RACISMO, DISCURSO E EDUCAÇÃO: ESTRATÉGIAS IDEOLÓGICAS

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Paulo Vinicius Baptista da Silva DĂŠbora Oyayomi Araujo Wellington Oliveira dos Santos (Organizadores)



Paulo Vinicius Baptista da Silva DĂŠbora Oyayomi Araujo Wellington Oliveira dos Santos (Organizadores)


UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ REITOR Ricardo Marcelo Fonseca VICE-REITOR Graciela Bolzón de Muniz PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO Eduardo Sales de Oliveira Barra COORDENAÇÃO DE ESTUDOS E PESQUISAS INOVADORAS NA GRADUAÇÃO Laura Ceretta Moreira NÚCLEO DE ESTUDOS AFRO-BRASILEIROS Lucimar Rosa Dias COORDENAÇÃO EDITORIAL Paulo Vinicius Baptista da Silva CONSELHO EDITORIAL Dr. Acácio Sidinei Almeida Santos – UFABC Dr. Alex Ratts – UFG Dr. Alexsandro Rodrigues - UFES Dr. Ari Lima – UNEB Dra. Aparecida de Jesus Ferreira – UEPG Dra. Conceição Evaristo – Escritora Dr. Eduardo David de Oliveira – UFBA Dra. Eliane Debus – UFSC Dra. Florentina da Silva Souza – UFBA Dr. José Endoença Martins – FURB Dra. Lucimar Rosa Dias – UFPR Dr. Marcio Rodrigo Vale Caetano – UFRG Dr. Moisés de Melo Santana – UFRPE Dra. Nilma Lino Gomes – UFMG Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva – USFCAR Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso – UDESC Dra. Wilma Baía Coelho – UFPA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SISTEMA DE BIBLIOTECAS BIBLIOTECA CENTRAL – COORDENAÇÃO DE PROCESSOS TÉCNICOS R121

Racismo, discurso e educação: estratégias ideológicas \ organizadores Paulo Vinicius Baptista da Silva, Débora Cristina de Araújo, Wellington Oliveira dos Santos. – [Curitiba] : NEAB, [2018]. 364 p. : il. (algumas color.) ; 22 cm. Vários autores. Inclui referências. ISBN 978-85-66278-14-9 1. Racismo. 2. Relações raciais. 3. Discriminação na educação. 4. Segregação na educação. I. Silva, Paulo Vinicius Baptista da, 1965- . II. Araújo, Débora Cristina de. III. Santos, Wellington Oliveira dos. IV. Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná. V. Título. CDD: 301.451 CDU: 323.12 Bibliotecário: Arthur Leitis Junior - CRB 9/1548


© Paulo Vinicius Baptista da Silva, Débora Oyayomi Araujo & Wellington Oliveira dos Santos RACISMO, DISCURSO E EDUCAÇÃO: ESTRATÉGIAS IDEOLÓGICAS Coordenação Editorial Paulo Vinicius Baptista da Silva Projeto gráfico Barbara do Nascimento Ramos Lucas Garcia da Silva Revisão Débora Oyayomi Araujo Wellington Oliveira dos Santos Editoração Reinaldo Cezar Lima

e-book publicado pelo NEAB-UFPR.



Sumário 9

CAPÍTULO 1 Sobre a Hermenêutica de Profundidade e a análise da ideologia nos estudos do NEAB-UFPR Paulo Vinicius Baptista da Silva

39 CAPÍTULO 2 Análise de discursos ideológicos: a atuação do Enfoque Tríplice de Thompson Débora Oyayomi Araujo 79 CAPÍTULO 3 Relações étnico-raciais e literatura infantil Verediane Cintia de Souza de Oliveira 103 CAPÍTULO 4 O silêncio como estratégia ideológica: a invisibilidade negra na história, na arte, nas Diretrizes Curriculares de Arte para a Educação Básica e no Livro Didático Público de Arte do Paraná Megg Rayara Gomes de Oliveira 133 CAPÍTULO 5 Relações raciais no Livro Didático Público Tânia Mara Pacifico


193 CAPÍTULO 6 Personagens negros e brancos em livros didáticos de Ensino Religioso Sergio Luis do Nascimento 225 CAPÍTULO 7 A diferença banalizada: discursos de inclusão do negro em livros didáticos de Geografia Wellington Oliveira dos Santos 255 CAPÍTULO 8 Os discursos produzidos sobre os direitos de crianças e adolescentes com o uso do livro didático Karina Falavinha 289 CAPÍTULO 9 Sobre teorias de raça no pensamento social brasileiro: acerca da ideologia e da ruptura do legado epistemológico Sergio Luis do Nascimento 319 CAPÍTULO 10 Racismo, poder e legitimação: os discursos sobre diversidade na gestão do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) Débora Oyayomi Araujo 351 CAPÍTULO 11 Estratégias ideológicas nos estudos do NEAB-UFPR Thaís Regina de Carvalho e Paulo Vinicius Baptista da Silva 365 Sobre os autores


NEAB Capítulo 1

SOBRE A HERMENÊUTICA DE PROFUNDIDADE E A ANÁLISE DA IDEOLOGIA NOS ESTUDOS DO NEAB-UFPR

Paulo Vinicius Baptista da Silvaideológicas Racismo, discurso e Educação: estratégias

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Capítulo 1 Sobre a Hermenêutica de Profundidade e a análise da ideologia nos estudos do NEAB-UFPR

Paulo Vinicius Baptista da Silva1 Este livro tem como objetivo apresentar ao leitor uma série de pesquisas realizadas no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná, pelo Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFPR. Os estudos compõem um conjunto de dissertações e teses que foram estruturadas ou utilizaram como referencial auxiliar o conceito de ideologia e a metodologia da Hermenêutica de Profundidade (HP), proposta por John B. Thompson (1995), na obra Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa2. No processo de formação no Núcleo de Estudos de Gênero, Raça e Idade (NEGRI) do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São/PUC-SP, tivemos contato com as pesquisas orientadas por Fúlvia Rosemberg, as quais estiveram centradas em eixos de desigualdade de gênero, de raça e de idade. As pesquisas de1  Pesquisador do CNPq, Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB-UFPR) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE-UFPR) da Universidade Federal do Paraná (PPGE-UFPR). 2  No decorrer deste livro haverá variação entre as edições da obra de Thompson, já que cada autora ou autor utilizou diferentes edições.

