, muito empenho. Adeus tia! Buscou apoio na religião, dedicou-se a Deus, procurou fazer tudo certo de acordo com os princípios bíblicos e o que acontece? Se depara com um amor proibido, mas correspondido. E agora? O que fazer? Por que eu? Suicídio ou o inferno? Decidiu viver, amar, afinal Deus não quer que sejamos felizes? Ele conhece nossos corações, nos fez diferentes, então: viva a diversidade! Juntas a 12 anos sempre batalhando, encarando tudo e todos. E agora as duas, juntas, vão tentar realizar um sonho comum: mestrado. Como dizem por aí: “o não você já tem”, aliás, o que mais ouviu na vida. Que venha mais essa luta!

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Kenia

Kenia Coelho Ramos

Nasci em 8 de março de 1986 na cidade de VitóriaES. Morei desde que nasci no município de Viana-ES e estudava em período integral em uma creche em Cariacica-ES enquanto meus pais trabalhavam. Tenho uma irmã mais velha que também estudou na mesma creche e depois começou a frequentar a escola regular. Estudei em várias escolas diferentes durante o ensino fundamental, pois sempre que a escola entrava de greve minha mãe me trocava de escola para não perder o ano, sempre tive bom rendimento e o fato de mudar de escola nunca me deixou prejudicada. Aos 14 anos minha família se mudou para a cidade de Colatina-ES, onde estudei todo o ensino médio em escola estadual. Quando estava no terceiro ano do ensino médio prestei processo seletivo para Técnico em Segurança do trabalho no antigo CEFET-ES, estudava pela manhã cursando o terceiro ano do ensino médio e à noite fazia

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o curso Técnico. No último módulo do curso, o CEFETES entrou em greve atrasando a conclusão do curso. No início do ano de 2006 concorri a bolsas de estudo em nível superior, sendo selecionada para uma bolsa em administração em outra cidade Passados alguns dias desisti da bolsa, retornando para minha cidade e retornando ao curso técnico. Uma semana depois surgiu uma nova seleção de bolsa para um programa do governo do estado do Espírito Santo, onde fui selecionada para cursar fisioterapia na minha cidade. Como a faculdade era em período integral, tive que desistir do curso técnico para poder estudar na faculdade. Durante toda a graduação encontrei bastante dificuldade, em todos os aspectos, mas sem desistir consegui concluir a graduação em fisioterapia. Depois de formada, consegui uma vaga de designação temporária como professora de ciências e biologia do estado do ES. No ano seguinte não foi possível continuar como professora, então fui trabalhar como freelancer em eventos. No final desse ano consegui pagar um curso de pilates, onde consegui me colocar no mercado de trabalho como fisioterapeuta. Em 2014 fui para a área hospitalar, onde o aprendizado dentro do hospital me motivou a buscar mais conhecimento. Em 2016, após encerrar minhas atividades no hospital, decidi mudar pra Curitiba para me aprofundar em conhecimento na área de neonatologia e pediatria, onde fiz minha segunda pósgraduação e agora, no Pré-Pós, busco meios para ingressar no mestrado.

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Luciane Luciane Mendes de Vasconcelos Da família interiorana, sou a única a nascer na capital, em Curitiba. O restante veio da Bahia e de São Paulo, descendo o país até chegar ao sul. O pai baiano encontrou a mãe em São Paulo para ter os filhos no interior do Paraná, em Terra Rica, de onde saíram com o desejo de migrar do trabalho rural das plantações de café para recomeçar a vida na cidade como operários. Enfrentaram, além do frio, do qual não estavam acostumados, todas as adversidades, as quais a maioria dos migrantes costumam passar. Os custos com moradia, o desemprego e o preconceito foram alguns dos empecilhos, até conseguirem se firmar e comprar um imóvel na região metropolitana. Foi em Pinhais que passei toda a infância e juventude, onde tive meus primeiros amigos e iniciei a vida acadêmica em uma escola da rede pública, até chegar ao ensino médio, quando resolvi tentar a sorte em um colégio maior, no centro

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de Curitiba. Considero a entrada para este colégio - o Cefet - como a minha primeira realização. Estar ali significava uma forma de romper com o caminho profissional que me era imposto e que normalmente se apresentava às pessoas da periferia como eu e meus irmãos, que sem a mesma chance, acabaram nos caixas de supermercados, nas empresas de telefonia e na limpeza dos banheiros da classe média. Não me recordo se a percepção sobre a importância daquela instituição para mim já existia naquela época, mas havia o orgulho do colégio grande, do guarda-pó cinza, das réguas e pranchetas que faziam parte da sensação que era estar ali. O gosto pelo desenho me fez optar pelo curso de Desenho Industrial, mesmo não sabendo ao certo o que ele me ofereceria. Foram quatro anos de conhecimento, amizades, alegrias e também sofrimento por conta do ritmo intenso e das muitas responsabilidades que me obrigavam a passar as noites em claro. Os próximos passos foram dados aos vinte anos de idade, com a necessidade de cursar uma faculdade. Como havia gostado do curso anterior e nele despertei um interesse pela arte, resolvi prestar o vestibular para Desenho Industrial na Universidade Federal do Paraná, e para Artes, na Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Passei na segunda opção e fui para a escola de artes. Acostumada ao ritmo quase militar do ensino técnico, tive um estranhamento inicial com o clima leve e acolhedor da “Belas Artes”. As paredes de madeira, os pianos nas salas de aula, os alunos de música a ensaiar pelos corredores, os cavaletes, as aulas no sótão, os modelos nus a posar para o desenho. Tudo naquele espaço me encantava, percebi que a área criativa me serve de imã, me fortalece e faz bem. Desde então, sigo os caminhos que estas duas instituições me apresentaram, grata pelas oportunidades que tive, pelas pessoas que fizeram parte desta trajetória e com a vontade de continuar produzindo, criando, me aperfeiçoando e compartilhando conhecimento para que mais pessoas

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vindas da periferia, em especial mulheres e negras como eu, possam ter a possibilidade de fazer parte deste universo de informações que o meio acadêmico é capaz de proporcionar.

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Mikaela

Mikaela Aparecida Gonçalves

Sou filha caçula em uma família de três irmãos e vivi a vida típica de família da periferia em cidade metropolitana, sem luxos, muitos sonhos e algumas oportunidades. Já nos primeiros anos de convívio social, a partir da inserção na fase escolar, percebi que ser negra era sinônimo de uma dose extra de exclusão. Fiz do problema, solução, já que não tinha com quem brincar, era mais fácil fazer a lição. Não era uma garota prodígio, lembro-me de passar algum tempo escrevendo rosa com z e, ainda assim, destacava-me em comparação aos demais, o que claramente era espantoso, mas refletia bem o nível de ensino em questão. Os anos foram se sobrepondo e na oitava série fui transferida para uma escola em um bairro mais desenvolvido, lá eles tinham aula de inglês e foi ali que o trauma com a “língua universal” teve início. Eram tantas notas ruins que a única solução era fazer prece para não ser reprovada na matéria. Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná

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Ingênua, mal sabia que a ordem do dia, nos últimos 20 anos, era “passar todo mundo”, afinal, os índices de escolaridade precisam ser elevados para comprovar o desenvolvimento do país. O ensino médio, já em outra escola, foi incrível! Sim, não dava para acreditar que o professor de física pedia para copiar o que ele escreveu na lousa e dava nota apenas consultando o caderno. A responsável pelas aulas de química pedia resumos de um texto fornecido por ela bimestralmente e aplicava nota com base no volume escrito, ou seja, até hino de futebol e receita de bolo levavam nota máxima! Naquele momento eu já me preocupava muito com o vestibular e estudava em casa com a intenção de entrar na Universidade de São Paulo. Inclusive pedi ao meu pai para fazer a prova como treineiro e ouvi que se o teste seria só para testar, então não valia a pena. Finalmente chegou o último ano do ensino médio, momento de ir procurar emprego, é claro! Trabalhava das 6 às 14h, me matriculei em um cursinho à tarde e corria para a escola regular todas as noites. Claro que não passei no vestibular. Troquei de emprego, melhorei o salário, mas continuei com a frustração por notar que sabia muito pouco daquele conteúdo divulgado pelos professores no cursinho. “Matei” o quanto pude as aulas de inglês e também as de redação, não queria deixar por escrito a minha falta de capacidade. Resultado? Não passei! E momentaneamente desisti, foquei em cursos técnicos e fui levando a vida. Mas algo estava faltando, ainda queria estudar em uma boa universidade, então fui fazer um cursinho popular, as circunstâncias eram similares, mas o ambiente neste novo local era muito menos competitivo e consegui me preparar melhor até finalmente passar no vestibular. Entrei então na UFPR, senti e ainda sinto o impacto de não ter tido um bom ensino de base, mas ultrapassei alguns obstáculos e consegui concluir o curso com um bom nível de

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aproveitamento, hoje trabalho na área em que me formei e quero seguir também como pesquisadora.

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Sedami Sedami Tozoun Romain Agassin Sedami Tozoun Romain Agassin, nascido em primeiro de março de 1989 no BENIN, na cidade de Cotonou, situada na região oeste da África, com superfície de 114.763Km2 e uma população de 10,88 milhões de habitantes. Filho de Angele Houessin Tozoun e Georges Agassin, com 3 irmãos. Na idade de 2 anos, tão apegado à avó, foi morar com ela numa cidade chamada Allada. A partir de 5 anos se alfabetizou e concluiu o ensino fundamental no ano de 2001. Nessa cidade na época não tinha o ensino médio, ele teve que voltar para Cotonou com a avó para iniciar o ensino médio onde moravam seus pais. Prestes a terminar o ensino médio, seu pai veio a falecer devido a uma doença em 2007. Conturbado com a situação emocional e a dificuldade financeira para continuar seus estudos, abandou a escola por um ano e começou a trabalhar como ajudante de van para poder auxiliar a mãe a pagar as despesas da casa e de aluguel.

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No ano 2008 voltou a estudar contando com o apoio dos irmãos de sua mãe. Foi morar com seu tio, irmão da sua mãe, onde concluiu o ensino médio em 2010. De 2010-2011 começou a universidade nacional do BENIN, onde ingressou no curso de Química, Biologia e Geologia (CBG). Ele sempre foi uma pessoa estudiosa e com um grande desejo de viajar para estudar fora de seu país, para conhecer pessoas novas e culturas. De 2011-2012 se candidatou a uma bolsa de estudo de um programa do governo Brasileiro e do Benin (PEC-G) onde iria aprender a língua portuguesa por um ano e após passar em uma prova de proficiência de língua portuguesa, sem a qual não poderia ingressar na Unesp, em Franca, para cursar Ciências Políticas e Relações Internacionais, mas infelizmente ele não conseguiu passar na prova de proficiência e perdeu a bolsa de estudo e teria que voltar para o seu país. Devido à sua determinação, não desistiu, pediu o asilo e conseguiu um trabalho de entregador de gelo para pagar suas despesas de moradia e alimentação e se inscreveu num curso de pré-vestibular Samora Machel da Universidade Federal de Rio de Janeiro. Logo sua mãe ficou doente e a triste notícia veio abalar sua vida novamente, ela faleceu em 2013. No mesmo ano ele fez novamente a prova de proficiência de língua portuguesa e o ENEM e foi aprovado nos dois, mas mesmo com a aprovação não tem mais direito de continuar no programa e se inscreveu no curso de licenciatura em Química na Universidade Federal de Santa Catarina em 2014, onde prossegue os estudos. Diante de todo esse desafio que a vida lhe impõe, entendeu que não há desenvolvimento de uma nação, avanços tecnológicos, sem a educação. Agora, uma história sobre Sedami e o país que escolheu para estudar...

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O sonho de um menino Sedami, desde a adolescência, assistia a televisão e logo teve uma paixão pelo Brasil, pela sua beleza, tamanho e natureza. Uma das coisas mais importantes do Brasil que ele teve a oportunidade de ver era o jogo entre Brasil e a França em 1998. Foi uma partida inesquecível pela qualidade dos jogadores e seu desempenho no campo, mas tudo isso passou como um filme. Um dia ele estava assistindo o carnaval pela televisão, tudo era maravilhoso, perfeito, o incrível é que no país dele a televisão nunca mostrou o lado violento do Brasil, apenas ele tomou conhecimento desta realidade ao vir para o Brasil Quando ele terminou o ensino médio, por coincidência, conseguiu uma bolsa de estudo para vir estudar no Brasil, para ele era um sonho realizado e ficou muito feliz. Tinha duas cidades como possibilidade de escolher onde realizar os seus estudos: Rio de janeiro ou São Paulo, mas a única coisa que ele tinha em mente, era conhecer a “cidade maravilhosa”. Ele nunca havia andado de avião, foi sua primeira viagem. Quando o avião decolou da pista, ele começou a chorar, pensando que ia morrer, mas ao mesmo tempo foi ficando conformado porque não iria morrer sozinho e teria a oportunidade de morrer com seus amigos que viajavam com ele. A viagem foi muito longa, durou 18 horas e meia com uma escala na França. Naquele dia teve um senhor que estava sentado ao seu lado e lhe confortou dizendo que tudo ia dar certo. Ao desembarcar no Rio de janeiro, tudo parecia perfeito, ele o os amigos saíram para curtir a praia, conhecer a cidade, teatro municipal e outros lugares. Um belo dia um amigo brasileiro o convidou para ir numa festa bem legal e ele nem sabia do que se tratava, foi a pior coisa que ele fez em sua vida, poderia ser morto covardemente. Ele foi levado pelo amigo a um baile funk

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numa das favelas mais perigosas do Rio, quando chegaram ao local o som estava muito alto, com as mulheres quase todas peladas, usando drogas, com os bandidos todos armados com fuzis e ele falou: - Meu Deus hoje estou morto! Porque aquele ambiente era muito diferente para ele! Não iria conseguir ficar e pediu para o amigo o levar de volta para casa, ele se recusou alegando que só iria voltar de manhã. Assim Sedami decidiu voltar sozinho e se perdeu no meio da favela. Essa experiência foi suficiente para ele ver a cara real do Brasil e particularmente do Rio de Janeiro e o tamanho da violência que existe neste país.

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Joyce Joyce Rosa Santos Meados dos anos 90, quadra QE 38, Guará II, Região Administrativa X, das XXI regiões do Distrito Federal. Era considerada uma das quadras mais violentas, inclusive, até os dias atuais é frequentemente satirizada por muitos que fazem menção ao calibre 38, arma de fogo muito popular entre as armas de pequeno porte. Crescemos ali naquela região, onde ouvir tiros, ver camburões passando em perseguição, helicópteros policiais sobrevoando e ler os jornais sangrentos com as trágicas notícias de criminalidade eram recorrentes. Minha família, assim como muitas famílias que são marginalizadas e discriminadas pela cor escura da pele, sempre se dedicou a ascender na vida e nunca desistimos de tentar, mesmo quando tudo ia contra o nosso sucesso. Simplesmente era impossível ignorar o fato de que levaria apenas um tempo para sermos adicionados às estatísticas de crimes e mortes da região. Um procedimento comum realizado em situações hostis similares àquela era refugiar-se em locais de menor

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risco. Deste modo, em 1993 nos mudamos para uma cidade do interior de Minas Gerais chamada Patos de Minas, lá nós supostamente teríamos o apoio de nossos familiares e tudo seria menos complicado. Como sempre não foi nenhuma novidade sermos uma das poucas crianças negras em sala de aula. O choque maior foi a dificuldade de fazer novas amizades, e mais difícil ainda foi compreender que essa dificuldade estava relacionada à cor da nossa pele. Até então, nós não tínhamos conhecimento do conceito de racismo e as situações desagradáveis simplesmente aconteciam sem nenhuma explicação. O tempo foi passando e conforme a necessidade aumentava, nós mudávamos de uma escola para outra na tentativa de adaptação, mas era muito mais fácil desistir de estudar para não no submetermos a mais nenhum momento de constrangimento. Entretanto, nossos pais queriam que seguíssemos caminhos diferentes dos deles, prosseguíssemos estudando. Após muitas tentativas, finalmente conseguimos encontrar um colégio particular onde a discriminação racial não era tão evidente e palpável quanto nas escolas públicas que anteriormente estudamos. Com um extenso histórico de mudança de escolas, era difícil conseguir atingir a média 7,0 para aprovação no processo de seleção de bolsistas. A persistência de nossa mãe, compartilhando nossa história para a equipe pedagógica, foi um dos motivos que os convenceu a aceitar nosso ingresso naquele colégio. Com o passar do tempo iniciamos um novo ciclo de vida, novas amizades surgiram e a discriminação social foi se manifestando. O cenário anterior era o de conseguir aceitação e inclusão, e o cenário atual era de como permanecer após a inclusão. Nossas características físicas e nossa condição eram bem distintas quando comparadas ao contexto de vida econômico

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e status social daqueles estudantes que não dependiam de bolsa de estudos e já possuíam uma aceitação. Neste contexto, nós sofremos outra forma discriminação, o segundo choque foi perceber que existia um universo além do mundo que vivíamos e nós não tínhamos acesso. As refeições do colégio não eram disponibilizadas como nas escolas públicas, se não levássemos comida de casa, dificilmente ficaríamos satisfeitos comprando os caros e pequenos salgados da lanchonete, acesso ao material didático e aos uniformes não poderiam ser adquiridos se não fossem comprados de segunda mão, além disso, não tínhamos a mínima condição financeira de custear a participação nas atividades culturais e de lazer organizadas pelo colégio. Mesmo com tantas dificuldades, conseguimos concluir o ensino médio e não tendo condições de ingressar no ensino superior em uma faculdade particular, retornamos a Brasília no ano de 2006 para tentar ingressar na Universidade de Brasília. Novamente foi necessário passar por outro processo de adaptação e constituição de novas amizades. Após ter consciência da existência do racismo, sua forma de atuação e como opera o sistema institucional, não poderíamos deixar passar a oportunidade de tentar o acesso no Ensino Superior através das Ações Afirmativas. Nunca imaginávamos que o fato de sermos desprivilegiados socioeconomicamente seria algo positivo e essencial para possibilitar nosso ingresso no Ensino Superior. Durante o curso de graduação em Letras Língua e Literatura Japonesa foi que tivemos ciência da existência de outros estudantes nas mesmas condições ou piores do que a nossa e que nós precisávamos nos unir para nos fortalecer. Nos unimos aos grupos de assistência social e participamos de programas destinados ao acolhimento, permanência e qualificação de estudantes socioeconomicamente vulneráveis ingressos na UnB por meio de cotas. Nesses espaços de

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articulação refletíamos sobre a questão racial nas universidades e pensávamos em como precisávamos de representação. O interesse na área de inclusão no Ensino Superior e a necessidade de mudanças foram despertando cada vez mais, até que conseguimos bolsas de pesquisa no INCTI - Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão, o precursor das iniciativas de Ações Afirmativas negras, indígenas, quilombolas e dos saberes tradicionais nas universidades. Ao término do curso de graduação de Licenciatura em Letras Japonês, iniciamos o curso de Bacharelado em Língua Estrangeira Aplicada ao Multilinguismo e Sociedade da Informação. O foco deste curso é promover a inclusão através da acessibilidade audiovisual para facilitar a comunicação dos estudantes com deficiência visual e auditiva no Ensino Superior. A nossa trajetória de vida sempre foi conduzida por questões sociais e construída com a necessidade de transformação da nossa sociedade. Nosso objetivo com a pósgraduação é sermos capazes de promover transformações mais eficazes e duradouras no sistema educacional brasileiro. Essa transformação pode se dar através do poder de ocupação, poder de inclusão, poder acadêmico que juntos proporcionam o poder de emancipação e ascensão social e econômica. O poder político proporciona o crescimento e a autonomia e o poder de partilha proporciona igualdade de acesso a todos os bens do país e eliminação do racismo e todo o tipo de desigualdade. Acreditamos que a formação e a capacitação profissional proporcionam o poder intelectual e este qualifica o poder acadêmico através da experiência educativa da pesquisa.

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Diego

Diego Cruz Vilela

Em três décadas e um pouquinho de vida ele já presenciou, o que se pode dizer, uma porção considerável de situações, teve inúmeras experiências que foram extraordinárias e seriam suficientes para a escrita de muitas e muitas páginas. Fruto de uma família tradicional, com pais muito presentes e que são exemplos de vida e dignidade. Aos dezoito anos se tornou pai também. Tudo muito rápido, os estudos, as responsabilidades e a maturidade. A história de um casamento “rápido” foi sem o “felizes para sempre”. Foi-se o anel, ficaram os dedos. Permaneceu o filho de um filho, uma motivação maravilhosa de vida. Veio a graduação, amigos, pessoas. Se teve expectativa, apreensão, vontades. Mais pessoas, relações e situações. O ser humano em uma esfera de concorrência é cruel. Enfim, o tão sonhado trabalho, o desejo de ser docente, de ser funcionário público.

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Se foram os “quaisquer”, ficaram os amigos, bons amigos. Outros vieram, mais amigos, ótimos amigos. Conquista, amor, vida, desejo de ser Mestre. Pré-Pós, mais amigos, disciplina isolada...

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Celso

Celso Luís Nogueira Pardinho

Meu nome é Celso Luís Nogueira Pardinho, filho de Celso Pereira Pardinho e Maria Aparecida das Chagas Nogueira Pardinho. Tenho 28 anos de idade. Sou brasileiro, negro, filho de pai que concluiu o ensino médio e de mãe que estudou até ensino fundamental. Ambos não tiveram a mesma oportunidade que hoje eu tenho. Meu pai e minha mãe construíram suas vidas na roça, assim como a maioria de todos meus parentes. Venho de uma família onde o estudo não é o único caminho, sou de uma criação onde o homem de verdade é aquele que trabalha na roça. Que tem as mãos calejadas da inchada, da foice. Sou fruto do interior do Paraná – São João do Ivaí. Diferente da criação da qual sempre me deparei pelos meus avós e tios, meus pais sempre tiveram em mente que o estudo é sempre o mais importante. Por essa razão, eles saíram da roça quando eu e meu irmão iniciamos nossos

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estudos no ensino fundamental. Entretanto, meu pai nunca deixou de trabalhar na roça. Já minha mãe, durante muito tempo trabalhou como empregada doméstica. Naquela época, eu e eu irmão sempre nos virávamos sozinhos, dividíamos os afazeres domésticos. E assim levávamos uma vida simples, mas feliz. Como sempre fomos pobres, nunca tive a oportunidade em estudar num colégio particular, fazer cursos de inglês. Por essa razão sempre estudei em escolas e colégios públicos do estado. Nunca frequentei cursinhos pré-vestibulares. Fiz meu ensino médio na Modalidade Normal – Ensino Médio com Magistério. Quando terminei o curso em 2007, ingressei em seguida na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Mandaguari – Faculdade esta particular, sendo eu o responsável pela mensalidade do curso. Em função disto, prestei concurso público na Prefeitura de São João do Ivaí para o cargo de Professor do Ensino Fundamental I – sendo aprovado em 3º Lugar. Desta forma trabalhei durante os anos de graduação até que em 2011, quando já terminado o curso, vim embora para o Município de Colombo – PR para trabalhar como professor da Rede Pública de Ensino como PSS. Como já estava na região de Curitiba, ingressei em 2011 no curso de especialização em Comunicação Política da UFPR, concluindo em 2012. No mesmo ano fui convidado para trabalhar nas Redes Particulares de Ensino Passionista e Ágape, ambas do município de Colombo, vale mencionar que desde o referido ano ainda permaneço em ambas instituições. Em 2013 ingressei no curso de Sociologia EAD da Uniasselvi, paralelamente ingressei também no curso bacharel em História Memória e Imagem da UFPR. Sendo que em 2016 conclui o curso de sociologia e neste ano, 2017, concluirei o curso em bacharel. Após a minha vinda para Curitiba, minha vida e as possibilidades aumentaram, pois percebi que tinha opções,

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entretanto, me deparei com questões que vão além apenas das opções. Que são a questão de sobrevivência em meio a uma diversidade de questões culturais, econômicas e sociais. Ao adentrar na universidade Federal, percebi que temos duas opções extremamente conflitantes se quer realmente ingressar na vida acadêmica: ou você estuda, ou você trabalha. Que a faculdade particular te prepara para a educação e a universidade pública para a pesquisa. Um grande choque para mim, que vim para a “cidade grande” realizar-me profissionalmente e pessoalmente. Vi e senti na pele o que é ser desprezado, desrespeitado por ser negro, de origem pobre e por não seguir certos preceitos sociais. Em função de todas essas questões, fiz escolhas, continuei a trabalhar fazendo aquilo que sei, que nasci para fazer: ensinar. Mas para mim, ensinar é uma opção e eu nunca fiquei feliz em ter apenas uma opção, queria e quero mais. Desta forma, tentei duas vezes ingressar na pós-graduação, uma vez em história na UEL e outra na educação UFPR. Em ambas fui desclassificado nas entrevistas. Os motivos nunca soube. Nunca compreendi, pois as perguntas sempre eram sobre mim e não sobre o projeto. Sendo assim, busco a oportunidade de ingressar na carreira acadêmica, pois sei que posso fazer mais pela educação, pela pesquisa histórica, sei que posso contribuir para novos caminhos para que haja uma equidade social e cultural.

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Viagem menos tediante pela minha vida Lilimar Weissmann de Oliveira Agora entendo porque tantas pessoas preferem contratar um ghostwriter para escrever algo de sua trajetória de vida. É entediante escolher um lado do multifacetado mundo particular, reviver sofrimentos, relembrar alegrias e ainda achar um momento de rara beleza, que represente este reles ser humano, que neste caso, sou eu. Como um ghostwriter não está no planejamento financeiro do mês, falarei daquilo que amo, além de minha divindade e família. A primeira é uma adoração particular demais e a segunda é uma loucura só. Minha mãe sempre diz que família que não tem ladrão, prostituta, viciado e homossexual, não é família. Diante dessa grande sabedoria materna, acredito que tenho uma. Como disse, falarei do meu grande amor pela leitura. Nas últimas contas, acho que no ano 2000 eu já havia lido mais de cinco mil livros só de literatura. É encantador viajar

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por meio das palavras, vê-las tomar forma diante dos olhos. Desde que me conheço por gente, adoro ler. Como na época em que fiz o primeiro ano do ensino fundamental I. Só entrava na escola quem soubesse ler e escrever, e olha que não foi nada fácil para minhas orelhas e braços, pois a professora particular, dona Marfisa e sobrinhas, esperavam um errinho para me beliscarem e puxarem meus cabelos. Quando recebi meu primeiro livro, uma cartilha, percebi que tudo havia valido a pena. Adorava ler “IVO VIU A UVA”, parecia-me início de poema. Mais tarde, meu pai trouxe-me os livros de Malba Tahan (O homem que calculava, Lendas das mil e uma noites, Lendas do deserto: contos orientais, outros), e pensar que o escritor era brasileiro e nascera em Queluz, fronteira com Paraná. Eu o imaginava um árabe com longas barbas e muito sábio. Li Malba Tahan como se estivesse comendo macarrão com salsicha, meu prato predileto quando nessa idade. A partir daí lia tudo o que caía nas mãos: quadrinhos (que minha mãe rasgava, pois não eram adequados a uma criança de família), e durante as férias em casa da tia Marlene, esperava ansiosamente que ela fosse dormir à tarde para abrir o sofácama da sala [Era minha preciosa]. Lá ficava meu tesouro: revistas. “Seleções” e fotonovelas: “Sétimo Céu”, “Capricho” e outras. Quando eu a escutava levantar, devagarzinho fechava o sofá e sentava fingindo que a estava esperando para o café da tarde. Mas aos 12 anos foi o début como leitora. A professora pediu que a turma comprasse e lesse O Guarani de José de Alencar. “Caraca!” Como eu chorei quando Ceci e Peri foram os únicos a sobreviverem à destruição do casarão. Um amor de raças tão diversas. Minha mãe imaginou que eu estava doente, porque não larguei o livro enquanto não terminei. Viajei pelas florestas virgens da Mata Atlântica, emocionei-me

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pela devoção de Peri por Ceci, comparando-a com a Virgem Maria. A partir daí li toda coleção de Alencar. Como éramos seis crianças e os livros muito caros, meu pai levou-me um dia à Biblioteca Central do Exército de ônibus para eu aprender o caminho. O bibliotecário ficou tão impressionado comigo, que passou a me emprestar cinco livros, pois sabia que eu vinha de longe, do subúrbio. Machado, Azevedo (meus pais não tinham falsos preconceitos ou pudicícia), Lobato, entre outros. É preciso lembrar que estávamos em plena Ditadura e muitos autores e livros eu não conheci naquela época, mas o que tinha na biblioteca, a traça aqui leu. Quando todos os autores brasileiros acabaram, li a coleção de História da França, Inglaterra, o Livro dos mórmons, o Talmude, o Corão, a Bíblia, o Livro dos espíritos etc. Aos 15 anos, minha mãe não sabendo explicar sexo e DST, deu-me uma coleção que só tratava disso. Era meio chata, mas entendi a mensagem. Quando cheguei no último livro da coleção, resolvi ser freira. Passei a andar com saia abaixo dos joelhos e blusa de manga e gola. Não sei se era isso que minha mãe queria, mas achei por bem optar por algo que não me passasse doença, por causa de todas as imagens nojentas que vi nesses livros. Claro que na minha multifacetada vida há eventos que valem a pena lembrar, mas nada foi tão importante do que a minha formação leitora, minha ânsia de viajar por meio das palavras, de me sensibilizar com poemas, de conhecer outras culturas. No Rio de Janeiro dificilmente você via alguém que não estivesse lendo jornais, livros nos transportes coletivos. Todos os domingos comprávamos o Jornal do Brasil. |Após a leitura do meu pai, era a minha vez. Depois virava aviãozinho, barquinho, chapéus ou limpador de “caca” dos cachorros e gatos. Há pouco tempo um psicanalista disse que um livro cura doenças da alma. Não sei se curou as minhas, porém, ler

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é mais divertido do que fofocar. Sonho de consumo: deitar numa rede estendida, areia branca, mar calmo, leve brisa e um livro de haicai japonês, exercendo profunda reflexão preguiçosa sobre textos como o seguinte: “Quantas memórias me trazem à mente Cerejeiras em flor Um antigo lago em silêncio… Um sapo pula na lagoa, splash! Silêncio novamente.” Extraído de: cacadoresdelendas.com.br/japao/haikai-poemas-japoneses/. 25 jul. 2017.

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Sabrina Sabrina dos Santos Frausino

Introdução: Escrever sobre nossa vida? Que coisa complicada, não tem uma frase que diz que “viver não cabe em livro (lattes)?”, então não sabemos se conseguiremos o feito de dizer algumas coisas que possam ser interessantes. Afinal, o que para nós é importante, para vocês leitoras(es) pode ser um tédio. Mas de qualquer jeito, lá vai. Será que vale desabafar? Melhor não. O que somos, quem somos nós, primeiramente explicar que esse “nós” é bem engraçado, pois vivemos de fato com muitas pessoas à nossa volta, construímos nossa vida e forma de viver a partir dos relacionamentos que tivemos, mas uma narrativa autobiográfica onde somos mais de um... é divertido. Desde que nos entendemos por gente, entendemos e aprendemos que somos “diferentes”, somos meninas negras. Nosso mundinho encantado que a televisão faz parecer fantástico e as historinhas de contos de fada contadas na

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creche, vão entristecendo esses pequenos corações, pois nada do que é visto ou dito mostra crianças negras. Essa história que é nossa vida merece momentos de reflexão. É tão lindo lembrar a infância, lindo e triste, um processo doloroso. Quando crianças brincávamos muito com outras crianças, não importando a cor. Mas na medida em que crescemos, nosso olhar vai se modificando e assim também nosso círculo de amizades. Pequenos detalhes... Durante nossa infância, vivenciada nos anos 1990, o mundo era um lugar alegre, gentil, parecia que todas e todos eram iguais, mas a infância é só um estágio e para crianças negras parece ser mais curta. Foram tantos riscos... Ainda que nossa família estava sempre a cuidar de nós. Só desse modo que fomos entendendo as “diferenças”, fossem de raça, gênero e/ou classe. Nas casas em que vivíamos eram muitas mudanças, nosso pai tinha síndrome de cigano, ou vai ver era o sangue indígena dizendo: “vamos, é hora de partir”. Todas temos saudades daquele homem, que a escola ensinou a ver como herói, é sim, ele já partiu e gostamos de acreditar que pro céu. É muito cruel não dar valor a nada, não conseguir acreditar em ninguém, ser apenas matéria. Ele tinha um sonho, talvez fosse desejo, de ver as filhas (somos meninas, ele pedia homem, os céus o abençoaram com estas três divindades negras) estudando, fazendo faculdade. Uma de nós está indo realizar essa vontade, que era também de nosso avô paterno, faleceu também. As vezes ela chora por causa das dificuldades e do preconceito, mas temos uma heroína também: nossa mãe. Nosso irmão do lado materno costuma dizer: “a matriarca da família”. Quanto sofrimento ela já viveu. Estamos vivendo, uma ajuda a outra, e, claro, todas nós corremos para os braços dessa mulher que diz que não tem

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mais forças, mas é nosso espelho. Nossa história é quase a de “quarto de despejo”, mas costumamos contar só as alegrias. Ninguém quer sabe de histórias tristes fora das novelas, filmes com pessoas brancas. História de pessoas negras evoca o racismo velado, faz as pessoas refletirem, nessa que é uma das maiores feridas abertas da humanidade. Às vezes é triste ser negra/o. Mas é só às vezes, negras/os não tem paciência pra tristeza. Que melancolia lembrar, mesmo que pouco ainda, dessa história por nós vivida. Foi um momento em que transpusemos o espaço tempo, cheio de recordações de meninas curiosas, uma não aceitava desaforo e não aceita ainda, se precisar dar lição para o desrespeito, preconceito e outras coisas, ela faz, não importa a situação. As outras suas são mais espertas, ficam quietas, esperando ver o que vai acontecer, só depois é que se manifestam. Em outro momento podermos contar um pouco mais dessas crianças adultas, porque agora o tempo pede o que é dele. Tempo...

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Sandra Maria Sandra Maria Ferreira Jeremias Ela nascera numa cidadezinha do interior de São Paulo. Filha do segundo casamento dos pais. Os pais mudaram para o Paraná na expectativa de encontrar um lugar melhor para criar os filhos. O pai se tornou comerciante e a mãe o auxiliava. Desde pequena ela e os irmãos aprenderam a trabalhar na pequena mercearia da família. Casou cedo. Aos vinte anos se tornou mãe. Cinco anos após o casamento o marido faleceu. Dedicou-se aos filhos e mais tarde iniciou um novo relacionamento. Não foi feliz quanto imaginou. Voltou a estudar, retomou sua vida. Se graduou no curso de Pedagogia já com os filhos crescidos. Após a graduação, fez o curso de Especialização em Educação Especial buscando entender melhor os percalços da aprendizagem. Prestou concurso público na Prefeitura do município de Colombo-PR. Foi admitida como professora de Ensino

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Fundamental Anos Iniciais atendendo alunos da Pré-Escola e do 1º ao 5º ano. Em virtude do salário não ser muito atrativo e pela distância para deslocamento, ela acabou se desligando da prefeitura. Depois ela trabalhou por meio do Processo Seletivo Simplificado pela Secretaria de Educação do Estado como professora de Educação Especial. Desenvolveu projetos numa oficina de meio ambiente, atendendo alunos com quadro de deficiência intelectual leve e severa, numa Instituição bastante conhecida denominada Pequeno Cotolengo. Ela considerou ser uma oportunidade de novas experiências na área do ensino. Gostava do trabalho, mas queria um vínculo empregatício que lhe oferecesse mais estabilidade. Para tanto, participou do concurso público para professores do Estado do Paraná e foi admitida como professora pedagoga. Depois ela foi selecionada pela Coordenação de Integração de Políticas de Educação a Distância (CIPEAD) para uma Especialização na área de Coordenação Pedagógica que foi ofertada pela UFPR. Ficou satisfeita, pois percebia a necessidade de ter subsidio para pôr em prática seu trabalho, pois na época da graduação, o trabalho e os estudos ocorreram simultaneamente, não lhe permitindo tempo de dedicação maior aos estudos. Sempre que pode ela participa dos cursos ofertados de extensão universitária, pois os considera de excelente qualidade e acredita que eles enriqueçam o seu currículo e a habilita para intervenções no cotidiano. Gosta de estudar e é comprometida. Acredita viver numa sociedade que está em constante mudança e considera necessário reconstruir continuamente a aprendizagem, por se considerar um ser inacabado.

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Nossa incapacidade de ouvir Tadiane Arabele de Oliveira Sábado passado estava indo almoçar com uma amiga e colega de curso quando fomos abordadas por uma pessoa. Inicialmente íamos até uma loja, bastante popular, de produtos alimentícios naturais. A loja estava abarrotada de clientes, como de costume, pelo que soube depois. Para sermos atendidas por uma das habilidosas vendedoras, enfrentamos uma fila rápida. Quando chegou nossa vez, minha amiga, a Lú, pediu pelos ingredientes que precisaria para fazer um pão australiano e eu pedi apenas por cúrcuma e castanha do Pará – houve a tentativa da adoção do termo castanha do Brasil, já que no exterior é assim que a chamam, mas parece que não pegou, pois tanto nas bocas das pessoas como nos rótulos, ainda usa-se castanha do Pará – já que mais tarde iria de ônibus para Pinhais para o aniversário de primeiro aninho da minha sobrinha-neta, Helena. Na saída da loja, decidimos ir almoçar no Mercado Municipal, já que estávamos a umas três quadras do local. Fomos

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andando, como havíamos feito na primeira parte do trajeto. Mas, em frente a uma distribuidora de doces, fomos paradas, abordadas por um morador de rua – embora sua altura, cor de olhos e pele não pertencessem ao estereótipo –, a conclusão foi óbvia pelo estado de sua aparência. Nossa reação, também óbvia, foi pensar que ele queria dinheiro. Passei as mãos pelos bolsos e nada encontrei à mão, pensei em dizer que não tinha “nada” e seguir nosso caminho. Porém, ele foi rápido e nos disse que não queria dinheiro. A curiosidade se instalou. Ele conseguiu o que queria, nossa atenção. Mas em uma fração de minuto ela se dissipou e, novamente, o pouco tempo que tínhamos para ir até ao Mercado, comer e fazer a caminhada de volta até a sala de aula se fez presente. Com esses pensamentos na cabeça só ouvi, de tudo que ele disse a fim de se fazer entender, as palavras: “bala de goma e trinta”. O que um adulto vai querer com balas de goma? Ah, acho que ele quer vender.... Eu respondi “mas não tenho trinta reais”, ele, já um tanto cansado e levemente irritado “Não! A caixa com 30 balas custa oito reais. Eu quero vender pra me ajudar a comprar o que eu preciso”. Ah, tá, oito reais eu tenho, pensei. Trocamos olhares a Lú e eu, concordando silenciosamente o que seria feito. Pedi a ela que fosse para a fila do caixa, já que essa loja também estava cheia de gente. A ele pedi que mostrasse qual era a bala que queria, já que eram várias as prateleiras com diversas opções. Ao nos ver entrar, o vendedor já o reconheceu e me apontou o lugar certo da mercadoria. Concluímos a compra e pudemos entregá-la ao homem. Atingir o objetivo da conversa foi dificultado pela pressa, ruído na comunicação devido à intervenção desnecessária e por nossa incapacidade de ouvir. Esse episódio me fez refletir em como agimos sem estar verdadeiramente presentes e como isso atrapalha nossas relações. É responsabilidade

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de cada um mudar sua postura diante do outro no momento em que se perceber “no modo automático”. Sem pensar em respostas, sem elaborar argumentos, a escuta verdadeira é se abrir ao outro para receber o que ele está disposto a compartilhar; é estar atento e presente naquele momento tão delicado de confiança. Em nossa despedida ele perguntou se aceitaríamos um saco de balas de goma, comprado anteriormente por uma moça que teve boa intenção mas que não entendeu o objetivo do homem. Nós, por pouco, ou melhor, por muito, não fizemos o mesmo.