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senvolvidas no NEGRI majoritariamente utilizavam o arcabouço teórico-metodológico de Thompson (1995), interessando-se em compreender as “maneiras como as formas simbólicas se entrecruzam com relações de poder” (THOMPSON, 1995, p. 75). Ali desenvolvemos uma tese sobre ideologia em livros didáticos, focada em desigualdades étnico-raciais, a partir do estudo de Paulo Vinicius Baptista da Silva (2008), trabalho realizado em conjunto com estudo que estudou a ideologia de gênero, a partir da pesquisa de Neide Cardoso de Moura (2007). Posteriormente, atuando no PPGE-UFPR, passamos do desafio de desenvolver pesquisas utilizando a HP para orientar dissertações e teses estruturadas conforme tal metodologia. Considerávamos desafio devido à complexidade do método da HP e o necessário aprofundamento de análise que demanda. Foram realizadas, entre 2009 e 2015 um conjunto de sete dissertações e duas teses que tiveram como marco teórico principal ou auxiliar a perspectiva desenvolvida por Thompson (1995). Este livro foi organizado com a proposta de apresentar estes estudos: de Sérgio Luis do Nascimento (2009; 2015); Débora Oyayomi Araujo (2010; 2015); Tania Mara Pacifico (2011); Veridiane Cintia de Souza (2011); Wellington Oliveira dos Santos (2012); Megg Rayara Gomes de Oliveira (2012) e de Karina Falavinha (2013), oferecendo à leitora ou ao leitor, de forma articulada, os seus resultados mais significativos. A expectativa com esta publicação é difundir de forma mais ampla tais resultados sob três perspectivas: agregar conhecimento à pesquisa em educação; destacar o papel relevante Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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de tais estudos na análise das desigualdades étnico-raciais e de gênero; indicador que a HP pode ser profícua para a pesquisa social voltada a desvelar relações de dominação. As análises empreendidas inserem-se no campo de estudos sobre ideologia, em específico nos estudos a partir das proposições da teoria da ideologia formulada por Thompson (1995) e suas repercussões em pesquisas brasileiras (LEAL, 2005; VERONESE; GUARESCHI, 2006; SANTOS, 2007; SILVA, 2012) e internacional (RICE, 2005). Em pesquisas que viemos desenvolvendo (SILVA, 2001; 2008) adotamos o conceito de ideologia proposto por Thompson (1995) que: realizou um amplo estudo sobre os diversos usos do conceito de ideologia; discutiu usos recentes de ideologia na teoria social; propôs um conceito específico de ideologia vinculado à proposta de pesquisa e análise social.

1. O conceito de ideologia e as estratégias ideológicas

Thompson (1995) sustenta que na obra de Marx são perceptíveis três distintos conceitos de ideologia, todos críticos, dentre os quais destaca um que denomina de “latente”. Na análise de Marx sobre a Revolução Francesa, no Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, Thompson (1995) aponta que, apesar das condições concretas para a “emancipação”, a sociedade francesa regrediu em função de ideias equivocadas contidas na

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tradição que foram reativadas por palavras e imagens. Thompson (1995) afirma que nessa análise Marx anteviu o significado da dimensão simbólica da vida social. As construções simbólicas, nesse caso, apresentaram certa eficácia, reativando a tradição e funcionando como meio de sustentação de uma ordem social opressiva. Tal concepção “latente” em Marx é tomada como fundamento da proposta de Thompson (1995) de retorno o foco do estudo da ideologia para o entrecruzamento das formas simbólicas com as relações de poder. Formas simbólicas são, para o autor, construções reconhecidas socialmente como significativas, podendo ser linguísticas, não linguísticas ou mistas, compreendendo falas e ações, imagens e escritos, numa ampla acepção, referindo-se a manifestações verbais, textos, programas de televisão, obras de arte e também a ações, gestos e rituais. No caso das pesquisas que compõem este livro, as formas simbólicas são falas, escritos e imagens analisadas em amostras de objetos culturais dirigidos à infância e juventude nas seguintes categorias: livros didáticos, livros literários infantojuvenis, aulas de leitura, entrevistas e documentos orientadores ou normatizadores de políticas educacionais (editais do PNLD e do PNBE; Diretrizes Curriculares de Artes do Estado do Paraná). A partir da análise de usos e conceitos de ideologia, Thompson (1995) formula seu conceito próprio de ideologia. Para o autor, ideologia deve ser entendida como formas simbólicas que, em determinados contextos, servem para estabelecer (produzir, instituir) e sustentar (manter, reproduzir) relações de poder sistematicamente desiguais, ou seja, relações de dominação. Ou, “falando Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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de uma forma mais ampla, é o sentido a serviço do poder” (THOMPSON, 1995, p. 16). Os fenômenos simbólicos não são intrinsecamente ideológicos, mas devem ser analisados em contextos sócio-históricos definidos. Tal aspecto que Thompson denominou de “contextual” indica que as formas simbólicas estão sempre inseridas em contextos sociais estruturados, nos quais podem atuar para estabelecer e sustentar relações desiguais. Nos contextos sociais estruturados, um dos aspectos relevantes é que as pessoas têm localizações sociais diferentes e, em virtude de sua localização, diferentes graus de acesso aos recursos disponíveis. As formas simbólicas são ideológicas quando atuam, em contextos específicos, para estabelecer ou manter relações de desigualdade no acesso aos bens, materiais e simbólicos. A concepção “negativa” de ideologia importa-se mais com o uso de uma ideia que com a sua veracidade ou origem. Determinadas ideias, independentemente de serem verdadeiras ou falsas, podem operar (consciente ou inconscientemente) para sustentar formas opressivas de poder. O exame crítico da ideologia não se dá em função da veracidade ou da falsidade das ideias, mas da legitimação de formas injustas de poder: “Não é absolutamente o caso que essas formas simbólicas servem para estabelecer e sustentar relações de dominação somente devido ao fato de serem errôneas, ilusórias ou falsas” (THOMPSON, 1995, p. 77). O mais importante é o fato de formas simbólicas atuarem, em contextos específicos, para legitimarem desigualdades sociais. Portanto, a ideologia se ocupa mais dos conflitos no campo dos significados do que com os próprios significados.