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Giovana Maria

Giovana Maria de Oliveira

Eu nasci ouvinte, um dia fiquei doente, tive febre alta, o médico me deu remédio errado, fique surda. Claro que meus pais ficaram tristes, não sabiam o que fazer. Antes de 7 anos eu não falava e nem usava sinais, só usava os gestos caseiros que a família criava para poder se comunicar comigo, mas era realmente muito difícil. Aos 7 anos entrei numa escola para surdos, “Helen Keller”, eu ficava admirada porque nunca tinha visto crianças surdas como eu. Na época, usávamos comunicação total, eu aprendi a falar algumas palavras, minha família ficou feliz, acreditava em minhas possiblidades. No ano de 1992, entrou um novo professor surdo que tinha pavor de comunicação total, usava a língua de sinais natural, pois ainda não existia Libras na lei. Aprendíamos muito com ele e fomos tendo contato com essa outra língua. Estudei até o ensino fundamental nesta escola, pois não tinha ensino médio na

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época, por isso tive que me mudar para Porto Alegre onde tinha uma escola bilíngue que se chama “Concordia”, lá eu morava em uma casa de freiras. Sofria muito, pois não tinha família por perto. Pior era no fim de semana que passava sozinha, pois só durante semana encontrava com colegas. Não foi fácil para mim, demorou um ano para eu fazer amigos. Me formei no ensino médio, mudei para Caxias do Sul com a família, mas não pensava em fazer faculdade, resolvi procurar emprego e logo consegui. Depois de pouco tempo, não me sentia bem no trabalho, porque os colegas eram ouvintes, conversavam entre si e eu me sentia sozinha. Pensei melhor, voltei a morar em Canoas – RS pra prestar vestibular na ULBRA e passei em Pedagogia, onde tinha interprete para mim, o que me ajudou muito. Logo depois apareceu curso Letras Libras na UFSM, larguei o curso de Pedagogia, continuei o curso Letras Libras até concluir. A minha vida foi meio complicada porque sempre mudei de cidades por motivo de trabalho ou estudo. Conclui a Pós-Graduação na UNINTESE – Santa Maria – RS, morava com meu marido, mudamos para Curitiba faz um ano e meio, consegui emprego como professora de Libras na Librandus, consegui me adaptar, comecei a fazer o curso Pré-Pós na UFPR e fiz concurso para professora Substituta na UTFPR, passando em primeiro lugar, fiquei super feliz. Agora já estou começando a lecionar lá. Agradeço a Deus e pretendo fazer mestrado também.

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Pessoa Surda se expõe! Larissa Alberti

Durante as “Oficinas de Escrita Acadêmica” no curso Pré-Pós UFPR, pedi para minha mãe escrever um texto de forma sucinta sobre minha infância que servisse de inspiração para que eu pudesse escrever minha narrativa. “Minha filha... Larissa nasceu no dia quatro de julho de 1984 às 18:00 horas. Veio de uma gestação normal, porém sua mãe perdeu líquido da bolsa durante os nove meses, ocorrendo parto seco. Três dias após nascimento ficou claro que era ouvinte, pois virou a cabeça e olhou em direção à sua mãe que conversava com sua visita, enquanto sua avó trocava as fraldas. Desenvolveu-se normalmente nas etapas da vida de um bebê. Tratada como ouvinte, obedecia a ordens, dançava

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em frente da TV e rádio. Deixou as fraldas com facilidade e também a chupeta. Comportamento sempre normal até que um dia apareceram as dúvidas devido ao fato que, quando se encontrava de costas para chamados ou barulhos, não reagia. Procuramos ajuda médica sem sucesso, pois segundo o profissional especializado só poderiam diagnosticar após os 2 anos de idade. Na verdade, era mito, pois já se podia fazer exames. Aos 3 anos, já diagnosticada como deficiente auditiva, começou a frequentar a Escola Epheta, onde o objetivo era leitura labial não permitindo o uso de sinais. Aprendeu a ler com facilidade e nada foi obstáculo para seu desenvolvimento intelectual, social e emocional. Sempre alegre e prestativa, interagia com familiares, parentes e amiguinhos sem dificuldade. Dançava, fazia sapateado, era segura e nada impedia sua comunicação. Estudou em escola regular, depois classe especial no Instituto de Educação e voltou no ensino fundamental para escola regular. Fez o ensino médio no Instituto de Educação do Paraná terminando em Londrina na Escola ILES. Tirou carteira de motorista ao completar 18 anos. Cursou Licenciatura em Matemática na UNIBRASIL. Trabalha em banco há mais ou menos 10 anos. Fez pós-graduação em Libras.” Esse texto instiga minhas lembranças. Um túnel do tempo se abre na imaginação e os pensamentos partem para um passeio ao passado. Nessa viagem, o sangue das artérias do coração flui movimentando minhas mãos, me fazendo escrever e registrar, em uma folha artificial do computador, lembranças destes meus 33 anos.

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Desde a infância vivo na cidade de Colombo, que foi primeiramente habitada por indígenas, posteriormente herdada pelos imigrantes italianos. Sua vegetação primitiva era constituída por imensas pinheiras e florestas de erva-mate, sendo substituídas, em grande parte, pelo reflorestamento com Bracatinga, Eucalipto e algumas essências nativas como a Manduirana e a Guavirova. Meu primeiro lar foi ao lado da casa da avó Aurora, localizada no Jardim Aurora. Uma casa humilde com grande quintal onde eu brincava muito. Ali tinha uma árvore central em frente à minha casa que não esqueço, pois quebrei seu galho quanto eu balançava feito um macaco, caindo ao chão. Apenas minha prima sabe, é filha ouvinte da minha tia surda. Após viver bons momentos nesta casa, mudamos para uma outra de madeira no bairro Guaraituba, próximo ao bairro anterior. Era meu segundo lar e eu adorava também. Ali lembro quando a Kombi escolar me buscava para me levar à Curitiba até o terminal Sites. Era uma escala de troca de transporte para ônibus cor azul e amarelo que transportava os alunos surdos, inclusive eu, para a Escola Epheta. No terminal tinham muitos surdos desta escola e de outras, como Centrau, Cresa e Craf. As demais crianças tinham deficiências diversas. Quando meu irmão 4 anos mais novo chegou no mundo, também ia comigo na Kombi escolar. Ele tem síndrome de Down e ia para escola APAE em outro ônibus partindo do terminal Site. Íamos e voltávamos juntos do terminal, sempre unidos. Na escola Especial, eu sentava na fileira de mesas que tinha formato de C. Éramos sete alunos. Na aula observávamos muitas palavras no quadro e a articulações da professora treinando-nos para falar e fazer leitura labial. Os sinais pelas mãos eram proibidos. Eu usava uniforme, camiseta branca com símbolo da escola na frente e calça azul marinho, com listras laterais brancas, e usava aparelhos auditivos para

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ouvir sons. Aprendi muitas coisas, eram os ritmos de dança, exercícios na Educação Física, muitas palavras icônicas através dos sinais pelas mãos dos amiguinhos durante diálogo, sinais articulados pelas mãos que era como gestos nas quais hoje é algo formal e está inserida na LEI nº 10.436/2002 como Língua de Sinais Brasileira. Paralelamente à escola especial, me incluíram na escola regular na pré-escola. Só agora tenho a compreensão do que significou a Declaração de Salamanca, Estudos dos Surdos e das políticas da Educação Especial. Na escola a fileira não era única, tinha muitas mesas quadradas com quatro cadeiras para cada. Só me lembro que eu gostava de pintar com muitos lápis e ceras coloridos, colar as bolinhas de papel crepom de várias cores no papel com desenhos de animais famosos na TV. Tenho uma foto de formatura com a professora Tânia. Na primeira série com a professora Sandra, me espanta o fato de que não lembro quase nada, além do desfile da festa junina, onde fui sinhazinha. Na segunda e terceira séries voltei para escola, ingressando na classe especial no Instituto de Educação do Paraná. Escola grande de ensino regular com muitos alunos ouvintes. Havia duas classes especificamente para surdos, com colegas que eu já conhecia na escola Especial. As professoras nos ensinavam pelos lábios mais pausadamente. Tinha dificuldades nos cálculos da divisão. Na quarta série voltei a estudar na escola regular municipal perto da minha casa. O motivo é que eu era agitada e bagunceira na sala. Sozinha, novamente na multidão ouvinte, e muitas fileiras 5x8 mais ou menos. Gostava de ir lá e brincava muito no recreio. As colegas e a professora Glair eram muito queridas. Eu era boa na memorização e lógica. Ali eu entendi como calcular a divisão porque observava concentrada quando meu colega calculava no quadro a ordem por divisor de 1 a 9 que começava no quadro na borda direita e ia até a borda esquerda. Depois da aula ia

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para casa e adorava ver os gibis da Turma da Mônica, mas não lia as escritas. Só descobri que o Cebolinha falava errado através das conversas com os amiguinhos surdos. Batalhei para ler e descobrir muitas palavras novas e diferentes formas de comunicação. Na Escola Municipal não tinha 5ª série, novamente me mudei com jeitinho de chororô para escola privada em Colombo. As fileiras eram 4x3, fiquei até 8º série. Estudei bastante, mas quando tinha explicações das professoras, eu não as acompanhava, então “viajava”. Em 1996 desisti da escola especial (contraturno) por cansaço, pois tinha que ir a duas escolas. Lembro-me que uma vez, durante a aula regular, um colega gritou na minha cara. Chorava por não entender nada. Não sabia o que acontecia. A professora brigou, pediu a eles para que me respeitassem por eu ser surda. Me formei no Ensino fundamental e iniciei o Ensino Médio no Colégio Estadual do Paraná, onde minha irmã 4 anos mais velha estudou. Lá, tinha mesas e muitas fileiras, 5x10, algo assim. As professoras e colegas falavam rápido. Não conseguia acompanhar os discursos de cada um. Senti bem forte o preconceito na metade no segundo mês em que estava na escola. No primeiro horário de aula eu senti o choque de estar ali e ser excluída, chorei, fui embora e nunca mais voltei. Minha mãe me levou de volta para Instituto de Educação do Paraná. Fiquei feliz em rever meus amigos surdos. Estudei 1º e 2º ano em classe especial. Me formei na Escola ILES que se parece escola bilíngue para surdos em Londrina. Fui oradora da formatura, sinalizando meu discurso em Libras. Ainda não existia intérprete de Libras e ao meu lado o ouvinte lia o texto com microfone. Durante o 2º grau eu guardei meus aparelhos auditivos na cômoda, SÓ BARULHOS NÃO ME SERVIAM! De volta para minha terra em Colombo, ingressei na Faculdade UNIBRASIL no curso Licenciatura em Matemática. Tinha um sonho: ser professora para crianças surdas, para

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que elas tivessem comunicação e ensino acessível. Depois de 1 ano e meio cursando, tive intérprete de libras, mas não era um profissional. Sofria pela falta de comunicação, informação e solidão, mesmo com muitas pessoas por perto. Fui ao estágio supervisionado no Instituto de Educação do Paraná, na classe especial para surdos. Uma vez na sala de 5ª série, pela ausência do professor, fui dar aula de imprevisto e consegui motivar a participação dos alunos com o tema: “O que é Matemática?” Adorei e me formei! Na época da faculdade comecei a trabalhar no banco HSBC que hoje foi incorporado pelo Bradesco. Vou fazer 11 anos de trabalho. O banco divulgou o PDVE- Plano Desligamento Voluntário Especial. Por incrível que pareça estou tranquila e preparada para solicitar. Quando criança a vida era confortável. A responsabilidade era dos pais. Agora adulta, as brincadeiras se foram e trouxe mais diálogos, sinto muita angústia na comunicação. A responsabilidade agora é minha, as coisas não são acessíveis, sendo limitada no trabalho, na família, no acesso público e tais, mas sei que a limitação não é minha, mas da sociedade que ainda não sabe lidar com a minha diferença. Na pós-graduação de Educação Especial: Educação Bilíngue para Surdos Libras/Língua Portuguesa, gostava das aulas porque tinha intérprete de libras profissional, pesquisas sobre educação dos surdos e aulas de Libras. Na mesma época lecionei noturno na Escola APÁS – Educação Jovens e Adultos Surdos. Recebi diploma de pós em 2014. Depois de 2 anos de tentativas de me inscrever no curso de mestrado com muitos obstáculos, consegui cursar o Pré-Pós UFPR. Estou ampliando meus conhecimentos para obter curso de mestrado na área de Educação. Estou aprimorando-me com muitas leituras e artigos formais que eu não gostava de ler e que não sabia de muitas coisas.

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Desejo lutar pelo meu desenvolvimento com intuito de ser semente, para que a educação de surdos floresça de maneira saudável e justa. Minhas notas durante o processo escolar eram muito boas, mas quando prestava concursos, as notas eram horripilantes, não conseguia atingir os requisitos. Isso prova que a memorização acaba e o que é importante no processo ensino-aprendizagem é a compreensão. Um pouco mais de retrospectiva da minha vida... Aprendendo a falar... na hora do jantar olhei bem para a travessa de polenta e na intenção de repetir o prato e falei: - Mamãe, quero mais cebola!! Minha mãe achou graça e perguntou: - O que você quer? Ai falei: - Maiiiiis cee-boo-laa. Pela primeira vez no dia de Domingo, antes de almoço, ritual da família, meu pai me pediu para ir na panificadora comprar Coca-Cola. Acho que me revoltei porque lembro que não queria ir sozinha. Fui andando devagar na rua sem asfalto, olhando muitas pedrinhas, pensativamente, até na panificadora. Pedi Coca-Cola e a vendedora enrolou mostrando coisas até que me entregou “cola”. Sim, cola, até acertar na garrafa de Coca-Cola. Voltei para casa super bem, pois aprendi a ser independente. Outro dia, neste ano, encontrei a senhora Leni, relembrou o fato ocorrido e disse que nunca esqueceu da “cola”. Nas escolas regulares tinha a regra para deficiente auditiva sentar na frente e meio entre as fileiras, bem próxima da professora, a pedido da diretoria, mas eu escolhi e me obrigava sentar perto na parede para que eu pudesse me virar de lado uma vez e visualizar todos. Imagine no meio, medo de assombração atrás de mim! Na fase adulta, num ambiente de trabalho, a comunicação sempre gerou uma bagunça porque eu estava perguntando via oral, mas acontecia das pessoas se confundem

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se era uma pergunta ou comentário, não sei interrogar nem exclamar... só pontuo! Maioria das vezes sei virgular, só para descansar a minha voz ardente! Os ouvintes, de todo mundo, se viram como finalização, chamei dizendo que não terminei, eles me retrucam: - estou ouvindo! Ah, prefiro conversar de olho a olho, só que os ouvintes não têm esse hábito. Faço leitura labial das pessoas, caso eu não entenda, peço para falar novamente, se mais de duas vezes não entendem, afirmo com a cabeça para bastar a conversa e não ver a cara de impaciente. Pois é, também não sou perfeita! No lugar onde há comunidade Surda eu me sinto no palco invisível, sinalizando fluentemente, quando o assunto é formal sei articular delicada com Libras padrão, com postura confortável para que possam me visualizar como repórter na TV, no meu papo informal gera outra história, muito mais alegria, triste, alto, baixo! Língua de sinais tem estruturas sim! Bem, finalizo essa digitação com sentimento de felicidade de saber pelo que eu sou, surda, feminino... sou ... sou Larissa Alberti. Fecho as aspas!

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Minha vida, minha história Paula Cristina Roque

Nasci ouvinte, mas minha mãe teve sarampo quando estava grávida de seis meses. Ela morava na fazenda, não tinha acesso aos médicos, apenas na cidade que era pequena e distante podia conseguir consulta, então não pode tomar as vacinas, pois não tinha como ir até lá. Com três meses tive sarampo e muita febre, tinha risco de morrer. Com um ano e meio tive perda profunda da audição e não falava. Fui ao médico, que fez uma cirurgia, porque eu tinha a língua presa, depois disso minha voz voltou. Nesse período minha vovó foi procurar uma escola para surdos e encontrou um Instituto de Educação de Surdos que passei a frequentar na cidade em Londrina - Paraná. Comentou que sua neta era muito esperta, mas que não queria ir à escola. Eu tinha medo, chorava porque eu vi que na escola tinha uma freira, então achava que era um Hospital e Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná

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não queria ir. A professora Lourdes me pegou no colo e pediu para eu me acalmar e olhar para as crianças que brincavam na sala de Educação Infantil, depois eu percebi que eram surdas e fiquei curiosa para conversar com elas gesticulando. A professora não deixava a gente sinalizar na escola e eu chorava muito. Tinha vontade de conversar com os colegas com gestos, me escondia com eles para conversar e fiz isso muitas vezes, até que a professora descobriu. Fui castigada e obrigada a ir para a fonoaudióloga todas as sextas-feiras. Sentia-me muito mal e sofria muito, pois não tinha liberdade para conversar em sinais, quando falava para minha mãe, ela me dizia que era proibido na escola, por isso eu não podia utilizar essa língua lá. Eu usava um aparelho de audição que era ruim, não conseguia ouvir nada com ele, tinha um ruído muito alto. Quando tinha dez anos de idade eu fiquei muito teimosa, nervosa e brava. Fazia muita bagunça e batia nas crianças. Na 4ª série aprendi melhor o português, lia gibi, fazia redação na escola e levava tarefa de casa. Não gostava de brincar de boneca porque era muito egoísta. Minha família me ajudava a fazer muitas tarefas nas férias. Na adolescência, com quinze anos, aprendi aos poucos LIBRAS com um grupo de surdos, mas na época essa língua era proibida na escola onde estava, até que em 1985 a Diretora Irmã Silvana liberou os surdos para usarem Libras. Então nós podíamos usar as duas línguas. Minha mãe não gostou da ideia de liberar Libras na escola, discutíamos muito, foi uma guerra com ela porque ela queria que eu falasse oralmente. Minha avó tentava fazer a gente ficar em paz, tentando fazer com que nos entendêssemos e não brigássemos por esse motivo. Em 2003, com vinte e um anos de idade, fui descobrindo a dificuldade na sociedade dos surdos se comunicarem com os ouvintes, pois infelizmente a maioria das pessoas não sabe

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o que é a Libras e a importância da língua para os surdos. Por isso comecei a estudar linguagem de português, fazer redação, repetia 12 vezes os erros de palavras em português, brigava com minha professora Flavia! Fui treinando minha escrita na redação até conseguir ler jornais, revistas, etc. A professora Flavia corrigia meus textos de redação, reduzia os erros, me ensinava palavras, preposições. Todo esse esforço me ajudou a avançar nos estudos. Passei em segundo lugar de vestibular da UNIFIL, estudei “Sistemas de Informação”. Me comunicava com leitura labial, tinha uma intérprete de libras que se tornou minha amiga na faculdade. Me formei em 2009. Me mudei para Curitiba há 8 anos, estou estudando “Letras/Libras” na UFPR, preciso me aperfeiçoar na Libras, pois eu utilizo a comunicação total e a mistura dessa língua com o português me atrapalha. Estou buscando me adaptar a Libras e português separadamente, estou aprendendo mais e avançando nos estudos de língua bilíngue. Agora estou melhor para me expressar com clareza em Libras e quero continuar avançando nos estudos e com isso lutar pelos direitos de inclusão de todas as pessoas surdas.

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Flor de maracujá Flavia Trevisan Ferreira da Silva Sou a caçula da família, nasci em 1988, ao lado de meus pais Maria Helena e Mauro Paulo e dos meus irmãos Mauro Cesar e Fernanda. Não sei se nasci surda, mas apenas com dois anos meus pais descobriram que eu estava no “mundo do silêncio” e seguia os gestos e mímicas caseiros. Naquela época, acredito que não tinha teste de orelhinha, por isso meus pais suspeitaram depois da minha deficiência. Passávamos as férias escolares dos meus irmãos na casa da vovó Cecilia e do vovô Orestes. Nesse tempo, minha maior defensora e cuidadora era a minha irmã. Em uma das férias meus pais foram viajar para França por um mês, quando voltaram, minha mãe me contou que chegou de viagem na casa da vovó e a primeira coisa que ela queria era rever os filhos, mas como eu tinha só dois anos, não reconheci minha mãe, me escondi atrás da minha irmã e ela ficou bem triste

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com isso. Ao chegar de viagem, a minha mãe perguntou para vovó e para uma das minhas tias que residia na época com ela e cuidava bastante da gente se eu tinha falado algo e a resposta era negativa. A minha tia Angélica é professora, como ela já tem convivência com outras crianças na escola, percebeu que eu não ouvia e que a única coisa que eu ouvia era quando ela gritava: ARARA, e eu chorava muito. Meus pais também suspeitavam que houvesse algo de estranho comigo, pois eles percebiam que eu só dava atenção quando usavam gestos, tentavam me chamar pelas minhas costas e eu não os ouvia. Resolveram me levar no otorrino, fizeram audiometria e fui diagnosticada com surdez profunda bilateral, mas, na verdade, depois fui avaliada melhor, somente no ouvido direito é profunda, no esquerdo é severa. Na minha família não tem ninguém surdo, somente eu. Quando receberam essa notícia, eles choraram muito, mas viram que precisavam procurar ajuda, aceitar e tentar fazer o melhor para mim. A reação foi a melhor possível, o meu pai disse que deveriam me tratar como uma menina normal, sem proteger em nada. Eu deveria ser como as outras crianças, embora exigisse um trabalho diferente para que pudesse se desenvolver. Meus pais tiveram uma grande missão pela frente, desenvolver áreas que sozinha eu não conseguiria. Nessa época a minha tia Angélica ajudou a produzir material didático que estimulasse o nome das coisas, letras, cores e assim por diante, pois, naquela época, havia pouco material didático disponível no mercado. Além da minha tia, a minha mãe também fazia dinâmica comigo em casa: eu precisava saber os nomes de cada material ou objeto da casa e também identificar quem era eu e quem eram os outros – então minha mãe pegava fotografias e eu escrevia na fita crepe os nomes e colocava nas fotos. Na época não tinha escola de surdos, e única que atendia era a APAE, fiquei por dois anos lá.

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Quando eu era pequena, meus pais me levaram a um médico especialista na área de pessoas surdas em Campinas. Lá, meus pais se juntaram com outros pais que tinham filhos surdos e os profissionais de um centro de atendimentos e fundaram a APADAI (Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Auditivo de Itu), quando eu tinha quatro anos. Os pais de filhos surdos tiveram que aprender LIBRAS para se comunicar com os filhos, mas alguns criticavam muito, porque acreditavam que se os filhos aprendessem LIBRAS, eles não iriam conseguir falar. No meu caso, logo que meus pais descobriram que eu era surda, escolheram o melhor caminho que achavam na época, que foi utilizar aparelhos auditivos. Assim comecei a usar com 3 anos e meio e até hoje uso, não consigo ficar sem eles, pois no mundo do silêncio me sinto insegura, principalmente quando estou na rua ou não consigo compreender algumas palavras. Quando estou fazendo leitura labial, usando aparelho, escuto alguns sons e vozes e isso me tranquiliza. Mas você pode me perguntar como eu consigo ouvir as vozes? Com estímulos fonoaudiólogos que tive quando criança. O uso do aparelho auditivo me proporcionou novas experiências sonoras, aprendi as duas línguas: português e LIBRAS, eu falava o nome das figuras através da voz e com a LIBRAS simultaneamente. Uma fonoaudióloga me ensinava a ouvir os sons através de uma fita cassete (chuva, choro de bebe, latido de cachorro...) e eu apontava o desenho o qual se referia aos sons. Na minha família quem sabe um pouco de LIBRAS é minha mãe. Então, desde criança eu aprendi a LIBRAS através da fonoaudióloga, da pedagoga e da Professora Edna, muito presentes em minha vida, que sempre me ajudaram na aula de reforço, me explicando os assuntos, de forma clara, em LIBRAS e através de desenhos e histórias, mas assumi definitivamente a LIBRAS com 15 anos em contato com surdos na APADAI. Hoje sou oralizada e me comunico na Língua

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Brasileira de Sinais (LIBRAS), utilizo as duas modalidades dependendo de onde e com quem estou. Evoluí muito ao me relacionar com os dois mundos: ouvintes e surdos, através da comunicação total. Sobre este período na APADAI, tenho uma lembrança importante para mim. Uma vez foram abertas aulas de danças para surdos e fiz algumas, como sapateado, hip-hop, ballet, forró e outras. Confesso que amava dançar, mas me apresentar era a pior coisa da minha vida, ficava vermelha, mas eu era o suporte dos outros surdos. Foi uma época em que me desenvolvi bastante, graças à Professora Keila, ela deve ter sofrido comigo, pois era muito teimosa. Alguns surdos até hoje me solicitam ajuda para interpretar para eles, mas na realidade não sou interprete, mas sempre estou à disposição para ajudar os surdos e aqueles que tem dificuldade de se comunicar na sociedade. Já acompanhei eles em consulta médica, farmácia, lojas de operadoras de celulares, e outros lugares. Sobre meus estudos, desde a pré-escola até o ensino médio estudei na sala inclusiva. A pré-escola foi na rede pública e o ensino fundamental e médio na rede particular. Não tinha intérprete, todo esse tempo sempre sentava na primeira carteira e fazia leitura labial. Tive muitas dificuldades por isso, pois os professores andavam de um lado para o outro, caminhavam para o fundo, viravam de frente para o quadro, e tudo isso atrapalhava minha leitura e entendimento. Alguns professores tinham bigode e isso escondia os lábios deles e atrapalhava a leitura. Um professor de química tirou o bigode depois que eu pedi, e facilitou muito, outros apena deixaram mais baixo. Nesses períodos, passei por muitas dificuldades, mas sempre superei para não reprovar nenhuma matéria. A pior nota era a de português e a melhor nota era em artes e matemática. Os professores sempre queriam ajudar e fazer o melhor para ensinar, eu estudava de manhã na escola e à tarde com

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professor particular para reforço. Quando na aula era ditado, era a pior coisa da minha vida, detesto! Sou surda e tentar ler e depois escrever me fazia perder o contexto. Os colegas da sala me ajudavam, emprestavam o caderno ou eu sentava ao lado deles para copiar a tarefa, pois alguns professores não tinham paciência de esperar eu terminar de escrever e partir para outra palavra ou frase. Em algumas aulas, alguns professores pediam para ler em voz alta, isso me deixava muito mal porque para falar tenho dificuldades até hoje, as pessoas ao meu redor não percebem, só que eu forço minha voz para falar, falo, mas não consigo respirar direito, por isso, leio ou falo rápido e com isso me enrolo com as palavras. Isso na escola era muito difícil, sempre “pagava mico”, alguns alunos riam de mim, pois eu não conseguia falar os sons de CH, X, S, Z. Fora isso, tinha suporte da minha mamãe e do meu papai. Em relação aos conteúdos das disciplinas, a mamãe lia junto comigo e depois me explicava o sentido do texto de forma resumida e papai me ajudava quanto tinha dificuldade em matemática, física ou química, sentava do meu lado e me ensinava mil vezes até conseguir fazer cálculo. Sobre preconceito dentro da escola, eu tive um pouco, mas alguns colegas me defendiam, então, não foi nada grave. Mas duas coisas que me deixaram chateada é que um colega me deixava com ódio, pois me chamava de surda mental, pois como estudei na APAE, ele achava que quem estuda lá tinha problemas mentais. Isso me doeu muito, mas ele não sabe desta história, espero que tenha aprendido a não falar coisas sobre os outros sem saber como é na realidade. Outra questão é que alguns colegas adoravam o meu cabelo e chamavam de “Estojo de Itu”, eu vivia de tranças todo dia e me zuavam e colocavam lápis, caneta e outros materiais na minha trança. Era legal essa brincadeira, mas me sentia feia quando faziam essas coisas. Também há preconceito entre a comunidade surda por eu me utilizar da comunicação total. Em 2006

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prestei um curso de instrutora de LIBRAS em uma instituição em São Paulo, nesse curso passei por preconceito por ser surda oralizada, utilizar aparelho auditivo, ter capacidade de me comunicar por telefone, pois para muitos surdos de lá eu deveria apenas me comunicar por meio da LIBRAS. Muitas vezes fiquei chateada e brava com meus pais, porque eu nasci surda, porque era diferente dos colegas da classe no ensino fundamental, da família e de toda sociedade. Será que eu conseguiria ser igual aos outros? O meu pai brincava que era porque quando engravidou, minha mãe se esqueceu de dar os ouvidos para ele e me animava um pouco. E também dizia que quando a mulher engravida, o homem tem que enviar espermatozoides e aí bateram palma forte e só entrou a surda no óvulo, era outra história engraçada. A presença do meu pai sempre foi muito marcante em minha vida. Em 2004 meu papai partiu, foi um ano muito difícil, ele era tudo para mim, sempre esteva do meu lado, para todas as horas, nos estudos, nos novos desafios. Eu estava no 2º colegial, demorei para recuperar a perda, acho que comecei a voltar à vida depois de uns 5 meses, me senti depressiva, queria ficar sozinha, quando era a hora de ele chegar do serviço, me escondia atrás da porta para dar susto e ele não vinha.... foi uma perda grande, um ente querido, mas hoje ele está sempre no meu coração e agradeço por tudo que ele fez, pois sem ele não estaria aqui hoje onde estou. A família sempre foi meu principal suporte na infância e na adolescência, pois sempre trabalharam comigo de melhor forma, fizeram de tudo. Tem uma poesia que meu pai sempre pedia para eu ler que se chama “Flor de maracujá”, pois ele me dizia que eu era como essa flor. Por isso escolhi esse título para minha narrativa. Depois fui estudar no SENAI, com a parceria da APADAI, aprendi muitas coisas e me desenvolvi para carreira profissional. Os professores de lá me deram muito suporte

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de desenvolvimento de aprendizado na área de Informática. Numa época teve Olimpíadas do Conhecimento no SENAI, tinha que fazer a prova para disputar com outros alunos de todos estados do Brasil e participei duas vezes. Em 2005 ganhei em primeiro lugar, Tornearia Cerâmica, e em 2006 ganhei primeiro lugar em Entalhe de Madeira. Também foi em 2005 que tive meu primeiro emprego, numa loja de costuras e tinturas de roupas, sem registro, com a patroa Marisol, que hoje é minha madrinha de casamento. Ela me deu força para viver a vida, me ajuda em qualquer coisa, ela foi minha intérprete, minha tradutora, minha professora e hoje é minha amiga de coração. Depois em 2006 fui registrada em uma empresa de eletrodoméstico, trabalhei por dois meses na produção e eles acham que os surdos não têm capacidade de trabalhar na área administrativa, preconceito enorme. Nesse mesmo ano, participei no processo seletivo em uma empresa de bebidas e fui efetivada. Trabalhei por 8 anos e aprendi muitas coisas na área de Recursos Humanos e respeitavam bastante os deficientes, pois tinha Programa de Inclusão. Em 2015 trabalhei por 1 ano e meio numa escola particular, muito familiar e muita pressão, pois sabem que sou surda, e me sentia obrigada a atender telefone, mas não respeitavam e não tinham acessibilidade. Em 2006 entrei na faculdade para cursar Tecnologia da Informação, pois eu não sabia o que queria fazer e achava que por amar trabalhar com o computador, era esse curso. Foi muito difícil estudar nesta faculdade, pois não tinha interprete e alguns professores não se preocupavam em me ajudar no processo de leitura lábia. Tentei lutar para colocar interprete, mas não teve jeito. Com 1 ano e meio tranquei a matricula, pois, além dos professores não me ajudarem com a leitura labial, falavam de forma técnica e não conseguia entender. Em 2008 prestei outra faculdade e cursei Administração de Empresas à distância, foi mais fácil do que o primeiro, pois

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dava para estudar em casa e facilitava on-line, mas durante o curso comecei a ter dificuldade, pois tinha muitas palavras técnicas e solicitei um intérprete para as aulas que ocorriam uma vez por semana, mas não tive sucesso. Quem me deu suporte com aulas particulares e como intérprete-tradutora foi a Marisol, ela me deu suporte para tudo, antes da aula a gente lia todas os textos que seria para dia seguinte e estudávamos juntas, esclarecia as dúvidas, se ela não soubesse a gente tirava dúvida com professor através de fórum. Me formei em 2013. Durante anos 2008 a 2012 foi época de muitas loucuras da minha vida, fazia amizades com surdos através na internet e combinava de encontrar em São Paulo, Jundiaí, Salto e outras cidades, sei que foi uma época muito louca e deixava minha mamãe preocupada. Mas juro que foi uma época de muita teimosia, queria sair para o mundo, conhecer outros mundos, as diversidades dos surdos, dos étnico-raciais, e etc... Mas graças a Deus, nessa época nunca usei drogas. Como conhecia muitos surdos, os meus olhos começaram a abrir para o mundo da LIBRAS, acredito que duas línguas ou mais são importantes para o conhecimento, mas a LIBRAS teve um desafio muito grande na minha vida e mostra que um dia eu possa ajudar os outros surdos, como meus pais fizeram. Infelizmente a APADAI fechou, foi muito triste encerrar um trabalho importante como esse. O que importa é que a LIBRAS está aumentando na sociedade e não importa se tenho deficiência auditiva, se uso aparelho auditivo ou surda ou “surda Paraguai,” alguns surdos brincam porque eu escuto e falo parecida com ouvinte, resumindo, o que importa é falar em LIBRAS e não o tipo de surdez e a identidade. A LIBRAS entrou para mim em lugares como seminários, congressos, palestras, balada de surdos, por ter interprete, porque se não tivesse essa acessibilidade, ficaria difícil fazer leitura labial se a pessoa fica com microfone na boca e andando para lá

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e para cá, não é verdade? Se ponha no meu lugar, será que eu entenderia alguma coisa? Nos últimos meses, em 2014, soube que abriu curso de Letras Libras na UFPR. Como estava desempregada nessa época, resolvi prestar vestibular e não acreditei que passei e segui em frente. Sobre relacionamentos na minha vida, tive muitos, mas compromisso sérios só com quatro, sendo que um deles é homem da minha vida que convivo no dia a dia, abrindo a minha mente para muitas coisas novas e o amo muito. Mas quando era pequena, meus pais falavam para tomar cuidado, se beijasse ia engravidar e aí demorei para ter a liberdade. Isso é um mito, mas foi o que meus pais usaram para eu me cuidar. Hoje achamos isso tudo muito engraçado. O primeiro beijo foi muito engraçado, ocorreu numa igreja que frequentava a pastoral dos surdos, em uma cidade vizinha, e ao mesmo tempo que estava ocorrendo o beijo, eu ficava imaginado como faria, pensando nos filmes, novelas. Eu e minha prima Luciana trocávamos cartas e ela me deu dicas de como beijar e a mesma disse para treinar em uma laranja, igual tinha passado em uma novela. Foi muito divertida essa época. Quando retornei para casa, meus pais não estavam em casa, aí liguei para eles contanto a novidade, os meus pais riram muito, pois falei que iria engravidar por ter beijado. Só que depois não tive mais contato com o cara, pois foi uma época que perdi a minha avó e depois meu pai. Depois de muito tempo, frequentei balada com as meninas no último ano do colegial e com amigos surdos em vários lugares, em São Paulo que frequentava muito lá, confesso que beijei muito, mas era época de diversão. Fiquei com um ouvinte e não foi fácil, porque ele queria cochichar no meu ouvido, mas sou surda, e pedia para ele olhar nos meus olhos que eu fazia leitura labial, mas não entendia nada, pois dentro de balada tem muitas luzes, sons altos é complicado. Não dava muito certo e aí preferia dançar com as meninas do que

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ter má-comunicação com os caras. Sobre os relacionamentos levados a sério, infelizmente não deu certo com eles por não me encaixar, algumas vezes foi por falta de atenção, falta de respeito, ciúmes, brigas, discussão, traição e com isso tive aprendizado e experiência uma atrás da outra. Mas o que vale nesse relacionamento é o quarto homem, que hoje é meu marido. Sobre esse homem quero falar. Em 2012, após terminar um relacionamento em que sofri muito, me deu vontade de viajar. Conversei com a outra amiga que mora em Curitiba, que disse que estava disposta a ser minha guia e conhecer a cidade. E lá vou eu para Curitiba, bem no feriado. Chegando aqui, a amiga estava me esperando no aeroporto e me levou ao hotel. No outro dia, fui conhecer o Jd. Botânico, o lugar muito lindo, a cidade limpa, meu Deus, fiquei de boca aberta. Depois fomos almoçar no shopping e ela convidou alguns amigos para se encontrarem e me apresentar. Eles chegaram, e quando eu vi o Vilson pela primeira vez, senti um negócio que meu coração não parava de acelerar e fiquei na hora muito tímida, nunca me senti antes tão forte do que em outros relacionamentos anteriores, e ele veio me cumprimentar e brincou comigo dizendo que estava quente o local e eu disse que não! Quando foi meia noite, que era a hora de fechar o shopping, o Vilson nos convidou para ir numa balada e topei o convite. E me convidou para dançar, mas não sabia dança gaúcha, comecei a copiar as outras meninas, e as meninas me ajudando, foi muito legal. Depois da balada tinha que ir dormir para outro dia curtir mais um pouco, chegando lá, acabamos ficando e tirou todo aquele peso que sofri de traição e no outro dia fomos conhecer outros passeios turísticos. E ficamos conversando muito, e no domingo tinha que retornar, me deixou no aeroporto e os amigos perguntaram se nós não iríamos trocar de número de telefone, e trocamos rapidinhos e nos despedimos. Foi um coração partido, pois nunca me

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apaixonei amor de primeira vista, diferente quando conhece algum pela internet um tempo e depois pessoalmente, pois os três relacionamentos anteriores foram assim. Ai em dezembro, o Vilson queria conhecer a minha cidade, e aí deixei, mas tinha que ficar no hotel, e topou, ficou em um mês. Mas minha família não estava aceitando esse rolo, mas eu queria ele, e fiquei mais no lado dele. Essa época foi muito difícil, minha família não aceitando muito, mas tinha que deixar eu escolher amor e ser feliz. Namoramos por 2 anos e meio. O pedido de noivado não foi nada de surpresa, em uma época fui assaltada vindo de Curitiba e quando retornei para Itu, ele mostrou as alianças de noivado e disse sim para dar uma animada, pois estava com muito medo, e aí foi relacionamento de Skype, mensagem, WhatsApp todo os dias, no víamos pessoalmente a cada 2 vez ou 1 vez por mês. No dia 14 de março de 2015 casamos em Itu, foi casamento diferencial, pois pensamos fazer casamento em libras, e convidamos o padre Wilson que é surdo, chamamos interprete para traduzir as músicas em libras. Não tem palavras para descrever esse casamento, foi tudo lindo e com nossas cores preferidas: azul e branco. O amor não importa a distância, a idade, a cor e sim o coração fala mais alto. Te amo Vilson. Depois do casamento, eu me mudei para Curitiba para estudar a faculdade de Letras Libras. Com essa mudança para Curitiba – abriu meus olhos, pois como moro no interior, lá não tem muita educação boa e muitos desconhecem sobre a Libras, comunidade surda, como tem aqui em Curitiba. E também conhecendo outros surdos que evoluíram muito nos estudos, no trabalho, me motivou a viver a vida, estudar mais, conhecer mais o mundo da comunidade surda, conhecer mais a LIBRAS, diversidade e outros e também conhecer essa cidade linda maravilhosa. Com a faculdade aprendi muita coisa que não sabia sobre a LIBRAS e agora estou mergulhando no

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mundo dos surdos, é muito interessante e faz me sentir tão bem. Como convivo quase todos os dias com os surdos, dentro de casa, na escola e na igreja, estou muito encantada, se não fosse meu marido, não ia ver tudo isso que estou aprendendo, Deus é maravilhoso, sempre me dando novas oportunidades. Como a nossa língua LIBRAS é minoria, temos que mostrar que é uma língua sim, não estamos por baixo. Consultando minha identidade, me encaixo como híbrida: conheço a língua portuguesa falada e escrita e LIBRAS. Mais tarde, conheço a cultura surda. Mantenho a relação amigável com ambas as culturas. Hoje estou feliz pois sei lidar bem com a sociedade e com as pessoas ao redor. Diferente de mim, se futuramente eu tiver um filho, como primeira língua eu ensinaria a LIBRAS e a segunda em português pela convivência na sociedade. Mas, o que importa é que na minha história, Deus quis mostrar caminhos diferentes para eu enfrentar. Agradeço muito a Ele, aos familiares, amigos, professores, fonoaudiólogas, pedagogas, intérpretes e principalmente à minha mamãe e meu papai, por me estimularem para que eu tivesse uma oralização quase exemplar, e também à LIBRAS, que têm me proporcionado e ainda me proporciona a acessibilidade e entender ainda mais o mundo do silêncio!