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A mobilização de significados para manter desigualdades sociais ocorre em diferentes planos. Para Thompson (1995, p. 77), Marx não esteve atento às relações de poder em outros planos igualmente importantes, para além da dominação de classe. A ideologia atua também no estabelecimento e sustentação de outras relações de desigualdade, como as de raça, gênero, idade e nação. Em função disso, “ao estudar a ideologia, podemos nos interessar pelas maneiras como o sentido mantém relações de dominação de classe, mas devemos, também, interessar-nos por outros tipos de dominação” (THOMPSON, 1995, p. 78, grifo do autor). Nos diferentes estudos que compõem o livro foram mobilizamos tais instrumentos teóricos conceituais, para analisar como formas simbólicas específicas (textos, falas e imagens) inseridas em um contexto social estruturado – a sociedade nacional na qual opera o “racismo à brasileira” (SILVA, 2008, p. 67-77) – atuam para produzir e reproduzir desigualdades étnico-raciais e etárias. No caso específico das análises realizadas, a discussão foi desenvolvida sobre modos de operação e estratégias ideológicas que atuam na produção e reprodução de hierarquizações étnico-raciais e etárias. Vinculado à sua proposta metodológica de crítica à ideologia, Thompson (1995) também desenvolveu um quadro com cinco modos gerais de operação da ideologia: legitimação, dissimulação, unificação, fragmentação e reificação. A cada um destes modos gerais estão relacionadas algumas estratégias típicas de construção simbólica ideológica. O Quadro 1 apresenta uma adaptação nossa a partir da proposta do autor. Os modos de operação descritos não são os únicos pelos quais Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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a ideologia opera, podendo se sobrepor e reforçar mutuamente ou se associar. E as estratégias típicas de um determinado modo podem, em contextos específicos, se associar a outros modos de operação. As estratégias não são ideológicas em si, mas dependem do contexto no qual são produzidas, veiculadas e recebidas, bem como de seu uso em circunstâncias particulares. Apresentam algumas formas pelas quais se pode pensar a interação entre sentido e poder na vida social, mas Thompson, ao propô-las, ressalta que o quadro oferece orientações gerais para a pesquisa. Portanto, é importante uma análise acurada de contextos particulares para decifrar maneiras pelas quais as formas simbólicas se entrecruzam com relações de poder desiguais. No caso dos estudos constantes neste livro o contexto das hierarquias de raça, de idade, de gênero e sexualidade que são estruturais na sociedade brasileira definem em grande medida o papel ideológico das formas simbólicas, conforme análises específicas em cada um dos estudos. No Quadro 1 apresentamos os cinco modos de operação da ideologia e as estratégias típicas a ele associadas, com alguns acréscimos sugeridos por estudos brasileiros (destacados com fundo cinza). Pedrinho Guareschi (2000, p. 321-325) propõe que a banalização é uma forma geral de operação da ideologia, a qual está associada às estratégias típicas que denomina como divertimento/cômico; fait-divers e ironia (VERONESE; GUARESCHI, 20063). O autor analisa 3  Os autores dispõem no quadro uma estratégia a mais, o chiste. Optamos por não incorporar tal estratégia por ausência de discussão mais pormenorizada sobre tal nas publicações referidas.

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discursos de programa de humor televisivo no qual o cômico, fait-divers e ironias são utilizados como forma de satirizar ou ridicularizar movimentos sociais ou partidos políticos que buscam mudanças na sociedade, fazendo uso do humor e do deboche como forma de “diluir fenômenos sociais que possivelmente podem tornar-se hegemônicos e questionar o imobilismo de uma sociedade que, da maneira que existe, privilegia a alguns” (GUARESCHI, 2000, p. 336). Quadro 1: Modos gerais e estratégias de operação da ideologia4 Modos Gerais Legitimação: formas simbólicas são representadas como justas e dignas de apoio, isto é, como legítimas.

Dissimulação: formas simbólicas são representadas de modos que desviam a atenção. Ocultação, negação ou obliteração de processos sociais existentes.

Unificação: construção de identidade coletiva, independente das diferenças individuais e sociais.

Estratégias típicas de construção simbólica Racionalização: cadeia de argumentos racionais que justificam as relações, tendo como objetivo a obtenção de apoio e persuasão. Universalização: interesses de alguns são apresentados como interesses de todos. Narrativização: o presente é tratado como parte de tradições eternas, que são narradas com o objetivo de mantê-las. Deslocamento: transferência de sentidos, conotações positivas ou negativas, de pessoa ou objeto a outro/a. Eufemização: ações, instituições ou relações sociais são referidas de forma a suavizar suas características e estabelecer valoração mais positiva. Tropo: uso figurativo das formas simbólicas. Sinédoque: tropo caracterizado pelo uso do todo pela parte, do plural pelo singular, do gênero pela espécie, ou vice-versa. Metonímia: tropo caracterizado pelo uso de atributo ou característica de algo para designar a própria coisa. Metáfora: tropo que consiste na aplicação de termo ou frase a outro, de âmbito semântico distinto. Silêncio: ausência ou falta no discurso que atua ativamente para construir sentidos (SILVA, 2012). Padronização: as formas simbólicas são adaptadas a determinados padrões, que são reconhecidos, partilhados e aceitos. Simbolização da unidade: símbolos de unidade, de identidade e de identificação coletivos são criados e difundidos.

4  Como forma de auxiliar na diferenciação entre os modos gerais e as estratégias típicas, adotamos como forma de destaque no Quadro 1 e no decorrer do texto, o sublinhado para os modos gerais de operação da ideologia e o itálico para as estratégias típicas. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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(Quadro 1 - Continuação) Fragmentação: segmentação de grupos ou indivíduos que possam significar ameaça aos grupos detentores de poder.

Reificação: processos são retratados como coisas. Situações históricas e transitórias são tratadas como atemporais, permanentes, naturais.

Banalização: “diluição” da realidade ou da importância do tema, induzindo à conformidade e ausência de reflexão crítica (GUARESCHI, 2000, p. 321325).

Diferenciação: ênfase em características de grupos ou indivíduos de forma a dificultar sua participação no exercício de poder. Expurgo do outro: construção social de inimigo, a que são atribuídas características negativas, ao qual as pessoas devem resistir. Estigmatização: “a desapropriação de indivíduo(s) ou grupo(s) do exercício de sua humanidade pela valorização de uma deficiência ou corrupção de alguma condição física, moral ou social” (ANDRADE, 2001, p. 107-108). Naturalização: fenômeno social ou histórico é tomado como natural e inevitável. Eternalização: fenômeno social ou histórico é considerado como permanente, recorrente ou imutável. Nominalização: transformação de partes de frases ou ações descritas em nomes, ou substantivos, atribuindo-lhes sentido de coisa. Passifização: uso de voz passiva que leva à retirada de sujeitos das ações. Divertimento: por meio do cômico, desvia-se a atenção de problemas fundamentais para assuntos secundários, ou para situações triviais ou ridículas. Fait-Divers: “um fato diverso”, ou seja, desvio do assunto, reorientando o foco para direção diversa; forma de lidar com a informação de maneira sensacionalista, perpetuando seu valor emocional. Ironia: consiste em dizer o contrário do que se pensa, deixando intencionalmente uma lacuna entre o explícito e o implícito (seu contrário).

FONTE: Adaptado de Thompson (1995, p. 80-89), com aportes de Guareschi (2000, p. 321-325), Andrade (2001, p. 107-108) e Silva (2012).

Por sua vez Andrade (2001), ao analisar o discurso do jornal A Folha de São Paulo sobre prostituição infantojuvenil, apreende formas de estigmatização da infância pobre no tratamento dado pelo jornal ao tema. Defende que a estigmatização (conceito retirado da teorização de Goffman sobre o estigma) é uma forma específica de expurgo do outro, constituindo-se em estratégia ideológica típica associada ao modo geral de fragmentação. Em artigo que analisamos estratégias discursivas de hierarquização entre brancos e negros no Brasil e na

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América Latina, a proposta é que o silêncio pode ser compreendido como uma estratégia ideológica relacionada ao modo de operação descrito por Thompson como dissimulação, visto que sistematicamente é o silêncio que opera para ocultar processo social de desigualdade racial (SILVA, 2012). O argumento é que, para a análise do discurso racista no Brasil, é importante estar atento ao silêncio que é atuante na hierarquização entre brancos/as e negros/as (como entre brancos/ as e indígenas). Para sustentar tal afirmação, o artigo discute e traz exemplos de quatro diferentes formas de manifestação do silêncio que identificamos no discurso racista brasileiro, a saber: o silêncio sobre a branquidade, que atua para estabelecer o branco como norma de humanidade; a negação da existência plena ao negro: invisibilidade e sub-representação; o silêncio sobre particularidades culturais do negro brasileiro; o silêncio como estratégia para ocultar desigualdades. A análise empreendida lança mão de formas simbólicas retiradas da literatura especializada sobre relações raciais no plano simbólico (SILVA; ROSEMBERG, 2008; SILVA 2008) e, principalmente, utiliza resultados de análises que empreendemos em pesquisas sobre relações raciais no plano simbólico brasileiro, em diferentes suportes discursivos, conforme pesquisa que vimos desenvolvendo (SILVA, 2008; SILVA, 2010; SILVA; SANTOS; ROCHA, 2007; SILVA; SANTOS; ROCHA, 2010; SANTOS; SILVA, 2010; ARAUJO, 2010; 2015).

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2. A (re)interpretação da Ideologia: o método

Além do conceito de ideologia, os estudos deste livro se ancoram em especial na proposta metodológica da Hermenêutica de Profundidade (HP), proposta por Thompson (1995). A análise da ideologia, para o autor, é uma forma particular de HP, cujo foco dirige-se às inter-relações entre significado e poder. No caso específico das dissertações e teses cujos resultados são sintetizados nos capítulos deste livro, relacionam-se na maneira como formas simbólicas podem ser utilizadas para estabelecer e manter relações de poder desiguais entre os grupos étnico-raciais e entre os grupos etários. O ponto de partida para a análise, como proposta por Thompson, é a interpretação da doxa, ou hermenêutica da vida cotidiana (THOMPSON, 1995, p. 363). É um estágio preliminar quando se busca a apreensão de como as formas simbólicas são compreendidas em contextos concretos da vida social. O termo doxa é originário do grego e o dicionário de Aurélio B. H. Ferreira (1986, p. 610) assinala os significados de crença e opinião. É neste sentido que Thompson utiliza o termo. O ponto de partida da investigação social é o estudo das crenças e opiniões sustentadas e partilhadas pelas pessoas que compõem o contexto a ser estudado. É um uso do conceito diferente do realizado por Bourdieu (1994), que utiliza o termo para discutir a acumulação de capital simbólico, particularmente no campo da ciência. Doxa, para esse autor, refere-se a ordens sociais estáveis, ao que é prescrito pela tradição e, devido a tal, naturalizado, implícito, que não pode ser questionado. A tradição determina aquilo

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que não é preciso mencionar. Quando existem desafios à doxa, tratam-se das “heterodoxias”. Por vezes, estas motivam a organização de argumentos em defesa da doxa, as “ortodoxias”. Diferem da doxa, pois essas são implícitas, não precisam de argumentos para sustentá-la, são a posição, ao passo que as ortodoxias precisam organizar argumentos em prol das tradições (BOURDIEU, 1994). Quando explicitadas, passam a ser somente uma das posições possíveis. Para Thompson (1995), a interpretação da doxa é o primeiro passo da HP. Mas a HP se caracteriza por ir além da interpretação da doxa: é necessária uma “ruptura metodológica com a hermenêutica da vida cotidiana” (THOMPSON, 1995, p. 364, grifos do original). A interpretação da doxa é, para o autor, um passo necessário, mas não suficiente. O ponto de partida é o reconhecimento dos sentidos compartilhados no contexto a ser estudado. Mas outros aspectos da vida simbólica devem constituir o campo-objeto da pesquisa. As formas simbólicas são construções significativas, mas são também construções estruturadas de forma específica e inseridas em contextos sociais e históricos determinados. Para ir além da hermenêutica da vida cotidiana, é necessário tentar compreender as formas em que os sentidos fundam e mantêm relações de dominação. Thompson propõe, nesse aspecto, o referencial metodológico da HP constituído de três fases principais. Tais fases “devem ser vistas não tanto como estágios separados de um método sequencial, mas antes como dimensões analiticamente distintas de um processo interpretativo complexo” (THOMPSON, 1995, p. 365).