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PALAVRA SENTIDA



Palavra sentida

Raquel Kämpf

Gostamos de conhecer o mundo por meio das palavras. As palavras são convites para escutarmos a nós mesmos e aos outros, essa escuta de nós que se dá no fazer da palavra. A palavra viva, que viaja dentro e fora da gente, compõe roteiros, possibilidades, textos, emoções, e arquiteta essa estrutura inacabada de nós mesmos, dando-nos um contorno. Esse desenho ao mesmo tempo singular e plural que nos constitui e dá ritmo ao nosso viver, nos amanhece e anoitece para o bem e para o mal. As palavras nos atravessam sem pedir licença, até que tenhamos consciência da sua importância em nossas trajetórias. É a consciência dos nossos próprios textos, no seu limite e esperança, que fornece à palavra essa condição de transformação. Num devir de nós mesmos, buscamos outras palavras, novas experiências, distintas leituras e escritas da tessitura da vida. Por vezes, num árido deserto imanente Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná

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ao cotidiano das coisas, a palavra fere a leveza do ser, em outras, na abundância misteriosa das quimeras existenciais nos sentimos outros. E podendo ser outros, sem deixar de sermos nós mesmos, nos experimentamos mais fortes, ousados e seguros. Compreendemos então que o encontro se dá na prática da palavra: na atividade concreta da mesma em nossa coletividade, naquilo que a palavra tem de valor para nós, naquilo que ela pode ainda se tornar, ou seja, um eu-tu-nós que nos conecta e nos faz pertencer. Misturados e compostos, arriscamos fazer das palavras de Caetano, as nossas: uns vão, uns tão, uns são, uns dão, uns não, uns hão de, uns pés, uns mãos, uns cabeça, uns só coração.

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Leitores, escritores e atribuição de sentido Edmar Almeida de Macedo As oficinas de escrita do curso preparatório para a pósgraduação iniciaram-se cercadas de expectativas quanto ao que viria. Expectativas minhas na posição de tutor/mentor/ ajudante daquele grupo de candidatos a candidatos à pósgraduação e expectativas deles mesmos, que só pude auscultar parcialmente. O conjunto de candidatos que participariam das oficinas era marcado pela diversidade: alguns negros militantes de movimentos identitários, estudantes de baixa renda, LGBT, enfim, um público diverso e interessado em cursar pós-graduação em humanidades, artes e administração. Interessados em romper barreiras e limites individuais, relacionadas com suas histórias de vida, mas também barreiras institucionais, para fazerem a pós-graduação e refletir, mesmo que minimamente, sobre a diversidade que marca a população brasileira. Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná

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Os meus encontros com os candidatos já estavam ocorrendo a mais de um mês e agora tínhamos uma nova personagem, uma condutora das oficinas que logo anunciou um dos objetivos de trabalho: fazer com que cada um encontrasse seu “eu” escritor. Não passou despercebido por mim e pelos candidatos que a condutora das oficinas era psicóloga de formação, mesmo que estivesse estudando o doutorado em educação. Juntava assim a missão de fazer cada um encontrar seu “eu” escritor, com suas pesquisas sobre expressão escrita no doutorado e sua formação de psicóloga. Não poderia ser melhor, mas guardava aquele mistério que lembra os sistemas peritos de Giddens, afinal, à semelhança do voo de avião, sabíamos mais ou menos onde queríamos pousar, mas não tínhamos uma ideia exata de como funciona o avião e de como ele consegue contraintuitivamente se sustentar no ar. Mas confiamos que daria certo. Começamos com leituras de diversos estilos literários. Inspiração, catalogação de tipos e técnicas se apresentaram como primeiras experiências, que se somaram a algumas trocas sobre momentos marcantes da vida, que nos fizeram ver que somos também personagens dessa narrativa que é a existência humana. Desde sempre uma questão atravessava as problemáticas abordadas nas oficinas: “como e em que medida se colocar como personagem de sua própria pesquisa?” Ou posto de outro modo: “como as histórias de vida se entrelaçavam com os projetos de pesquisa propostos e, em que medida, a partir de opções na forma de redigir o projeto, isto deveria estar mais ou menos explicito?” Não sei se chegamos a uma resposta definitiva, mas procuramos mediar nossas crenças sobre isto a partir da realidade de cada programa de pós-graduação nos quais os candidatos estavam interessados. Assim, em alguns era mais fácil explicitar este lugar do pesquisador face as motivações e justificativas das

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propostas de pesquisa, em outros mais difícil, ou ao menos mais matizado por outras abordagens. Mas um dos textos lidos que mais rendeu aprendizagem foi uma crônica de Fernando Sabino chamada “a última crônica”. Nela o narrador está em um botequim, em busca de inspiração para escrever um conto e se depara com uma família negra formada por pai, mãe e filha que comemoram o aniversário da menor com um modesto pedaço de bolo comprado com o dinheiro contado. Ao final da história, os olhares do narrador e do pai se cruzam e este se manifesta com um discreto sorriso satisfeito, o que é narrado assim pelo autor: “nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.” Ao final da leitura coletiva da crônica, um instante de silenciosa reflexão se seguiu. A seguir surgiram os primeiros questionamentos quanto aos termos usados pelo autor na crônica. Chamou a atenção, em especial dos negros do grupo, os trechos: “Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se”, “presença de uma negrinha de seus três anos”, “A negrinha, contida na sua expectativa”, “A filha aguarda também, atenta como um animalzinho”. Causou incômodo o uso repetido do termo “negrinha” para referir-se à pequena menina pobre que aguardava seu pedaço de bolo para comemorar o aniversário. A descrição da atenção da menina ao bolo “como um animalzinho” também não foi encarada como algo positivo. A associação entre negros e pobreza, mesmo que retratada com um tom pitoresco e algo piedoso por parte do autor, foi lida pelos candidatos como inequívoca manifestação de racismo. Na discussão a respeito do texto de Fernando Sabino, não pude expressar uma opinião de pronto. Mais dúvidas

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do que certezas passaram a povoar a minha mente no momento daquela discussão, assim como por um bom tempo depois. Algumas dúvidas foram: “É possível identificar a intencionalidade de uma obra literária e artística?”, “É possível transpor uma identificação de racismo em uma obra ficcional para uma caracterização de racista ao autor da obra?”, “Em que medida faz sentido procurar sentido na arte?”, “Um texto que expressa racismo pode ou não servir como útil exemplo de construção narrativa e como desencadeador do processo reflexivo a respeito do ‘ser’ escritor?”, “É possível dissociar forma e conteúdo (mesmo que o conteúdo seja sempre uma atribuição em disputa)?” A discussão lembra a polêmica acerca das obras de Monteiro Lobato, em especial “Caçadas de Pedrinho”, que foi objeto de uma ação judicial em 2014 para excluí-la das escolas públicas, pois sua narrativa está eivada de racismo. A discussão guarda uma relação também com o recente fechamento da exposição Queer museu em Porto Alegre. Obviamente, na discussão sobre o texto de Fernando Sabino ninguém sugeriu que se proibisse o texto. Não é disso que se trata. Mas se trata de qual postura adotar frente a expressões artísticas às quais atribuímos conteúdos e sentidos que divergem de nossa forma de ver o mundo. Ao fim e ao cabo, acho que na discussão do texto de Fernando Sabino tivemos apenas um problema de ênfase na discussão, afinal, ficamos muito mais presos à discussão sobre a atribuição de sentido ao texto do que ao texto enquanto produção literária mais complexa. Questões que obviamente não estão separadas (forma e conteúdo), mas que podem ser olhadas cada uma por vez, por uma questão de método. Por outro lado, é obvio que se o contrário tivesse ocorrido, ou seja, ao analisar o texto proposto ninguém tivesse problematizado a maneira como o cronista se referiu à menina negra, estaríamos frente a um silenciamento incompreensível

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sobre algo que chama muito a atenção naquela construção literária. De toda forma, a discussão serviu para mostrar como, no debate coletivo e a partir do cruzamento de diversas trajetórias e histórias de vida, é possível ler o mundo de diversas maneiras, e como as histórias de vida - em especial aquelas marcadas pelas indeléveis cicatrizes da exclusão, do preconceito e da discriminação - produzem leitores atentos, críticos e sagazes. Em suma, as oficinas propiciaram a reflexão acerca do eu escritor, mas também acerca de seu parceiro inseparável, o “eu” leitor, marcado pelas história, paixões, engajamentos e sensibilidades de cada um dos participantes, produzindo uma rica e conflitiva síntese que trouxe um grande aprendizado.

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Nos implícitos textuais, o afeto Francielle Elisabet Nogueira Lima No início, éramos apenas tutoras(es) de grupos de alunas(os) que deveríamos orientar no desenvolvimento de um projeto de pesquisa acadêmico. Depois de algumas aulas sobre metodologia da pesquisa científica, o número de cursistas frequentadoras(es) do Pré-Pós 2017 caiu, mas a persistência das(os) remanescentes fez com que, desde os minutos inaugurais, as oficinas de escrita se tornassem, além de um espaço de formação de pesquisadoras(es), um intercâmbio de afetos. Após nos redesignarem para “mentoras(es)”, a fim de evitar hierarquizações desnecessárias, passamos a nos reunir semanalmente, aos sábados de tarde, para trabalharmos – nós: mentoras(es), cursistas e a professora da oficina – a potencialidade de escrever textos autobiográficos, crônicas e resumos técnico-científicos.

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Cada palavra lida e redigida desde o começo de julho incorporou-se ao arcabouço teórico das(os) participantes da oficina, de modo que, sempre nas reuniões de mentoria posteriores, os debates suscitados nas aulas se estendiam e se encerravam somente pelo eventual cansaço das(os) cursistas, o qual nem sempre era fisicamente perceptível diante da positividade que mostravam em sala. A passagem por cada gênero textual, apesar de ter sido feita em formato de ensino-aprendizagem típico de um ambiente universitário (mas nunca autoritário nem entediante), tornou-se uma exploração de memórias pessoais que ora serviam para debater o conteúdo dos textos a partir da perspectiva e do histórico de vida de cada um(a), ora transformavam o espaço das aulas em sessões de compartilhamento de aflições e alegrias característico de encontros informais entre amigas(os). De forma alguma a interação pautada na ausência de formalidades foi vista como negativa. A aproximação entre as(os) cursistas - conduzidas(os) pela voz doce da Professora Raquel em sala -, em meio a tantos compromissos e tarefas a serem cumpridas, demonstrou a humanização que o propósito de escrever pode exercer. Assim, o encerramento da oficina aos fins de agosto, muito embora necessário para cumprir o cronograma de atividades feito pela organização do Pré-Pós, foi recebido com certo pesar por todas(os) da turma e até algumas lágrimas foram escondidas para evitar a prolongação do sentimento de despedida. Porém, os ensinamentos e as (re)descobertas acerca da capacidade de desenvolver uma escrita autoral em variadas nuances textuais persistem nas entrelinhas do cotidiano de muito trabalho que ainda estamos construindo nesta universidade, na condição de executores de um especial projeto de inclusão no ensino superior.

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Uma ideia simples, capaz de transformar a Universidade Benisio Ferreira da Silva Filho

Depois de tantas experiências nestes poucos anos com pesquisa e ensino, recebi de uma colega, via WhatsApp, o edital para seleção de tutores EAD. Li rapidamente e fiquei interessado por já ter atuado com EAD e gostar do ensino. Fiz a inscrição, a entrevista no dia marcado e fui aos poucos descobrindo que seria um trabalho especial e não como um outro qualquer. O objetivo é nobre, pois tem a intenção de ajudar egressos negros, homossexuais e com necessidades especiais a entrarem em diferentes programas de pósgraduação strictu sensu (mestrado ou doutorado). Após a confirmação que eu iria participar como tutor, fui assistir as apresentações do primeiro dia. A medida que aconteciam os discursos de abertura, uma mistura de curiosidade e surpresa crescia. O ápice foi a apresentação da palestrante Dr.ª Megg Rayara. Foi fantástico, por conta da

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semente plantada ali (a quebra de preconceitos e mudanças por vir) e chocante, pois nunca vi alguém com título acadêmico de doutor usar linguagem como a que ela usou. Haviam palavrões, gírias e piadas um tanto pesadas, dignas de um esquete de stand-up. O que senti durante o estado de choque é fruto do meio preconceituoso que me formou. Parando para analisar friamente, entendi a necessidade daquela apresentação e acredito que foi uma teatralização para propositalmente chocar. Da mesma forma que os punks agiam na década de 70 e 80. Comecei a gostar daquela atitude. Foi chocante, tinha atitude, transgredia, foi punk, foi muito legal. Antes mesmo de finalizar o trabalho, ajudando meus novos companheiros de projeto ou alunos e porque não futuros mestrandos, percebi o quanto eu iria aprender. Mas antes, apresentei um pouco de estratégias para seleção dos programas de mestrado. Passadas algumas semanas, acredito que eles entenderam como deve ser a abordagem aos futuros orientadores e como começar a escrever os projetos. Ao mesmo tempo, entendi que existem grupos ignorados pelo mundo acadêmico, o que é um absurdo, pois este deveria ser um dos mais acolhedores dentro de uma sociedade moderna. Pensando bem, o que esperar de uma sociedade com péssima educação? Uma formação de professores e consequentemente um ambiente acadêmico de qualidade? Acho que não. Essa academia que aí está, cheia de preconceitos e capaz de ignorar a existência de grupos historicamente marginalizados, é apenas reflexo da sociedade. Revoltante, pois deveria ser o contrário, ela deveria ser referência. Será que esse projeto terá força para chamar atenção da sociedade? Espero ter tido êxito nesta jornada. Espero ter contribuído um pouco para o surgimento de mais mestrandos, não novos, muito menos especiais. Eles são parte da sociedade, então não entendo o porquê dessa separação. Sei

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que eles irão contribuir com a sociedade, e mesmo ainda sendo considerada parte de minorias, a competência deles e de outros por vir acabará com esse rótulo de minoria. Acredito nisso, caso contrário já teria desistido. Independentemente das diferenças que existem entre a história de cada um deles, a vontade de entrar no mestrado é o que vale. Eles sabem da importância. E que tudo isso seja o início de mudanças acadêmicas e consequentemente sociais. Vamos colocar tudo em seu devido lugar.

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Vida que segue...

Raphael Demostenes Cardozo

Nasci em 27 de setembro de 1987. Filho de professores, classe média, com uma irmã um ano e meio mais nova. Nasci e cresci em Curitiba, sempre na região norte deste município. Considero ter tido acesso a uma educação formal de qualidade em todas as etapas da educação, da educação infantil à universidade. Aos 17 anos ingressei na universidade, onde cursei Química Ambiental e posteriormente Licenciatura em Matemática. Esta caminhada não foi fácil, pois trabalhava no período diurno e estudava no noturno. Em média 4 horas de sono por dia. Neste período me recordo da dificuldade em utilizar a estrutura que minha universidade oferecia. Monitorias, grupos de pesquisa, seminários, eventos. Acredito que isso tornou minha caminhada mais pesada. Após conclusão, cursei uma especialização em gestão da qualidade Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná

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em produtos e processos, afim de me aperfeiçoar. Sempre gostei de estudar e a academia sempre me motivou. É muito prazeroso e enriquecedor o conhecimento, os debates, as críticas e os resultados que alcançamos neste meio. Com o curso de química ambiental, tive a oportunidade de ingressar no mercado de trabalho na indústria automotiva. Me dei muito bem. Pois trabalhava com pessoas, números e resultados. Itens que me motivam. Gostei e tive uma ascensão profissional considerada rápida, pois em pouco tempo entrei como estagiário e sai como coordenador de processos. Setor automotivo, empresa multinacional, cargo de gestão, decidi avançar nos meus estudos com o mestrado. Me casei em 2009 e meu filho nasceu em 2010. Com o nascimento dele, decidi trocar de emprego, mas mantendo a área. Após três anos nesta nova empresa, multinacional também, sofri um revés ao ir trabalhar. Dia 08 de abril de 2013, às 5:00 da manhã um veículo me fechou na estrada para o trabalho e capotei meu veículo. Mesmo com cinto, carro do ano, manutenções em dia, devido a um chicote lateral, quebrei a sexta vértebra do pescoço. Lesionada a medula, ou seja, a partir daquele momento fiquei tetraplégico e me tornei cadeirante. O primeiro ano foi extremamente difícil, mas eu tive a sorte de sempre contar com minha esposa e meus pais. A todo tempo, sempre juntos, pois tudo era novo. Em minha família a única deficiência conhecida foi de meu avô, devido à diabete que lhe tirou a visão. Com o passar do tempo, após muitas terapias, surgem outros questionamentos, reflexões e algo que sempre eu pensava: “Existe vida sobre uma cadeira de rodas?” Com o passar do tempo e as adaptações necessárias, afirmo que há vida. Claro que com um monte de dificuldades, pois a sociedade não está preparada para conviver com o diferente, em especial com as pessoas com deficiência. No meu caso foi interessante perceber como a deficiência me aproximou de coisas que sempre gostei.

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Em 2015 resolvi participar de um conselho de direitos em minha cidade, onde estou até hoje. Também neste ano iniciei minha busca pelo acesso a uma vaga de mestrado nesta universidade, no qual venho me preparando, porque também tive a oportunidade de participar de eventos, palestras, curso disciplinas isoladas e agora o Pré-Pós, que está auxiliando muito na construção deste projeto: Ser mestrando em 2018.

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Minha história Luana Karoliny Desconci Luana é a filha do meio de uma família interiorana de Mafra-SC, ela tem uma irmã mais nova e outra mais velha, além das irmãs, ela também tem um irmão. Embora os pais dela não tenham tido a oportunidade de estudar, foram eles os maiores motivadores para a conclusão dos seus estudos. A cada etapa concluída, ela via a alegria dos pais em “terem uma filha estudada”, embora por motivos de trabalho eles não pudessem participar da vida escolar de Luana tanto quanto ela gostaria. Em 2008, ao sair do ensino médio, Luana precisou trabalhar para ajudar financeiramente os pais, visto que os mesmos haviam sido demitidos. Foi então que ela sentiu a necessidade de se qualificar para o mercado de trabalho. Sem muitas opções na cidade, ela foi cursar um técnico

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de secretariado e posterior a este fez outro técnico em contabilidade. Não levando muito jeito para área contábil, Luana resolveu cursar Administração. Durante o curso de Administração ela soube da abertura da primeira turma do curso de Ciências Sociais em Mafra, então, resolveu se inscrever, passou no vestibular e a vida mudou completamente. Embora sempre tenha tido gosto pela leitura, Luana nunca tivera acesso a tanto conhecimento. Agora ela sonha em ingressar no mestrado, que é o maior sonho da vida dela. Para isso, teve a oportunidade de participar do programa de Pré-Pós da Universidade Federal do Paraná, que abriu caminhos por meio de orientações e oficinas de escrita acadêmica. Assim, Luana acredita que conseguirá realizar seu sonho de fazer uma pós-graduação.

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Trajetórias

Jonathan da Silva

Jonathan, nascido no dia 18 de dezembro de 1991, é filho único de pais separados. Estes se separaram quando ele contava apenas com 6 meses de idade, logo, o fato de ter pais separados sempre foi algo natural para ele. Por conta disso, desde sempre viveu em duas casas. Ao ingressar no ensino médio, começou a se preocupar com qual curso que mais se identificava. No início, pensava em cursar design gráfico, pois o fato de desenhar e trabalhar com arte aparentava ser uma profissão interessante. Contudo, percebeu que não possuía a habilidade de desenhar, mesmo fazendo curso de desenho. Por já ter recebido alguns feedbacks em relação à sua maneira de lidar com problemas, de ser um bom ouvinte, calmo e de ser um bom mediador de conflitos, ele se decidiu por cursar Psicologia.

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Ingressou na faculdade aos 17 anos e lá percebeu o quanto gostava de ler e estudar. Durante a faculdade, realizou um estágio na Vara de Infância e Juventude de Curitiba. Este estágio foi de extrema importância para ele, já que lá conseguiu ter um panorama maior sobre a atuação do psicólogo e principalmente por se conhecer melhor. Após 8 meses da conclusão da faculdade, Jonathan começou a trabalhar como psicólogo em uma ONG voltada para preparar e habilitar pessoas interessadas em apadrinhar crianças e adolescentes acolhidos institucionalmente. Observando a situação política do país e desenvolvendo um outro olhar para questões sociais, ele começou a considerar fazer mestrado e seguir a carreira acadêmica, não apenas para aprender mais sobre o mundo que o cerca, mas para poder, por meio do conhecimento, transformá-lo.

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Eu, eu mesma Milene

Milene Raquelly de França

Milene Raquelly de França, 24 anos. Nasceu em 06 de abril de 1993 em Mandirituba-PR. Filha de dona de casa, Rosilda Carvalho, e pai autônomo, Mario Gilmar de França. Dois irmãos, Rachel e Wagner. Ingressou na escola com três anos de idade, mas teve apenas uma breve experiência que durou meses apenas por falta de adaptação. Sua mãe decidiu então que ainda não havia chegado o momento. Aos cinco anos retornou à mesma escola, “Abelhinha Feliz”, e ingressou na pré-escola, no jardim de infância, e desde então não parou mais de estudar. No Pré aconteceu o primeiro contato com as letras: primeiro foram as vogais seguidas das consoantes. Milene teve dificuldade na memorização em relação ao alfabeto, por isso, ganhou livros da professora, com a intenção de incentivar a leitura e a escrita. E não é que ela não gostasse, era apenas uma dificuldade de aprendizagem. Mesmo não sabendo ler, as

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figuras, as cores e aquelas letras a fascinavam. No ano seguinte, já na primeira série, Milene teve o primeiro contato com as sílabas e a dificuldade em aprender continuou. Em função disso, ela tinha aulas na escola e em casa. A mãe dela precisou ajudar a professora nessa tarefa e diariamente sentavam juntas pelo menos uma hora depois da aula com o intuito de que ela aprendesse a ler. Seus colegas já liam quase tudo e ela apenas algumas sílabas. Mais um ano se passou e Milene estava na segunda série, ela treinava a leitura na escola e levava cartilhas de leitura para casa, com a ajuda da mãe, finalmente pode ser alfabetizada e letrada. Depois, tudo parecia fazer sentido: as palavras começaram a não ser só palavras. A paixão pelos livros foi tão grande a ponto de sempre preferir ler a brincar com os amigos. Depois da aula ela sentava-se na cama e pegava os livros para ler sem hora para parar. Quando abria os pacotes de presente, no Natal e nos aniversários, esperava que ao invés de uma boneca fossem livros. Nem sempre ela ganhava livros, ou quase nunca, porque aqueles que a presenteavam insistiam em presenteá-la com bonecas. Mas, elas tinham destino certo, todas iam para as mãos da sua irmã. E a irmã, por ser mais velha, lhe passava seus livros: era uma excelente troca! Com a matemática sempre teve maiores problemas, nunca foi “fã” dos números. Assim seguiu seus estudos, mais tarde em outro Colégio, onde a leitura não tinha muito incentivo por parte da escola e o ensino médio foi pouco cobrado. Mas isso não foi problema para quem ama a leitura. E depois veio o curso de História, cursado com paixão. Porque para se cursar História não há outra opção a não ser ler, e muito! Sempre estudando, ela segue no curso Pré-Pós com a confiança de que em um futuro muito breve ingressará no mestrado.

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Trajetória de uma vida

Neusa da Silva Duarte

Neusa da Silva Duarte é a segunda filha de um casal pobre de um município muito pequeno do interior do Paraná, chamado Ivaiporã. Depois de idas e vindas para a cidade de São Paulo, ela chegou à cidade de Pérola somente com sua mãe e mais dois irmãos, pois nesse período seu pai já os tinha abandonado no interior de Umuarama, onde viveram por muitos anos. Aos 7 anos Neusa entrou na primeira série. Seu primeiro ano na escola foi muito difícil, pois a alfabetização não aconteceu, sendo discriminada pela família e pela escola. Naquela época, se as crianças não aprendessem a ler, escrever e a fazer as quatros operações, no ano seguinte iriam para a primeira série C ou D, dos alunos “BURROS” que não aprendiam. Assim, no ano seguinte, sua dedicação aos estudos aumentou e a alfabetização aconteceu, mas continuava longe de ser uma aluna “classe A”. Neusa e sua família viveram nessa cidade até seus 15 anos, quando, por motivo de doença de sua avó materna,

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vieram para a cidade de Curitiba com sua mãe e seus irmãos. Ao chegar a Curitiba, Neusa viu possibilidades de crescer e mudar sua trajetória de vida. Trabalhou duro em Curitiba para ajudar sua família, pois desde os 11 anos trabalhava como doméstica para sobreviver, mas não deixava de estudar, pois o conhecimento lhe motivava. Com muito esforço, tentava não parar de estudar, trabalhava muito o dia inteiro e a noite era o momento que ela mais gostava, apesar do cansaço, pois estava estudando. Em 1997 ela se formou no magistério pelo Colégio Estadual Professor Lysímaco Ferreira da Costa, depois de formada foi trabalhar numa chamada Pré-escola Nossa Luta, no bairro onde morava, mantida pela Associação de Moradores da Nossa Luta e pela Associação Cultural de Negritude e Ação Popular- ACNAP, do qual participou até 2001. Em 2003 entrou como professora estatutária no Município de Campo Largo e em 2015 no Município de Curitiba. Sua luta a favor do movimento negro era diária em sala de aula. Sua Formação Superior começou com o Curso Normal Superior pela Vizivali, em 2006, um curso oferecido em parceria do governo Federal, Estadual e Municipal. Depois de formada, Neusa não conseguiu seu tão sonhado diploma, ela e milhões de estudantes pelo Paraná afora foram vítimas de descasos e ganância de um grupo educacional. Após esse desfecho, Neusa e muitos outros professores tiveram que fazer uma Complementação em Pedagogia, a qual ela fez pela UEL, em 2012. Depois desse episódio, Neusa não parou, continuou estudando e concluiu 3 (três) pós-graduações: Especialização em Educação do Campo pela UFPR, junto com o Curso de Capacitação de Tutores em Educação a Distância, Cipead – UFPR em 2011; Especialização em Mídias Integradas na Educação pela UFPR, em 2015; e a última pós foi em Especialização em Educação das Relações Étnico-Raciais pela UFPR, em 2015. Essa foi a pós mais prazerosa, pois defendeu

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uma temática a qual se identificou como profissional mulher, pobre e negra que desde a infância sofreu muito com o preconceito devido sua condição e cor da pele. A escrita do Artigo: “Reconhecimento, conscientização e valorização da Cultura Negra/Afro-brasileira na Escola Municipal no Bairro de Ferraria, Município de Campo Largo” evidenciou que trazer essa temática para a escola e sala de aula não é tão fácil e simples, pois ela esbarra no desprezo pelos colegas e gestores da escola, questões que são vistas como “chorumelas” de negros que se “vitimaram” como coitados. Agora ela anseia entrar para o mestrado e defender a Educação Étnico-Racial na Educação Infantil, ela acredita que para uma sociedade mais igualitária, a educação étnicoracial tem que começar com as crianças desde pequenas, na Educação Infantil. Para tanto, tem a intenção de pesquisar “A não aplicabilidade da lei 10.639/03 das Relações Étnico-Raciais nas Práticas Pedagógicas e o Impacto no Comportamento e na Saúde Física e Emocional de crianças de 0 a 5 anos” no Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) de Curitiba. Para Neusa, é importante trabalhar a questão da criança negra/afrodescendente no espaço escolar, buscando valorizar os meios didáticos para dar visibilidade à identidade negra, com objetivo de formar desde pequenos alunos críticos sobre a concepção discriminatória, invisível e preconceituosa que se faz presente no ambiente escolar e na sociedade contra a população negra do país.

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Sobre conhecimento e esperança Mariana de Santana Lourenço Meu primeiro professor foi meu pai, que na sua simplicidade me ensinou a juntar as primeiras letras, dar sentido às primeiras frases. Aprendia com rapidez tudo que me ensinava, para alegria dele e de minha mãe, que faziam questão de exibir tal façanha entre parentes e amigos. Mal sabia ele, que naquele momento me dava o mundo, a partir de então, o desejo pelo conhecimento passou a ser o combustível para mover o curso da minha vida. No primeiro dia de aula lá estava meu pai novamente, me deixando no início de um longo corredor, esperando que eu olhasse para trás, com um sorriso ou um aceno, mas como eu poderia? Por maior que tenha sido a expectativa por esse dia, era assustador pensar que em instantes estaria sozinha, entre muitos desconhecidos, sem saber o que me esperava ou o que esperavam de mim. Olhar para trás seria o estopim para voltar correndo para os braços dele, mas, de alguma forma, eu sabia que essa não era opção, que eu deveria seguir em

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frente. Então eu fui, entrei na sala de aula e a partir daquele dia nunca mais quis sair. A curiosidade por novas lições não diminuía e nos anos iniciais fui descobrindo o mundo dos livros, e que mundo fantástico era esse. Consumia-os como o faminto devora o prato de comida, com a diferença que minha fome nunca estava completamente saciada. Para a minha sorte, a professora se alegrava em alimentar meu desejo trazendome sempre algo novo e, aos poucos, fazendo-me escrever, expressar no papel as pequenas ideias e sentimentos que tinha, me apresentando assim, uma nova paixão. Os ventos sopraram depressa e logo não era mais uma criança e sim uma adolescente desbravando as aventuras do ensino médio. Tantas novidades, tantos desejos, tantas escolhas a se fazer, os conselhos, que para alguns podem ser entediantes, ou desnecessários, para mim sempre foram providenciais, e foi por causa de um bom conselho que mudei o curso dos meus planos. Mais uma vez, sem olhar para trás, deixei a escola que durante anos me acolheu, os amigos que lá fizera, os conhecidos professores e fui estudar em lugar diferente. Nesse lugar aprendi muito, sobre muitas coisas, mas principalmente aprendi sobre o valor da educação e como isso era importante para mim. Sentia que aprender era algo que gostaria de manter por toda vida, e graças às pessoas que lá estavam, aprendi a trilhar esse caminho, aprendi que não seria uma missão fácil, existiriam sacrifícios, mas, principalmente, eu aprendi que era possível. Encontrei ali a esperança de ter uma vida melhor, com mais oportunidades de escolha e de conhecimento, mais capacidade para olhar a realidade à minha volta com criticidade ao invés de conformismo. E foi assim que cheguei à faculdade, uma nova etapa de estudos, numa nova etapa da vida. Para continuar estudando precisei mudar de cidade, deixando para trás o conforto da casa dos meus pais, os cuidados inestimáveis da minha mãe,

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a proximidade dos amigos, os rostos e ruas conhecidos. E assim como em meu primeiro dia de aula, eu sabia que eu não poderia olhar para trás, pois correria o risco de querer ficar. Estudar quando se é adulto é tão diferente! A vida adulta apresenta a cada dia um novo desafio, muitos deles, admito, me fizeram questionar minhas escolhas, pensar se realmente tamanho esforço valeria a pena e o quanto eu seria capaz de aguentar. Mas no dia seguinte lá estava eu novamente, afinal: que sentido teria minha vida sem a oportunidade de aprender algo novo? Sem a oportunidade de repensar aquilo que eu julgava entender, sem a oportunidade de me expressar, de me transformar, de mostrar aos outros aquilo que aprendi e, talvez, mudar essa pessoa também. E por isso não desisti e a alegria por terminar a faculdade era um sentimento ímpar, não era algo simples, não pra mim, nem para minha família, para os meus pais, que não tiverem oportunidades, nem mesmo próximas a esta. Eles não mediram esforços desde o dia em que nasci, fazendo o possível e o impossível para me ver naquele lugar de destaque, na frente do palco, erguendo o diploma, como o cavaleiro ergue a espada ao vencer uma batalha! Naquele momento, eu também erguia uma espada, a espada de uma vida de batalhas contra o preconceito racial e socioeconômico, contra as adversidades de morar numa cidade grande e muitas vezes cruel, contra àqueles que não acreditavam e àqueles que torciam contra. Durante a minha caminhada percebi que apesar da educação ser um direito, esse direito ainda é negado a muita gente, seja pela falta de recursos financeiros, pela falta de estrutura familiar, pela necessidade de trabalhar ao invés de estudar, pela falta de condições de deslocamento ou pelo tratamento que recebem dentro das instituições, fazendo com que desistam. Para essas pessoas o acesso à educação é uma luta constante para ingressar e para se manter. Muitos são os que não se conformam em ter que aceitar conviver com negros e negras, indígenas,

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pessoas de origens simples, sem status e com pouco dinheiro que ocupam o espaço das universidades públicas, mas que por outro lado, tiram notas boas e se destacam. O mérito nos é negado com frequência. Passou no vestibular? – Sorte! Conseguiu uma bolsa de estudos? Sorte! – Se formou sem reprovações? – Sorte! Por essa e outras, aquela batalha não era só minha, nem só dos meus pais, essa batalha era de todos aqueles que encontram na educação uma oportunidade de se transformar e transformar sua realidade, de crescer, de ir além da sobrevivência e negar com veemência a subalternidade imposta por tanto tempo. E ao fim dessa etapa, a que conclusão eu poderia chegar se não a de que essa era apenas uma batalha, das muitas que estão por vir? São incontáveis os caminhos pelos quais a educação pode nos levar. O caminho que trilhei até aqui pode ser o caminho de muitos, que, como eu, encontram no conhecimento prazer, alento e esperança. Mas sei que esse caminho pode ser mais humano, menos preconceituoso, mais acessível, que mais e mais famílias desejam e merecem ter a mesma alegria que a minha teve ao me ver formada. Sei também que mudar esse cenário depende de muito estudo, para mostrar a quem for preciso, como e porque as coisas devem ser diferentes. E é por isso que eu vou continuar estudando, que vou continuar dentro da universidade. Tenho certeza de que não estou sozinha.

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A decoreba e o processo e ensino e aprendizagem Valdecir Ramos Santos Quando penso no final de ano, não consigo associar a natal, presentes, ou árvores de natal, mas sim àquele menino de 9 anos que havia reprovado em matemática na terceira série do antigo primário, hoje o fundamental I. O menino, que era muito próximo de mim, era meu vizinho, garoto esperto, mas na tabuada não conseguia fazer a velha decoreba das mesmas. Foi doído vê-lo triste, pois sentia-se incapaz com os números. Enquanto via os outros meninos da rua todos felizes porque haviam sido aprovados, ele recebeu como castigo ficar durante as férias fazendo tabuadas em cadernos até decorar. Foram muitas tabuadas repetidas até decorar. Na minha opinião, esse não é o caminho para aprender algo ou dominar um assunto, pois é uma técnica de momento que logo cairá em esquecimento. Este fato está muito relacionado comigo devido a minha falta de habilidades com os números, também por isso, me senti muito próximo do que ele estava vivendo. Se eu Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná

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estivesse no lugar dele, me recusaria a escrever tantas e tantas vezes as mesmas tabuadas, mas ele, como filho obediente, acatou a ordem da mãe sem muito questionar, pois percebia também que se sentia culpado por aquela reprovação. Passaram-se os três meses e ele finalmente conseguiu decorar a tal tabuada, o que foi motivo de alegria para a família. Mas todo esse esforço foi para satisfazer os pais e a professora. Será que essa forma mecânica de decorar lhe rendeu algum aprendizado? Esta história me faz parar para pensar em tudo que aprendi na escola, ou decorei, o que me valeu para vida das decorebas? Foram poucas com certeza, mas o suficiente para completar uma nota e conseguir completar os estudos básicos. E o meu velho amigo, inimigo dos números, que hoje é um homem, o que será que ele realmente aprendeu em ficar escrevendo cadernos e mais cadernos nas férias? Acredito que não foi grande coisa, porque ele tem uma profissão que nada está relacionada com os números. E hoje, será que ainda prevalece a decoreba da tabuada? Espero que não, pois acredito que novas metodologias estão aí para fazer do ensino e aprendizagem um novo horizonte para nossas crianças.

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Bruna Gonçalves de Pádua Reis

Bruna nasceu na cidade de Passos, interior do estado de Minas Gerais, no ano de 1995. Aos sete anos mudou-se com os pais e seus dois irmãos para a cidade de Cascavel, interior do estado do Paraná, devido ao trabalho do pai. Lá, residiu até o ano início do ano de 2007, quando se mudou para Curitiba, capital do estado do Paraná, em decorrência de uma proposta melhor de trabalho para o pai. No ano de 2012, concluiu o ensino médio no Colégio Estadual Pio Lantéri, ingressando no ano seguinte no curso de graduação em História – Memória e Imagem, da Universidade Federal do Paraná. O curso de História da Federal teve seu início em 2009 e era relativamente novo. Por isso, Bruna encontrou várias falhas de organização. Algumas questões institucionais relacionadas às disciplinas e ao corpo docente não se enquadravam totalmente dentro das propostas oferecidas na ementa do curso. Ainda assim, teve a oportunidade de participar de Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná

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duas iniciações cientificas ao longo da graduação. Das iniciações científicas, uma delas foi seu tema de monografia, intitulada: O terreiro de Candomblé como território de memória e resistência negra em Curitiba. Em dezembro de 2017, Bruna concluiu a graduação em História. Bruna acredita que a universidade ainda é um espaço predominantemente branco e racista, o que faz com que a vida de um (a) estudante negro(a) nesse espaço seja, por vezes, solitária. Além disso, a universidade oferece pouco suporte para orientação quando se busca estudar temas relacionados às questões raciais, à cultura afro-diaspórica ou africana. Por esses e outros motivos, Bruna procurou se aproximar de espaços de acolhimento que abordassem a temática racial. Assim, ela buscou se aproximar do Neab e do Coletivo Frente Negra, onde aprendeu muito e teve a oportunidade de ser monitora no II Copene Sul e participado do EECUN (Encontro Nacional de Estudantes e Coletivos Universitários Negros) em 2016. Já em 2017, no III Copene Sul, teve a oportunidade de apresentar trabalhos científicos. A participação nestes eventos encorajou Bruna a persistir em suas ideias de pesquisa relacionadas à cultura afro-brasileira. Em maio de 2017, com o propósito de ingressar no mestrado em Antropologia, Bruna iniciou o Pré-Pós – curso preparatório ofertado pela Universidade Federal do Paraná. O interesse de mudar para a Antropologia relaciona-se com a vontade de pesquisar sobre as religiosidades, festas e saberes populares de uma comunidade negra de Minas Gerais. Com a pesquisa, Bruna pretende compreender as histórias, crenças e saberes que constroem a identidade cultural e de pertencimento das pessoas dessa comunidade identificando de que forma essas questões se mantêm nos dias de hoje.

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Minha luta

Clarice Martins de Souza Batista Nascemos em Jacarezinho, região norte do estado do Paraná, no ano de 1972. Nossa mãe, uma descendente de italianos, e nosso pai, um negro que sofreu discriminação racial na própria família. Recém casados, os nossos pais foram morar na cidade de Santa Mariana, Paraná. Nosso pai trabalhava no Departamento de Estradas e Rodagem – DER. Neste emprego ele sofreu um acidente de caminhão enquanto trabalhava e teve sequelas significativas. Em função deste acidente, ele teve um Acidente Vascular Cerebral – AVC e diante disso a nossa mãe precisou realizar trabalhos domésticos fora do lar para auxiliar na manutenção da família. O pai, impossibilitado de trabalhar, passou a receber salário mínimo como “encostado” pelo Estado, e a filha mais velha (eu) de três filhos passou a sofrer desmaios depois de levar um susto com um raio que atingiu parte de sua casa. Depois do ocorrido, ela precisou de tratamento médico com

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uso de medicamentos. A situação financeira ficou muito difícil e a família voltou para Jacarezinho. Os custos com aluguel, medicamentos e alimentação tornaram-se insustentáveis, com isto nossa mãe foi trabalhar de doméstica. Entre todas as despesas básicas, foi necessário deixar de pagar aluguel, momento em que a mãe buscou um espaço em um terreno que pertencia à prefeitura para residir. Este terreno ficava em um morro no centro da cidade, onde aconteciam constantes deslizamentos de terra e pedras, embaixo de fios de alta tensão, próximo à linha férrea e de um pequeno rio que inundava frequentemente com as chuvas. Nessa comunidade carente, uma casa de madeira simples foi construída com a ajuda de familiares e amigos, e ali a família morou por aproximadamente 15 anos. A mudança de tempo para chuva era motivo de preocupação, havia a possibilidade de desmoronamento de terras atrás da casa, o que forçaria as paredes, aumentando a possibilidade de prejudicar a já frágil estrutura. Essa condição demandava da filha mais velha e de sua mãe que trabalhassem com enxadas para afastar o barro para longe das paredes. As lembranças nos trazem saudades, recordações das idas para a escola em grupo de muitas crianças da comunidade. Íamos sempre juntas para termos a companhia umas das outras, e nos protegermos, inclusive com os devidos cuidados na linha férrea, pois algumas vezes o trem parecia surgir repentinamente e era necessário saltar fora dos trilhos com agilidade ou se encostar nas pedras laterais à linha até sua passagem. As idas para a escola em dias de chuva exigiam o uso de sacos plásticos nos pés. Pés que pisavam no barro, enquanto as crianças caminhavam com o calçado nas mãos para não molhar ou sujar. Quando chegávamos no asfalto, limpávamos os pés e calçávamos os calçados para uma boa apresentação na escola. Os materiais escolares, vindos de doações ou comprados com renúncia de outras necessidades,

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eram levados para a escola em bolsas improvisadas, sempre bem limpinhos e organizados. Lembramos do estojo que era uma caixa de linhas em forma de “gavetinha” de papelão, que ganhávamos de uma tradicional loja de aviamentos da cidade. Nele, tinha uma tabuada impressa no fundo da caixa que servia como um incentivo. Lembramos de ouvir a mãe conversar com uma vizinha, relatando a dúvida sobre deixar os filhos estudarem ou permitir que fossem trabalhar para auxiliarem no sustento da família. Nesse ambiente repleto de restrições, o pai veio a falecer muito jovem, aos 39 anos de idade. As dificuldades se intensificaram e houve a necessidade dos filhos, então com 12 e 8 anos, irem trabalhar. Trabalho doméstico, com exploração do trabalho infantil e com esforço físico demasiado. As atividades escolares aliadas à necessidade de dormir poucas horas por noite durante anos, para dar conta do trabalho que exigia atividade incessante de 10 a 12 horas diárias, tornavam o dia cansativo. Trabalhávamos em troca de receber aproximadamente a quarta parte do salário mínimo da época. Nos chegam lembranças da noite em que a senhora negra que sempre viveu no emprego trabalhando de doméstica e que cozinhava muito bem, faleceu aos oitenta anos. Ela era querida por todos, não tinha filhos, mas criou a “patroa” e depois seus filhos. Ainda na adolescência começamos a perceber algumas questões sociais como a divisão de classes, a manutenção hierárquica das classes, a falta de distribuição de renda, a exploração da mão de obra, a exclusão e invisibilidade do negro, do pobre. Passamos a enxergar as famílias e os vizinhos que trabalhavam muito e não conseguiam melhoras na sua condição de vida. E pior, os que faleciam sem assistência médica. Ou seja, várias formas de violência. Entre elas, a que muito nos marcou se relacionava à educação. Por isso, questionávamos muito a evasão escolar de colegas de

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infância. Alguns meses após iniciado o ano letivo, alguns colegas já deixavam de integrar o grupo, motivados por discriminações sofridas, pelas dificuldades escolares, como na matemática, por questões étnicas, pela necessidade de trabalho e dificuldades econômicas. Nestas condições, muitos colegas poderiam ser citados, como a “Tiquinha”, o Cláudio, o “Neno”, a “Rose”.. . todos eles afrodescendentes. Valorosos companheiros de uma vida, trabalhadores dignos. Refletíamos e questionávamos muito em busca de compreender o motivo pelo qual tudo aquilo ocorria. Continuamos a estudar, mesmo sem saber muito bem o que procurávamos, sabíamos que precisávamos valorizar os estudos como possibilidade de avanço e compreensão de tudo o que se passava. Em nosso meio, não havia quem citasse a formação escolar como possibilidade de desenvolvimento profissional. Parecia que as profissões eram aprendidas na prática, no fazer, e não percebíamos uma formação teórica e refletida sobre as atividades profissionais da população local. Não ouvíamos falar em “segundo grau” ou formação em ensino superior. Na medida do possível, contribuímos com a comunidade local, já que havíamos instituído uma associação de moradores de bairro que fez várias reuniões locais, promoveu discussões, arrecadação e distribuição de alimentos para aqueles que não tinham nada para a próxima refeição. Foi muito gratificante, mas por outro lado, triste ver uma pessoa dividir o pouco óleo que tinha “meio a meio” com o outro, cortar ao meio sua única “pedra de sabão” para dar ao outro, em meio a reivindicações a direitos como saneamento básico, telefone público, coleta de lixo, calçamento de ruas. Mesmo sem compreender o que se passava, conseguimos junto com o grupo, realizar questionamentos sobre a ausência do poder público que ocorria com a comunidade local. Entretanto, as ações que dependiam de nossos esforços físicos pessoais

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foram realizadas. Como por exemplo, uma escadaria no local. Pena que tudo isso aconteceu num curto espaço de tempo. Assim, com um misto de emoções, com o coração apertado, sentimento de perda, de pertencimento, de saudade, de agradecimento aos colegas, além de medo, insegurança, carregando sonhos e possíveis conquistas, e com a vontade de levar todos os colegas junto, nos mudamos para outro bairro e após voltar ao aluguel, conseguimos construir uma casa própria para nossa família. Quando vamos para a cidade, com muita frequência realizamos visitas na comunidade. Sempre aconselhamos os jovens a estudar. O que nos preocupa e entristece é perceber a permanência das condições de vida. Cursamos o magistério, período em que foi necessário pousar no emprego que ficava muito distante do colégio e exigia caminhadas diárias. Sentíamos e buscávamos reelaborar os olhares e julgamentos discriminatórios das colegas de curso, tentando nos colocar na posição destes para perceber suas visões sobre o outro. Porém, uma coisa era certa, tínhamos a convicção de que ali também era nosso lugar. Concursada no estado, lecionamos por dois anos nas séries iniciais (nomenclatura da época), na condição de professora. Ao receber as crianças da comunidade, ficamos chocados com o posicionamento e o discurso de alguns profissionais que pareciam não perceber a importância da escola para a vida e formação daquelas crianças. Eles chegavam a considerar que tais crianças “não deveriam sair de seu local de residência e nem ter acesso à escola, pois não faria diferença mesmo, apenas incomodavam, patinavam, patinavam e acabariam abandonando a escola mesmo”. A nossa iniciativa era de tentar fazer o melhor para aqueles sujeitos indefesos e perceber que estavam também sob nossa responsabilidade. Contudo, não era tão fácil. Preocupavamnos os problemas de indisciplina e o grande número de

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crianças em sala de aula. Eram muitos os desafios. Iniciamos a faculdade de Matemática e decidimos ir para Curitiba buscar novas possibilidades de emprego. Trabalhamos muito. Como não conseguimos transferência de curso para faculdade, já casados, mudamos para Rio Grande do Sul - RS, local em que tivemos dois filhos. Lá trabalhamos com a produção de salgados e lecionamos nos anos iniciais após concurso no estado. Mudamos para o Ceará, local em que transferimos a faculdade para curso de Pedagogia. E trabalhamos no Sebrae e IBGE. Nova mudança para Três Lagoas, Mato Grosso do Sul, local em que, após concluir curso técnico em química, trabalhamos em fábrica de celulose. Finalizamos a faculdade de Pedagogia e concluímos o Mestrado em Campo Grande. Lecionamos políticas públicas em Três Lagoas na UFMS. Em Curitiba, atualmente somos Pedagoga no estado, professora no município, e docente em instituição privada de ensino superior. Em um ciclo natural de vida e após “combater o bom combate”, nossa mãe falece em 2016. A ela somos gratos enquanto irmãos por nos orientar e permitir estudar, apesar dela mesma ter ofertado a possiblidade de adquirir apenas dois anos de escolaridade. Ainda assim, foi uma mulher que soube fazer sua “leitura de mundo” e criar mecanismos de defesa para dar conta do viver. Refletindo para escrever este relato, observamos que desde muito cedo participamos de movimentos socioculturais e de resistência para requerer direitos, perceber e valorizar as transformações sociais ocorridas. Participamos também de movimentos de luta contra políticas que não representam a maioria, ou ainda, da retirada de direitos, como no contexto atual, a níveis nacional, estadual e municipal. Entendemos que a história feita por muitos sujeitos e que deveria representar o povo, se apresentou e se apresenta bastante maldosa com o pobre, com o afrodescendente, com o dito

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“diferente”. Dessa forma, percebemos que sofrimento e discriminação aconteceram e continuam acontecendo devido a grupos que se acham no direito de posse e controle da vida do outro. Apesar disso, com o passar do tempo, apesar de toda perseguição, com lutas e conquistas, direitos são garantidos em leis. Por isso, é necessário continuar refletindo sobre políticas públicas, leis afirmativas, o trabalho docente, a importância da educação como fator de inclusão e suas consequências na vida e educação da população brasileira. Hoje, com outra leitura de mundo, está claro para nós que grupos que sempre tiveram o domínio do poder, não aceitam “perder” privilégios de forma que novas ações no sentido de retiradas de direitos continuam acontecendo. Assim, surgem projetos conservadores e de ataque a minorias, como o projeto Escola sem Partido, que reforça a escola como reprodutora do sistema vigente. Com isto, percebemos a necessidade de compreendermos o contexto cultural, político e econômico atual e a forma como alguns projetos de políticas públicas impactam nas questões da diversidade de modo geral e mais especificamente da diversidade étnico racial como uma forma de resistir a certas ausências, permanências e invisibilidades sociais. Diante disso, almejamos, como Paulo Freire, uma educação crítica e uma escola não doutrinária, capaz de promover a inclusão social e a redução da desigualdade.

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O entregador de sonhos Marcello Henrique dos Santos É tardinha, sol se pondo, o ar que enche os pulmões é quente, algo comum das tardes nas gerais, nos seus longos e permanentes veranicos. Cheiro de café passado na hora, pão de queijo fresquinho em cima da mesa que está vestida de renda matelassê. Cenário da casa grande para o habitual café da tarde, quando de repente em cima da mesa surge uma mão cheia de dedos finos, como os galhos de uma árvore no inverno. E o silêncio vespertino é quebrado pelos berros da jovem mãe negra: - Deixa isto daí mininu. - Eita negrinhum, ah cê eu te pegu. - Deixa de micagem Marcelloooooo... Os berros são de Cida, a jovem negra, mãe de uma criatura que se chama Marcello, que, ou você ama ou você odeia. Os gritos da mulher são por conta de mais uma das travessuras de seu filho. Quem ouve, logo pensa: provavelmente ele acabou de aprontar. Marcello é magro, dono de um farto

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sorriso, de alegria contagiante, de olhos brilhantes, de pernas finas e longas, detentor de uma imaginação que eu vou te contar. Este negrinho vive aprontando. Se acha bonito, devido aos elogios constantes que recebe das visitas na casa grande. Por isso, o menino vive a ostentar uma beleza imaginária, resultado da miscigenação africana, por parte da mãe, e europeia, herdada do seu vô, racista, mas apaixonado por ele: o seu “Negrim”. O criolo se orgulha do nariz afilado e do queixo alongado que tem, leves traços que herdou dos emirados árabes que sua vozinha trouxe consigo na carga genética, no cargueiro fugindo das guerras. Eita menino sô, se apresenta a todos com a postura de um lord, mas este príncipe é do gueto, da preferia, do interior das Minas Gerais. Vive a suspirar seus desejos e elucubrando os seus sonhos pelos cantos a todo tempo, o tempo todo. Marcello conheceu os campos brancos e as flores negras ainda na infância, na casa grande, lugar onde sua mãe trabalhava para manter a sua barriga esfomeada cheia. A sinhá, dona da casa, sempre tinha em mãos seus campos privativos de onde surgiam as várias histórias, e o menino tinha gosto pelas narrativas que brotavam dos campos da sinhá moça. Ora o menino imaginava ser o saci do sítio do pica pau amarelo, ora o pequeno príncipe a viajar de carona com o cometa e até mesmo se achar o príncipe resgatador da branca de neve. - E o beijo? Perguntava o moleque curioso. Pode uma coisa desta? Para o Marcelo: sim, tudo é possível. Mas ele sabia que o real motivo das histórias era mantê-lo sempre por perto, para terem certeza que ele não estava aprontando. Contudo, a sinhazinha insistia em dizer que era porque amava ver os olhos brilhantes do negrinho quando ela contava as suas histórias. Diferente dos outros meninos, os campos verdes não enchiam os olhos dele. Menino de sorte este, sempre teve mulheres visionarias, fortes, independentes e inteligentes por perto. Assim, aprendeu

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desde cedo que o sentimento do machismo nada mais é do que o medo coletivo de homens fracos sucumbidos pela força e a determinação de mulheres fortes. Com o tempo, o negrinho descobriu também que as flores negras nos campos brancos eram chaves douradas, capazes de abrir gaiolas, quebrar correntes, arrebentar grilhões, libertar almas que por “injustiças” foram cativas no calabouço da ignorância humana e da crueldade dos senhores feudais. Acostumado a ser protagonista das histórias que ouvia, Marcello, marmelo, martelo decidiu se tornar guia turístico dos campos brancos de flores negras. Descobriu que para ser tonar guia dos campos, ele teria que adentrar o palácio do saber. Ele sabia que pessoas como ele não tinham fácil acesso ao palácio. Porém, ele que tem gosto por aventuras não se intimidou. Então, tornou-se homem, assumiu suas fraquezas e encheu seu franzino peito de coragem e adentrou o Castelo do Saber. Maravilhou-se do que viu ali, entrou nas grandes salas brancas de janelas finas, o que não foi tarefa fácil, e aprendeu o significado da palavra resiliência. O negrinho, que antes corria por suas travessuras, hoje tornou-se um jovem que corre pela rampa do palácio do saber, onde os grandes magos estão a formar os lendários entregadores de sonhos. É impressionante o caminho das rampas, além de rubis esverdeantes, as paredes do palácio têm vozes que estão sempre a discursar seus sérios lembretes e opiniões sobre a vida e o viver. De repente um ruído quebra o silêncio da grande sala branca, todos olham para trás, é um homem alto, negro, de barba, de sorriso farto, de pernas longas e finas e dono de inesquecíveis olhos brilhantes. Hoje ele, o Marcello, veio observar e aprender sobre o jardim negro de flores brancas. É ele, o menino homem travesso, preparando-se para ser o entregador de sonhos

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Ela e o objeto frio, cinza e pesado Edilaine Cristina Ferreira Gomes Bonato

O relógio a despertou. Seus olhos ainda pestanejavam porque sua mãe lhe pedira ajuda para encapar os livros. Eram cinco e meia da manhã do dia 7 de fevereiro de 1983. Ela se espreguiçou e foi para o chuveiro, pois gostava sempre de ser a primeira a tomar banho. Seus irmãos ainda dormiam. Ao sair do banheiro, a fila já estava grande. Sua irmã entrou. Logo após, seus outros irmãos. E o barulho na casa já dava sinal de uma nova rotina. O uniforme, composto por uma saia plissada azul marinho e blusa azul celeste, combinava com seu tênis bamba que sua mãe lavara tão bem que parecia novamente novo. Seu cabelo esticado por uma maria-chiquinha que, carinhosa e cuidadosamente, seu pai amarrara. Ouviu sua irmã reclamar do cumprimento da saia, “longo demais” para ela que só gostava de shorts curtos. Não deu ouvidos, continuou se arrumando para aquele grande dia. Tomou seu desjejum junto aos seus irmãos, com cuidado para não sujar sua vestimenta.

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Escovou os dentes, pegou sua mochila recheada de livros, cadernos e estojos, e desceu para esperar o escolar que era cedido pelo então Ministério do Estado Maior das Forças Armadas. Ao entrar no ônibus, viu pessoas diferentes ao de seu convívio e reviu os antigos amigos. Chegou naquele lugar repleto de crianças, umas de seu tamanho, outras menores e maiores, mas todos estavam ali com um único objetivo: aprender. No pátio, quando todos estavam organizados em filas e separados por sala, devidamente uniformizados e em silêncio, ouvindo cada orientação da Diretora da Escola, começou a imaginar como seria sua professora. Seus pensamentos foram interrompidos pelo som do Hino Nacional. Após o hasteamento da bandeira, foi conduzida – junto aos seus novos colegas – para a sala de aula. Sentou-se à quarta cadeira. Colocou seu estojo de madeira, composto por lápis de cores, de escrever e uma borracha cuidadosamente em cima da carteira. Alocou sua mochila nas costas da cadeira, com a postura ereta, esperou o acontecimento. Aqueles segundos pareciam passar lentamente, mas quando ouviu uma voz firme que soava dos lábios daquela mulher, seu coração palpitou fortemente. Após a ordem da professora para que pegassem o caderno de caligrafia, ela se deu conta de que estava na primeira série do ensino fundamental e que a partir daquele dia, sua vida mudaria completamente. Seguindo as instruções de sua professora, com suas mãos trêmulas e suadas, tentou desenhar aquilo que mais pareciam rabiscos, mas eram fortes e profundos demais para serem simples e puramente, apenas, isso... Aquela mulher ao seu lado, de personalidade forte, lhe chamou a atenção: “veja bem, você tem que seguir o pontilhado, não pode fugir dele, está bem?” Laura era o nome de sua professora. Tudo era novo para aquela menina de

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7 (sete) anos, mas tudo parecia tão antigo... O cheiro do caderno, o uniforme engomado, o seu cabelo esticado por uma maria-chiquinha, tudo isso era novo. Mas o seu velho medo estava lá para atormentá-la. Ele era antigo...talvez ele a perseguisse desde o ventre de sua mãe. Aquilo a corroía, a fazia sentir vergonha, pois via seus coleguinhas levarem com leveza aquele objeto duro, frio e cinza nas mãos como se pena fosse, mas para as suas, mais parecia chumbo. Seus pensamentos atormentados pelo medo não a impediram de ouvir uma voz que vinha do âmago de sua alma: Ela vai conseguir. Ela tem que conseguir. Vamos, você consegue! Você é capaz! Sim. Ela conseguiu! Ufa! Ela conseguiu escrever o seu nome. É, até que não foi tão difícil assim. Acredito que posso fazer mais. Sim, ela fará muito mais! O dia passou rápido, quando a menina se deu conta já estava dentro do Escolar segurando aquele caderno de caligrafia junto ao peito, que batia forte como um tambor chinês em dia de Ano Novo. Sim, ela conseguiu escrever o seu nome pela primeira vez e estava eufórica, doida para saber a reação de seus pais quando chegasse em casa! A sua primeira grande conquista. Estava orgulhosa de si. Sentia que algo antigo tinha se tornado novo, atual e concreto: agora ela era uma pessoa letrada! Os anos se passaram e aquela menina que tinha dificuldade de escrever e sentia que o lápis mais parecia chumbo em suas mãos, hoje é uma mulher que se permite levar pelas divagações de seus pensamentos, mas sem perder o rumo da sua história. Mesmo diante de tantas dificuldades que teve de passar ao longo de sua vida, nunca desistiu de aprender mais e mais sobre coisas novas. Sua sede pelo conhecimento lhe fez chegar ao Mestrado de Direitos Fundamentais e Democracia com o projeto de desenvolver uma dissertação embasada na teoria e prática do Sistema de Cotas Raciais nas Instituições

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Federais de Ensino Superior, com a seguinte problemática: como vêm sendo as decisões das Bancas Validadoras da Afrodescendência das IES após o advento da Normativa n. 18 do Ministério da Educação? Entretanto, seus questionamentos não param por aí. A cada leitura das normativas institucionais, ela se depara com o seguinte problema: se o IBGE considerou em sua pesquisa as classes de cores branca, preta, parda, amarela e indígena, aonde se encaixam os ditos “sararás” (pessoas brancas com cabelo loiro, porém crespo)?! Pois bem, ao menos ela aprendeu que o Brasil integra essas pessoas na classe dos mulatos ou mestiços. Contudo, é bem questionável o fato de uma possível rejeição pela Banca em não querer admitir alguém com a cútis branca à luz do sistema racial. Outra problemática que ela se deparou foi a seguinte: os que tiveram sua autodeclaração negada pela Banca por esse fato (serem sararás) durante anos, e assim ratificada pela Justiça (O STF, na ADPF 186 decidiu pela constitucionalidade da formação destas Bancas pelas IES em 2012), como ficam seus direitos de inclusão? Deverão eles se integrarem no sistema universal, uma vez que não “integram” a cota racial? Ou se faz necessário criar uma lei que, definitivamente, lhes integrem a este sistema e os reconheça como afrodescendentes? Além disso, há pesquisas empíricas suficientes para, da mesma forma que fizeram com a inclusão sóciorracial, corroborarem que essa espécie de gente (sarará) sofre preconceito e pouco integram a comunidade acadêmica? Tais questionamentos não param de surgir na cabeça daquela menina que superou seu medo e hoje é uma mulher cheia de expectativas e esperanças, porque sabe que seus sonhos vão muito mais além do que um mero rascunho entre uma folha e um simples objeto frio, cinza e pesado...

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Cantei o meu canto e mudei minha história: preta até o osso Michele Mara Domingos dos Reis Meu nome é Michele Mara, tenho 36 anos, nasci em Curitiba, sou cantora, musicoterapêuta e modelo plus size. Formada em Canto Popular pelo Conservatório de MPB de Curitiba em 2007 e com graduação em Musicoterapia pela Unespar – Curitiba II – Campus FAP em 2017. Nasci em uma família de músicos, a mais velha de sete irmãos, dois por parte de mãe (chefe de cozinha) e quatro por parte de pai (músico). Apesar de ter crescido com amor e atenção, tive a experiência triste da violência doméstica, traição do meu pai para com minha mãe, dor e sofrimento. Apesar destes fatos tristes e difíceis de vivenciar, havia na família a presença atenuante da música. Ela era um elemento de integração que tentava reunir as pessoas, independente de raça ou cor. Assim, quando criança, participei na casa de minha avó dos sambas de roda que ela promovia para a comunidade. Compartilhava as canções que minha mãe ouvia

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depois das brigas com meu pai, e inseri, nas minhas próprias vivências, a presença constante da música. Estudei sempre em escola pública, repeti a terceira série porque não conseguia fazer contas de dividir, e por ter visto meus pais se separarem. Porém, nas aulas de educação artística, sempre me destacava, se tivesse música (dança e canto) envolvidos, era melhor ainda. Dessa forma, aprendi a escrever transcrevendo as canções que gostava de cantar. Ainda no colegial, nas aulas de português, descobri o gosto por fazer paródias e criava peças de teatro com os colegas para apresentar em sala. Sempre elogiada pelos professores e colegas, e incentivada por minha família, aos dez anos comecei a cantar regularmente na banda gospel da família (mãe, tias, tio, primos e irmão). Aos 16 anos, meu pai morreu devido a problemas do coração. Ele estava com 38 anos e era um homem jovem. Tínhamos uma relação linda, apesar de tudo que havíamos passado até então. No ano da morte de meu pai, cheguei a reprovar o segundo ano do ensino médio e parei de estudar por não suportar a morte do meu pai. Com 19 anos, voltei a estudar para completar o ensino médio e vi minha mãe se casar pela segunda vez com um homem que ela mal conhecia, e que se revelou usuário de crack e álcool. Mais uma vez, presenciei minha mãe sofrer nas mãos de um homem sem escrúpulos, que a convenceu a irem embora e me deixar sozinha, já que a convivência era insuportável. Mesmo maior de idade, ainda me sentia como uma menina que não sabia nada da vida e aos 20 anos de idade também me casei. E assim a história se repete. Da mesma forma, como minha mãe, eu também vivi no casamento experiências ruins que me marcaram profundamente em função do uso de drogas pelo meu marido. Depois de toda aquela violência doméstica, e dos constantes apelos de vizinhos preocupados

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com a minha integridade física e emocional, minha mãe voltou para casa ainda acompanhada pelo meu padrasto. Naquele ambiente hostil me descobri grávida. Apesar disso, a violência continuava e na minha primeira consulta pré-natal fui agredida pelo meu esposo em frente à escola que eu estudava. Fui socorrida por professores e por fim me separei. A gestação seguiu e se revelou uma gravidez de alto risco, pois com tantos traumas sofridos naquele período da gestação, desenvolvi hipertensão gestacional e aos oitos meses de gestação, depois de tantos internamentos, meu filho nasceu, mas morreu em seguida, tido como “nati-morto”. Foi um momento muito difícil, separada, sem trabalho, e com um filho morto. Então, decidi mudar o rumo de minha vida. Fui estudar teologia para cuidar de crianças na igreja que frequentava e cantava, consegui uma bolsa de estudos no Conservatório de MPB de Curitiba e me formei em canto popular e segui em missão de evangelismo para crianças. Apesar de já ser conhecida por fiéis da igreja, agora empregada da denominação, ainda me vejo sozinha. Três meses antes de me formar em canto popular, em uma das aulas que frequentava, fui procurada pela pianista que acompanhava a professora nas aulas, recebendo o convite para cantar em show de Tributo ao Pink Floyd, na banda de dois irmãos da pianista, em um famoso bar de rock em Curitiba. Assim, no dia 07 de julho de 2007, ao cantar The Great Gig in the Sky do Pink Floyd, mudei os rumos da minha história. Depois desse emblemático show, rapidamente fiquei conhecida no meio do rock, e de cantora gospel passei a ser cantora de soul, blues e rock in roll e umas das vocalistas da Big Wilson Band. Em 2009, me inscrevi no programa Astros (SBT), chegando até a semifinal em uma disputa acirrada com

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outra candidata que foi para final. No mesmo ano passei no vestibular, depois de anos sem estudar, e em 2010 comecei a cursar Musicoterapia na então Faculdades de Artes do Paraná, hoje Unespar. Em 2011, fui convidada para participar do quadro Maior Imitador do Brasil, no programa do Faustão (TV Globo). Imitando a cantora Americana Aretha Franklin, ganhei o concurso Maior Imitador do Brasil e fui vencedora também no Maior Imitador da América Latina, recendo posteriormente homenagem especial do apresentador em seu programa, levando o Brasil a lágrimas. Agora, já conhecida internacionalmente, me divido entre a vida de estudante e de cantora. Em meio à admiração de colegas da Universidade e professores, sinto-me perseguida também e muito cobrada por uma professora que dificulta minha permanência na Universidade. Mesmo assim, não desisti e me tornei uma militante pelos direitos da população negra, por ser a única mulher negra do meu curso. Em 2013, passei pela primeira experiência com o racismo em um supermercado de Curitiba. Em um acordo, fui indenizada, virei notícia e exemplo para outros negros denunciarem crimes de racismo, tornando-me capa de um dos principais jornais do país, e com isso, fui convidada a fazer um teste para um longa nacional com roteiro de Bruna Lombardi e Direção e Carlos Alberto Riccelli e Kim Riccelli. “Amor em Sampa” é o primeiro longa que faço como atriz e cantora, e por se tratar de uma comédia romântica musical, onde todos os atores cantam, ficou comigo a função de cantar o tema principal do longa, pelo fato de eu ser uma cantora profissional. “Ceição”, minha personagem, caiu no gosto popular e da crítica. Durante as gravações do longa, fui convidada por Tiago Abravanel (meu parceiro de cena no longa e posteriormente, meu padrinho) a morar em São Paulo. Gentilmente, Tiago me

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deu de presente o curso de teatro musical na mesma escola que ele estudou e me levou para morar em sua casa em São Paulo. Em 2013, tranquei a Faculdade e fui estudar teatro musical. Em 2014 voltei para Curitiba e retomei os estudos na Universidade Em julho de 2016, no fim do primeiro semestre da Universidade, mais uma vez sofri racismo. Desta vez, em uma loja de acessórios localizada na da Rua XV de Novembro, acompanhada de uma amiga. A dona da loja me proibiu de experimentar um turbante, alegando que, por ela ser branca, o cabelo dela era liso, enquanto que o meu cabelo crespo poderia estragar o produto. Mais uma vez recorri à justiça e fui indenizada. Nesta época, houve uma comoção entre meus fãs, família e amigos, por mais uma vez ter passado por uma cena de racismo. Agora sou uma militante com muita força e importância e por causa disso decidi trazer para Curitiba a “Marcha do Orgulho Crespo”, movimento que começou em no de 2015 em SP. A marcha foi realizada, e pra minha surpresa, ela se tornou a maior marcha da história já realizada na cidade, onde mulheres, homens, jovens, crianças e idosos marcharam da Praça Santos Andrade até a Boca Maldita (Curitiba), falando palavras de ordem, empoderamento, respeito, com orgulho de sua beleza e dos cabelos crespos. O ano de 2017 é o ano em que eu, após todas essas minhas vivencias, desenvolvi minha pesquisa sobre “os sentimentos que mulheres negras expressam em atividades musicoterapêuticas”. Considerada pela academia uma pesquisa relevante e inédita. Mulheres negras, ao longo da história, vêm sofrendo diversas formas de violência e abusos, e essa foi a motivação da pesquisa. Preconceito, discriminação e violência se repetem nas histórias e são temas comuns entre muitas mulheres negras. Essas práticas sociais acabam por

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contribuir com o seu adoecimento, e por isso essa pesquisa significa tanto para mim. Essa pesquisa foi relevante e assim eu me graduei em Musicoterapia, sendo a única mulher negra da minha turma e também a única de toda a Universidade de todos os cursos que participou da cerimônia de graduação. Agora, graduada em Musicoterapia e com uma carreira muito feliz como cantora, meu desejo é ser mestre em música. Por meio da minha pesquisa quero continuar ajudando mulheres negras a expressarem seus sentimentos e contribuir para promover o seu empoderamento com as canções da Elza Soares.

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O melhor mecanismo de defesa é a integridade Anderson Augusto Ferreira Ventura Ao longo de 33 anos de vida, vivo constantemente em busca de me acostumar com o mundo fora do ventre materno. Talvez essa dificuldade que me acompanha se deva à enorme peleja que foi para sair de lá, com a clavícula quebrada para eu ser devidamente dobrado e poder sair vivo de um parto a fórceps e deixar a minha mãe igualmente viva. Eu disse igualmente? De lá para cá os desafios com certeza foram muitos. Ouço recorrentemente histórias sobre alergias crônicas, bronquites e noites sem dormir dos meus pais para garantir a minha adaptação no planeta Terra, do lado de fora do ventre. Disso nem eu, nem ele podemos fugir. Com o passar do tempo, dei meus primeiros passos e adquiri certa independência. Contam-me a respeito da minha constante curiosidade e descontentamento com algumas regras impostas. Me lembro de muitas vezes, antes de bater Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná

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a campainha da casa da vovó, me dizerem: “quando você entrar, você tome a benção”. E minha cabeça armava mil e um estratagemas para me esquivar daquela obrigação, mas sempre sem sucesso. Vencido pelo cansaço, passei a me abençoar com todo mundo, inclusive com primos e estranhos na rua. Filho de professora, não demorou muito para que me interessasse pelas pilhas de papel que minha mãe sempre levava consigo, por vezes cheias de cores e texturas. Logo comecei a me aventurar pelas formas e cores daquele material mágico, além das letras é claro. A vida começa a fazer sentido mesmo, quando do primeiro contato com a escola. Porém, relata minha mãe, a primeira demanda que ela teve que enfrentar com o curioso filho retornando da escola, foi ter que explicar ao filho que todas aquelas crianças não eram seus primos. Mas para a minha cabeça, se a professora responsável pela classe era chamada “Tia”, logo todas aquelas crianças eram meus primos. Foi na escola que acirrei meu contato com as letras, aprendi a conviver com os “primos” que tanto amava e que tanto me ensinaram. Aprendi a gostar das pessoas e construir sempre um lar onde quer que eu fosse. Porém, o território escolar nem sempre foi um lar. O ambiente escolar é competitivo, independente de qual estágio você esteja. Sempre que me sobressaia, de alguma forma tentavam retardar pequenos progressos, foi a primeira vez que ouvi de forma pejorativa a palavra preto, isso me quebrou. Acredite, por muito tempo não quis estar na minha pele, por muito tempo não quis ser da minha cor. Vivia apreensivo, aguardando o momento em que eu teria que me defender. A escola era um eterno paradoxo entre a insegurança da próxima perseguição e a oportunidade contínua de ser melhor. A paixão pelas pessoas e a facilidade de transitar entre elas acabou por me dar instrumento para conseguir ser aceito e, em alguns momentos, querido. Estar sempre alerta me deixou

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muito eficiente em detectar as intenções das pessoas, ao menor sinal de perigo, dá-lhe fugir. Porém, por alguns períodos acabei por me refugiar nos livros, nas histórias, estórias e nas palavras. Lá encontrava um universo meu, um silêncio doce. A palavra refúgio permeia a minha vida desde sempre. O lar, o lugar seguro, o silêncio é uma busca incansável para quem é acostumado a se esquivar de si para viver com um pouco mais de dignidade. Ainda na adolescência, tive que me preparar para viver uma realidade em que o mundo era meu lugar seguro, já que o lar passava por dolorosas transformações. Fugir de casa para quem ainda se sente preso ao ventre não é tangível. Enquanto crescia e aprendia a ler o mundo, aprendi a cultivar o bem que hoje considero o mais valioso, que são os amigos. Conheci pessoas que compartilhavam comigo suas vidas e suas histórias e naquele momento eu me livrava um pouco da minha, e eu aliviava e muito a minha carga. As pessoas passaram a ser os meus livros. Ler-lhes a vida, participar dela, contribuir, passou a ser meu dínamo inesgotável de energia e vitalidade para conseguir lidar com a constante rejeição que sofria, no lar, em casa, na escola, nas ruas. Lembro-me de ter encontrado no caminho uma menina linda, que admirei desde o primeiro momento em que tive contato com ela. Tínhamos 14 anos e ambos ouvíamos Chico Buarque e Caetano Veloso. Debatíamos política com a paixão de revolucionários, aqueles encontros eram mágicos. Namorados! A paz se fez. Conheci um lugar em que eu podia ser eu mesmo, fazendo com que os agressores acreditassem que eu era outra pessoa. Período mágico e importante, mas a natureza fala mais alto, não a mãe natureza dos livros de ciência, mas a nossa natureza, aquela que veio comigo, mesmo com a clavícula quebrada. A difícil transição entre um adolescente lutando para ser aceito e um adulto querendo dar certo. Durante todas as

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leituras que fiz, uma coisa eu soube fazer: guardar lições. E hoje, diariamente, aprendo que aquelas lições não eram para mim. Nesse ponto fez falta viver a própria história ao invés de se refugiar na do outro. A faculdade enfim traria o respeito que tanto sonhei? Olho para o passado não tão distante e vejo com clareza que aquele ambiente era tão hostil quanto a escolinha da infância e o lar na adolescência, foi aí que resolvi me dar a oportunidade de gritar! Já adulto, resolvi romper com algumas amarras que me aprisionavam. E do lado de fora do “armário”, um dos poucos lugares no mundo onde preferem não te encontrar, pude notar o quão despreparado eu estava para finalmente abrir o meu livro para o mundo, mas abri. Mais que rapidamente, voltei para os livros impressos e para os livros vivos. Mas assim como na escola, todas as vezes em que tentei me destacar, era alvo de um ataque que desmerecesse alguma conquista. “Aquele preto na faculdade? Isso não vai dar em nada”, “porque não tira uma carteira de motorista e manda um curriculum para a companhia?”, “viado advogado?”. Enfim, uma vida baseada em: se você se sobressair eu quebro você! Sempre ouvi de várias pessoas discursos que justificassem o porquê eu era agredido, mas sempre pelo ponto de vista do agressor: “Ah, fulano é muito nervoso, releve.”, “beltrano fez isso porque você provocou”. Doutrinado para sempre ver os dois lados da moeda, num contexto em que reagir ao preconceito e racismos estruturais não era uma opção, tornei-me advogado. O frio na barriga constante, o medo de ser quebrado, o medo de se machucar, trouxeram um único benefício que é nunca ter quebrado o braço ou a perna. No entanto, aos 30 anos, já advogado, dando os primeiros passos, tentando iniciar enfim a carreira a qual tinha se proposto, fui pego

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pelo pânico, aquela síndrome que toma seu psiquismo e te impede de prosseguir. Porém, chegou num momento da vida em que não estou disposto a fugir, em que não estou disposto a ser quebrado. Finalmente quero e vou me sobressair, me destacar, ler em voz alta, discutir de igual para igual e realizar o sonho de abrir meu livro, ensinar, lecionar, voltar para casa. Afinal, como poderia um filho de professora não sonhar em um dia sê-lo? Nesse momento, encontro-me recuperando o poder de aprendizado e retomando a crença em mim no que aprendo. Com a certeza que por mais complicado que pareça o desafio, por maior que seja a rejeição, tenho que permanecer com o meu livro aberto e constantemente atualizado.

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Superação

Rosária da Silveira Lima

No ano de um mil novecentos e setenta e um, dia vinte e dois de junho, às nove horas de uma manhã fria e chuvosa, nascia uma menina, cujo nome Rosária sua mãe teve o privilégio de escolher em homenagem à sua bisavó. Dos cinco filhos que Veronica teve, somente pôde escolher o nome desta menina. Os nomes dos outros filhos foram escolhidos pelo pai e pela avó materna. A vida desta família não foi nada fácil, a mãe trabalhava de doméstica, o pai não tinha um emprego fixo, fazia “bicos”. Com certa insistência de Veronica, João, seu esposo, começou a trabalhar na Polícia Militar. Era para a situação financeira da família melhorar, se não fosse o envolvimento de João com a bebida. Foram anos difíceis para a família, mas Veronica, uma mulher de fé e de muita fibra, incentivou seus filhos a buscarem nos estudos uma oportunidade de mudança de vida. En-

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tão, todos os filhos foram matriculados na escola. Os primeiros dias na escola foram terríveis, todas as outras crianças olhavam para Rosária como se ela fosse uma aberração, pois a menina ficou parada no meio do pátio, chorando, por não saber onde era sua sala. Foi então que apareceu uma pessoa que pegou na mão de Rosária e a levou para a sala de aula e pouco tempo depois ela pôde perceber que aquela mulher era a sua Professora. Aquela tarde foi terrível. No dia seguinte, claro que a menina não queria ir para a escola, pois o que lhe vinha na mente era a cena do dia anterior. Mesmo sem nenhum amigo, sua mãe, com toda sabedoria, convenceu a filha a ir para a escola, e ela foi. Os anos se passaram, Rosária se adaptou, mas sofreu muito preconceito por ser uma aluna negra, entretanto, sua mãe preparou os filhos para este enfrentamento, sempre motivando e elevando a autoestima dos mesmos. Depois de algum tempo, o sonho de Veronica se concretizou, por meio de uma das filhas: Rosária, então, se formou no magistério, por incentivo de sua mãe. Quando jovem, ela queria ser professora, mas devido à situação financeira que Veronica enfrentou em sua vida, não conseguiu terminar seus estudos, ou melhor, estudou até a quarta série. Mesmo não tendo estudos, Veronica foi a primeira mentora na vida de sua filha. Rosária então terminou o magistério e começou a trabalhar. Agora formada, Rosária recorda das professoras que fizeram a diferença em sua vida e na vida de outras crianças de forma positiva e/ou negativa. Lembra-se da professora da terceira série do ensino fundamental, que tinha este olhar de empatia para com seus estudantes, sempre envolvia todos em suas atividades, e quando um aluno não queria pegar na sua mão, por ser negra, ela vinha e segurava com todo o carinho a mão da aluna negra. Com esta professora e em suas aulas, os alunos aprenderam a respeitar e aceitar a diversidade. A professora da 3ª série, Maria Vitória, todo o final de aula tocava violão e cantava. Então Ro-

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sária aprendeu a tocar violão, fez aula de canto e utiliza estes instrumentos para enriquecer suas aulas e, quem sabe, despertar em seus alunos o mesmo que sua professora fez. Já na quinta séria, na aula de Educação Física, gostava muito de participar dos jogos, porém, dificilmente participava dos campeonatos, porque nenhum time escolhia o aluno pobre, obeso, negro. Recorda que o professor não fazia nenhuma interferência, simplesmente saia de perto e voltava quando tudo estava resolvido à maneira dos alunos. São muitos momentos de preconceitos vivenciados durante a vida estudantil de Rosária que poderiam ser relatados, de modo algum se vitimando. E desta forma Rosária passou a observar as práticas pedagógicas dos colégios / escolas por onde trabalhou e trabalha e constatou que alguns profissionais da educação estão “perdidos” em suas práticas docentes, isto é, estão buscando contribuir de alguma forma na formação intelectual dos discentes de uma forma que julga não ser correta. Nesta busca por contribuir, os docentes deixam de rever suas práticas pedagógicas e avaliar se estas incluem ou excluem os estudantes negros, os participantes de matriz africana, os imigrantes africanos com sotaque, entre outros. Preocupados em cumprir com os conteúdos programados, a sensibilidade, a afetividade e a empatia não estão sendo vivenciadas nas práticas pedagógicas. Hoje formada em Pedagogia pela Universidade Federal do Paraná, com Especialização em Psicopedagogia pela IBEPX e Educação para Relações Étnicos Raciais – UFPR, Rosária ainda busca por meio dos estudos aprimorar sua metodologia e realizar seus sonhos de poder contribuir para a formação intelectual e emocional de seus alunos. Principalmente dos que ainda são, de alguma forma, discriminados por seus colegas, pela sociedade e principalmente pelos professores, que de forma sutil, acabam por discriminar seus alunos a partir de suas práticas pedagógicas.