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Hermenêutica da vida Vida cotidiana

Interpretação da Doxa

1) Análise sócio-histórica Referencial Metodológico da Hermenêutica de Profundidade

2) Análise formal ou discursiva

Situações espaço-temporais Campos de interação Instituições sociais Estrutura social Meios técnicos de transmissão Análise semiótica Análise da conversação Análise sintática Análise narrativa Análise argumentativa Análise de conteúdo

3) Interpretação/ Re-interpretação

Figura 1. Formas de investigação hermenêutica FONTE: adaptado de Thompson (1995, p. 365)

A primeira fase é a análise sócio-histórica, cujo objetivo é “reconstruir as condições sociais e históricas de produção, circulação e recepção das formas simbólicas” (Thompson, 1995, p. 366, grifos do autor). Algumas condições podem ser particularmente relevantes: 1) a estrutura social na qual as relações de poder são estabelecidas e mantidas, e as assimetrias e diferenças relativamente estáveis; 2) as circunstâncias espaço-temporais nas quais as formas simbólicas são produzidas e reproduzidas; 3) os campos de interação5, suas regras e convenções, as posições das pessoas e o “capital” a elas disponível; 4) as instituições sociais, os conjuntos de regras, recursos e relações que a constituem, as formas particulares que dão aos campos de interação; 5) os meios técnicos de construção e transmissão das 5  “Segundo Bourdieu, um campo de interação pode ser conceituado, sincronicamente, como um espaço de posições e, diacronicamente, como um conjunto de trajetórias. Essas posições e trajetórias são determinadas, em certa medida, pelo volume e distribuição de variados tipos de recursos ou ‘capital’ [econômico, cultural, simbólico]. Dentro de qualquer campo de interação, os indivíduos baseiam-se nesses diferentes tipos de recursos para alcançar seus objetivos particulares” (THOMPSON, 1995, p. 195).

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formas simbólicas que lhes conferem características determinadas. A preocupação com a ideologia dirige a atenção para as relações de dominação do contexto nas quais as formas simbólicas são produzidas, difundidas e recebidas. Determinadas relações de poder “são sistematicamente assimétricas e relativamente duráveis” (THOMPSON, 1995, p. 366), como é o caso das relações raciais no Brasil. A pesquisa sócio-histórica deve tentar compreender a contextualização social das formas simbólicas: A produção de objetos e expressões significativas – desde falas quotidianas até obras de arte – é uma produção tornada possível pelas regras e recursos disponíveis ao produtor, e é uma produção orientada em direção à circulação e recepção antecipada dos objetos e expressões dentro do campo social (THOMPSON, 1995, p. 368).

As instâncias do discurso estão sempre situadas em contextos sócio-histórico particulares, mas apresentam características e relações estruturais que podem ser analisadas formalmente. Para Thompson, estas características devem ser estudadas por meio de análise formal ou discursiva, a segunda fase da HP. Podem ser empregados métodos distintos de análise discursiva, selecionados em função dos objetivos e circunstâncias específicas da pesquisa. Na análise formal são utilizadas técnicas específicas com um sentido de “objetivação” das formas simbólicas, para analisar certas características internas, regras, padrões, recursos, relações. “Formas simbólicas são os produtos de ações situadas Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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que estão baseadas em regras, recursos, etc., disponíveis ao produtor” (THOMPSON, 1995, p. 369). A análise formal engloba as estruturas articuladas das formas simbólicas e tem como foco as características estruturais de tais formas que agem para mobilizar significados a serviço do poder. Nos estudos realizados foram utilizadas técnicas de Análise Crítica de Discurso (ACD) e de Análise de Conteúdo, sendo esta última baseada em Rosemberg (1981) e Bardin (1985). Para Rosemberg (1981, p. 70): A técnica de análise de conteúdo se propõe a descrever aspectos de uma mensagem, objetiva e sistematicamente, e algumas vezes, se possível, quantificável, a fim de interpretá-la, de acordo com os pressupostos da investigação. O processo de análise de conteúdo, nesta perspectiva, nada mais é que uma tentativa de categorizar partes de um discurso, tentando, assim, desvendar significados pouco claros ou trazer, para o primeiro plano, aspectos comuns subjacentes e sossobrados na diversidade estilística.

Entendemos que a análise de conteúdo é um conjunto de procedimentos que deve ser posto a serviço de objetos de estudo e de teorias. Analogamente às outras formas de análise discursiva, “este tipo de análise torna-se ilusório quando [...] discutido isoladamente da interpretação (e re-interpretação)” (THOMPSON, 1995, p. 369), pois as formas simbólicas (construções com uma estrutura articulada) são também construções simbólicas complexas, por meio das quais algo é expresso