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O conselho de meu pai Luiz Carlos Betenheuser Junior Quase meio século. Um bom tempo se passou desde que em 1974 nós nos encontramos lá no Instituto dos Cegos, ali no Boa Vista. Naquele tempo, aquela região era quase que uma bandeira da Inglaterra em verde – das matas – e marrom – das ruas de saibro que cruzavam o horizonte. Um das de saibro, a Nossa Senhora de Nazaré, toda marrom do início ao fim, lá no alto da Fernando de Noronha. Uma Curitiba que já não existe mais, apesar de que parte dela ainda existe, mas de um jeito diferente. Na vizinhança, o “Bosque dos Cegos”, atualmente chamado de Bosque Martim Lutero. Foi ali que o garotinho de cabelo liso e corte na franja do tipo índio entrou na sala do Jardim de Infância do Instituto dos Cegos. Entrou calado, ficou quieto, saiu em silêncio, como se estivesse analisando o novo ambiente e os vizinhos de carteiras. Luiz morava há duas quadras dali e a família mudarase há pouco, vindo das Vilas Oficinas (do Cajuru, saíram do Oeste rumo ao Norte de Curitiba). O já conhecido trem agora Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná

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também passava por perto e o apito, que soava bem cedinho, era sinal de acordar. A primeira vez que nos vimos, lá entre as Araucárias do Bosque, vi um garoto reservado, quase tímido, muito obediente. Pelo visto, os ensinamentos dos rigorosos pai e mãe deram resultado, apesar de introspectivo, tinha seu jeito companheiro de tratar os colegas da turma. Esse jeito amigo era fruto da influente avó Tereza, aquela “bugra” que veio das matas de Guaraqueçaba. A sábia Tereza era filha de índios, analfabeta, cozinheira e lavadeira, trabalhava para cuidar das duas filhas e do marido que fora vítima de um AVC quase fulminante, que o deixou por 13 anos numa cama, sem falar nada. A “vó” era a “dona da casa” quando a mãe levava uns 40 cadernos corrigidos para a aula, enquanto o pai ia com a pasta 007 para o Banestado. Ela e o próprio Luiz sabiam: quando pai e mãe não estavam em casa, quem mandava era a avó e era ela quem se encarregava de ver o neto mexer nos lápis e cadernos. Em 1975, mudança de ares: agora lá no Cristo Rei, no Colégio Lins de Vasconcellos. Lá a turma era chamada pelos pais por Prézinho, o Pré-Primário do colégio. E quem dava as cartas – no giz e quadro verde – era a Professora Beatriz. Ela era dona de uma calma enorme, voz tranquila, seu batom rosa escuro, cabelos castanhos claros, bem lisos, quem mostrava à turma os primeiros passos de escrita no método Abelhinha, o abecedário em formato de animais e objetos para relacionar à letra escrita o seu som. O Lins foi uma vida, longos 13 anos, do Prézinho, até se formar no Propedêutico, em 1986, numa turma com dois formandos, ele e o João Heitor. Em mais de uma década, muitos amigos inesquecíveis: o Iuri, o primeiro amigo, que morava perto do Cindacta; o Manoel; o Mário; os irmãos Décio e Lúcio; os dois Rogérios (um Barcellos, um Casado, ambos super bagunceiros); a Debora; e o Marcelo Brasil. Naquela turma foram tantas outras histórias, com colegas de

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classe, com professores que ficaram na memória de todos eles, passando pela Tia Ceci, a Tia do sino (o sinal de que começara e terminara o recreio) e pelo inspetor Rubens, famoso por ter vindo do Exército e lá no Lins colocar a turma em ordem (unida, literalmente). Tinha o Héricles, com quem fez dupla de melhor comportamento da escola toda. E Héricles ganhou por não ter tido aquele único amarelo, que o Luiz nunca esqueceu e nem perdoou a Professora do 4º ano, a Vera, que o mudou de lugar porque o Francisco não parava de falar lá na última carteira. E quando o Luiz foi lá sentar na frente dele, ele também não parou de falar com o Luiz... Aqueles quatro dias antes da avaliação de sexta-feira lhe renderam a única nota amarela no comportamento da vida dele, do 1º ao 4º ano. No Lins, foi vereador da Cidade Mirim, indicado e votado em massa pelos colegas da sala. Eu não me lembro o ano, nem sei se ele se lembra... A Cidade Mirim era um espaço com ruas e casinhas de madeiras, cada uma delas com uma atividade, representando uma cidade, com sua biblioteca e lojinhas, por exemplo. A cidade era uma vinculação ao sistema organizacional ensinado nas aulas de Educação Moral e Cívica. Ser vereador mirim, assim como ser prefeito – quem acabou sendo o prefeito eleito aquele ano foi o Edno, irmão do Marcelo Moreira -, era na prática um cargo realmente simbólico, já que os processos legislativos e executivos não passavam pelas mãos e cabeças das crianças e sim dos adultos. A experiência valeu mais por ter sido indicado pela turma – sem nunca ter se oferecido – e a demonstração de carinho que expressara. O Luiz nunca foi “O aluno nota 10”, o primeiro da turma (a Luciana foi e hoje ela é médica). Esforçado, foi um aluno nota 7, às vezes 8, algumas vezes um nove ou até um dez. Poucas vezes ficou de recuperação. Aprendera com a mãe a fazer a lição de casa logo depois de chegar da aula,

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assim como aprendera com o pai a sempre fazer os trabalhos de casa, pois foi assim que o pai, enquanto estudante, ganhava pontos e aumentava suas médias escolares. Na oitava série veio aquele turbilhão de mudanças. Eu acho que eram os hormônios dele. O Luiz passou a ser mais questionador, indagador, quase que com ares de “revolucionário”. Talvez a mudança tivesse uma inspiração vinda de umas notas e uns acordes do Iron Maiden. O ano era 1982 e o disco “Maiden in Japan” iria mudar a vida dele. Num tempo em que Curitiba era muito AM e pouco FM, aquele disco dos ingleses trouxe novidades até então inimagináveis em termos musicais. Aquela oitava foi a série mais divertida de toda a história do Lins, ninguém tem dúvida. Até hoje, quando aquela turma se reúne, riem até chorar lembrando das bagunças. Pense em algo como “Vivendo a vida adoidado”, misturado com o enredo de “O Clube dos Cinco”. Então, era a “Oitava do Lins”. Depois dela, nunca mais o colégio foi o mesmo. Na oitava, veio a primeira experiência em escrever. Era o jornal da turma, o Napalm. O nome, escolhido pelo Marcelo Brasil, tinha tiro certo: queimar o sistema, do alto a baixo. Era um tempo em que o Maurício Lemanski e o Hélio Barreto eram os punks moicanos (como em “Let’s start a war said Maggie one day”), mas os Heavies eram maioria na sala. Naquela Oitava, a professora de Biologia resolveu fazer um trabalho valendo nota. Ali, uma decepção com o modelo padrão do sistema: uma nota 4, quando sugeriu no cartaz que “Fumar emagrece”. O cartaz tinha uma foto de uma múmia – sem bandagens, uma foto de um exemplar da revista Planeta -, com o rosto todo seco e carcomido. A múmia era o “magrinho” fumante. Fazer aquele trabalho era como tirar um peso dos ombros, um desabafo de tantos anos vendo o pai fumar. O combate ao fumo sempre foi um dos motivos da luta de Luiz,

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pois o pai, na época um fumante compulsivo, sofreu e ainda sofre com os malefícios do cigarro, mesmo sendo um exfumante desde 1986. As memórias foram tão fortes que em toda a vida, nenhuma vez Luiz colocou um cigarro na boca. Luiz me contou que a ideia naquele cartaz era a de chocar, propositalmente, com a realidade nua e crua, como as palavras de Nelson Rodrigues. Chocar sim, pois só assim para incentivar as pessoas a não fumarem. Aquela ideia valeu um quatro em dez. Anos depois, Luiz viu os publicitários ganharam muito dinheiro com ideias parecidas nos maços dos cigarros. Ele nunca esqueceu aquele quatro, professora... Veio o tal Propedêutico. Nós sempre achamos um nome estranho para um curso. Um curso que começou numa turma grande e que, com passar dos anos, aquele timaço de bola que o Lins formara em 1975, 1976, acabou se esfacelando pela ordem natural das coisas, com os pais procurando os gigantes de época - Dom Bosco ou Positivo -, tudo em nome de passar no vestibular. Ou então, aqueles que não eram nada ligados ao estudo, seguindo para o velho Metropolitano, aquele do “Pagou, passou”. Enfim, foi assim, como o futebol moderno: uns seguindo à Europa, outros rumo à Segunda Divisão. Em 1986, João e Luiz se formaram junto com as alunas do Magistério. Dali, vestibular no fim do ano, na UFPR. Um dia Luiz me confidenciara que se achava um cara de sorte. Passou na estica na Federal, o número 50 entre os cinquenta. Zerou em Física, mas foi muito bem na redação e aquela nota mágica elevou a média e ele entrou pela porta da frente na Universidade. Com 17, agora era um adolescente que não sabia ao certo o motivo de ter ido para Administração. Talvez por nunca ter ido bem em Física, talvez porque seu pai era muito organizado no trabalho e o Banco fez parte dos primeiros anos de vida dele. Literalmente.

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Dos cinquenta, dois não tinham ganho o carro por ter passado na Federal e naqueles tempo, ganhar um carro por passar na Federal parecia até promessa de pai curitibano nos anos 80’. E a Curitiba dos 80’ se parece muito da Curitiba atual: uma dose extra de intolerância contra quem ficar de fora do estereótipo padrão do bom mocismo bem comportando, até nas roupas, dos pés à cabeça. Aquele cabeludo, fã de Heavy Metal, estava mais deslocado na turma do que uma cebola em uma salada de frutas. Sei que Luiz não conta para muita gente, mas eu sei que ele ia a caráter, vestido com as camisetas de bandas, só para incomodar os mais esnobes da turma, que só falavam com ele os protocolares “Oi” e por vezes, raras vezes, “Tchau”, ambos sem exclamação. E a resposta é sim, parecia ser proposital não terem as exclamações naquelas interjeições recebidas. O primeiro ano de UFPR foi difícil. Acordar cedo, pegar ônibus, andar uma boa caminhada para chegar às 7h30, com aquela pasta azul e branca. Sem amigos de turma, praticamente sozinho, teve que se virar para anotar tudo o que escrevia o professor de TGA (não sei se o Luiz se lembra ao certo se era Arno o nome dele...). Aquela letra que a dona Linda insistentemente o treinou no caderno de caligrafia, letra de desenho, se transformou rapidamente nos mais terríveis garranchos que faziam inveja a um ponteiro de sismógrafo numa alta da escala Richter. O primeiro ano de Federal também foi pesaroso. Entre greves, aquelas intermináveis filas para aquele xérox horrível, barulhento e que nunca foi consertado, os veteranos entre mesas, cigarros, jogos de truco, banheiros sem papel higiênico e todo aquele ambiente que o fazia se sentir como um extraterrestre caído na Terra, o fizeram repensar a Administração. Luiz pensou: “Ano que vem serei jornalista!”. Luiz bem que tentou, mas voltar ao estilo de vida de cursinho no Dom Bosco era, sem dúvida, o fim. Não conseguiu nem

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terminar o cursinho, quanto mais tentar o novo vestibular. Perdera um ano assim. Ao retornar à Federal, outra turma. E, dessa vez, pelo menos três pessoas falavam com ele: o Paulo César, o PC (amigo até hoje, trabalham juntos), a carioca Marta e a senhora Terezinha. Faziam os trabalhos juntos, pois eram como uma ilha isolada naquela turma. Pelo menos, dessa vez, o exílio não foi sozinho, havia companhia. Na Federal, conhecera a primeira (e única) reprovação. Estatística não era a dele, nós dois sabíamos. Mas foi na Federal que conhecera um dos mais inspiradores professores, o de Administração de Materiais, Paulo Kruger, que se tornou um amigo pela vida. Fez com ele o Estágio Supervisionado na Secretaria de Administração da Prefeitura. Luiz, sem conseguir estágios – nos 80’ não era fácil vestir Heavy Metal em Curitiba - ficou batendo de porta em porta, sem sucesso. Foi então que um dia o amigo do pai, Gerson Guelmann, conseguiu abrir as portas de um estágio. Um estágio de um ano e nove meses avaliado como “Muito bom” e uma nota 9,6. Eu acho que sei o porquê não tirou um dez: como não tinha carro, estagiário tinha que ir andando para economizar dinheiro e chegava atrasado uns 15 minutos nas reuniões de avaliação com o Professor Paulo. Rigoroso, ele cobrava do Luiz: “Nosso horário não era duas da tarde? Está atrasado quinze minutos”. Aquele foi um dos aprendizados que ficou pela vida, pois o Luiz dificilmente chega atrasado no trabalho. Valeu à pena, pela dor – como ensinara o também professor Mauri, de Direito, que na vida só tem dois jeitos de se aprender: no amor, ou na dor. A gente escolhe e Luiz escolheu o caminho do amor. O curso estava acabando quando veio mais uma lição de vida. Eu - nem o Luiz – não lembramos do nome do professor, mas nós dois não esquecemos daquele fim de ano.

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Logo na primeira aula daquele ano fomos todos avisados que aquelas aulas começariam sempre, impreterivelmente, às 7 e 30 em ponto. E foi assim o ano todo. Já lá em dezembro, vindo atrasado da caminhada do ponto ali perto da Praça Tiradentes até o Prédio Dom Pedro I, ao abrir a porta, Luiz não viu ninguém na sala. Quer dizer, quase ninguém: o professor estava lá, de pé, escrevendo. E a metade do quadro já estava com branco sobre o verde. Novamente, anotação mental para a vida: “Sempre chegue antes do horário”. No último ano de Federal, o único 10, justamente naquela que era tida como a mais difícil matéria do curso: a temida Administração Financeira II. Precisava de 9,4 para passar direto e era tudo o que o Luiz mais queria. Ele passou a madrugada fazendo e refazendo, novamente refazendo todos os exercícios. Literalmente, todos. Foi à aula, fez a prova e foi para casa dormir. Na aula seguinte, quando o professor trouxe as notas, antes de contar quais foram, fez a célebre frase: “Tivemos um dez”. E naquele ano, naquela matéria, nenhuma nota 10 havia sido atingida durante todo aquele longo ano. Entreolhamonos, imaginando quem seria. Quando o professor falou o nome do felizardo, Luiz não sabia se sorria ou se chorava, pois era o seu nome. Então, sorriu, de leve, entre os 90% dos boquiabertos que não pareciam acreditar, afinal, ele não era o aluno dez da turma... Alívio: enfim, estava livre. Ou, praticamente. Conto depois. E foi assim, tempos depois, que a secretária Rosana, da Coordenação do Curso, já tinha ligado para ele, dizendo que o estágio era de um ano, não de dois, que Luiz precisava concluir o Estágio Supervisionado e, então, se formar. Projeto datilografado – naquele tempo, ainda era útil os aprendizados do curso de datilografia da Olivetti, ali na Saldanha Marinho -, projeto entregue. Nota lançada, curso encerrado. Quer dizer, quase, pois faltava receber o canudo e podia mandar pelo Correio.

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Luiz dizia para si mesmo que só queria seguir em frente, encerrar um ciclo doloroso e difícil. Mas a Rosana insistia e até exigiu. E ela era tão gentil que ao exigir, ele viu que o negócio era sério: “Você vem aqui, vou marcar com o Reitor e você irá receber, sim, o teu diploma”. Assim seria, assim acabou sendo: Luiz recebeu o diploma na sala do Reitor, com a Rosana toda sorridente. Foi bacana ele ter visto a felicidade dela em acompanhar mais um formando. Acabou sendo um bonito final feliz para uma história não tão fácil antes do fim... Eu vi quando Luiz, em 1992, começava nova etapa na vida. Vi quando ele entrou na Prefeitura. Cara de sorte: um dos últimos chamados naquela que fora a última chamada do último concurso realizado. Era 09 de novembro, ele vestia tênis, um jeans surrado e uma camisa do Misfits “Green Hell”. A área era a Financeira. Um parêntese: diz a lenda que a ida para a Administração teria sido “vetada” por uma divergência entre o antigo Diretor de onde Luiz fez o estágio e um dos Superintendentes. Não sei ao certo, mas sei que a nomeação ocorreu na Finanças. Era a entrada no mundo profissional – dessa vez, com “carteira assinada”, já que nos 90’, ser estagiário no Banco do Brasil em São José dos Pinhais, e depois na Curitiba Centro, não lhe valeu para assinar carteira. Estar trabalhando ali lhe trouxe um novo sentido à vida. Assim como novas portas se abriram, verdades desconhecidas (outras, escondidas) também apareceram. E a porta aberta trouxe a visão de um mundo nublado... A nova etapa também mostrou um erro: o de ter parado de estudar, para só trabalhar. Pai Luiz sempre falava para o Luiz: “Estude, estude, não pare de estudar. Faça cursos, faça concursos”. Luiz aprenderia décadas depois, e pela dor, o significado de não seguir os conselhos do pai. Só em 2000 é que Luiz voltaria a estudar, concluindo uma pós na PUC PR no ano seguinte. Era uma de Gestão

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Pública. Não foi fácil estudar à noite, depois de um dia estafante de trabalho, com terno e gravata, cruzar a cidade para estudar. Foi um ano de pressões e superações, pois a família crescera com o nascimento da segunda filha e as obrigações familiares cresceram proporcionalmente. Ariano, super teimoso – ou seria uma dose extra de burrice? -, Luiz não aprendera, pois novamente parou de estudar. Eram as filhas, era a vida de casado – encerrada em 2005 -, era a correria de ter chefias desde o fim do primeiro ano de trabalho. Tantas vezes Luiz me explicou: “Não tenho tempo, não tenho tempo, a chefia consome o relógio”. E tantas vezes eu lhe dizia: “Lembre-se do conselho do pai”. Ariano é sempre assim, tão teimooooooso. Foi então, em 2013, que Luiz viria a conhecer uma nova lição de vida, dessa vez ao cuidar do Financeiro da Fundação de Ação Social (FAS). Na Assistência Social, os horrores de um Goya curitibano visto a olhos bem, bem abertos. A dor da desgraça humana, no seu maior estágio, aliada às oportunidades de mostrar a transparência aos fiscalizadores dos quatro Conselhos Municipais da área de assistência social e o convívio com professoras universitárias que lá estavam na FAS, o incentivaram a dar aulas. Diziam elas que ele levava jeito, mas ele desconfiava. Foi o antigo professor - e para sempre amigo Paulo Kruguer -, que o convidou para dar duas aulas na Federal no fim de 2016. Dali, nova porta aberta, a de estudar para ser professor. Aquela experiência de sala de aula fez o Luiz pensar definitivamente em se arriscar no mundo acadêmico, depois de receber um elogio daquele rigoroso professor. Era diferente, o mundo acadêmico lhe trouxera energia nova, renovada, revigorada. A adrenalina estava de volta. O 2017 surgiu com portas escancaradas. Eu sabia que dessa vez Luiz aprendera: seguiu em frente daquelas portas, de volta aos estudos. Começou o ano fazendo um curso no

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Itecne para o Magistério voltado ao Ensino Superior. E foi lá, justamente no último dia de curso, que o colega de turma, o Jessé avisou (Luiz achou que poucos deram atenção para ele): “Pessoal, o NEAB da Federal abriu um edital para um preparatório ao mestrado”. Um ano antes Luiz tentara o Mestrado da UFPR e da UTFPR e foi feio. Foi mal na prova da UTFPR, acertando menos da metade, 17 de 40 questões. Na Federal, não passou também. Então, pensou: “Será? Será que é possível?”. Foi lá no site e viu o Edital. Baixou o arquivo e abriu-o: tinha regra específica para os públicos-alvo dos candidatos... Na primeira leitura, pensou que estava fora. Foi dormir, já cansado. E aí que a Vozinha Tereza – que abraçada com a Avó Adília, lá do Céu –, veio para ele e lhe sussurrou durante o sono: “Você tem sangue índio, meu neto...”. Logo cedo Luiz acordou e foi falar com a mãe. Procurava pelos documentos da avó falecida. Ao ver o RG da Dona Tereza, lá dizia: nascimento em Guaraqueçaba. Ora, ora, Tereza, de 1935, nascida de parteira, no meio do mato do litoral paranaense, uma analfabeta de sangue índio. E assim, autodeclarado indígena, Luiz também o é. Foi no penúltimo dia, uma sexta-feira, à noite, quase terminando aquele dia, que a inscrição do Edital foi feita. Restava aguardar. E torcer. Como as coisas não são fáceis para ele, o Luiz teve que esperar mais dias até o resultado, pois a Comissão Organizadora ampliou o prazo de inscrição. No dia da divulgação, ansioso, Luiz foi várias vezes ao site para ver se lá estava o resultado..., mas nada dele, nada de sair a lista! Demorou uma eternidade, talvez um pouco menos, ele me dissera depois. Foi então que o coração bateu forte e feliz: o nome dele estava lá! Começava ali uma nova linha no Lattes do Luiz... Sabe, fico aqui pensando aqui comigo: eu não sei aonde a história dele vai terminar, mas sei que ele me prometeu que Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná

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depois dessa chance não vai parar de estudar. E eu sei o motivo: a adrenalina voltou a correr pelo sangue, meio índio, meio alemão, meio cidadão do mundo, uma mistura de tantas cores e bandeiras. A Academia lhe trouxe novamente aquela juventude então perdida. Já avisou à inspiradora namorada, Elizabete, a “Estrela dos sonhos”, avisou também às filhas amadas, Monique e Desirée, “Raison d’Être” dele, seus santuários, avisou ao amigo PC. Avisou tantas vezes para ele seguir o caminho da Academia, que o PC já fez o seu Lattes, se inscreveu numa pós-graduação e nela também passou: agora ambos estariam de volta aos estudos, depois de tanto tempo. Mais ano, menos ano, haverá de ter um projeto aprovado para Mestrado. Até lá, está valendo estudar mais e mais e mais. E quem sabe, dar aula, ou ser convidado para um grupo de pesquisa da Federal [e isso veio a ocorrer, semanas depois]. Não sei, nem ele sabe o que estará por vir. Mas o aprendizado ficou: “Filho, estude, estude, estude. Nunca pare de estudar”. Dessa vez Luiz ouviu o conselho do pai amado.

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Se eu fosse viado preto libertário Rodrigo Henrique de Jesus Nascimento Talvez, mas só talvez, não tivéssemos um sério problema de escrita. Parece que só nós temos esse dolorido problema, não para escrever, mas para criar. Podemos ser imaginativos, contudo, não o suficiente para parecer brilhante como todos os outros parecem. Porém, há alguns encontros e algumas coincidências que fazem essa questão melhorar. Vamos a elas. Ao refletirmos sobre a nossa história, pensamos que o que pode ter piorado essa condição é o medo de nos expor a qualquer situação que nos pareça constrangedora. Aí encontramos o problema, o grande problema. Lá na infância, lá na escola, em todas as salas de aula pelas quais passamos com todas as pessoas com quem convivemos, o medo de ser percebido pelos outros, do ridículo, da introspecção, da dificuldade de ser e fazer amigos Sempre tivemos facilidade de fazer amigas, pois preferimos a companhia das meninas e mulheres. Por quê? Você descobrirá em seguida, ou então, já descobriu, vai depender do seu feeling.

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Sofrendo na escola, sentimos a necessidade de ser um aluno nota 10. Pronto! Assim expostos, ser um bom aluno nos coloca em um lugar de destaque nem sempre interessante em função das cobranças e normas sociais. Dessa forma, passamos a sermos chamados de nerds, estranhos, afeminados, espertinhos, entre tantos outros nomes que a violência da maneira mais criativa inventou. E desse modo impressionante e espantoso, a violência causou muitas dores e aumentou o medo. Aqui surge outra questão, quem defende as crianças afeminadas na escola? Ninguém, não sabem fazer isso. Todo o fundamental passamos assim: legado à indiferença. Pode-se dizer que já esquecemos? Ou que algum dia esqueceremos disso? Prontamente digo que não! Pois, apesar de não nos considerarmos criativos, temos memória e cicatrizes. As amigas, desbravas, por gostarem e andarem com o menino afeminado, ajudaram-nos a evoluir. Andando conosco na escola, foram nossas companhias na sala de aula. Sim, gays gostam da companhia das mulheres, particularmente amamos as mulheres, pois elas parecem aceitar os nossos jeitos e trejeitos. Adolescentes, puberdade, desejos e trabalho, outra fase do “desenvolvimento”. Encontramos o primeiro trabalho e lá, outro lugar para nos sentirmos expostos. Novamente os colegas, com suas normas preconcebidas nos subalternizaram pelo nosso jeito de ser. Por isso, desenvolvemo-nos com muitas aspas. Parece que por sermos o que somos, não temos o direito de nos tornarmos quem desejaríamos ser. Assim, ouvimos com frequência: para com esse jeito! Incomoda as estruturas, opressão. Como dito anteriormente, a violência se manifesta de formas criativas, impressiona e causa medo. Por isso, encontramos refúgio no silêncio. Sem amigos(as) ou mesmo colegas, escondemos a nossa identidade e aquilo que constituímos enquanto individualidade. Até

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aqui, escola e trabalho evidenciam um desafio constante de pertencer. “Comecei por safadeza”, é a frase de Amara Moira no livro “Se eu fosse puta” (2016). Ela descreve bem como começamos a descobrir quem somos, meninos e meninas, negros e negras, bichas, lésbicas, bissexuais, pansexuais, trans ou cis, transitamos entre afeminados e “machinhos” ao gosto, e saímos com o primeiro, segundo e terceiro... homem. Tudo se explica! A estranheza sentida é igual à que a própria sociedade quer como estranha, o corpo estranho. Na narrativa autobiográfica de Amara, que trata de seus casos com homens, uma palavra pode significar tudo, “lixo”, assim somos tratadas/os por sermos quem aspiramos ser. Ainda que ser, desde o princípio, nunca fora sinônimo de liberdade, já que os processos sentenciados pelas instituições de saber e poder, respectivamente escola e trabalho, inter-relacionam-se nas práticas sociais, subjugando a diversidade. Assim, encontramos na literatura muita inspiração, inclusive significados. E por gostar das mulheres (especialmente as revolucionárias), Clarice nos inspira nesta narrativa ao perguntar: “Se eu fosse eu?” Como nos sentimos, sente? Ela diz: “E não me sinto bem”. Depois de ler até aqui, como sentiu se? Resistência foi algo que aprendemos nos enfrentamentos diários, cotidianos e reais, não sempre e dificilmente pela escola. Presente, e muito, na educação regular e universitária. O racismo, a homofobia, a classe não tão privilegiada, nos subscreveram como acadêmicos, ao mesmo tempo que precisavam ser superados os obstáculos. Ao concluir a graduação, inegavelmente veio a felicidade em sermos um título, que não mostra as inúmeras vezes que nos pressionavam a querer desistir e tornarmo-nos “evadidos”. Em evasão se apagam as inúmeras violências que nos levam a desejar sair de um lugar que não nos acolhe. Resistência ao

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sermos prounistas e cotistas, e por muitos anos a permanência foi necessária. Lembrar todos os dias, por exemplo, os dados de encarceramento e genocídio da população jovem e preta desse país. Para tanto, buscamos praticar mais a escrita, principalmente por motivos acadêmicos. Praticar ao mesmo tempo uma escrita de si, como construção da liberdade, e de um eu-nós, sujeitos coletivos. Um compromisso políticoexistencial que pretende defender essa condição com um projeto de Mestrado. Isto é, se ingressarmos no programa de pós-graduação, todos os que defendemos ingressam numa só voz que grita por desafios. Concluímos esta narrativa autobiográfica com Lispector, que sabiamente nos diz: “Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada no novo desconhecido.

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Como, porque e o que lemos Paula Tatyane Cardozo Stemberg Aprendemos a ler aos 6 (seis) anos de idade, com alguém, e todo o mundo, nalgum lugar e em todos eles. Apesar de nos lembrarmos dos nomes de cada uma daquelas mulheres e homens que nos permearam no início da vida menos distorcida, aparentemente o processo que nós passamos para começarmos a ler e escrever foi tão natural qual foi escrever a primeira frase deste nosso discurso. Sabemos que talvez isto soe como pretensa soberba, mas alertamos aos interlocutores que menos ‘talvez isto’ não passe de triste “desmemorificação” ou infeliz esquecimento. Fato é que nós aprendemos a ler. E só lembramos que aprender esta arte não pode ser sozinho, já que a língua só existe para comunicar algo a alguém, e o texto, falado ou expresso, é apenas a forma de estabelecer esta comunicação. Assim foi que conjuntamente aprendemos que o conjunto dos significantes traz luz ao significado. Mas para chegarmos a este entendimento, precisamos aprender que “B” + “A” faz o som “BA”, que apesar de nada significar, quer

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dizer que há uma regra necessária para a leitura, representada pelos sons, ou pela representação gráfica imprecisa deles. No fundo no fundo, o que entendemos era que cada posição gráfica tinha uma regra de som, e como toda boa regra, tinha suas exceções, então, bom saber as exceções, porque delas muitas vezes se extraem as regras. Quando os sons fizessem sentido, Tcharam! Lá estaria um lindo significado, como “BALA” ou “BALÃO”. Palavras super úteis no dia-a-dia! Pois é. Entendemos que era preciso saber expressar nesta forma áudio/visual, se não nunca entenderiam que não gostávamos de BALA, mas de BOMBOM. E que tínhamos medo de BALÃO, mas jamais de AVIÃO! Aprendemos, antes de mais nada, a humildade de saber que não sabemos aquilo que não lemos, e foi assim que aprendemos a perguntar, porque algo de natural nos dizia que nada é porque simplesmente é, mas porque está. Se está, está hoje, e aqui. Talvez não ontem lá, ou amanhã acolá. Porém, nossa memória é refém daqueles dias mais impressionantes, como foi o de descobrir que sozinhos entendíamos o livro de capa com uma minhoca rosa de chapéu, anotaríamos a música da Sandy&Júnior que tanto amávamos e deixaríamos patenteado aquilo que eram os nossos sentimentos. A magia da leitura sempre foi saber que, apesar da condenação da incompletude da memória, poderíamos reviver aquilo que registraríamos. Assim foram diários e mais diários que escrevemos. A maioria para nunca mais reler. Com o passar dos anos, aprendemos que números também são significantes, e podem ser lidos, tal qual a lógica das realidades paralelas, desenhadas pelos loucos, como o exemplo da história da Sofia Amundsen.

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Aprendemos que existem várias realidades que podem ser letradas, e assim é que aprendemos que aquelas que nunca são lidas, são condenadas ao esquecimento, que em palavras menos poéticas, significa que são condenadas a morrer. Por isso lemos todos os dias os textos das vacas, dos porcos, dos peixes e até das medonhas aranhas. Não lemos o texto das galinhas e dos bezerros. Quando crescemos, aprendemos que além dos animais, gentes gostam de ser textos, e por isso aprendemos a ler o texto dos homens, que é sempre muito lindo, complicado, e as vezes chato. Também o texto das mulheres, gays e lésbicas que – pasmem, sexistas – é a mesma coisa! Depois de ter aprendido tudo isso, nós aprendemos a ler a violência e o infortúnio, que resumida em uma frase “está sem nunca ter razão de estar, mas só é se escolhemos deixa-la ser”. Agora estamos aprendendo a ler novas instituições velhas, e a escrever sob outro prisma as leituras e releituras que fizemos sobre a vida na ficção do Direito. Queremos ler tudo e todos, porém, a limitação de sermos humanos é que não podemos fazê-los ao mesmo tempo. Isto nos leva à conclusão de que, no fundo no fundo, a leitura é uma opção no tempo. Noutras palavras, leitura é exclusão: a gente lê o que quer.

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Dalzira Maria Aparecida Iyagunã: uma narrativa histórica Paula Tatyane Cardozo Stemberg

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Para fazê-lo, rememoro fatos e situações vividas que têm formado o campo em que vou constituindo conhecimentos, cito pessoas que dele fazem parte, menciono sábios do cotidiano e autores com seus pensamentos e ações abrindo-me horizontes, sempre mais amplos e distantes. Recomponho minha trajetória profissional, com o empenho de situar conteúdos vividos e pensados – ideológicos, políticos, teóricos, pedagógicos – os quais vêm orientando minhas escolhas e elaborações. Faço-o com intenção de compreender e influir em relações étnico-raciais que prendem os brasileiros em cadeias que têm sustentado opressões e impedindo a realização de muitos de nós, negras e negros. (Silva, 2011, p. 14).

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A motivação em escrever este artigo sobre a história de Dalzira é para falar um pouco de sua vida, sua infância, juventude e atualmente aos 76 anos da idade, da sua luta e sofrimento, mas sem perder o bom humor. Aparentemente ela soa como uma figura fechada, talvez antipática, mas na verdade, é apenas tímida. Há dias atrás, no mês de junho, ela teve uma grata surpresa: a visita de duas amigas que não se viam e nem se falavam há 50 anos. Durante este tempo, Dalzira e suas duas amigas, Ziza e Maria, não se viram, nem mesmo se falaram. Maria veio de uma viagem de 6 horas além de Cuiabá – MT, e Ziza, estava a mil quilômetros de Cuiabá. Foram momentos inenarráveis: um misto de carinho, alegria, risos, recordações, causos, lembranças da juventude distante e saudável. Mais do que conversar, elas se olhavam e sentiam, pois era mais importante sentir naquele momento. Queriam falar menos para não perderem tempo algum. Foram momentos lindos, inesquecíveis. Elas foram amigas de fato, a palavra racismo não fazia parte do vocabulário, eram apenas amigas e esta foi a maior marca de um elo amistoso de seis décadas entre Dalzira, Ziza e Maria durante uma vida toda. Dalzira acredita que a boa infância é a bússola para encontrar o caminho das coisas boas ou ruins. Ela teve uma infância singela para os moldes contemporâneos: mais criativa para a época. Talvez seja o que falta para os dias atuais. Dalzira conta que brincou muito: de casinha, boneca, cabana montada por ela e seus irmãos Nelson, Delcídio e Maria da Glória, além do primo Mário. Seu sonho era ter uma boneca que chorasse, um brinco de ouro, uma sombrinha e um uniforme escolar: blusa branca, saia azul-marinho e sapato preto. A boneca que chorasse tem relação com as amigas brancas cujos pais tinham posse; o brinco de ouro porque sua mãe tinha um par de brincos de ouro doado por sua patroa na adolescência e que ela guardava com muito carinho; a sombrinha porque o sol escaldante do interior

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paulista exigia; e a saia azul-marinho, como o uniforme das meninas que passavam para ir ao colégio da cidadezinha. Ela morava na cidade em que as áreas rurais invadiam a área urbana, por isso, as crianças uniformizadas passavam por ela para irem à escola. Talvez essa fosse a frustração de Dalzira por ter perdido a infância escolar, o que motivou o desejo de continuar estudando até os dias atuais. PARTE DA TRAJETÓRIA Em 17 de julho de 1941 nasceu Dalzira Maria Aparecida na cidade de Guaxupé, em Minas Gerais. Ela é a terceira filha do casal Maria Tomazia de Jesus e José Perciliano dos Santos. Saiu de Minas Gerais aos dois anos de idade indo com seus pais para São José do Rio Preto, em São Paulo, onde viveu até os sete anos. Em 1951, foi com sua família para Santa Mariana, Norte Velho do Paraná, em busca do “ouro preto”, o café. Seus pais trabalharam como colonos por dois anos em Santa Mariana, quando saíram de lá, migraram para Centenário do Sul. Nesta época, seu pai era cristão católico e congregado mariano, e por influência dele, Dalzira também entrou na irmandade das filhas de Maria. Ela morava a 12 km de distância da cidade. Aos domingos iam à Igreja matriz, mas a dificuldade era que tinham de caminhar a pé, por isso, levantavam às três horas da manhã para chegarem às sete na Igreja matriz para assistirem a missa de Padre Aurélio Basso, que ainda era rezada e cantada em latim. Era um momento de encantamento, talvez fosse a parte mais sedutora de tudo aquilo. Dalzira cantava no coral e era soprano. Enquanto os homens cantavam, as mulheres respondiam, era fascinante para uma adolescente de treze anos e de realidade rural. Na roça, tinham de tudo que a natureza pode oferecer, mas “o lúdico”, buscavam na cidade.

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Na cidade de Centenário existia as Imãs Pastorinhas. A casa delas era linda, com enormes vidraças e janelões, tinham piano e órgão. Um tempo depois, Dalzira e sua amiga Cidinha quiseram entrar para o convento e foram falar com a Irmã Marina. Elas já haviam ouvido dizer que pretas não poderiam entrar para o convento, e como Cidinha era a dita parda, elas decidiram então que era melhor a Cidinha conversar com a Irmã. Cidinha disse: “Irmã Marina, nós queremos entrar para o convento!” A irmã olhou e nada disse. Cidinha então perguntou: “Eu não poderei ir?” A Irmã olhou para ambas por alguns segundos e respondeu: “é... você já é bem escurinha não é!?” Cidinha e Dalzira se calaram e jamais falaram sobre o assunto novamente. Dalzira não disse nada a seus pais, guardando consigo sua revolta. Este fato marcou nela a primeira situação de racismo, agravado pelo fato de o preconceito ter ocorrido pela igreja que ela tanto servira! Daí pra frente ela criou um ódio de Deus, pois pensou que se a Irmã era representante de Deus e da Igreja, o que ela dizia era o pensamento de Deus. Então, perdeu o desejo por tudo que fizesse lembrar daquele dia nefasto. Após o ocorrido, Dalzira já não sentia mais vontade de rezar o terço em família. Seu pai lhe obrigava a rezar todas as noites, antes de dormir e antes dos almoços, no Natal e Ano Novo, o que ela detestava. Muitas vezes a mesa estava posta e Dalzira e seus irmãos rezavam com um olho nos assados e outro nas contas do terço. As contas pareciam infindáveis, pois eram cinquenta Ave Marias e cinco Pai Nossos, cinco Mistérios e ainda uma ladainha infindável. Somente após a reza podiam saborear todas as guloseimas da roça. Tempos bons aqueles. O ruim era conviver com a ferida criada pelo racismo. Certo dia, Dalzira e seus familiares migraram para a cidadezinha de nome Indianópolis, também no Paraná, para trabalhar como meeiro (quem trabalha em troca da metade do fruto do café). No final de quatro anos de trabalho, a geada de

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1955 matou o cafezal e o sonho dos seus pais. Foi a primeira vez na qual Dalzira viu seu pai chorar! Dois anos depois, seu pai conseguiu a tão sonhada terra própria e plantou seu cafezal. Foram anos duros. Ficaram lá até 1969, quando seu pai perdeu tudo com maus negócios e financiamento de banco. Assim, migraram para Umuarama, após longos anos na zona rural voltaram para a área urbana, onde moraram durante um ano. Lá faleceu a sua irmã Maria da Glória, quarta filha do casal, por erro médico. Nesse momento, Dalzira entrou numa depressão profunda. Foi quando ela escreveu uma carta pedindo ajuda ao seu irmão Delcidio, que já morava em Curitiba na época. Dalzira veio para Curitiba em busca de tratamento médico e acabou ficando até os dias atuais. Nessa trajetória toda, não foi alfabetizada na infância, somente na adolescência, por insistência de sua mãe que também não era alfabetizada. O pai da Dalzira dizia que filha mulher não precisava estudar, mas que devia manter-se ao lado do marido. Já a mãe dela dizia que quem não sabia ler e escrever era como um cego, que naquela época teria que ser conduzido por alguém. No fim, acabou sendo alfabetizada por seu pai. Diz ela que se lembra, como se fosse hoje, da cartilha que seu pai lhe deu, velha, dos anos 1950, e que tinha umas lições que diziam assim: “aranha, arranha, apanha”, “Lalá faz manha”, “Iyayá da sapatada na aranha”, “aranha, arranha, apanha”; depois: “ra-re-ri-ro-ru”. Mas a primeira palavra que ela leu, não tinha a letra “r” por sinal, foi a palavra “delícia”, que foi motivo de alegria imensa. Daí para frente, ela tomou gosto pela leitura. Após esta etapa teve três meses de aula no período noturno, à luz de lampião de querosene, com a sua meiga professora Olinda Scarabel. Houve uma longa interrupção em seus estudos. Só voltou a estudar doze anos mais tarde, no EJA. Com muita dificuldade teve que aprender a virar-se sozinha. Estudava em uma sala enorme, cheia de colegas e com apenas um

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professor. Às vezes, o professor passava vídeos, mas a maioria dos alunos assistia-os sem saber interpretar o sentido dos mesmos. Em 1986 ela iniciou no Candomblé, religião que lhe trouxe grandes mudanças tanto no pensar como no agir, sobretudo, no equilíbrio e compromisso com a sua ancestralidade. E em 1992 recebeu o Deká (chegou, alcançou), cargo este que lhe tornou Iyalorixá – zeladora do Axé. Na juventude aconteceram muitas lutas pela questão racial. Foi quando ela começou na militância no Movimento Negro. Aos 36 anos, com falecimento de sua tia, que foi assassinada pelo marido, Dalzira adotou os sete primos, que tinham idades de um ano e três meses até treze anos. Foi ajudada pela família e hoje estão todos criados. Em 2001 ela foi delegada do Movimento Negro pelo Grucon – Grupo de União e Consciência Negra – à África do Sul, na Conferência de Durban, que tinha como tema “Racismo, Xenofobia, Intolerância e outras formas correlatas”. Essa Conferência deu-lhe uma visão de como é possível transformar um sistema, um país ou uma mentalidade por meio de ideais, compromisso, diálogo, cultura e luta, por exemplo, através de políticas públicas. Mas, nesse período ela também entendeu que o final do apartheid não diminuiu o racismo, apenas o tornou velado. Prestou vestibular em 2003 incentivada por sua filha Rosilda e foi aprovava em Relações Internacionais (RI). O curso foi escolhido por ela, porque havia várias disciplinas interessantes, como a História da América Latina. Então, ela logo pensou “vamos falar de nós”, o que não se deu assim. No Brasil, pensamos e agimos sobre a América Latina como signatários à ótica estadunidense e não como os países hermanos. Em 2008 graduou-se em RI, o que foi motivo de festa para ela e toda a família. Festejou muito com seus parentes e amigos.