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ou dito e, portanto, devem ser examinadas em relação ao contexto em que são evocadas. Na perspectiva crítica que adotamos, a análise de conteúdo visa auxiliar a desvendar sentidos que podem estar a serviço de criar e manter dominações étnico-raciais e etárias. A Análise Crítica de Discurso (ACD) é uma abordagem interdisciplinar que foco em especial o papel dos discursos na reprodução do poder, dominação e desigualdades, preocupada com as propriedades do discurso em vários níveis. De acordo com van Dijk (2001), a ACD analisa estruturas e estratégias globais do discurso (macroproposições, legitimações, representações de si e do outro) assim como estruturas locais (categorização, descrição e atributos de sujeitos, dispositivos de retórica, indiretividade, pressuposições, implicitudes, argumentação, topoi, atribuições, uso lexical). A terceira fase da HP é a interpretação/reinterpretação da ideologia. Tem um sentido de continuidade e complementaridade da fase anterior, a análise discursiva, mas difere dessa. A interpretação procede por síntese. Nessa fase, o intuito é estabelecer a articulação dos resultados das duas fases anteriores, isto é, a interpretação do que foi expresso pela análise discursiva à luz dos contextos socialmente estruturados de sua produção. A síntese dos dois momentos leva à “construção criativa de novos significados” (THOMPSON, 1995, p. 375) que transcendem os sentidos dados nas fases anteriores. As formas simbólicas são sempre um “território pré-interpretado” pelos sujeitos que compõem o campo-objeto da investigação. Devido a isso, Thompson utiliza a ideia de “reinterpretação” à atribuição de novos sentidos para formas simbólicas estudadas. Estudar ideoRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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logia, para o autor, é explicitar os sentidos que criam e sustentam relações de poder desiguais. A terceira fase da HP tem o objetivo de evitar que a pesquisa social se limite à “falácia do internalismo” (THOMPSON, 1995, p. 377), isto é, que as formas simbólicas sejam estudadas somente em suas características internas, minorando as condições sócio-históricas e os processos cotidianos de sua produção e recepção. Interpretar a ideologia é, portanto, “explicitar a conexão entre o sentido mobilizado pelas formas simbólicas e as relações de dominação que este sentido ajuda a estabelecer e sustentar” (THOMPSON, 1995, p. 379). O trabalho de análise formal ou discursiva e de análise de formas simbólicas em um contexto determinado procura captar as características formais/estruturais das formas simbólicas como instâncias ou processos específicos de construção ideológica. Pode-se, então, argumentar que nas situações específicas de construção das formas simbólicas elas podem estar ligadas a certos modos de operação da ideologia. A análise parte das estratégias ideológicas para caracterizar a atuação de modos de operação da ideologia, conforme exemplo de Thompson (1995, p. 379): Assim, podemos tentar mostrar que o uso generalizado de verbos nominalizados e da modalidade passiva são indicativos das estratégias ou processo de nominalização e passivização; e podemos continuar a argumentar que, em circunstâncias específicas, essas estratégias ou processos servem para sustentar relações de dominação através da reificação dos fenômenos sócio-his-

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tóricos, isto é, apresentando uma situação transitória, histórica, como se fosse permanente, natural, fora do tempo.

A interpretação da ideologia busca explicar o significado e, em seguida, compreender como ele tem servido ao estabelecimento e manutenção de relações de dominação. “É um trabalho que exige tanto uma sensibilidade às características estruturais das formas simbólicas, como uma consciência das relações entre indivíduos e grupos” (THOMPSON, 1995, p. 380). Nas pesquisas desenvolvidas no NEAB-UFPR temos utilizado operado a re-interpretação da ideologia utilizando os modos de operação e estratégias típicas da ideologia como forma de explicitar como os discursos analisados têm operado em contextos específicos, como forma de sustentar a ideologia (SILVA, 2008; NASCIMENTO, 2009; 2015; ARAUJO, 2010; 2015; PACIFICO, 2011; SOUZA, 2011; SANTOS, 2012; OLIVEIRA, 2012; FALAVINHA, 2013). Os capítulos que seguem trazem sínteses dos resultados de cada uma das pesquisas. No Capítulo 2, “Análise de discursos ideológicos: a atuação do Enfoque Tríplice de Thompson”, de Débora Oyayomi Araujo, é apresentado o único exemplo do Enfoque Tríplice desenvolvido no grupo de pesquisas do NEAB-UFPR. Tal abordagem analisou desde a produção da literatura infantojuvenil e sua distribuição pelo Programa Nacional de Biblioteca da Escola (PNBE), passando pela a construção das mensagens em livros utilizados literários até chegar à análise da recepção e apropriação das mensagens comunicativas da leitura de obras literárias durante aulas de leitura em escolas municipais de Curitiba. A opção Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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foi de apresentar dois blocos dos resultados. O primeiro que se refere à branquidade expressa em duas formas distintas, uma como possibilidade de reconhecimento das diferenças, outra como normativa. O segundo analisa duas diferentes formas discursivas de construção da imagem da África, ambas estereotipadas de forma a atuarem ideologicamente para difundir e crias hierarquias raciais. O texto a seguir, “Relações étnico-raciais e literatura infantil”, de Veridiane Cintia de Souza de Oliveira, compõe o Capítulo 3 e analisa as estratégias ideológicas presentes nos acervos de 2008 do Programa Nacional Biblioteca da Escola destinados à Educação Infantil. O estudo consistiu na análise de estratégias ideológicas presentes nos textos e nas imagens de vinte obras de literatura infantil enviadas para as escolas públicas de Educação Infantil e Ensino Fundamental no ano de 2008. Na análise sócio-histórica desenvolveu-se um levantamento específico sobre pesquisas que articularam literatura infantojuvenil e relações raciais; na análise formal ou discursiva foi possível estabelecer as características das amostras analisadas e, aliada às outras duas, na terceira etapa foi possível identificar que existem, ainda que em baixa frequência, representações positivas de alguns personagens negros. Contudo, os personagens brancos, além de continuarem aparecendo mais vezes que os negros nas narrativas, são (re) tratados de forma mais elaborada. Além disso, a participação constante de brancos na literatura tem servido para o estabelecimento da manutenção do seu grupo como norma social e pressupondo, inclusive, que os leitores presumidos sejam também brancos.