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Em 2011 foi aprovada no Mestrado em Tecnologia e Trabalho, na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), e em 2013 defendeu a sua dissertação, com o tema “Templo Religioso, natureza, os avanços tecnológicos: os saberes do Candomblé na contemporaneidade”, e foi aprovada com louvor. Hoje ela é Iyalorixá do Candomblé. Mora no Bairro Alto há 47 anos e percebe que, além do racismo, é preciso aprender a conviver driblando as novas estratégias, ora é a intolerância religiosa, ora é o racismo ambiental e a ignorância sobre a nossa história. Como mulher negra, mostra a importância da sua história por meio de seus exemplos, trabalho, estudos e ações cotidianas. Contribui para a construção deste pais com sua rica gastronomia, e com o suporte de tolerância entre o assédio moral dos seus ditos “senhores” em suportar ver seus filhos apanhando das frustradas “senhoras” da casa grande, e ainda por terem sido como brinquedos das crianças brancas no cotidiano do convívio, quando na maioria das vezes serviam de objeto sexual dos seus proprietários (donos de sujeitos e com suas cargas de ignorância, rudez e supostas pela condição submissa imposta pela escravização). Mesmo assim, estas mulheres negras não perderam a doçura. Na senzala, com tudo isso, elas cuidaram dos filhos de seus “senhores”, amamentando–os e cantando as singelas cantigas de ninar como: Nana nenê, nenê do caruru, o pato o marreco, a Galinha e o Peru. E assim as crianças adormeciam. Elas sabiam contar estorinhas, brincar de pinhé (que era uma brincadeira de bater as mãos ritmadas entre duas crianças), casinha, comidinha, corta corta machadinho, que pau é este (era onde a criança aprendiam as qualidades das madeiras regionais. E hoje as mulheres negras estão começando a se reestruturar: na academia, na tecnologia, na ciência, no judiciário, na arte, na chefia de família, e o

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melhor, na autonomia do poder falar. As Ações Afirmativas e as lutas do Movimento Social Negro estão mudando a história das mulheres negras no Brasil e na diáspora. REFERÊNCIAS SILVA, P. B. G. e. Entre Brasil e África: construindo conhecimento e militância. Belo Horizonte: Mazza, 2011.

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Calma! No final, tudo vai dar certo! Maria Patricia Celestino de Oliveira Nascida em uma família humilde, de pais com baixa escolaridade, a menina Maria Patricia é a caçula de cinco irmãos. Para que seus pais pudessem trabalhar, ela começou a ser deixada na creche desde muito pequena, com quatro meses de idade. A creche ficava no bairro turístico de Santa Felicidade, próxima de onde moravam. Menina determinada, teimosa e indócil, deu muito trabalho quando criança. Na creche cresceu e teve seus primeiros estímulos e foi por volta dos 4 anos que começou a escrever seu nome. Menina de pele escura, cabelo “ruim”, geniosa, desde cedo veio ao mundo pra “causar”. Aos 5 anos, quando Maria Patricia foi para Escola Municipal dos Vinhedos, buscou conquistar seu espaço, e por ser muito sorridente, conquistou uma porção de gente nessa nova escola. Ali, ela conseguia até um lanche a mais com as merendeiras. Mas como era uma criança curiosa, tinha que

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explorar e absorver o máximo que pudesse dentro e fora da escola. O farol do saber foi seu deslumbramento literário, computador foi sua maior descoberta tecnológica, pois era caro e não tinha em casa, tudo que tinha na escola chegava à sua casa por meio de suas palavras e de seu olhar. Nessa escola ficou por 5 anos, um ano a mais do que o previsto, já que por não dominar a tabuada, ela teve que repetir a primeira série do Ensino Fundamental. Seu pai faleceu ela quando tinha 8 anos e naquela ocasião a menina se deparou com sentimentos que jamais imaginava. Depois de um tempo, pensar em seu pai foi um fator motivacional para continuar seguindo seus sonhos. Em 2001, essa fortaleza de menina passou a estudar no Colégio Estadual Safel. Nesse espaço ela não só aprendeu os conteúdos do currículo, mas a se virar, se defender enquanto menina negra. Com a sabedoria de uma líder, a menina impunha respeito mesmo sentada nos fundos da sala de aula. Conhecia o caminho da diretoria e tirava notas boas, só ficava em recuperação nas exatas e em Língua Inglesa. No mais, estava bem encaminhada. Passados quatro anos, a mãe da menina conseguiu com muito custo uma vaga no tão solicitado Colégio Professor Francisco Zardo. Já mais velha e centrada, porém ainda sorridente, ela fez novas amizades com o grupo do fundão e levou os estudos muito a sério. Nas voltas que o mundo dá, essa moça conheceu pessoas interessantes e como era dedicada, alcançou o que ninguém em sua família jamais sonhava. Para sua família, a conquista do diploma foi uma vitória coletiva, inclusive para aqueles que não insistiram em continuar. Hoje uma mulher, Maria Patricia decidiu continuar os estudos e buscou no curso de Pré-Pós da UPFR, em parceria com o NEAB, a oportunidade de ingressar novamente na Universidade, mas agora através do mestrado. Nesse programa

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ela pretende defender o seu tema de pesquisa, que está relacionado à educação das mulheres no sistema carcerário. Sua inspiração para se dedicar aos estudos ocorre sempre que abre o seu notebook para tentar escrever e visualiza, em sua foto de plano de fundo, três de seus irmãos a segurando no colo no dia de sua colação de grau. Eles são a representação real da sua base na busca de uma realização pessoal de peso coletivo. Hoje em dia, Maria Patricia segue na busca pelo conhecimento, ela se realiza nos espaços de discussão e nas leituras que faz. Ela entende que ainda desconhece muitas questões relacionadas ao conhecimento científico e que tal “ignorância” a faz crescer como pesquisadora e ser humano.

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Atenciosamente, autora.

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PALAVRA POR PALAVRA.

PÁGINA POR PÁGINA.



Palavra por Palavra. Página por Página. Jonas Cardoso Lomba Se falassem que aconteceria como num espetáculo, talvez eu acreditasse. E mesmo antes de as cortinas se abrirem, já tinha recebido uma sinopse, sobre cada um dos personagens e suas histórias. Uma “história de mão-única”? Talvez. Mas não há nada como conhecer o lado de dentro de onde habitam as vozes que constroem cada narrativa, não é mesmo? De certa maneira, por já ter ocupado aquele lugar, sabia o contexto: pessoas em busca de um espaço, onde uns poucos têm um real acesso. Espaço de pessoas privilegiadas, eu diria, embora muito se fale sobre a democratização na universidade. E toda essa história se desenrolaria durante tempo determinado: finito e breve. Não haveria tempo a perder. E por fim, o seu fim: um roteiro a ser seguido para mostrar um caminho diferente, numa viagem de si a si

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mesmo, como diria o poeta, na exploração, empoderamento e eventual descoberta do “eu- autor”. E eu embarquei nessa jornada, no meu caso, de descoberta de que em algum lugar em mim havia a figura de um mentor. Vejam só! Logo eu, que “só sei que nada sei”. E quanto mais conheço, mais descubro que tenho a conhecer, aprendendo com cada um desses que buscavam pela oportunidade de alcançar o que pensavam ser inalcançável. Todos foram pegos de surpresa quando o trabalho começou abordando as memórias das primeiras leituras… As primeiras letras decifradas. As primeiras revelações sobre os enigmas contidos nos livros, passados para as linhas dos cadernos da infância. E junto dessas memórias sobre os fatos, a maior de todas as surpresas: as emoções, que também vieram e se fizeram presentes em cada um dos poucos dias em que pudemos dialogar. E seguimos assim, compartilhando “a dor e a delícia de ser o que é”, como canta Caetano. Consigo imaginar o que esperavam de uma “Oficina de Escrita Científica”: todas as técnicas de leitura, formatos e padrões para a escrita científica, e uma solução mágica para fluir nessa nova língua. Agora, imagine a cara de quando quem, ao esperar algo do gênero (científico), se encontra com uma série de crônicas, prosas, poemas, filmes e canções para se pensar a escrita? Podia sentir no ar, toda a mistura de reações que brotavam em suas expressões: angústia e desorientação por um lado, alívio e liberdade por outro, para dizer o mínimo. O lado lúdico, os momentos em que a arte permitia se pensar a ciência, foram os exercícios realizados, a todo tempo. E para além disso, dar voz a estes que precisavam compartilhar o sufoco que eram as ideias, que lhes pesavam sobre os ombros (e esquentavam-lhes as cabeças), sobre os prazos, as provas e bancas envolvidos nesse processo, foi algo que tornou cada sonho algo mais próximo. Tratou-se de um tempo de empoderamento de

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pessoas que, através dos movimentos da sociedade como ela é, se viam à margem da academia. Talvez por terem consciência disso, sabiam o tamanho das barreiras que iriam superar. As dúvidas e as respostas se intercalavam, como enigmas: - Como escolher meu tema? - perguntavam no primeiro encontro. E quase num enigma, se respondia: - Memórias, para encontrar seu propósito particular. Só olhando para sua trajetória irá encontrar a sua questão. Numa conversa sobre as fontes de inspiração de um autor, no segundo encontro: - Mas como falo sobre meu objeto de pesquisa? - Argumentos. Palavras para dar forma ao que sozinho enxerga - respondia. Na terceira semana, às voltas com nossas dúvidas sobre quem são e como se formam as “autoridades do Saber”, questionaram: - Mas quem sou eu na fila do pão para falar o que penso? - alguns riram. - Usar vozes alheias para chamar de suas, ou ainda, me permitindo citar Adriana Calcanhotto: “a vida toda quis um verso simples pra transformar (n)o que eu digo”. Esse poderia ser o segredo, como se fosse fácil… Quando o tema da oficina foi o objetivo, junto com a angústia de saber o que faria um orientador se interessar pela pesquisa, junto aos demais mentores presentes, lembramos do “Globo Repórter”: - Como os orientadores escolhem seus orientandos? Do que gostam? Como pesquisam? Do que vivem? Como se alimentam (as pesquisas)? Quais temas são orientados? Quais suas referências? - fomentando os questionamentos para pensar as possibilidades de desfecho da história contada por suas pesquisas.

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E como a empatia nem sempre é algo que se pode esperar quando nos leem, se perguntavam, já na quinta semana: - Será que ele(a) vai entender, gostar do que quero dizer? - Não dá pra esperar que enxerguem o mesmo que você. É preciso saber instruir o outro. Mostrar qual é a sua perspectiva será a forma como você abordará o problema. Emprestar seus olhos para saberem o que você vê. E a partir de então, se começou a escrita… E reescrita. Trecho por trecho. Conceito por conceito. Voz por voz. E com a necessidade da escrita, as angústias afloravam e tornavam a elaboração de seus textos, seus projetos, mais difíceis. A escrita parou. E foi aí que as conversas em sala começaram a ir por caminhos desconhecidos. Fora do roteiro que sustentava a prática. E justamente aí que aprendi mais, afinal, na realidade, não temos controle sobre nada. Ainda menos controle quando se trata de pessoas, com suas rotinas, suas jornadas e seus processos de produção. Até que se fez a luz. E se fez o verbo. E cada um, ao seu modo, encontrou seu fio da meada para conseguir escrever ciência, superando as novas dificuldades que se apresentavam, e que devem se apresentar mesmo hoje, ajudando-se uns aos outros. Cursistas e mentores. Autores de histórias lindas que não sabiam, mas encontrariam em si mesmos. Encontravam ali também os autores dos seus sonhos de cientistas (malucos?). Acadêmicos uma vez mais. Mal sabia o quanto iria aprender naqueles últimos encontros. E desconfio que ninguém ali imaginava o quanto estavam a me ensinar. Foi assim que descobrimos juntos que nossas vidas culminavam naqueles breves momentos, pensando sobre “meu tema - minha vida”, refletindo profundamente enquanto grupo, sobre os sentidos que cada um atribuía à sua pesquisa particular. E ao mesmo tempo, todos envolvidos, sendo coautores nos processos, desde a criação, até o momento da entrega, do prazo.

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E acabou. Deixando mais para ser pensado. Transformando os projetos, as vidas, os projetos de vida... Permitindo que algumas pessoas que provavelmente não teriam a oportunidade, tivessem uma chance melhor de ocupar os espaços de produção do Saber. Uma chance de, com suas ideias, transformarem o mundo, ou sua história. Mesmo que aos poucos, uma página por vez.

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A construção de um grupo Renata Riva Finatti

Abril de 2017. Início do afastamento para estudos de um dos padrões como professora, sem vencimentos (salário). Foco: estudar, trabalhar meio período, dedicar-se ao doutoramento, vincular-se mais à universidade. Maio de 2017. Mensagem no e-mail, mais um edital para tutoria. Será? Para que? E o afastamento? Não havia sido para aproximar-me dos estudos e qualificá-los? Tutoria demanda muito tempo, melhor não. Uma bolsa. Será? Um projeto. O direito à educação. A chance de poder materializar o texto: a escola pública para tod@s, as condições de entrada, ajudar a “equalizar” trajetórias. Sem dúvida. Inscrição encaminhada. Entrevista realizada. Muita gente, não vai dar certo. Deu. Entrei. E, ao entrar, deparei-me com o maior dos desafios, a expectativa. Minha e sobre mim. Ouvíamos nas reuniões com a equipe e no primeiro encontro com @s cursistas, o sonho. E eu estaria ali para, de alguma forma, ajudar a

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pensar nos caminhos e nas ferramentas para conquistá-lo. Sempre presente, a maior das vontades: aprender e continuar aprendendo, a cada dia como sinto que venho fazendo, mesmo sem me dar conta em muitos dos momentos, desde que nasci. Aprender com as experiências d@s outr@s e no compartilhamento das minhas. E assim, começamos o grupo, e que grupo! Os primeiros contratos. A comunicação, nossa maior ferramenta. Os laços começavam a ser construídos. Mensagens encaminhadas, eu demorava alguns minutos às vezes para responder, já tinha um@ colega buscando a solução, solucionando ou consolando. E foi assim durante todo o período, como se nos conhecêssemos – ou só estou dizendo isso agora porque acabou e é esse o sentimento? Será que desde o começo era assim, tão simples? Talvez sim, talvez não. Não importa. O que importa é que o primeiro aprendizado foi conquistado: quando um grupo está construído, e o objetivo é o sucesso de tod@s, não o pessoal, tod@s se ajudam e assim tod@s crescem. Parece bobagem, mas acho que os “Fawohodie” que se encontraram aos sábados e às terças-feiras – mas também aos domingos, segundas, quartas, quintas e sextas, de manhã, de tarde, de noite e de madrugada, porque as mensagens não tinham hora – poderão dizer se falo a verdade ou se esta é a “minha” verdade. Por falar em verdades... esse foi tema de todas as horas. Olha, vejo assim, se fulano pegar, talvez olhe daquele jeito, beltrano pode pensar naquela outra forma, ciclano desta, mas também tem esta outra forma aqui... mundo acadêmico cheio de incertezas. Porque, afinal, a ciência é duvidar de tudo, não? E fazer escolhas, sempre. Tomar decisões e aguentar as consequências. Ser humilde para, em muitos momentos, poder dizer “pensei assim, por conta deste e daquele argumento, mas não havia considerado esse outro. Errei”. Outro aprendizado. E assim foi uma sequência de aprendizagens. Uma sequência de quatro meses de novas conexões. O ideal, de Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná

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ajudar a pensar os instrumentos e caminhos para conquistar os sonhos, não sei se foi atingido. De fundo, o discurso – falado e escrito – sobre o direito à educação, para tod@s e para cada um@, que queria se materializar em gesto, em vaga, em conquista. Pensamos juntos, construímos caminhos, mas realmente não sei mais, hoje, se o sonho em si é o objetivo, ou se o caminho trilhado faz mais sentido. No percurso, inclusive, alguns declinaram, e acho que justamente por isso: a grande conquista não é necessariamente uma vaga ou um diploma, mas a certeza de deter os instrumentos – ou capacidades, como devem preferir alguns – necessários para entrar. Isto, conquistamos. Conquistamos, também, a “certeza” de que “deter” estes conhecimentos nunca será de forma acabada, pois a cada dia poderemos aprimorá-los, uma vez que aprendemos a aprender sempre mais. Fawohodie. Independência, liberdade.

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A Viagem Simone da Silva Pereira Já adulta, e deveras adulta(!), observo eu, pelo espelho dos olhos, os sentidos de uma vida. Cada vez que os olhos se perdem no espelho: chove! Ora, garoa, ora, tempestade. Se o tempo ali se demora, é como uma longínqua viagem de trem. Sabe-se que em algum momento do temporal, desembarquei. Se presente, dádiva ou apenas objeto, o que importa? Quando criança, pouco sabemos do sentido da vida, somos como folha pautada cotidianamente tocada por mais de um artista. Vamos nos tornando “Ser”... Assim sou eu, é você e é o mundo: uma bricolagem de histórias que se inicia no contexto familiar. Mas a princípio: quem sou eu? Sim, eu sou Simone, irmã de Silvane, filha de Maria, esposa de José, e junto com este último, pais de Sara e Marcos. Com respeito, uma breve separação para demarcar um contexto religioso e o segredo oculto para dois nomes que fugiram dele. Nunca me dei ao luxo de grandes aprofundamentos, a vida só me ofereceu um sentido depois

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de muito tempo. Agora, voltar atrás, seria somente (re)cobrar o tempo perdido. Não há mais tempo a perder quando a vida ganha sentido. Vivi num tempo demarcado por grandes moralismos; pela contenção da expressão humana; pela seletividade quase darwiniana, na qual só os mais fortes sobreviviam – cabendo aqui ressaltar que não falo tão somente da força física. Grandes foram as dificuldades e delas só tive o desfecho real na adolescência. Mas esta é só a segunda estação desta viagem, a princípio cabe resumir aqui o que fora a infância. Da personalidade de menina, o melhor adjetivo: forte. Adjetivo simples para nomear uma criança teimosa, briguenta e por vezes tendenciosa ao acting out. Sempre aos cuidados da doce, meiga e obediente irmã mais velha. Não nos esqueçamos de que além da insubordinação aos mais velhos, este era um período tendencioso para ler a personalidade pelo fator da “obediência”. E se esta é minha história, para que ressaltar a diferença entre eu e um terceiro? Para uma melhor compreensão do leitor, é claro. Nunca se soube quem chegou primeiro: se o ovo ou a galinha. Sabe-se apenas que, de fato, os dois existem e esta é a prova empírica. Mas continuemos os fatos e adentremos ao período escolar. Minha primeira professora era uma senhora ordeira e talvez um pouco discriminadora. Em sua sala rolava desde a hipotética fila dos burros (destinada aos que possuíam dificuldades de aprendizagem), até os pequenos castigos. Lembro-me que, certa vez, quase retirou para guardar consigo, parte de meu pequeno corpinho (risos). Foi meu primeiro e mais frustrado ano escolar, mas com um pouco de persistência consegui aprovação. Custou-me apenas a “adaptação darwiniana”. Depois deste ano seguiram-se outros para o qual o fato mais marcante era a semelhança entre a minha pessoa e a de minha irmã. Muitas vezes fui arrebatada

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no pátio da escola, puxada por professora que não era a minha; minhas produções e premiações também, não eram minhas! Assim fui crescendo e aprendendo a gritar para demarcar um espaço numa sociedade desigual. Meus pais priorizavam os estudos e me contentei em ocupar um segundo lugar que me permitia viver a alegria de ser criança. Durante toda minha vida escolar tive uma parte oculta e cheia de riscos na ausência de meus responsáveis. Na época, morávamos em uma região de chácaras com grandes pastagens entrecortadas com espaços arborizados, com minas e rios. Nunca aprendi a nadar, mas morri pelo menos 03 vezes entre a infância e a adolescência. E como dizem os mais velhos: “ninguém morre antes da hora”. Com o tempo reproduzi um gosto único pela solidão e pela paz encontrada na natureza. Na adolescência me tornei crítica e defensora das minorias. Fui desenvolvendo um interesse em militar por direitos humanos e a natureza. Aprendi a lutar por aquilo que queria e continuei a negar aquilo que me era imposto. Lembro ainda da transição do ensino fundamental para o médio – um novo conflito em cena. Para meus pais, eu deveria fazer o curso de magistério, assim como minha irmã já fazia. E mais uma vez nadei contra a maré... Fui inscrita no antigo propedêutico, num colégio da região de Curitiba. Com seis meses de curso decidi lutar pelo desejo de frequentar um curso do Colégio Estadual do Paraná. Mais uma vez, não havia tempo a perder. Lembro de vincular-me a esta missão com uma amiga querida que me acompanhou em muitas das grandes loucuras da infância. Certo dia saímos a caminhar de um colégio a outro numa longa caminhada que acabou na sala da coordenadora do Colégio Estadual do Paraná. Fato é que meus pais só precisaram correr atrás da papelada de transferência. Por fim, me formei no curso de Técnico em Informática, ocupando

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uma vaga remanescente sem necessitar passar pela traumática prova de seleção. O importante é que na vida tive a missão de rememorar minha infância e as vivências com minha primeira professora: a carrasca! Após aprovação em concurso público, fui convocada para trabalhar na mesma escola onde estudei, com a mesma professora que naquela época ocupava o cargo de diretora na instituição. Tão interessante seria relatar que, nos anos seguintes, realizei concurso para o Estado e também trabalhei no Colégio Estadual do Paraná. Mas a vida de uma mulher raramente não é atravessada por um grande amor e é sabido que em alguma estação a paisagem solitária outrora vista pela janela deu lugar ao brilho interno do vagão. E assim o amor deu frutos que se alimentaram do labor do trabalho consumindo toda e qualquer probabilidade de investimento. E o sentido da vida está na vírgula, nunca num ponto final. Mas voltemos a falar de mim e de algumas estações nas quais permaneci a esperar por novo embarque. O casamento foi assim, algumas primaveras olhando da janela a garota que corria livre na relva. Poucas vezes vi seus olhos, mas traziam um sentimento que me atravessava a alma, sentia falta dela. Foram muitos verões e algumas tentativas de retorno ao meio acadêmico. A última, barrada pela doença. Mas, como visto, para Simone, filha de Maria, a vida deixara resistente armamento: a persistência de cada dia. Em 2004 adentrei os portões da academia com planos para um futuro melhor, me agarrei à oportunidade que tive com o alto custo da distância da família. Por vezes, trabalhava de segunda a segunda, dormindo às seis horas da manhã e acordando às sete horas quando o investimento acadêmico assim o exigia. A solidão de meus filhos traduzia a minha. E nunca vi olhos tão questionadores. Mas a maturidade traz o desenvolvimento da compreensão e hoje dividimos as lembranças com a segurança que muito nos faltou afeto.

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Confesso, não seria tão fácil pautar estas folhas se já não houvesse me recordado sobre meu passado ou, pelo menos, de uma boa parte dele. Para aqueles que se perguntam se o mundo acadêmico tudo resolveu para mim, posso responder firmemente que não. Permanece aquela parcela de falta que me faz desejar coisas que somente uma nova viagem pode proporcionar.

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Despertar para Perseverar Antonia Claudia Camargo de Carvalho Somos uma família de 9 filhos: 5 mulheres e 4 homens. Moramos por muitos anos em Miraselva. Os nossos pais ainda residem nesta pequena cidade do norte do Paraná. Naquela época era mais fácil criar os filhos, pois os mais velhos ajudavam a cuidar dos mais novos. Os nossos pais eram muito rígidos na educação. Estudamos em escola pública. Os dois filhos mais velhos concluíram o Ensino Fundamental 1. Estudaram pouco por terem que trabalhar para ajudar o nosso pai. As duas filhas mais velhas concluíram o Ensino Fundamental 2. Dois filhos concluíram o Ensino Médio. Três filhos cursaram o Ensino Superior. As lembranças do 1º ano cursado em 1984 são boas, momentos de leitura em que nós levávamos os nossos tapetinhos e sentávamos para escutar a professora contar histórias. Momentos de leitura e escrita na cartilha “Caminho Suave”, bem como leituras das sílabas. Gostávamos também

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do momento em que íamos fazer a higiene bucal e os alunos recebiam um copinho com flúor. As datas comemorativas também eram momentos especiais, como as festas juninas e desfiles de 7 de setembro pelas ruas. Os anos passaram e a convite de uma das irmãs, nós, as mais novas, mudamos para Curitiba em 1996 em busca de outras oportunidades. Nos ajudávamos mutuamente, uma oportunizando os estudos e a moradia para as irmãs e estas cuidando da casa e dos sobrinhos. Sabíamos que para vencer era necessária muita perseverança, então, após concluir o Ensino Médio no Colégio Estadual Santo Agostinho, fizemos vários cursos no Liceu do Ofício e curso de datilografia no SESI. Com 18 anos surgiu a oportunidade de trabalho na AEC/ PR – Associação de Educação Católica do Paraná, inicialmente como auxiliar de serviços gerais. Devido ao esforço e dedicação, foi nos oferecido o cargo de Auxiliar Administrativo, onde pudemos aprender muito, fazer cursos de informática, entre outros, e ocupar o cargo de secretária nesta instituição. Com 22 anos, iniciamos o curso de Pedagogia na Faculdade Uniandrade, com uma turma muito participativa, responsável e comprometida que concluiu o curso em 2006. No mesmo ano iniciamos, na Faculdade Bagozzi, o Curso de Especialização em Metodologia do Ensino Religioso. Na nossa família, algumas mulheres dedicaram-se exclusivamente ao casamento, à família, filhos e deixaram os estudos em segundo plano em suas vidas. Acreditamos que há o desafio em superar a posição de subalternidade das mulheres no casamento, que reproduzem o padrão vivido por nossas avós e mães. Pensamos que todas as mulheres devem despertar para assumir o espaço de compartilhamento de responsabilidade e direitos.

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Minha Nova História Bianca Dornelles Reginatto

Nós nascemos em Santa Maria – RS e com um ano de idade nos mudamos para Uruguaiana – RS. Cidade na fronteira do Brasil com a Argentina. Aprendemos a falar e iniciamos a alfabetização na fronteira. Região tradicionalista, povo bairrista e fechado aos costumes cosmopolitas da capital, Porto Alegre. Porto Alegre tem um sotaque típico: “O Magro do Bonfá”. E Santa Maria tem um sotaque mais cosmopolita. Ficou estranho. É assim como no Brasil, onde cada região tem um sotaque. Isso acontece também no RS. No segundo ano do ensino fundamental, retornamos para Santa Maria. Momento inesquecível para um povo que fala como grosso numa cidade grande e aberta a todas as tradições. O sotaque de Uruguaiana é carregado, com influências do espanhol e é tradicionalista, em acordo com os costumes gaúchos. Já Santa Maria não tem estas influências. Menos das

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tradições do interior. No entanto, o costume tradicionalista faz parte da cultura gaúcha, mas não é tão arraigado como na fronteira. Este não precisaria existir. Foi estranho, pois eu sofri bullying na escola. O que não precisaria existir é a crueldade das crianças. Aprendemos a sobreviver em meio a este conflito e se isso não bastasse, trocamos de escola uma, duas, três…. Conseguimos concluir o ensino médio com um ponto positivo, este foi realizado todo no mesmo lugar. Mas o fundamental chegou a fechar cinco escolas diferentes com o tempo máximo de 3 anos. Neste momento começou o pânico. Onde faremos faculdade e qual curso faremos? Tempos de brigas, insegurança e indecisão. Chegamos a um consenso: faremos Arquitetura e Urbanismo. Mas onde? Abriram-se duas oportunidades: UFSM e UFPel. A primeira era a tão sonhada. “Ficaremos em casa e teremos toda a mordomia por estarmos estudando”, pensamos... Mas isso não aconteceu. Com o nosso nervosismo acabamos errando o tema da redação e do 12º lugar passamos ao 19º, ou seja, 3º suplente num curso de 16 vagas. Num susto, sem esperar, saiu o listão da até então anônima UFPel, com o surpreendente 9º lugar. Que festa! Que susto! Que susto, porque moraremos sozinhos em outro lugar a 300km de distância, viajando em um ônibus pinga-pinga. Seriam cinco horas de viagem e um ônibus com galinhas, porcos, ração e tudo mais. Levamos quase o tempo da faculdade para nos adaptarmos a estar longe da tão sonhada UFSM, da cidade natal e da família. Construímos uma nova família e uma nova história. Cada lugar, cada pessoa e cada coisa tem uma história para contar e este foi um pouquinho da nossa história que viemos compartilhar.

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Saberes da Natureza Carolina Fasolo Desde cedo tinha essa vontade inquietante de entender os porquês. Com quatro anos, bem cedinho embarcava num ônibus sozinha rumo à escola rural mais próxima da chácara onde vivia, em Entre Ijuís, no Rio Grande do Sul. Ali pude crescer livre, investigando a anatomia das formigas, das folhas, frutas e sementes plantadas pelas nossas mãos ou pela natureza. Havia flores, vacas, galinhas e até cobras. Muito para descobrir. Eu aprendia a me comunicar naquele universo tão rico em cores, aromas e formas. Soube distinguir um pessegueiro de um pé de figo, as folhas do tomate e as do pepino, aprendi que a folha da cana-de-açúcar corta a pele de quem passar distraído. Das folhas da mandioca se fazem lindos colares e da espiga do milho, bonecas singulares. O inverno eu descobri pela manhã, quando ouvi o barulho dos meus sapatos tocando a geada. Um ‘crec-crec’ apressado, típico de quem se atrasou para a escola. A água

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das bacias no quintal congelava, formando laguinhos onde os bonecos de graveto aprendiam a patinar. Tinha que ter mais lenha para o fogão e as garrafas pet serviam de aquecedores para os pés – bastava despejar água bem quente dentro delas. Mas eu gostava dos riscos do verão, também. Encontrar cobras passeando pelo quintal, confundir filhotes de rã com peixinhos de aquário, pegar bicho-de-pé, brincar de sereia na cachoeira perto do açude. Na primavera era sempre festa. Saía coletando todo tipo de flor e fazia buquês e poses inacreditáveis. O outono me deixava boquiaberta, pensando que tudo estava ameaçado. Quando descobri que era só uma estratégia das plantas para poupar energia pro inverno, fiquei ainda mais admirada com a esperteza dessa tal de mãe terra. Talvez por ter crescido em intimidade com a natureza e seus mistérios, tenha entendido tão bem quando ouvi os Guarani-Kaiowá chamarem a terra de Tekohá, o lugar onde se é, onde a vida e morte têm significado, onde os encantados surgem para abençoar a terra, os homens e os animais, onde a água brota e dá vida para todos os seres. Onde os indígenas sempre viveram, tempos imemoriais, passado, futuro e presente são um só acontecendo agora. Isso aprendi lá no Mato Grosso do Sul, terra onde nasci. Depois de crescer no mato voltei pra terra que me acolheu nesse mundo. Estudei, cresci e na faculdade de jornalismo entrei em contato com a questão indígena. Quantas injustiças sofridas, vidas roubadas. Quanto pra reparar! Visitei Dourados, a segunda maior cidade do estado, a que abriga a segunda maior população indígena do país e uma das mais hostis com esses povos. Vi indígenas sofrendo na beira de estradas, em barracos de lona, sem água, sem comida, sem saúde, crianças sem escola e sem alimento, como doeu minha alma! Me emocionou profundamente o sofrimento daquelas pessoas, impedidas de viver na terra a que sempre pertenceram. Alguns grupos

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esperavam há anos pela demarcação de seus territórios e a oportunidade de enfim voltar pra terra dos seus antepassados. Trabalhei no Ministério Público Federal, onde tinha a oportunidade de colocar em evidência a questão indígena, influenciando a mídia local a tratar o tema com seriedade, minimizando a campanha difamatória que o agronegócio empreende contra os povos indígenas. Já em Brasília, trabalhei no Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organização que atua desde 1972 em favor das populações indígenas. Lá, acompanhei de perto a luta política dos povos, em constante alerta pela garantia de seus direitos. Organizavam acampamentos na Esplanada dos Ministérios, protestavam e buscavam reuniões junto aos Três Poderes. Depois de atuar no Cimi, trabalhei como consultora de comunicação para a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), organização indígena que preza pelo protagonismo dos povos na reivindicação de seus direitos. Todos esses lugares e pessoas que conheci, me ensinaram que só há a possibilidade de futuro para a humanidade se entendermos a sabedoria dos povos indígenas, que vivem em comunhão com a natureza, guardiões das florestas e das águas, que não se dobram a interesses mesquinhos e prezam pela coletividade, respeitando a diversidade.

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Estímulo em meio às dificuldades Edvone Silva dos Santos Meu nome é Edvone Silva dos Santos. Nasci em 1975 na cidade do Rio de Janeiro, porém cresci em um bairro chamado Miguel Couto, no município de Nova Iguaçu. Este bairro é um lugar bem afastado do centro do Rio de Janeiro, fica a cerca de uma hora e meia, sem pegar engarrafamento. Já do centro de Nova Iguaçu até a minha casa, são aproximadamente 45 minutos. Hoje um pouco mais por causa das ruas sem calçamento adequado. O maior desafio de morar no bairro em que nasci é que os melhores cursos, as melhores escolas, principalmente faculdades, universidades e até mesmo trabalho, ficam no centro do Rio de Janeiro ou em alguns pontos bem centrais do município de Nova Iguaçu ou, até mesmo, municípios vizinhos. Isso é algo que se mantém até hoje, já que continua sendo um bairro muito abandonado, politicamente dizendo, mesmo que vivenciando alguns progressos lentamente.

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E o que fazer quando a família não tem dinheiro para pagar passagem todos os dias para os seus cinco filhos e nem como pagar uma escola particular? Sim, o jeito é estudar nas escolas públicas do nosso bairro. Voltando aos meus tempos de criança, eu sempre tive muitos desafios e obstáculos a serem superados, além do lugar e das precárias escolas que estudei, o maior deles sempre foi a educação e a aprendizagem. Na minha casa, apesar dos meus pais incentivarem os estudos, dando apoio moral, a experiência deles nesta área era bem pouca. Minha mãe foi proibida pelo pai dela de frequentar a escola e só aprendeu a ler porque a minha avó, que sabia bem pouco ler e escrever, ensinava-a enquanto o meu avô estava trabalhando na roça. Quando adolescente, a minha mãe precisou trabalhar em casa de família como doméstica fazendo deste lugar a sua mais nova moradia, com isso ela parou totalmente os estudos. Quanto ao meu pai, só pôde cursar até o 4º ano do ensino fundamental, a antiga 4ª série primária, pois precisou trabalhar para ajudar nas despesas da casa. Então, para nosso auxílio nos estudos, o que meus pais faziam era pagar aulas de reforço para mim e para cada um dos meus irmãos, isto quando tínhamos muitas dificuldades e a escola reclamava do nosso desempenho estudantil. Na minha vida foi bastante frequente essas idas para aulas de reforço, até concluir o 4º ano do ensino fundamental. Repeti o 2º ano do ensino fundamental I e o 6º ano do ensino fundamental II, quando decidi parar de frequentar a escola, pois além de um problema sério na vista, que me impedia de enxergar as letras no quadro, eu era bastante tímida e por dois anos fui convocada a ir para a secretaria por ser muito quieta em sala de aula, algo que na época não consegui resolver e até hoje percebo que não superei. Contextualizando o que acabei de mencionar, eu sou de um período em que a mãe e o pai diziam “respeitem a

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professora, porque se não, quando vocês chegarem em casa...” Isso mesmo! A coerção era grande e só me restava ser criança modelo em que a mãe nunca era chamada na escola, mesmo que a professora fosse doida de pedra, jogando giz, apagador e até mesmo sapato nos alunos, algo que por dois anos eu e o meu irmão mais novo vivenciamos ao frequentarmos o 3º e o 4º ano do ensino fundamental em uma escola pública em um bairro vizinho. No entanto, quando fomos cursar o 5º ano, a minha mãe decidiu que deveríamos estudar em uma escola um pouco melhor do que a que estávamos naquele momento, finalmente fomos para uma nova escola. Porém, trocamos de escola, mas a escola antiga estava dentro de mim e, por este motivo, novos problemas surgiram, já que eu não conversava dentro da sala e a professora achava estranho isso. Então lá fui eu, por duas vezes chamada a comparecer na diretoria por ser quieta demais, algo que não adiantou nada, pois eu tinha pavor de todos que constituíam autoridade dentro do espaço escolar, então eu só chorava e não falava. No final do 6º ano, com 15 anos de idade, resolvi parar de estudar, porque mesmo com os óculos, não conseguia ler quase nada no quadro e não tinha nenhum amigo que me ajudasse emprestando o caderno para eu copiar as atividades. Com 16 anos fui trabalhar em casa de família, cuidando de duas crianças. Lá eu deveria dormir e voltar para casa apenas aos finais de semana. Estive trabalhando desta forma por aproximadamente seis anos, porém não na mesma casa e nem por períodos seguidos. De tempos em tempos eu parava. Ficava em casa com a minha família e retomava novamente o trabalho, sempre em outro local. Infelizmente esses empregos apenas intensificaram o que eu era, me afastando da minha família e de pessoas que eu pudesse conversar. Ao completar 17 anos, meu pai faleceu em casa por causa de um infarto. Enfim, no ano de 2002 eu resolvi parar de trabalhar e voltar a estudar, fui fazer supletivo em uma escola próxima

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à minha casa, fiz o 6º e o 7º ano, já no ano de 2003 eu vim morar em Curitiba com o intuito de estudar e trabalhar. E é claro, nem tudo são flores para quem se aventura a morar em um lugar que não é o seu de origem. Ao chegar aqui em Curitiba, os primeiros anos foram maravilhosos, pois consegui realizar o mais importante dos meus sonhos, que era estudar e, dois anos depois, consegui um trabalho, fiz a minha faculdade em 2004 em EaD, que não foi reconhecida. Mas fiz outra como aluna do PROUNI em 2012, esta reconhecida. Agora estou me dedicando e estudando para conseguir uma vaga no mestrado. Quanto ao emprego, com toda a crise e a minha falta de experiência em carteira, estou, como muitos brasileiros, procurando e tentando ser encontrada por alguma empresa. Esta é a minha história, ou melhor, parte dela, onde vou continuar escrevendo e vivendo cada dia, porque mesmo diante deste e de outros desafios, eu quero continuar lutando, seguindo, aprendendo e vivendo, já que posso até está fora do mercado de trabalho e o tempo está chegando para mim, no entanto, o que não quero é estar de braços cruzados e longe dos estudos, do “aprender a aprender” que amo tanto.