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O Capítulo 4, “O silêncio como estratégia ideológica: a invisibilidade negra na história, na arte, nas Diretrizes Curriculares de Arte para a Educação Básica e no Livro Didático Público de Arte do Paraná”, de Megg Rayara Gomes de Oliveira, levantou a hipótese de que o processo de invisibilização da população negra na história oficial do estado do Paraná atualiza-se na construção de um currículo que silencia a estética africana e afro-brasileira no ensino da Arte, no ensino médio. A partir de tal hipótese, a autora investigou quais as estratégias de hierarquização entre brancos/as e negros/as podiam ser observadas nesses documentos, produzidos e publicados pela Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Na análise, a autora identificou diversas formas de operação da ideologia na história da presença negra na sociedade paranaense, assim como nos dois documentos analisados: as Diretrizes Curriculares de Artes e Arte para a Educação Básica do Estado do Paraná e o Livro Didático Público de Arte para o Ensino (tanto nos textos, quanto nas imagens). A dissimulação foi a mais frequente, estabelecendo o ser humano branco como norma de humanidade; negando existência plena ao negro; silenciando sobre as particularidades culturais da população negra no Brasil e ocultando as desigualdades historicamente construídas. No Capítulo 5, Tânia Mara Pacifico, em “Relações raciais no Livro Didático Público”, analisa as relações raciais no Livro Didático Público – Folhas, uma iniciativa de produzir livros de autoria de professoras e professores da rede estadual do Paraná. A pesquisa fez uso do conceito de ideologia e da metodologia da Hermenêutica de Profundidade (HP) desenvolvida por ThompRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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son (1995), tomando como focos de análise: a) em que medida o Livro Didático Público – Folhas contempla as definições legais do artigo 26-A da LDB (modificado pela Lei 10.639/2003 e alterado pela Lei 11.645/2008), o Parecer 03/2004 e Resolução 01/2004 do Conselho Nacional de Educação; b) que estratégias ideológicas de hierarquização entre brancos/as e negros/as foram captadas nas políticas públicas e nos livros. A análise das políticas de produção apontou que não foram levadas em consideração as propostas de promoção de igualdade racial que ocorriam dentro da própria estrutura da Secretaria Estadual de Educação. Foram selecionados para análise livros de duas disciplinas: Língua Portuguesa e Educação Física. De forma geral, somente o livro de Educação Física atende, parcialmente e com contradições internas, às definições legais sobre Educação das Relações Étnico-Raciais. Foram analisadas formas simbólicas dos livros que naturalizam o branco como representante da humanidade; que estigmatizam personagens negros/as, em especial a mulher negra; que se silenciam sobre a presença negra, sobre a história e cultura africana e afro-brasileira e sobre os processos de discriminação e desigualdade racial. O Capítulo 6, “Personagens negros e brancos em livros didáticos de Ensino Religioso”, de Sergio Luis do Nascimento, apresenta análise dos discursos sobre os segmentos raciais negros e brancos em livros didáticos de Ensino Religioso de 5ª e de 8ª séries do ensino Fundamental, publicados entre 1977 e 2007. A análise foi produzida nos contextos interpretativos da teoria da ideologia (THOMPSON, 1995) e dos estudos contemporâneos sobre relações raciais. Para tanto o autor se-

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lecionou livros didáticos produzidos de acordo com os três modelos tradicionalmente presentes em diversas escolas do Brasil, a saber: as concepções denominadas Confessional, Interconfessional e a Fenomenológica. A análise formal ou discursiva consistiu na análise interna às próprias formas simbólicas por meio de técnicas de análise de conteúdo. Para análise quantitativa foi investigada uma amostra de 467 personagens nos textos retiradas de 20 livros didáticos de Ensino Religioso de 5ª e de 8ª séries do Ensino Fundamental. O texto “A diferença banalizada: discursos de inclusão do negro em livros didáticos de Geografia”, de Wellington Oliveira dos Santos, compõe o Capítulo 7. Nele, o autor analisa o modo como os personagens negros são incluídos em livros didáticos brasileiros, a partir da análise de personagens negros e brancos presentes em ilustrações de livros didáticos de Geografia para o 2º ano do ensino fundamental recomendados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2010. O principal argumento é que essa inclusão pode, em certos casos, contribuir para a estigmatização e racialização do negro no Brasil, quando ocorre de forma banalizada, isto é, de modo a tratar a diferença racial como equivalente a diferenças construídas de maneira sócio-historicamente distinta, desconsiderando as relações de poder existentes entre os diversos grupos raciais, ao mesmo tempo em que a presença negra é explicitamente inferior à presença de personagens brancos. Considera que, como parte de uma agenda antirracista em políticas educacionais do livro didático, além de uma maior participação de negros em ilustrações é pre-

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ciso desconstruir a ideia de que o branco é o tipo normal, não racializado. O Capítulo 8, “Os discursos produzidos sobre os direitos de crianças e adolescentes com o uso do livro didático”, de Karina Falavinha, apresenta uma pesquisa que teve como mote central compreender os discursos produzidos sobre a criança a partir do estatuto de sujeito de direitos, via uso do Livro Didático de Língua Portuguesa do 5º ano do Ensino Fundamental, buscando analisar se ocorrem relações de hierarquia etárias. Em síntese, a relação geracional entre a professora adulta e as crianças consolida-se como uma relação desigual em que o poder encontra-se manifestado pela imposição de discursos reguladores advindos da professora, constituindo-se como uma relação de dominação e, portanto, na acepção de Thompson (2009), em discursos ideológicos. As estratégias ideológicas atuaram no sentido de silenciar, por meio da ausência e/ou da pouca informação, o tema contido no LD, como também no sentido da naturalização, já que personagens infantis na relação com personagens adultos se apresentam em condições de subalternidade discursivamente construída como parte integrante do desenvolvimento humano. O artigo seguinte, “Sobre teorias de raça no pensamento social brasileiro: acerca da ideologia e da ruptura do legado epistemológico”, de Sergio Luis do Nascimento, compõe o Capítulo 9 e analisa, no interior do pensamento social brasileiro, a discussão de como atores sociais negros podem construir um campo de interação constituído de trajetórias e posições diferenciadas dentro de uma estrutura social caracterizada por assimetrias, di-