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A Mulher Negra na Universidade Glaucia Pereira do Nascimento

Eu, Glaucia Pereira do Nascimento, sou estudante do curso de Geografia da Universidade Federal do Paraná. Venho de uma família simples, na qual minha mãe concluiu seus estudos na Educação de Jovens e Adultos (EJA) depois de adulta e meu pai estudou até o fundamental. Eles separam-se quando eu era criança e fui criada apenas pela minha mãe, Maria do Carmo. Além dela, moro com a minha irmã, Franciele. Esta foi a primeira da família a entrar em uma universidade e foi da terceira turma de cotistas da UFPR. Assim como ela, em toda a minha trajetória estudei em escolas públicas. Primeiramente, conclui o ensino fundamental na Escola Costa Viana, em São José dos Pinhais, onde moro. Posteriormente fui para o Colégio Estadual do Paraná, no qual entrei por cotas. Minha mãe optou pela mudança de colégio porque o Colégio Estadual do Paraná é um colégio melhor do que outros próximos da minha casa, os quais, além de Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná

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apresentar um ensino mais fraco, têm alto grau de violência. Com o ensino do Colégio Estadual do Paraná, consegui estudar, prestar o vestibular e ser aprovada, visto que não tinha condições de realizar um cursinho preparatório. Nos primeiros anos de faculdade, senti muita dificuldade em acompanhar o ritmo dos demais colegas, apesar do colégio estadual ser bom, ainda assim eu estava um degrau atrás, assim, até aproximadamente o terceiro ano foi difícil, depois comecei a entrar no ritmo e me recuperar. Hoje estou no último ano do curso, foram cinco anos nos quais optei por realizar Bacharel e Licenciatura. A Universidade também me proporcionou um maior contato com grupos de discussões, eventos e congressos. Participei do centro acadêmico dos estudantes, do EIV (estágio interdisciplinar de vivência), no qual fiz vivência junto ao assentamento de MST, e também em projetos de extensão ao longo do curso que resultaram em alguns trabalhos. Estou no último ano da faculdade e quero tentar o mestrado no curso de Geografia neste ano. Acredito que nós, negros, temos que ocupar os espaços que dizem que não são para nós e o mestrado é um desses. O tema do meu projeto de mestrado é sobre quilombo urbano e tem como objetivo realizar uma discussão sobre a efetivação das políticas públicas de proteção cultural e urbanística (caso existam) no Quilombo Urbano Areal, localizado em Porto Alegre, no Estado do Rio Grande do Sul, que vive uma situação de tensão e conflitos permanentes. Esse projeto é o desdobramento do meu trabalho de conclusão de curso de bacharelado da graduação em Geografia. Naquele trabalho, a insuficiência de teóricos sobre a temática de quilombo urbano levou-me a uma inquietude. Na conclusão do trabalho, surgiram várias questões as quais encontrei dificuldades em responder, pois não obtive um número suficiente de bibliografias e documentos. Deste

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modo, é pertinente a promoção de um debate sobre o negro em condição de quilombo urbano e a publicação dos conflitos por ele vivenciados. Atualmente, estou fazendo meu trabalho de conclusão de curso da área de licenciatura, no qual realizo uma análise da forma como as comunidades quilombolas são representadas nos livros didáticos do Estado do Paraná. Apesar de existir a lei 10.639/2003, que visa assegurar a valorização e reconhecimento do povo negro, o conteúdo é aplicado de maneira superficial no ensino escolar. Os livros didáticos (que muitas vezes são os únicos materiais para os educandos) representam a população negra na miséria, com vários estereótipos, sempre em contextos de menor prestígio no contexto social e se resumem à escravidão. Os quilombos, por exemplo, são representados nos livros didáticos, em sua maioria, apenas pela relação de fuga e isolamento. Os materiais didáticos não abordam as consequências do regime escravocrata e a problemática da terra atual do país. Como exposto, no decorrer da academia sempre procurei fomentar através das minhas pesquisas o debate das questões étnico-raciais. Como negra, não estudo apenas a história de um grupo, mas também a minha história, da qual partilho a militância para a visibilidade dessa identidade brasileira que está quase ausente em todas as esferas, inclusive no meio acadêmico. Historicamente, a cultura e a história negra não foram temas prestigiados na academia, pois existe secularmente o mito da democracia racial e seu discurso de que “todos são iguais perante a lei”, que mascara o racismo que existe em suas múltiplas formas, desde um racismo individual a um racismo institucional, que resulta em perpetuar as desigualdades e a opressão racial. Deste modo, eu como mulher negra procuro dar voz às nossas histórias tão silenciadas e evidenciar que os

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processos históricos vividos pela população negra refletem nos dias atuais. A universidade precisa realizar discussões, estudos, reflexões dessas temáticas e assim combater o racismo institucional que infelizmente ainda é presente.

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Memórias da Escrita Gustavo Antonio Ramos Talvez a nossa primeira lembrança seja do cachorro que nos acompanhou até a idade adulta e que morreu aos 18 anos. As fotos com ele reforçam momentos felizes da infância simples e sem muitas crianças por perto. No fundo, as fotografias devem existir por esse motivo: nos transportar ao passado. Saber qual foi a primeira leitura provavelmente continue sendo um mistério (eterno), já que não temos esse registro, nem mesmo nossos pais. Mas nos lembramos claramente de uma coleção de livros que tínhamos em casa e embora não saibamos quantos eram ao certo, nos lembramos d’O Patinho Feio, Os Três Porquinhos e Pinóquio. Gostávamos especialmente desse último. A nossa chegada à escola foi frustrante: deparamonos com uma escola municipal simples, sem corredores e armários, enquanto esperávamos que a escola fosse bem Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná

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estruturada – daquele jeito que a Sessão da Tarde nos faz acreditar. Acabamos nos acostumando com o ambiente, porém uma forte chuva o atingiu e parte da escola, que era de madeira, foi ao chão. Pobrezinha! Depois ganhamos uma escola novinha em folha e até o Prefeito foi lá para inaugurála. Nós, os meninos, enquanto o homem falava, ficávamos um chamando a atenção do outro para dizer qualquer coisa ou rir. Típico daqueles momentos em que você precisa se comportar, mas o riso surge e a gente não consegue se segurar. Ontem estávamos ouvindo o rádio e um dos jornalistas disse que na rua dele, quando criança, tinha um garoto apelidado de “ruinzinho”, já que suas atitudes faziam jus ao nome (“embora não se chamasse Rui.”), e acabou fazendo com que nos lembrássemos de um garoto que estudou com a gente e certo dia nos deu um soco ou um chute, infelizmente não conseguimos lembrar do fato em si (é bom não lembrar de momentos desagradáveis), mas nos agrediu e o carinha era terrível. Inclusive, o apelido dele era Bola 8. Terrível também! Estudamos nessa escola do primeiro ao quarto ano e nossa mãe ou pai sempre nos levava e buscava. A partir da quinta série fomos para um colégio estadual e aos poucos nossa mãe deixou a gente ir sozinho pra aula, já que não era tão longe de casa. Na sétima série fomos representantes de classe e começamos a nos envolver com essas políticas da escola, fazendo com que mais tarde compuséssemos uma chapa para o grêmio estudantil e também o envolvimento em movimentos militantes estudantis. Foram boas vivências nesse colégio e até hoje somos bem recebidos lá. Aliás, nós e mais dois amigos que estudaram conosco e que também serão professores, planejamos assumir a direção do colégio daqui algum tempo. Tem muito a ser melhorado e seria uma satisfação para nós. Quando chegamos no primeiro ano começamos a trabalhar como menor aprendiz no Hospital Erasto Gaertner,

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afastando-nos dos movimentos estudantis e representatividade no colégio. No entanto, ao chegar no fim do primeiro ano começamos a nos sentir sozinhos ou meio deslocados, como quem sente que aquele ambiente não se encaixa mais a nós. Isso nos motivou a procurar um outro colégio e fomos cursar o segundo e terceiro anos do ensino médio no Colégio Estadual do Paraná. Nesse meio tempo, acabamos saindo do emprego no hospital e assumindo uma vaga de estagiário numa empresa de seguros. Já no final do terceiro ano, deixamos essa vaga e assumimos a de assistente administrativo em um escritório do mesmo ramo, onde trabalhamos até o começo desse ano. Também no final do terceiro ano fizemos o vestibular da UFPR e fomos aprovados em Letras Português e Espanhol, mas como trabalhávamos, era praticamente impossível conciliar o trabalho e duas habilitações no curso, o que nos fez optar apenas pela de Português. E ainda que trabalhasse durante todo o dia, precisamos encaixar horários para fazer estágios, além de duas oportunidades de substituir professores que se afastaram de suas atividades. Uma delas foi na empresa em que fomos alunos quando menor aprendiz, já que pela lei, esses jovens quando trabalhando devem fazer um curso de administração em paralelo. Chamávamos de “projeto” e lá ministramos aula de escrita. A outra foi no fim do ano passado em um colégio particular de Pinhais. Uma experiência boa e ruim. Nossa! Não fazíamos ideia de algumas lembranças que temos no fundo de nossa memória. Os pais devem ajudar mais os filhos nesse sentido: registrar os momentos dos pequenos, não se limitando aos vídeos e fotos constantes que fazemos deles rindo e fazendo arte, mas por que não uma espécie de diário? Até porque a infância e todos os acontecimentos nela são norteadores para quem viremos a ser no futuro.

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Romper o Silêncio

Ivan de Souza

Eu sou do interior do Paraná, meu pai é agricultor e minha mãe professora municipal, com quem estudei até o quarto ano do ensino fundamental. Ainda criança tive meu primeiro contato com a surdez, pois meu primo era surdo. No final do ensino médio tive meu primeiro contato com as Libras através de uma aluna surda, que contava com a ajuda da mãe para frequentar as aulas. Surgiu então a curiosidade nessa área. Em 2012 me mudei com alguns amigos para Curitiba, onde comecei em 2013 meus estudos sobre a língua brasileira de sinais. Já atuei como intérprete em alguns eventos e como voluntário para amigos surdos. Neste ano consegui minha certificação de intérprete pelo CAS-PR e iniciei o curso de licenciatura em Letras Libras, através do qual conheci o curso de Pré-Pós.

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Sapiência Nordestina, Herança da Matriarca Jussara Maria da Silva

Sabemos que Jussara Maria da Silva nascera no dia onze de abril de mil novecentos e oitenta e sete, com nome e sobrenome, que segundo a socióloga Vilma Reis, é necessário para que se tenha uma virada civilizatória. As vítimas não são culpadas, mas perceberemos: os opressores têm dificuldade em entender tal fato. Moradora de um bairro da periferia de Curitiba, oriunda de família negra alicerçada graças à matriarca, Mirtes Margarida Assaré, que com a força e sapiência Nordestina, com letra maiúscula, lhe facultou chegar aonde chegou. Formou-se em Pedagogia em dois mil e doze, se inscreveu em um concurso para professora de Educação Infantil e a cada momento fomos descobrindo que a Jussara Maria da Silva estava galgando seu espaço e quebrando paradigmas. Foi aprovada no concurso e há quatro anos atua como professora de Educação Infantil

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num CMEI - Centro Municipal de Educação Infantil. É feliz na profissão, embora perceba que existem umas lacunas que precisam ser preenchidas no que tange à questão da aplicabilidade da lei 10.639/2003: a obrigatoriedade do estudo da história da África e da Cultura Afro-brasileira. Por conta disso, ela opta por tal problemática como tema de pesquisa. Especializou-se em contação de história e literatura infantil e juvenil, em dois mil e quatorze. Atualmente faz o curso de graduação em História - Memória e Imagem. Jussara Maria da Silva é noiva e adquiriu um imóvel que será seu lar, onde irá morar quando se casar. No momento reside com a mãe, irmãs e sobrinhos e, sem mais delongas, acreditamos, assim como Chimamanda Adichie, do perigo da História-Única. Deixamos aqui então o nosso Axé, para que as histórias sejam multiplicadas.

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O tão esperado dia da apresentação chegou Laci Farias da Silva Nós começamos andando de um lado ao outro da sala, olhando para todos os cantos e pessoas em busca de um afago que proporcionasse conforto sem dizer uma palavra. Mas naquele momento, a única coisa que encontramos foram os olhares aflitos e o murmúrio do ensaio de quem aguardava sua hora chegar. Escutamos todos os tipos de palavras soltas, desde palavrões que exaltavam os limites de stress individual até o simples recitar de uma apresentação plenamente planejada. E o nosso nervosismo? Só aumentava! A tensão no ar já era tão sólida, que nos sentíamos esmagados por ela e, como se fosse possível existir sensação pior do que essa, escutamos o nome de cada um ser chamado ao palco. Nosso estômago foi ao chão, a ânsia e o enjoo chegaram ao limite, mas nossos sorrisos permaneceram congelados no rosto, como se disséssemos que vai ficar tudo bem enquanto o mundo dizia o contrário. Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná

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Chegamos lá, e apesar de os joelhos tremerem, subimos os três lances de escadas e, sim, nós chegamos lá. Encaramos o público olho no olho para defender tudo aquilo que acreditávamos, utilizamos todo o conhecimento e palavras bonitas que aprendemos na graduação, utilizamos os termos técnicos e argumentos, apresentamos autores e citações para justificar a importância e objetivo daquele projeto. Passamos cerca de 15 minutos nos revezando para apresentar. Parece pouco, mas quando se está em frente ao público, esses minutos transformam-se em longas horas. Ao final, cansados, porém felizes, paramos para olhar todos os cantos e pessoas em busca de um afago que proporcionasse conforto, sem dizer uma palavra, e naquele momento encontramos tudo que precisávamos. Fomos acolhidos por uma estrondosa salva de palmas que reverberou por todo o ambiente, ressoando em nossos sentimentos e fazendo verter água de nossos olhos. Nossa missão foi cumprida com sucesso. E mesmo depois de anos, quando nos reunimos para tomar um café e conversar, lembramos desse dia como sendo o mais inesquecível de nossas vidas.

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Memórias sobre o Tempo, Propósitos para uma Vida Marcia Aparecida Martins Lucas Marcia Lucas, hoje com 48 anos, filha da D. Rosa, mãe da Ana Verônica e vovó do João Eduardo. Sou uma pessoa feliz e deficiente física, com uma perna amputada, professora da rede pública desde 2006. Entrei na graduação depois do acidente automobilístico que sofri, em consequência do qual perdi um pé, parte de uma das pernas e muitas fraturas na outra. Minha graduação foi um curso de 03 anos, mas reconhecido pelo MEC, em uma Faculdade Particular. Saí reprovada em Inglês, quase nunca tinha dinheiro para pagar as mensalidades da faculdade, recebia doações e lutava muito para estudar. Antes de jubilar o curso de graduação, voltei para terminar e consegui o diploma. Também fui mãe solteira e as dificuldades aumentaram pois, principalmente meus familiares, pensavam que uma moça de 20 anos com uma perna mecânica e sem dinheiro não seria capaz de ficar com meu bebê e que o deveria doar, Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná

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nem que fosse para familiares. Briguei muito com muitas pessoas e permaneci com minha filha, a qual registrei como mãe solteira e, para garantir que ninguém a tiraria de mim, amamentei até seus 2 anos e 8 meses. Anos mais tarde consegui uma doação de uma prótese nos Estados Unidos e viajei com 8 dólares. Fiquei nos Estados Unidos 6 meses, onde estudei muito e ganhei um curso de Inglês por um semestre em uma faculdade particular e aproveitei TODAS as oportunidades que me foram dadas. Estudei tudo o que pude e aprendi a estudar sozinha. Voltei ao Brasil onde prestei o concurso para professor em 2003 e fui aprovada. Assumi em 2006 e amo meu trabalho. Sou feliz na sala de aula por saber que posso contribuir para formação do meu aluno como ser humano, para além do conteúdo. Mas entendo perfeitamente a necessidade de continuar estudando e melhorando, principalmente minha prática em sala de aula. Consegui realizar uma especialização sobre o PROEJA na UTFPR sem custos para mim, o que facilitou minha participação no curso. Nessa especialização o aproveitamento foi muito diferente do que tive na graduação, pois, mais madura, pude me aprofundar nos conteúdos, mas não o suficiente para entrar em um mestrado. Já tentei entrar em alguns programas de mestrado e todas as tentativas sem sucesso, pois ainda tenho muita dificuldade em escrever a partir da teoria, me sinto verde e fraca. Não considero minha prática em sala de aula ruim, pois sempre estou refletindo e buscando melhorar com cursos, leituras e estudos e, por essa razão, quero muito entrar em um mestrado. Acredito que a pesquisa fortalece o pesquisador e firma o aprendizado. Estudar é bom e, em um programa de mestrado com professores capacitados, seria excelente. A partir da sugestão de um colega de trabalho, tive

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contato com o Pré-Pós e hoje, após este curso, consigo enxergar os muitos caminhos que a pesquisa me oferece. Quando me lembro das aulas, das mentorias, palestras e a qualidade e potencial de todos os profissionais que nos atenderam nesse período, percebo que foi uma oportunidade única esse contato com mestrandos, mestres, doutorandos e doutores, seres humanos que NUNCA nos fizeram sentir como pessoas inferiores. Para mim, o Pré-Pós é um resgate também intelectual. Durante o curso, por muitas vezes me senti uma analfabeta, que tinha sua mão segurada, apoiada por intelectuais capazes de me fazer acreditar que era e é possível conseguir entrar na pós-graduação. Sou grata a Deus pela oportunidade de ter participado de um curso tão bom, com pessoas com tanta dedicação, empatia, carinho e competência. Também sou grata aos Professores Pesquisadores que tiveram a ideia da realização desse curso e a todos os profissionais pesquisadores de excelência que se comprometeram e se mantiveram comprometidos durante todo o curso, principalmente aos mentores nos apoiando e nos motivando a continuar ressaltando nossas qualidades e potencial. Com o Pré-Pós entendi o valor da leitura acadêmica, principalmente dentro do assunto que tenho interesse em pesquisar, que no momento é: “como melhorar o ensino de Inglês na escola pública?” Para este ano não me inscrevi em nenhum programa de mestrado, mas vou fazer a prova de suficiência em Língua Estrangeira e estou lendo sobre as produções acadêmicas relacionadas ao meu interesse de pesquisa e procurando conhecer, através do Currículo Lattes, os Professores Pesquisadores do assunto em questão. Me considero uma pessoa vitoriosa, passei e passo por muitas lutas, mas a minha fé em Deus como Ser com o qual posso ter comunhão, e tenho, me dá forças para continuar a crer e a confiar no que está escrito no livro de Eclesiastes 3.1:

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“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu”.

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Sonho Possível Matheus do Nascimento Batista Há 18 anos, mais especificamente no início da tarde de 28 de Julho de 1998, recepcionamos o novo integrante da família, o menino Matheus do Nascimento Batista, filho da Iara e do Joaquim. Desde os primeiros dias de vida e durante a sua infância tivemos algumas complicações relacionadas à saúde dele, porém, com muito esforço e dedicação, alcançamos a vitória diante destes obstáculos. A partir do berço observamos que o Matheus gostava de futebol, fantasiava tornar-se jogador profissional. Deste modo, nós e especialmente seus pais, sempre o estimulamos a progredir neste sentido. No entanto, na sua adolescência constatamos que ele afastou-se deste propósito e introduziu objetivos na atividade escolar. Ainda jovem, auxiliamos na sua decisão de ingressar no curso de Educação Física, considerando que o menino apresentava características interessantes para se tornar um professor da área. Obtivemos êxito e seguimos nesta jornada com entusiasmo, esforço e dedicação.

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Meus Tempos de Escola Carla Sisto Dizem que “recordar é viver”. Não vai muito tempo desde que tive a experiência de buscar na lembrança os anos da infância, há muito passados. Lembrei-me da Tamarineira alta e frondosa que ficava no pátio central da escola, das primeiras aulas de alfabetização e da ansiedade de aprender as primeiras letras. A vitória em aprender a ler e escrever. Depois, os próximos anos de aprendizado, as várias escolas que passei e as várias cidades e estados que estudei. Com o tempo passando, veio e passou a conclusão do primeiro e segundo graus (assim era como chamávamos àquela época). A Entrada em minha primeira graduação aos 17 anos, depois os outros tantos cursos que se seguiram até este momento, em que me encontro aqui digitando estas palavras. É interessante ver como a memória funciona; embora o tempo transcorra rapidamente, as emoções ainda estão vivas. Sempre estiveram guardadas em algum lugar ao qual nunca dei muita atenção. Estavam apenas esperando o momento

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certo para vir à tona. Sendo assim, mais uma vez, pude assistir ao filme dos meus tempos escolares. Um tempo livre e feliz.

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Inevitável Crescer Mônica Moraes Pereira

Nasci em 1988 na cidade de Reserva do Iguaçu, onde minha família morava por conta do trabalho do meu pai, chamado Divair, que era operador de máquinas pesadas e na ocasião trabalhava na construção de uma usina hidrelétrica. Acredito que minhas lembranças começam a partir de meus 3 anos de idade, quando minha família se mudou para a pequena cidade de Quedas do Iguaçu, no interior do Paraná, cidade hoje com 35 mil habitantes. Minha mãe, Terezinha, era muito extrovertida e querida por todos e, por isso, sempre recebíamos visitas em nossa casa: suas amigas, nossos parentes e os filhos dessas pessoas, com quem meu irmão Osmar e eu brincávamos muito. Minha infância foi boa. E mesmo com meu irmão e eu sendo muito comportados perto das outras crianças, e de nossa mãe ser uma mulher divertida, era também linha dura em relação à nossa educação. Também se fazia sempre presente na escola para saber de nosso comportamento e rendimento. Meus pais quase não estudaram. Minha mãe frequentou

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a escola até a 4ª série e meu pai não chegou a concluir nem a 1ª série do primário. No entanto, sempre incentivaram meu irmão e eu a nos dedicarmos aos estudos e, meu irmão sendo mais velho, sempre me ajudou e ensinou, tanto nos deveres da escola quanto em outras atividades de casa e conselhos pra vida. Naquela cidade pequena, a única diversão para os jovens era ir às matinês para dançar músicas gaúchas e das bandinhas de Santa Catarina. Às vezes tocava, no intervalo entre as apresentações das bandas, músicas de Axé e até clássicos do Rock, como Queen e Scorpions. Meu irmão saía para esses lugares e minha mãe sempre permitiu que eu fosse com ele. Então, por volta dos 12 anos, já era amiga das amigas de meu irmão, começando assim minha adolescência mais cedo do que as outras meninas da mesma idade. Nunca enxerguei o casamento dos meus pais como o ideal, meu pai sempre passava muito tempo fora de casa por causa do trabalho, às vezes passávamos meses sem vê-lo e as brigas e ameaças de separação eram frequentes. Um dia inevitavelmente aconteceu. Meu pai estava desempregado, precisávamos de dinheiro e minha mãe queria trabalhar fora, mas ele não permitiria. Uma vez separados, minha mãe saiu de casa e foi para São Paulo, onde começou a trabalhar como faxineira e nos mandava dinheiro. Dentro de pouco tempo meu pai também conseguiu trabalho no estado do Mato Grosso e deixou meu irmão e eu sozinhos e por nossa conta, ambos nos mandavam dinheiro para as contas da casa, mas com o resto tínhamos que nos virar e cuidar de nós mesmos, eu com 12 e ele com 18 anos. Ao concluir o ensino médio, meu irmão precisava sair da cidade para tentar ingressar em uma faculdade, pois em nossa cidade não havia nenhuma instituição de ensino superior. Então, logo lá estava eu na casa da família sozinha,

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mas com a ajuda de uma vizinha que me ajudava com as tarefas e passava a noite em casa. Alguns meses depois, minha mãe pôde voltar e ficar comigo. Ela passou 8 meses morando em São Paulo, mas, infelizmente, no ano de 2002 perdeu a vida em um acidente de moto. Perdi minha mãe aos 13 anos e lá estava eu, mais uma vez sozinha em casa, com ajuda da vizinha. Nos primeiros anos não senti falta de minha mãe, parecia que ela estava em São Paulo, a única diferença era que ela não me ligava aos finais de semana, mas alguns anos depois passei a sentir sua falta, pois estava com 17 anos e precisava de uma mãe pra conversar e me aconselhar. Acho que nesse período inventei algum sistema no qual eu mesma me aconselhava e graças a isso sempre fui muito responsável e não cometia tantos erros como as outras meninas da minha idade. Desde criança sempre soube que eu não ia passar o resto da minha vida naquela cidade pequena, com poucas oportunidades, e sempre que podia, ia pesquisar cursos em universidades de outras cidades, fazer contas e planejar quando e como eu iria embora dali. E pra ajudar nos meus planos, comecei a trabalhar como recepcionista, vendedora, babá, tudo que estivesse ao meu alcance pra ganhar um dinheirinho e poupar pra minha mudança. Em 2007 estava me formando no ensino médio profissionalizante na área de magistério e falei a meu pai que queria sair de casa para estudar, ele disse que não poderia me ajudar e que também não me deixaria sair de casa, porque sendo eu mulher teria que ficar na casa dele até me casar. Isso somado a outros motivos de convivência geraram muitas brigas, mas fizemos um acordo, no qual ele me repassaria o valor de um salário mínimo, que recebia de pensão pelo falecimento de minha mãe, para que eu pudesse sair de casa e estudar. No dia 02 de janeiro de 2008 arrumei minhas coisas,

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peguei carona com um vizinho e vim para Curitiba correr atrás de tudo o que eu queria. Morei com uma tia, depois com minha avó, depois em uma república, dividi casa com amiga... Eu e essa amiga nos mudamos para um pensionato até eu ganhar o suficiente pra poder morar sozinha, mesmo que em uma casa humilde. Logo que cheguei a Curitiba comecei a trabalhar: trabalhei como caixa de supermercado, vendedora e auxiliar administrativo. Nesse escritório onde auxiliava o departamento financeiro, conheci muita gente boa, que me ensinou muito, me deram bons conselhos e me incentivaram nos estudos. Em 2008 mesmo iniciei um cursinho pré-vestibular e prestei vestibular para o curso de História da UFPR, não passei, mas ainda tinha a esperança do ENEM e do PROUNI. No segundo semestre de 2009 consegui uma bolsa para o curso de Jornalismo, minha segunda opção, na Unibrasil, uma faculdade privada com credibilidade regular. Para minha surpresa, quando fui efetivar a matrícula, não havia alunos matriculados o suficiente para a turma de 1º período de Jornalismo e a secretária recomendou que me matriculasse em Publicidade e Propaganda, pois a grade era parecida e no próximo semestre poderia transferir para Jornalismo e aproveitar algumas matérias. Segui seu conselho e ocorreu que gostei muito do curso de Publicidade e Propaganda, fiz muitos amigos e isso somado ao glamour que ronda a fama dessa profissão fez com que eu decidisse ser uma Publicitária. Em 2010 estava me saindo bem na faculdade e curtindo meus novos amigos, então decidi que era a hora de procurar um estágio pra não sair da faculdade sem experiência profissional da área. A experiência anterior em administração contribuiu muito e logo consegui estágio em uma emissora de TV, depois em duas agências de propaganda e no final de 2011 já era responsável pelo departamento de Marketing da Rádio Transamérica de Curitiba. Em 2012 comecei meu trabalho de conclusão de curso, Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná

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um plano de comunicação para uma ONG (organização não governamental) ambiental da cidade de Piraquara. Fiz o trabalho com minhas 3 melhores amigas da sala e correu tudo muito bem, exceto pelo fato de que não tínhamos quase nada de bibliografia relacionada a Marketing para o terceiro setor. Mesmo assim fizemos nosso melhor, conseguimos uma boa nota e muitos elogios no trabalho final. Em 2014, já formada, recebi uma proposta de trabalho que parecia excelente, iria cuidar do departamento de Marketing de uma agência de turismo e o salário oferecido era atrativo. Troquei de emprego, mas as coisas não foram como o planejado, nem como combinado com o dono da empresa. Acabei saindo e voltei a trabalhar na primeira agência de propaganda onde estagiei. Porém, nunca fui feliz trabalhando lá, o dono era muito centralizador e não nos dava muita abertura para ter ideias ou fazer melhorias nos processos da agência. Com o mercado em baixa por causa da crise, fiquei 2 anos trabalhando em um lugar que não gostava, atendendo um cliente de relacionamento bem difícil. Resumindo, não estava feliz. No final de 2016 decidi que em 2017 iria mudar, ia sair daquele emprego, mesmo que fosse pra trabalhar fora da área de comunicação. Foi aí que descobri o curso de Tecnologia em Comunicação Institucional da UFPR e decidi prestar vestibular mais uma vez. A grade do curso era muito interessante, seria uma oportunidade de fazer novos contatos, participar de projetos de iniciação científica para tentar bolsas de pós-graduação ou mestrado e, se eu passasse, seria ainda mais um motivo para sair daquele emprego, pois o curso é ofertado somente na parte da manhã. Chegou 2017 e passei no vestibular, o dono da agência e o cliente que atendia fizeram propostas para que eu continuasse a trabalhar com eles e ainda assim fizesse o curso, mas enquanto pensava nas propostas, vivenciei várias

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situações que me desmotivaram ainda mais a continuar. Tudo acontecia como se estivesse me empurrando pra fora de lá. Por fim, arrisquei, saí do emprego, iniciei os estudos, consegui um trabalho de 6 horas diárias, totalmente fora da minha área, mas com um plano de carreira atrativo e ingressei no curso Pré-Pós, com expectativas de iniciar o mestrado até 2019. Ao pensar no meu tema de pesquisa para o mestrado, lembrei-me da escassez de bibliografia para Comunicação e Marketing no terceiro setor e decidi estudar campanhas relacionadas a essa área a fim de tentar escrever artigos, talvez até um livro preenchendo essa lacuna que observei. Além disso, prestaria uma espécie de serviço a estas instituições e movimentos sociais, que não têm fins lucrativos, mas seus objetivos normalmente são ajudar causas e pessoas que precisam ser ouvidas e em necessidade. Esse ano tem sido de mudanças, novos projetos e muito trabalho. Não tenho certeza se minhas últimas escolhas foram acertadas, porém tenho corrido atrás e feito o possível para alcançar meus objetivos.

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Queila, com Q de queijo Queila Abigail da Luz Trojack

Queila, com Q de queijo, é o que sempre ouvimos em sua apresentação oral. Enfaticamente o “Quê” de queijo é ressaltado para tentar sanar a dúvida se é com K ou com Q, a escrita desse nome incomum. Nem sempre resolve, pois o “K” é colocado mesmo assim, deixando Queila um tanto desolada e vencida pela ortografia americanizada. Recebemos Queila em fevereiro de 1980, a primeira filha de um casal de operários com escolaridade mínima, marcados pelas dificuldades que uma família com muitos filhos tinha. Trabalhamos desde muito cedo, em roça, cortando mato, ajudando nossos pais, os avós de Queila, para um mínimo de sobrevivência. Contamos poucas dessas histórias para Queila e seus dois irmãos. O suficiente para Queila valorizar cada dificuldade que passamos para criá-la com dignidade e o esforço que fazíamos cada vez que tínhamos que ajudá-la em alguma atividade escolar. Aos sete anos, Queila foi para a escola pela primeira vez, na cidade de Novo Hamburgo no Rio Grande do Sul. Nossa menina, que havia vencido tantas doenças desde que nasceu, conseguiu sobreviver à falta de acesso a serviços

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médicos, foi para a escola ser alfabetizada e não conseguiu nem entrar na sala de aula. Amedrontada voltou para casa, correndo, e esperta com a localização desde sempre, achou a casa mesmo sendo a uns 15 minutos de caminhada. Moramos em muitas casas, mudamos mais de 50 vezes até Queila se casar, sempre procurando mudar de vida, buscando novas oportunidades e, muitas vezes, vendendo o pouco que tínhamos “a preço de banana”, que sempre foi considerada uma fruta barata. Esse primeiro episódio, a fuga da escola, não impediu Queila de gostar de estudar e lutar por sua educação. Vibramos com ela, em sua formatura, pois foi a primeira da família a concluir o Ensino Superior. Queila passou a infância e adolescência sendo ridicularizada na escola, devido a nossa crença religiosa, os usos e costumes com vestimentas, fizeram com que muitas vezes Queila chorasse e se recolhesse em seu mundo, tornando-se uma menina tímida e quieta na escola. Com a juventude e os livros, muita leitura, algumas amizades desinteressadas... Queila superou. Isso não a impediu de escolher a carreira do magistério e a Psicologia. Aliás, a Psicologia foi uma escolha feita no magistério, ao ler as fases do desenvolvimento que Freud descreveu. Com que entusiasmo Queila fala da psicanálise e sua importância para a sociedade! Temos muito orgulho da família que Queila formou: duas filhas e uma cachorrinha linda, morando em Curitiba e visitando o Rio Grande do Sul quando possível. Para Queila, sua atuação como psicóloga sempre esteve voltada à educação. Nós a ouvimos falar animada sobre pessoas, seus desejos, direitos e crenças e que tem um ensinamento que deve ser seguido: “amar ao próximo como a si mesmo”. A busca por uma pós-graduação é o que a move atualmente, pois pretende ser docente e transformar as pessoas com a

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psicanálise, com o amor e o respeito ao próximo.

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Uma História de Vida

Roseli Adão

O meu desejo de ser professora iniciou muito cedo. Minha origem vem de uma família pobre e humilde, porém de muita garra e honestidade. Devido às dificuldades enfrentadas na infância, realizava atividades que eram pertinentes aos adultos. Sou a segunda filha de seis irmãos e com nove anos de idade ajudava a cuidar e a ensinar as tarefas escolares aos meus três irmãos mais novos: uma irmã de nove meses, um irmão de dois anos e uma irmã de quatro anos. Em momentos livres brincava de escolinha e ensinava meus irmãos. Nesta época já tinha o grande anseio de aprender e poder transmitir esse conhecimento. Meu pai trabalhava em uma empresa de sacaria, carregava sacos de 60 quilos de alimentos. Aos trinta e sete anos de idade teve problemas cardíacos e faleceu. Com o falecimento do meu pai (um dos momentos mais difíceis de minha vida) e logo após o da minha avó, precisei ter responsabilidades maiores, tendo a fase da infância e da adolescência comprometida. Durante essa época, os momentos de aprendizagem aconteciam na própria realidade vivida. Minha mãe trabalhava como empregada doméstica, Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná

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ficou viúva aos trinta e dois anos e ficou com seis filhos pequenos para criar e sustentar. Com isso, tive que começar a trabalhar muito cedo como babá. Mesmo com muitas dificuldades para alcançar os meus objetivos, sempre tinha em mente a Docência como profissão. Mas, em meio a essa paixão, havia outra profissão que me chamava a atenção, o Direito. Cada profissão com características diferentes, porém, ambas semelhantes no dom da arguição, da oralidade, na aspiração do conhecimento, dos desafios e da luta pela justiça. No Ensino Fundamental I estudei em escola pública. Também cursei o supletivo da 6ª série à 8ª série (hoje o Ensino Fundamental II) em uma Escola Particular na cidade de Jacarezinho. Aos quinze anos iniciei o curso de Magistério (cuja nomenclatura atual é Formação Docente para atuar em séries iniciais), mas devido às dificuldades encontradas no percurso da vida, não consegui concluir. Fui buscar melhores condições de vida, fazendo uma mudança da cidade de Jacarezinho para Curitiba. Ao chegar na capital, fui inicialmente trabalhar como babá na casa de uma família em troca de moradia e estudos. Nesse período cursei o Supletivo (Ensino Médio). Após concluir esta etapa, retomei o curso de Magistério no Colégio Estadual Instituto de Educação do Paraná Erasmo Pilotto. Nesta Instituição realizei até o terceiro ano do Magistério, participei de vários estágios e paralelamente frequentei o curso de Contabilidade para garantir um estágio na Caixa Econômica Federal e outro no Teatro Guaíra, como meio de sustento. Logo em seguida, fiz o vestibular para Licenciatura Plena em Pedagogia e ingressei na faculdade. Mas, infelizmente, tive que trancar por falta de condições financeiras. Quase um ano depois voltei aos estudos e consegui me formar em Pedagogia e logo após em Direito, como havia almejado.

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Buscava atuar no que fosse necessário em sala de aula, tanto na questão de abuso, de violência, no caso de discriminação racial e preconceito. O curso de Direito me deu maior subsídio para lidar com questões embaraçosas, que muitas vezes são consideradas como um fato isolado ou que a justiça é morosa. Realizei o Trabalho de Conclusão de Curso na graduação de Direito com o tema: “Direitos Sociais: a Educação e Identidade Afrodescendente”. Diante dessa circunstância, percebi a necessidade de melhorar o panorama e a importância da orientação jurídica no cotidiano escolar. E a partir de então, tive um novo olhar para cada aluno, para cada criança, não deixando a impunidade tomar conta da situação, com orientações, dirigindo ações para que todos possam ter os seus direitos de cidadania, de igualdade, de dignidade da pessoa humana. Meu percurso profissional foi amplo: atuei como professora alfabetizadora, corregente, regente, professora de Artes, Educação Ambiental, Ciências (Ensino Fundamental I e II), pedagoga e várias disciplinas do Ensino Médio na cidade de Curitiba e região metropolitana de Piraquara (concurso público para Docência I na Prefeitura de Curitiba). Cursei Pós-graduação Lato Sensu e Sctricto Senso em nível de Especialização em Magistério da Educação Básica com concentração em Interdisciplinaridade na Escola, além de concluir duas Pós-Graduações, cujo tema da pesquisa foi Gênero, Trabalho e Educação. Realizei também Pós-graduação Lato Sensu em Magistério Superior e Metodologia do Ensino e a conclusão do Curso de Mestrado Profissional em Educação e Novas Tecnologias, no dia 06 de março de 2017. Nas minhas atuações profissionais, percebi que muito alunos apresentavam grandes dificuldades, tanto na questão de aprendizagem e de desestrutura familiar, crianças que sofriam abusos, violências, discriminação racial e preconceitos.

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Desta forma, identifiquei-me com determinados problemas dos alunos. Também sofri discriminação racial e preconceito quando era criança. Uma dessas situações se passou na escola nos preparativos para a festa junina. Me tiraram da aula de dança com a justificativa de que eu era muito alta, o que não era verdade, e mesmo se fosse não seria uma justificativa plausível. Na verdade, eu era a única negra da sala de aula, e possivelmente de toda a escola. Mesmo pequena senti a dor, o desrespeito e da discriminação. Que professores eram aqueles? Que escola era aquela que permitia isso? O que ensinavam com esse tipo de atitude? Que valores morais e éticos permeavam aquele recinto educacional? Infelizmente, esse sentimento sempre esteve presente em minha vida, mesmo adulta suportei injúrias na minha graduação. Colegas de faculdade descaradamente me insultavam preconceituosamente. Essas passagens me fizeram empunhar com convicção meus ideais de justiça, de benevolência e de respeito à dignidade humana. Baseando-se em minhas formações acadêmicas e vivências pessoais, iniciei a busca por estudar sobre a temática: a posição dos negros nos ambientes educacionais. Por meio desse estudo procuro destacar a importância que o professor tem em discutir com seus alunos a questão da presença dos negros na sociedade, bem como o que os conteúdos do livro de História expressam sobre esse tema. Para aprofundar ainda mais os estudos acerca deste assunto, no segundo semestre de 2014 fui buscar aperfeiçoamento no Centro Universitário Internacional (UNINTER). Realizei uma disciplina isolada do Mestrado Profissional em Educação e Novas Tecnologias. Houve toda uma preparação de estudo e prestei a seleção de exames de prova escrita, entrevista, idioma e fui aprovada com a seleção de 200 candidatos, para 15 vagas. Aprovada no Mestrado iniciei essa nova etapa de minha vida como aluna do Stricto

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Sensu. Mesmo com as Políticas Públicas e a implementação da Lei 10.639/2003, referente à obrigatoriedade dos estudos da História da África como resgate histórico, percebe-se que ainda têm poucas imagens e conteúdo histórico dos negros e negras nos livros didáticos com acesso digital. De acordo com a análise do Livro didático digital com acesso digital da Secretaria da Educação do Estado do Paraná e segundo dados estatísticos do IBGE (Instituto de Brasileiro de Geografia Estatístico), concluiu-se que atualmente apenas 1% dos alunos negros consegue concluir o nível superior o e número de evasão escolar e repetência ainda é maior comparado com o aluno branco. Esta é a minha trajetória, desde a infância até o presente momento do mestrado, da militância com o tema que compõe a minha identidade, minha vida acadêmica e a profissionalização docente. A pesquisa desenvolvida no mestrado intitula-se de: A Presença/Ausência Dos Negros E Negras Nos Conteúdos Do Livro Didático Com Acesso Digital De História Do Estado Do Paraná.

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Quase nem ligávamos a televisão Leia Andreatta Ceccon

Quase nem ligávamos a televisão, pois desde o levantar até o deitar tínhamos novidades e eram muitas. Os bosques com orvalhos e raios de sol, beleza sem igual, formavam luzes coloridas. Era “fantástico”, de encher os olhos. Éramos livres, sem muitos horários para cumprir e ao mesmo tempo cumprindo sem pressa. Tudo naquele lugar seguia com leveza e sabedoria. A natureza radiante nos recebia de braços abertos, nos mostrando que fazíamos parte dela. As plantações, os animais, os rios… E o tempo passou... E lá foram elas para a escola. “Chegou a hora!!! Nossa, quanta emoção!!! Quanta curiosidade que nem cabia dentro do peito!!!” A passos rápidos, até chegar na pequena escola, construída de madeira. Finalmente, conheci a professora que era linda e de cabelos longos e claros, parecia muito alta, pois eu, uma menina de apenas 6 anos, franzina, era bem baixinha. Ela abriu a porta e lá estavam as carteiras enfileiradas, todas em madeira. Fomos logo sentando na terceira fila e segunda carteira. La passamos longas horas ouvindo a professora falar as normas da escola.

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O quadro parecia enorme e foi dele que copiamos as primeiras letrinhas, naquele caderno com cheirinho de novo. Nossaaa!! Muita emoção!!! Deslizar o lápis pela primeira vez a desenhar as letras e números. Escola Isolada do Rio Abaixo – e que posteriormente recebeu o nome de escola José Ceccon Primo, nome de nosso avô. Foram muitas as lições nos cadernos e cartilhas: vogais, consoante, sílabas, números, tabuadas, valores para o mundo, valores de vida, histórias e cuidados com a natureza.... lá estudamos até o 4º ano, e, entre riscos, rabiscos e poesias, iniciamos a caminhada por essa trajetória infinita, a trajetória de colorir a folha em branco com as letras entrelaçadas. Essa é uma pequena parte da trajetória de nossas vidas.

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Evoluir... Sempre

Galindo Pedro Ramos

Eu, há algum tempo penso, de forma mais eloquente, da necessidade em buscar uma maior formação a nível Stricto Sensu. Algo que me possibilite absorver maiores conhecimentos no tema da Educação das Relações Étnico-Raciais, especialmente na questão da população negra e todos os seus desafios diários de enfrentamento e combate ao racismo. Essa necessidade da pesquisa vem da prática da leitura adquirida desde a minha adolescência, tornando-se mais forte a partir do momento em que me deparei com a prática em sala de aula, quando iniciei a minha carreira como professor em escola pública, além da construção da minha identidade negra. Tenho como objetivo gerar pesquisas que possam auxiliar professores em sua prática pedagógica, especificamente no que tange ao ensino da história e cultura africana e afro-brasileira. Sou de família de classe baixa, nascido em Ponta Grossa, Paraná. Com a ajuda de algumas pessoas e também por

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ter uma formação como atleta, tive a oportunidade de estudar por alguns anos em colégio privado, tanto na minha alfabetização, quanto no ensino médio. Estes fatos foram determinantes na possibilidade em fazer uma universidade, que se transformou em algo inédito em minha família, já que fui o primeiro a estar no ensino superior. Formei-me na Universidade Estadual de Ponta Grossa, em 1998, em Licenciatura em Educação Física, buscando a partir dessa formação a minha ascensão social. Mas esse processo, da minha alfabetização até a chegada ao ensino superior, foi sinuoso e difícil. Desde a minha entrada no ambiente escolar, aos seis anos, em 1982, era preciso e necessário aproveitar as oportunidades dadas a mim, mesmo que nesse início não soubesse disso. Iniciei minha caminhada em uma escola de freiras, que é uma escola privada, paga com muita dificuldade por minha mãe. Lembro-me de algumas vezes em que fiquei de castigo (naquela época era permitido ou pelo menos faziam vistas grossas para isto). Por várias vezes fiquei com o rosto virado para o canto da sala, para que todos vissem e eu servisse de exemplo para quem fosse “traquina” em sala de aula. Por outras tive que escrever no quadro por cem vezes, ou mais, que não iria mais fazer determinada coisa que julgavam errado. Mas nem sempre foram coisas ruins. Lembro-me de jogar futebol nos recreios, do Rafael, que depois fomos nos reencontrar na Universidade fazendo o mesmo curso, do Cleber, que era o mais alto da sala e ficava logo atrás de mim na fila antes das entradas em sala, da tia Ana Maria (minha primeira professora), da Josiane e da Karina, pelas quais nutri minhas primeiras paixões platônicas. Sim, por conta de timidez, vergonha, insegurança, entre tantas outras coisas, vivi inúmeras paixões platônicas em minha vida, pelo menos até o final da minha adolescência. Hoje, penso que não comecei muito bem o meu processo escolar (risos).

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Já em 1986 fui para uma escola pública, próxima da minha casa na época. Lá me recordo da tia (professora Beti), que ficou marcada na minha memória pela doçura no tratamento com os alunos, inclusive comigo. Neste colégio as questões pertinentes à adolescência foram afloradas. Os problemas, as revoltas, rebeldias, outras paixões platônicas e o início da minha prática como atleta de voleibol são alguns elementos muito importantes. Foi nesse colégio que fui “intimado” a brigar na saída da escola pela primeira vez, quando estava na quarta série. Foi um período de muito medo, por não entender os motivos que o “cara” queria brigar comigo e também, já naquela época, não gostava de violência, por questões pessoais que contarei mais a frente. Já que eu não gostava de violência, recorri à minha mãe para me defender (risos). No final das contas, outro colega também me defendeu e acabou batendo na pessoa que queria me agredir. Como já disse, foi nesse colégio, em 1988, que iniciei talvez uma das minhas grandes paixões: a prática do Voleibol. Através deste esporte, cresci e tive oportunidades, culminando inclusive com a influência na minha formação profissional. Também em 1988 meus pais se separaram. Minha mãe estava grávida da minha irmã do meio e até que um “belo” dia houve uma agressão do meu pai, como sempre alcoolizado, contra a minha mãe. Digo um “belo” dia porque as brigas e agressões entre eles eram frequentes, desde que eu me lembro. Então, está aí o maior motivo pelo qual não gosto de violência, se refletindo inclusive no meu comportamento tímido e calado de ser. Em função destas brigas e agressões, minha mãe deu um basta e foi morar com a minha avó materna, claro que me levou junto. Confesso que esse período foi bem conturbado em minha vida, afinal, eu deixaria de ser o único filho, meus pais estavam se separando e tive que me mudar para um lugar onde dormiria na mesma cama que a minha mãe e minha irmã. Hoje

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eu sei que a situação era insustentável para minha mãe e que ela tomou a decisão certa. Aliás, hoje penso que ela demorou demais para tomar essa decisão. Nesse período, então com 12 anos, eu entrava na adolescência um pouco perdido, mas com uma boa cabeça, em função de praticar esportes e por personalidade mesmo, sendo bastante responsável com o que me propunha e ainda proponho a fazer. Então, ao contrário do que meu pai me disse quando eu e minha mãe saímos de casa, não me tornei um drogado ou um adolescente inconsequente. Pelo contrário, foquei nos estudos, já que seria uma das minhas poucas oportunidades de poder ser algo positivo pra mim e pra minha família. Com o passar do tempo, fui me desenvolvendo no voleibol e tive a oportunidade de estudar em outro colégio privado, onde enfim percebi a minha realidade social e racial. Sim, me vi pobre e preto em um ambiente branco e rico, ou pelo menos em um lugar de brancos com melhores possibilidades que eu. Tinham negros lá além de mim. Eram dois e... acho que mais ninguém. Mas de nós três, eu era com toda certeza o mais pobre, o que vivia em uma casa de madeira antiga, rua de terra e com uma cerca de madeira caindo na frente. Claro que vieram outras paixões platônicas. Mas teve uma guria que eu realmente venci a timidez e pedi ela em namoro. Ela branca, loira, morava próxima do colégio, acho que o pai era militar. Ela demorou alguns dias pra me dar uma resposta. E quando ela veio foi aquela decepção. Talvez a primeira decepção amorosa da minha vida (risos). Lembro-me de um dia irmos fazer trabalho escolar na casa de um colega de turma deste colégio. Fiquei impressionado com o tamanho da casa dele. Era enorme. Vivi nesse mundo de faz de conta, porém sempre voltando à minha realidade, todos os dias.

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Em 1993, então no terceiro ano do ensino médio, meus colegas falavam em vestibular, algo que nem passava pela minha cabeça, já que não tinha um incentivo familiar para que eu fizesse. De tanto ouvir, decidi que iria fazer também, mas daí surgiu a dúvida: qual seria o curso a escolher? Em um primeiro momento eu queria ser advogado, mas logo desisti da ideia, por não ter tempo para estudar, já que estudava pela manhã, treinava no período da tarde e também à noite. Então decidi fazer o vestibular para ser professor de Educação Física, sonhando em ser treinador de voleibol. Então fui aprovado em 1994 no vestibular, algo que demorei pra acreditar. Começava aí minha fase acadêmica. Período de descobertas, principalmente com relação à minha autoestima. Nessa fase percebia os olhares diferentes das mulheres que nesse período me viam como um homem bonito. O meu curso transcorreu de forma muito positiva, com namoradas, com dependências em algumas disciplinas, amigos que fiz, decepções. Formei-me em 1998 e já no ano seguinte fui trabalhar e morar em um município do noroeste do Paraná, onde fui realizar meu sonho de ser treinador de voleibol. Depois de retornar do noroeste, em 2000, até 2004 foram anos difíceis, de desemprego e falta de dinheiro. Nesse período tive um filho, o qual não é meu filho biológico, mas é meu filho, já que o adotei no meu coração quando ele tinha um ano e oito meses. Tive um relacionamento de quase 12 anos com a mãe dele. Período de muitas alegrias, dificuldades, choros e muito, muito aprendizado. Ambos foram o ponto de partida para uma mudança na minha vida, do ponto de vista da individualidade. A partir dele, comecei a aprender a dividir e até muitas das vezes abrir mão do que era pra mim e deixar pra ele. Após esses anos de desemprego, iniciei minha vida profissional como professor em escolas públicas estaduais, primeiro como professor contratado e depois em 2006 como

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professor concursado. Neste ano assumi meu padrão como professor em uma cidade próxima de Ponta Grossa. Por lá fiquei cinco anos até conseguir transferência para Ponta Grossa. Nesse período em que fiquei nesta cidade, iniciei meus estudos nas questões raciais, em especial no tema negritude. Descobri-me, finalmente, como homem negro e militante no combate ao racismo estruturado e institucionalizado em nossa sociedade. A partir do início dos estudos, participações em palestras, simpósios e encontros se tornaram frequentes, realizei vários trabalhos nas escolas que trabalhei no trato pedagógico com meus alunos e como coordenador de Equipes Multidisciplinares, buscando a implementação das Leis 10.639/03 e 11.645/08, que trata do estudo da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena, nas escolas por onde passei. Ainda dentro desta caminhada na SEED, prestei serviços por pouco mais de três anos no Núcleo Regional de Educação de Ponta Grossa, atuando em vários setores técnicos e pedagógicos, alcançando meu objetivo em 2015, onde assumi a Coordenação do Departamento da Diversidade do NRE. Através de um bom trabalho desempenhado, em 2017 recebi o convite para integrar a Coordenação da Educação das Relações da Diversidade Étnico-racial do Departamento da Diversidade da Secretaria Estadual de Educação, como técnico-pedagógico. Trabalho em várias frentes na questão racial, com um cuidado especial às Equipes Multidisciplinares das Escolas e Núcleos Regionais de Educação, na criação, formatação e coordenação da Formação Continuada para os componentes destas Equipes de todo o Estado. Como já escrevi anteriormente, desde o ano de 2005 venho participando de Formações, Seminários, Palestras, Oficinas, entre outros, além de leituras de livros, artigos e periódicos, buscando o estudo sobre o povo negro e suas lutas diárias para o enfrentamento ao racismo estruturado e institu-

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cionalizado em nossa sociedade, bem como da valorização da história e cultura desse povo. Estes estudos me possibilitaram o autoconhecimento enquanto homem negro, consubstanciando a certeza do orgulho em fazer parte desta população e da necessidade de obter conhecimento para auxiliar na luta diária em que citei acima. Em função de todo esse processo de construção histórica, social e política da minha identidade negra, participei de alguns grupos de estudos de forma independente em Ponta Grossa. Atualmente faço parte do projeto chamado Africanitude, criado pela minha namorada, onde busca-se trabalhar com o intuito de mostrar a arte negra como ARTE e não como um simples artesanato, também tratando com ênfase a estética negra como símbolo de resistência, através de exposições, palestras e oficinas. Por fim, venho tendo muito interesse no processo histórico dos Movimentos Sociais Negros e nas lutas das pessoas que compunham e que ainda compõem estes grupos, em especial das conquistas na área da educação. Pretendo continuar e ampliar esses estudos para que eu possa auxiliar ainda mais, em especial no campo pedagógico, no combate ao racismo contra a população negra.

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Minha Vida: Alegrias e Contradições Adriana Cristina Zielinski do Nascimento Nascemos em Curitiba no ano de 1970. Nossos pais, Teresa e Antonio, nos esperavam com muito amor e carinho. Nascemos em um berço com poucas condições financeiras, sendo que a nossa moradia era somente um cômodo de madeira, emprestado pela avó paterna. Nosso pai recebeu proposta de emprego em São Paulo, em um haras, para cuidar de cavalos. Foi quando nos mudamos. E aí tivemos parte da infância neste local. Aos quatro anos de idade nos mudamos novamente para Curitiba. Parecíamos ciganos, de tantas mudanças. Aliás, em parte desta infância, realmente tivemos a convivência com o povo cigano que normalmente acampava em um campo ao lado de nossa casa. Era divertido. Aos sete anos e meio, nossa mãe nos colocou na escola. Era longe. Tínhamos que andar um bocado. Lembramos do Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná

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cheiro bom do livro novo e o nome da primeira professora. O tempo foi passando e a inquietação de nosso pai mantinha a nossa vida cigana de muitas mudanças e trocas constantes de escola. Nós moramos em Curitiba, São Paulo, Piraquara, Fazenda Rio Grande e Curitiba de novo. Parecíamos mesmo com ciganos. A nossa adolescência chegou e com ela as dificuldades ainda vinham conosco. Mas aos nossos dezoito anos, sentadas em um meio-fio na frente de casa, junto com uma amiga, ia passando o irmão dela que parou na nossa frente, lindo, charmoso e perfumado. Levantamos e num instante, nós e nossas almas, roubamos um rápido beijo, fato que iniciou o nosso relacionamento e, três anos depois, o casamento. Ele, negro, e nosso pai, racista, no dia do casamento optou por ir pescar, não comparecendo ao evento. Nossa festa de casamento foi simples, mas muito feliz, assim como a nossa vida, que logo depois de dois anos nos contemplou com o primeiro filho, Alexandre, mais dois anos e outro presente, a Bruna. Estes filhos, a partir da chegada, só nos trouxeram alegrias. Eles estavam ainda pequenos quando nós decidimos estudar. Entramos no curso de Pedagogia aos 35 anos e desde então foram mais quatro especializações. Fizemos concurso público em dois municípios e trabalhamos em um como professora e outro como pedagoga, sabendo que nestas profissões requer-se estudo constante. Aos 46 iniciamos o curso de Pré-Pós da UFPR, nos preparando para o Mestrado, e esta nossa história não termina aqui.

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Memórias da minha Pele Ana Lucia Martins No lugar onde guardo as emoções, a lembrança mais forte que tenho da primeira infância é o dia que meus pais e meus irmãos saíram sem me levar. Lembro-me das lágrimas escorrendo em meu rosto magro e pequeno, se misturando ao sabor da saudade. E como numa fotografia, vejo a casa, o quintal e a escada de madeira com cinco degraus, onde permaneci sentada durante todo o dia esperando o retorno dos meus pais e meus dois irmãos. Cresci em um lugar simples. Uma casa de madeira com um amplo quintal, repleto de árvores frutíferas de todas as espécies, uma horta verdejante com lindas espigas de milho, repolhos e hortaliças brilhantes, protegidas por uma fileira de cana-de-açúcar que adorava chupar sentada no chão com meus irmãos, primos e vizinhos. As árvores maiores serviam de suporte para as balanças, gira-gira e gangorras, fruto das invencionices do meu pai e meus irmãos mais velhos. Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná

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Éramos cinco irmãos. A diferença de idade contribuiu para que aprendêssemos uns com os outros, cuidando uns dos outros, dividindo segredos, mistérios, fantasias e medos da infância, os anseios da adolescência e as dificuldades dos primeiros passos para a vida adulta. A falta de brinquedo na época despertava e estimulava nossa criatividade. Os brinquedos e brincadeiras eram criados pelos mais velhos e compartilhados com todos. A ausência de um aparelho de televisão aguçava minha curiosidade. Juntava-me aos meus irmãos para ouvir músicas e telenovelas, decorava os comerciais e imitava os apresentadores dos programas. De todas as brincadeiras e brinquedos, a casinha de boneca era a preferida. Um canto qualquer servia de quarto, sala, cozinha e minhas bonecas se transformavam em uma família. A casinha montada em um canto qualquer foi substituída por uma casinha construída por meu pai num terreno vazio em frente à minha casa. Passava horas arrumando louças de barro, presente do tio Neri, e varrendo o chão da casa com vassoura que meu pai fazia com mato colhido ao redor. O fogão era de tijolos, com gravetos e grade de ferro - tudo construído com cuidado por meu pai. Ali eu passava horas e horas com minhas bonecas, cheias de roupas costuradas por minha mãe. As brincadeiras de rua fizeram parte do meu repertório de aprendizados. Soltava pipa com meus irmãos, jogava peteca, montava e desmontava arapuca observando cada gesto de meus irmãos. Aos seis anos fui para a creche, lugar onde eu deveria permanecer até completar 7 anos e ir para a escola. Esse primeiro contato com a escola não foi prazeroso. Fui deixada na escada de um prédio suntuoso. Gigante, se comparado à minha casa. Permaneci chorando durante todo o tempo, que pareceu longo demais até o retorno dos meus irmãos mais velhos. O medo do abandono, a saudade de casa

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e principalmente a falta da mãe, tornavam aquele lugar frio e estranho. Todos os dias ao ser deixada na frente da creche por minha mãe eu chorava. Agarrava-me ao meu irmão, apenas 2 anos mais velho, e assim permanecia, chorando durante todo o dia. Os dias se seguiam tristes, dolorosos e longos. Não foram muitos, a dificuldade de permanecer naquela escola fez com que as irmãs ou minha mãe decidissem nos transferir para a escola onde estudavam meus irmãos mais velhos e todas as minhas primas e primos. E embora não estivesse com a idade certa, me adaptei e consegui acompanhar a turma onde estudava minha prima, minha melhor amiga. Foi na sala da Dona Albertina que me senti segura e assim iniciei meus primeiros aprendizados no mundo da escola. Ali eu parei de chorar. Tracei as primeiras linhas de um grafismo preciso e ordenado. Escrevi as primeiras letras, li as primeiras sílabas e me encantei com a história do Grilinho Brincalhão. Todas as fases da escola passaram a ter muita importância na minha vida até a vida adulta. Muito cedo eu já sabia: queria ser professora, bailarina e cantora. Todas as fases da infância foram marcadas pela alegria, risos, contentamento, saudades e muitas curiosidades. O cuidado dos meus irmãos e da minha mãe me fazia esquecer tudo que não fosso tão bom. A alegria das brincadeiras e descobertas compensavam qualquer dor. Tudo era fantasia e felicidade! O mundo de criança ocupou todo o espaço. Com a chegada da adolescência vieram os impulsos, desequilíbrios, emoções descontroladas, rebeldia e o desejo de mostrar que eu já não era mais uma menina. Os conflitos com meu pai tomaram uma dimensão maior que a esperada. A vida, ou as consequências da desobediência… O ensino superior chegou um pouco mais tarde. O sonho de ser professora, bailarina ou cantora cederam lugar à maternidade precoce. Ser mãe aos 16 anos não foi

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planejado. Os sonhos descritos nos diários e cadernos, meus companheiros inseparáveis na adolescência, foram deixados para trás. Os livros eram o lugar de refúgio na confusão dos dias que se seguiram, lentos, confusos e sem esperança. Com a chegada do pequeno Alison, tudo se transformou, a menina chorona e triste descobriu uma força que não conhecia, movida pela necessidade de reinventar, superar e abreviar os sonhos, o motivo para seguir meus sonhos. O magistério foi a primeira porta a se abrir para que os meus sonhos de menina se tornassem realidade. Conciliar estudo, trabalho e filho, só foi possível com a ajuda dos meus pais e meus irmãos. Iniciei a carreira de magistério na educação infantil, em 1983. Em 1986 ingressei no ensino superior, me tornando bacharel em educação física. Mais um sonho realizado! Com a educação física me aproximei ainda mais da dança. Ser bailarina clássica já não era possível, somente as aulas de balé e dança moderna, que já eram suficientes para alimentar o sonho adormecido em mim. Em 1989 Dancei no Festival de Dança de Joinville, mais um sonho vivido! Dancei e me tornei ainda mais feliz. Dançar exigia tempo de dedicação. Com filho em idade escolar, para uma mãe solteira a vida exigia mais, trabalhar era mais urgente, com o aumento da carga horária, a dança perdeu espaço. O contato coma dança, teatro, música e outras artes ao longo desses poucos anos trouxeram novas perspectivas. E em 1998 escrevi o Projeto de Dança na Escola inspirada e estimulada pelo professor Evandro Passos, de Danças Africanas, em Belo Horizonte, que ensinava nas escolas estaduais. O Projeto Dança na Escola se tornou um programa da Secretaria Municipal de Educação. Inicialmente chamado “Dançando nas Escolas”, o programa atendia alunos no contra turno escolar como uma possibilidade de uma educação

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integral. Hoje oficialmente o Programa Dança na Escola possui um programa de ensino de dança organizado pelas professoras que integram o programa e atende em média 30 escolas municipais, motivo de muito orgulho para mim. Meu sonho de menina se transformou no sonho de muitas meninas e meninos de Joinville. A dança, a educação física, a arte e a cultura fizeram parte de toda a minha trajetória profissional e da minha vida. Dancei na Companhia de Dança Actus Cênico, do professor e coreógrafo Lucas David, meu primeiro e grande mestre, onde iniciei o ensino de Dança com turmas de baby class. Participei de um trabalho coreográfico do professor, coreógrafo e bailarino Vald Oliveira e outras apresentações na cidade. Trabalhei no festival de dança de Joinville e participei de inúmeros cursos e oficinas de dança durante o festival e fora dele. Participei de oficinas de teatro e integrei o grupo de teatro do SESI com a Peça “Boi de Mamão”, dirigida por Jairo Maciel. Participei ainda de uma peça baseada no romance “Os Irmãos Karamazov”, de Fiódor Dostoiévski. Finalizei minha carreira no magistério atuando no Programa Dança na Escola como professora, coreógrafa e ensaiadora. Participei de Mostras e Festivais de Dança no município e região. Após 30 anos dedicados à educação, reiniciei uma nova fase. O retorno à academia acontece como pesquisadora das relações de gênero e relações étnico raciais, num trabalho que pretende investigar a participação das mulheres negras nos espaços de poder e controle social como sujeitos políticos de transformação social para a reafirmação da identidade cultural coletiva e a representação de seu pertencimento. Esse projeto nasce como extensão dos 3 anos de atuação do Coletivo de Mulheres Negras de Joinville, que atua nas áreas de saúde, educação, empreendedorismo e reafirmação da identidade

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cultural da população negra de Joinville, com especial atenção às mulheres negras, promovendo a visibilidade e empoderamento destas, na valorização dos seus saberes e da sua contribuição na formação e construção social, política e econômica da sua cidade. A academia é o lugar da produção do conhecimento e da formação de novos sujeitos que deverão ou poderão devolver à sociedade a produção desses conhecimentos adquiridos. É nessa perspectiva que faço um breve relato da minha trajetória. Reinicio o ciclo, agora com mais maturidade, conhecendo o meu lugar como mulher negra, reconhecendo o meu território e me dispondo a trilhar este novo caminho.

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Ana Luísa com ‘s’ e acento no ‘i’

Ana Luísa Pereira

Nasci em Vitória da Conquista, na Bahia, e me criei em Guarapuava, no Paraná. Ouvi a vida inteira o papo “nossa, mas o que uma baiana faz em Guarapuava?”. Oras... Vivia! E antes que se pergunte: “mas o que move uma pessoa da Bahia para Guarapuava?”, vou te contar que meu pai era funcionário do Banco do Brasil e, assim, aceitou uma transferência para lá. Em Guarapuava tive uma infância linda, com uma rua cheia de crianças e uma paz que me dói saber que não mais é possível. Passava os dias brincando na rua com meus vizinhos. Fechávamos a rua para brincar de bete-ombro, caçador, mãe-da-rua, alerta, esconde-esconde... Nossa! Quanta coisa boa! Também descobri muitas coisas nesta pacata cidade. Coisas muito importantes e delimitantes para minha personalidade. Por exemplo, descobri que odeio o frio, de não curtir mesmo. Me dói. No frio, deitar na cama é ruim, pois a cama tá um gelo e levantar é pior, porque aí a cama tá quente. Fazer xixi, impossível; ter que sentar na privada logo que acorda, Narrativas periféricas e formação humana no Pré-Pós UFPR Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná

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insuportável. Sair, nada. Trabalhar, horrível. Nada é bom no frio. Pois bem, em Guarapuava sempre fazia MUITO frio. Sim, foi aquela cidade que nevou horrores em 2013. Ou seja, Guarapuava e eu: -1 grau, obviamente. Além disso, em Guarapuava descobri que não nasci para ser da “sociedade guarapuavana”. Lá, todo mundo tinha nome e sobrenome: Maria Fernanda Condessa, Maria Tereza Ribeiro, Felipe Kaminski. E eu: Ana Luísa Pereira. Pereira. Quem era eu mesmo na escola? Então, nunca me encaixei. Até minha 4ª série (5º ano hoje), estudei em um colégio que só tinha eu de negra. Todas loiras, lindas, com sobrenome, pedigree (sem ofensa) e tudo. E eu, preta, Pereira. Sofri de todas as formas que se possa imaginar. Quando novinha, e minha mãe me chamava de “pretinha”, eu chorava, esperneava, e falava que eu não era preta, era marrom-clara “quase bege”. Sim, aquele maldito lápis cor de pele. Não sonhava em ser paquita, nunca vi uma paquita preta. Me sentia zero de representação em muitos lugares, até no cotidiano. Isso me deixou feridas na autoestima que poderiam ser irrecuperáveis. Ainda bem que não foram. Entre os 10 e 13 anos fui para um colégio público, o que, de certa forma, aliviou um pouco esse problema, mas nem tanto. Continuava sendo a preta. Só o Pereira que encontrou semelhantes. Aos 14 anos vim para Curitiba. Minha irmã, dez anos mais velha que eu, já morava aqui. Foram anos de adaptação, mas de certa maneira, vir para Curitiba me renovou, me trouxe uma esperança de ser alguém, mesmo sendo Pereira, mesmo sendo preta. Durante um ano me adaptei. Fiz alguns amigos, estudei menos que deveria, mas me diverti mais do que imaginaria. Descobri a diversão, a liberdade, amigos de verdade, enfim, me entreguei àquilo que a vida estava me oferecendo. Fiz o vestibular e passei. Lógico, de acordo com o meu esforço. Meu sonho era fazer Federal, mas, ok, nem tinha me

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dedicado tanto assim mesmo. No ano em que prestei vestibular, meu curso estava mais concorrido que Medicina. Imagina, eu tinha vida demais pra viver. Nunca passaria. Mas, ok. Passei. Em outra, mas passei. Entrei com toda a garra do mundo, com muita vontade de fazer, e fazer o meu melhor. Assumo que também durante a faculdade me entreguei à vida, o que não me fez uma aluna exemplar, mas, dedicada e sempre envolvida. Fiz o meu melhor e me formei. Durante a faculdade trabalhei, estagiei, namorei, conheci o pai dos meus filhos, conheci amigos para toda a vida e pronto. Virei a Ana Luísa que aqui está hoje. Comecei minha carreira profissional em agência de publicidade, revisando tabloide de supermercado, e fui de uma agência para outra, me especializando em virar madrugadas comendo pizza e revisando anúncios. Já de saco cheio de agência, procurei mudar de ramo e fui para o ramo editorial. Dei sorte e já cheguei supervisionando uma equipe de dez revisores. Adorei a experiência. Era novinha de tudo e super disposta a aprender, soube aproveitar minha facilidade de comunicação para colher excelentes frutos. Neste primeiro emprego no ramo editorial fiquei três anos. Já era casada e engravidei. Com cinco meses de gravidez fizeram uma limpa nas equipes e eu fui junto. Grávida, com uma justa causa qualquer para poder me dispensar. Cinco meses de gravidez, um marido ator e músico, com uma mão na frente outra atrás. Tempinho depois mais um baque. Minha mãe descobriu um câncer no seio. Foram tempos difíceis. De economizar até no shampoo que usa. Entrei com um processo, claro, mas sem perspectivas breves. Como na vida tudo se ajeita, minha filha nasceu e eu logo voltei para o mercado de trabalho. Ter uma filha me trouxe uma nova descoberta: o amor. Sempre falo que filho preenche um vazio que a gente não sabe que tem até tê-los. É quase como descobrir o sentido da vida. Sofri bastante com as questões da maternidade, ain-

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da mais por ser mãe de primeira viagem, ó que desgraça. Amamentação, difícil. Noites sem dormir, difícil. Trabalhar e perder momentos do seu filho, um sofrimento. Mas tudo compensa. Trabalhei bastante novamente… E engravidei de novo, quando Lili tinha 3 anos. Atravessava uma fase difícil no casamento, acabei abortando e, de novo, perdi o emprego. Ciclos. Tudo foi se ajeitando novamente quando uma bomba caiu sobre mim. Casamento desfeito, uma nova gravidez (!) e minha mãe novamente com um diagnóstico de câncer. Desta vez no intestino. Se aqueles lá tinham sido dias difíceis, esses então, oxi! Minha mãe lutando contra a doença e eu, com um menino na barriga, chorando quase todos os dias. Assim que ele nasceu, a empresa que me contratava como pessoa jurídica me dispensou e eu, novamente nos ciclos. Meu lindo menino nasceu e descobri um novo amor. Diferente, intenso, pleno. Um ano e meio depois minha mãe faleceu. A dor mais dolorosa que já senti e que ainda sinto. Se meus filhos preencheram um vazio, esta perda cavou um buraco dentro da minha alma. Profissionalmente, durante todas essas tragédias mexicanas, atuei como revisora, editora, assessora de imprensa, conteudista, designer instrucional, e, hoje, sou assessora de comunicação de uma Fundação que desenvolve um trabalho bem bacana de capacitação a funcionários da área da limpeza. Me separei recentemente, mas vivo uma história de amor com a minha família. Sim, incluindo o pai dos meus filhos. Afinal, a vida é muito curta para deixar de estar com quem se gosta, sem rótulos e sem cobranças. Hoje, busco fazer da minha vida a melhor que posso ter. Incluí nos meus objetivos realizar meu sonho profissional, que é o da docência. Assim, tomei vergonha na cara, parei de arranjar desculpa e me objetivei a correr atrás do mestrado.

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Não é fácil conciliar dois empregos, dois filhos, vida social, estudos, casa, gatos, mercado, roupas, lancheiras, meias, férias, ex-marido, festas, mas posso dizer que tenho uma vida plena. Estudar me trouxe uma vivacidade que tem sido inexplicável. Poder me desafiar a fazer algo que vai além da minha zona de conforto me mantém acesa. Nunca me senti sofredora pelos acontecimentos na minha vida. Sou dessas que ergue a cabeça e enfrenta. Acho que tudo isso me trouxe uma maturidade da qual sou muito grata. Descobri a luta feminista e me assumi completamente como negra que sou, única, e tenho certeza que a academia é o meu lugar. É ali que me farei representar e é ali que pretendo me realizar. No mais, é só esperar o que o tempo me reserva!

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Aprender para Ensinar para Aprender... Elizângela da Silva Ribas Rosa

Nós estudamos em uma escola na região metropolitana de Curitiba, aos sete anos tivemos nossa primeira experiência no mundo letrado acadêmico, pois já sabia ler e escrever devido a termos irmãos mais velhos que nos ensinaram em casa. Adorávamos o horário do recreio, pois naquele espaço e momento podíamos brincar com as outras crianças da mesma idade. Essa escola fez parte das nossas vidas até os quatorze anos de idade. Como lá não tinha o Ensino Médio, fomos obrigados a mudar para outra instituição. Na outra instituição, para nós foi um choque de realidades, pois deixávamos uma escola pequena em Piraquara e entraríamos no Colégio Estadual do Paraná. Nos dias de hoje, essa transição ocorreria de forma natural, mas a vinte e oito anos existia um preconceito com relação ao Município de Piraquara, pois era conhecido pela penitenciária e o hospital de leprosos São Roque. Com o decorrer dos anos, não sabemos porquê, nenhum colega de classe nos visitou em casa.

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Terminamos o Ensino Médio e consequentemente começamos a trabalhar, porque na época tínhamos a necessidade para a sobrevivência, pois éramos de família pobre. Os anos se passaram, fizemos o vestibular e conseguimos concluir a graduação de Pedagogia paralelamente a uma rotina de trabalho e responsabilidades de casa, pois na época já éramos casados e com duas filhas pequenas.

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Taciturnidade

Naiara John

Taciturnidade como um fragmento poético traduz de forma imagética como a procura começou. Podemos iniciar esta busca em meados de 1992, no mês de novembro, dia 09, às 8h45min de uma segunda-feira, na cidade de São Bento do Sul – SC. elas chegaram ao mundo. Infância regrada, metas a serem alcançadas, dualidade, mas nesta altura já possuíam uma companhia, a irmã caçula. Aos 10 anos, uma viagem inesperada as levou para longe. Sua mãe se separou e teriam que recomeçar. A cidade de Antonina – PR foi a escolhida. Novas roupas, nova realidade. A adaptação não foi tranquila, mas sempre foram boas alunas. Cursaram Técnico em Meio Ambiente. E depois, o que viria? Prestaram vestibular para Ciências Biológicas e não passaram. E agora? Outra tentativa para Ciências Biológicas, Meio Ambiente e Diversidade, e Artes. Optaram por Artes, mudaram de cidade, teriam que morar sozinhas. Pagar contas e cuidarem de si mesmas não foi muito fácil, mas conseguiram se formar com louvor.

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Mas e depois o que aconteceu? Adoeceram, com o lado emocional fragilizado. Se esconderam novamente em seus quartos escuros. Mas a história não acaba aqui. Uma fenda permitiu passar o sol e elas estão podendo sonhar e tentar novamente. Qual será o resultado desta busca? Nem elas sabem, apenas não podem parar de caminhar. Naiara John.

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Que seja leve e alegre enquanto dure Jhuliane Evelyn da Silva PROJETO FORMAÇÃO PRÉ-ACADÊMICA AFIRMAÇÃO NA PÓS UFPR. Este foi o nome que vi em meu email por meio de edital e logo me peguei encafifada com a oportunidade. Mas o que seria aquele curso? E de afirmação? Nunca vi isso. Corri para o site... Apaixonei-me! Feita a inscrição, logo veio a confirmação de que eu teria a possibilidade de trabalhar ao lado de pessoas com sonhos. Isso, pessoas com sonhos tão grandes que estariam dispostas a sair de suas casas e passar todo o seu sábado estudando, longe do conforto de suas casas, de seus afazeres domésticos, de seus compromissos de trabalho, de suas atividades acadêmicas, enfim, dispostas a investir em si próprias para realizarem seu sonho – nobre e exigente – de entrar na pós-graduação. Seria a oportunidade que estava esperando para fazer algo mais do que investir na minha vida de doutoranda na instituição? Seria uma porta para entrar na vida de outras pessoas e aprender com elas? Não sei. Quis buscar as respostas. Uma resposta já veio na entrevista. Banca rápida, perguntas objetivas, olhares e ouvidos atentos aos candidatos.

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E eu? Ah, um sorriso no rosto aproveitando a experiência que não era para qualquer um, com o pensamento nas entrevistas que já tinha feito, na ficha de inscrição que perguntava sobre experiência com Libras e eu não tinha, na minha vida acadêmica e nos passos dados para chegar até ali. Motivação, ansiedade e calmaria ao mesmo tempo tiveram um resultado positivo: Tinha passado na seleção! Ufa! Que bom!!!!! Mas... e agora, José? Quer dizer, e agora, Jhuliane? O que você tem a oferecer, o que você vai fazer? A primeira reunião com o grupo de mentores refletiu o primeiro dia com os mentorandos – não somente cursistas. O que tínhamos para dar e o que queríamos receber daquele espaço e daquelas pessoas? Respondendo àquelas perguntas, disse, entre outras coisas, rapidamente, no perigo literalmente de ter meu dedo queimado por um palito de fósforo: Quero oferecer um espaço leve, agradável, de construção de conhecimentos e de aprendizagens! Estas palavras ressoaram até o final da experiência. Mas continuemos. Ao conhecer cada pessoa naquela sala, radiante fiquei por ver que mais do que pessoas com sonhos, havia pessoas com possibilidades, com histórias e com muita caminhada até aquele momento. De um lado, os que ainda estavam no início da sua vida acadêmica, na graduação, aprendendo a lidar com aquela linguagem tão específica. De outro, estudantes em sua segunda graduação e profissionais graduados há pouco e há muito tempo, atuando como diretores e professores de escolas, comunicadoras sociais, advogada, intérpretes de Libras. Naquela sala, contudo, além de suas identidades profissionais, eram Ana, Adilson, Carolina, Edvone, Glaucia, Ivan, José, Jucélia, Lycia, Marcia Lucas, Marcia Rezende, Mônica, Nicolas, integrantes do grupo Bi do bi Inka. Bi do bi Inka. Nossa identidade. O que significa? Paz e harmonia, pedras fundamentais e nucleares para o caminho que estávamos construindo. Foram essas pedras

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as responsáveis por nos unir e fortalecer nossa aceitação do outro, ao passo que nos posicionou enquanto admiradores, incentivadores e entusiastas em prol do crescimento do outro. É bem verdade que nem todos puderam participar até o final, mas sua presença cativou e ajudou o grupo em todos os momentos a constituir-se enquanto um eu do outro, ou um não-eu de si mesmo. Com o passar do tempo, a vergonha foi sendo deixada de lado para abrir espaço à tentativa, ao posicionamento, à conversa, à escrita e à reescrita, e, principalmente, ao entendimento de que a realização do sonho da pós-graduação só se faz possível por meio de um contínuo, constante e infindável processo de decisões tomadas diariamente, de suor, de estabelecimento de prioridades, de tempo (substantivo tão raro e precioso), de sofrimentos em maior ou menor escala, de pressão e prazos, enfim, de passos sendo dados um após o outro no tempo de cada um. Fato é que encontro após encontro, zap após zap e muitos e-mails compartilhando documentos no drive – e muitos, muitos memes – a caminhada foi ficando mais suportável e concreta de maneira que além de pessoas com sonhos, possibilidades e histórias, consegui ver seres humanos com muito futuro alçando voos, caminhando sozinhos (sambando na cara da sociedade, como repetimos em nossas conversas^^). – Já acabou, Jhuliane? – Ainda não. Quer dizer, o que é um ponto final senão uma oportunidade para se começar uma outra linha, uma outra página, para se escrever outras histórias com outros pontos de chegada e de partida? Assim, olhando em retrospecto para esta experiência, concluo que ela me oportunizou dar o melhor de mim até aquele momento, pois o que sou e toda a minha história de vida, pessoal, acadêmica e profissional se mesclam e se pulverizam em quem eu sou hoje, pessoa diferente da de ontem e da que será amanhã. A menininha que desde criança sonhava

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em estudar, fazer um mestrado e um doutorado, em ser a diferença no mundo e, se casasse, em fazê-lo aos cinquenta anos(!), lá estava no doutorado, caminhando acompanhada de pessoas e experiências únicas, portando um sorriso largo porque verdadeiro e motivado pelas curvas da vida. Perante tantos desafios e medos, conseguimos como um grupo ser mais leves no que pudemos, mais amáveis e pacientes conosco e com o outro; conseguimos ser Bi do bi

Inka.

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