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ferenças e divisões. Nessa relação de confrontação, as regras e as convenções já estavam estruturadas e articuladas dentro de contextos sócio-históricos definidos (THOMPSON, 1995). Qualquer proposta de ruptura teria que confrontar com a concepção de um país em que as relações raciais estavam concebidas dentro de um contexto harmonioso. O que os atores sociais negros fizeram nas quatro últimas décadas são problematizadas nesse texto com intuito de provocar a autorreflexão e a crítica à ideia de um país como “laboratório da civilização” ou como uma “democracia étnica”. Essas expressões cumpriram e de certa forma cumprem o papel do principal legado do mito de fundação do Brasil e que durante décadas conseguiu manter um discurso público harmonioso e hegemônico. O Capítulo 10, “Racismo, poder e legitimação: os discursos sobre diversidade na gestão do Programa Nacional de Biblioteca da Escola (PNBE)”, de Débora Oyayomi Araujo, analisa como operavam estratégias de racialização no Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). Utilizando como metodologia a Hermenêutica de Profundidade com apoio da Análise Crítica de Discurso, a autora analisa excertos de uma entrevista realizada com representante da avaliação pedagógica do PNBE. Os trechos apresentados da entrevista explicitam que o poder simbólico foi demonstrado e exercido pela definição de critérios subjetivos tanto na composição dos membros da equipe de avaliação como na forma de seleção dos livros que compõem os acervos do PNBE. Por fim, no Capítulo 11, “Estratégias ideológicas nos estudos do NEAB-UFPR”, Thaís Carvalho e Paulo ViRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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nicius Baptista da Silva apresentam uma síntese das estratégias ideológicas identificadas pelas teses e dissertações que foram base para o livro, discutindo o alcance da Hermenêutica de Profundidade (HP) para a análise das hierarquias etárias e étnico-raciais em discursos brasileiros. A expectativa é que esta obra contribua com os estudos sobre relações raciais, oferecendo suportes teórico-metodológicos consistentes – seja por meio dos modos e estratégias de operação da ideologia, seja da HP ou do Enfoque Tríplice – para análise do racismo operante em formas simbólicas e na vida cotidiana de modo geral.

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NEAB Capítulo 2

ANÁLISE DE DISCURSOS IDEOLÓGICOS: A ATUAÇÃO DO ENFOQUE TRÍPLICE DE THOMPSON

Débora Oyayomi Araujoestratégias ideológicas Racismo, discurso e Educação:

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Capítulo 2 Análise de discursos ideológicos: a atuação do Enfoque Tríplice de Thompson

Débora Oyayomi Araujo1

Introdução

Thompson propõe que, atrelado à Hermenêutica da Profundidade, sejam discutidos aspectos específicos da produção e transmissão das formas simbólicas dentro do contexto de comunicação de massa, pois considera duas importantes características desta comunicação: a produção das formas simbólicas é “feita para ouvintes que geralmente não estão fisicamente presentes no local de produção e transmissão ou difusão” (THOMPSON, 2002, p. 392); pela grande demanda de produção de mensagens que atingem o “receptor”, a capacidade deste de “intervir no processo comunicativo é, muitas vezes, limitado” (THOMPSON, 2002, p. 392). É, portanto, considerando tais características que o autor constrói o que ele chama de Enfoque Tríplice, responsável por analisar as formas simbólicas mediadas pelos meios de comunicação de massa. Thompson (2002) as1  Doutora em Educação pela UFPR, graduada em Letras – Português/Inglês, com especialização em Língua Portuguesa e Literatura. Professora do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, atuando na disciplina de Educação das Relações Étnico-Raciais.

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sim divide o Enfoque Tríplice: 1) Produção e transmissão ou difusão das formas simbólicas; 2) Construção da mensagem dos meios de comunicação; 3) Recepção e apropriação das mensagens comunicativas. Fazendo uso do Enfoque Tríplice, este artigo apresentará partes da dissertação de mestrado intitulada “Relações raciais, discurso e literatura infantojuvenil”, cuja pesquisa de campo foi realizada em duas escolas municipais de Curitiba. No que se refere à Produção e transmissão ou difusão das formas simbólicas, por estar situado “dentro de condições sócio-históricas específicas e geralmente envolvem acordos institucionais particulares” (THOMPSON, 2002, p. 392), tal enfoque foi responsável por analisar as principais características do Programa Nacional de Biblioteca da Escola (PNBE) e como vem se dando a implementação da Lei 10.639/2003 no contexto escolar. Para tanto foram analisados documentos institucionais além de pesquisas que investigaram o PNBE. Inicialmente, a análise destinou-se à interpretação dos dados referentes à distribuição gratuita de livros de literatura para as escolas públicas brasileiras. Durante sua vigência, por mais de 15 anos ininterruptos, o PNBE teve como objetivo principal “democratizar o acesso a obras de literatura infantojuvenis, brasileiras e estrangeiras, e a materiais de pesquisa e de referência a professores e alunos das escolas públicas brasileiras” (Aparecida PAIVA2, 2008, p. 8). Tal objetivo relaciona-se 2  Em exercício de uma educação, linguagem e produção intelectual antissexista, neste texto, além de utilizar o gênero feminino e masculino em referência às pessoas em geral, serão destacados/as os/as autores/as citados/as. Sendo assim, na primeira vez que há a citação de um/uma autor/a, seu nome completo será apresentado para a identificação do gênero e, consequentemente, para proporcionar maior visibilidade às pesquisadoras e estudiosas. Assim também por todo o texto, e não somente na introdução, a linguagem Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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diretamente com o processo de emancipação intelectual ao qual o sistema educacional público almeja e, que, por consequência, amplia a produção da indústria de livros, possibilitando geração de lucros em maior escala. Sendo considerado “uma ação pública de incentivo à leitura, como parte da política educacional [...]” (BRASIL, 2008, p. 5), esse Programa foi criado em 1997 com a proposta de difundir, em escolas públicas, o uso do livro como bem cultural. Anteriormente a isso, Zilberman (1995) e outros/as especialistas apresentam um histórico de programas nacionais e regionais que tinham como objetivo expandir o acesso ao livro literário. Zilberman (1995) inclusive afirma que diversos projetos foram criados no século passado, dos quais ela destaca alguns: Oriundo do poder público federal é o projeto de financiamento de publicações de obras literárias, por intermédio do Instituto Nacional do Livro. Este implantou, nos anos 70, uma política de coedições que patrocina parte do custo de produção de textos, responsabilizando-se também pela distribuição de sua cota de livros, procurando, com isso, suprir bibliotecas públicas nos níveis estadual e municipal (ZILBERMAN, 1995, p. 125).

No entanto, os dados apresentados a seguir sobre o PNBE indicam problemas relacionados ao cumprimento de gênero se fará presente: em alguns momentos por meio de barras (/) e em outros pelo registro total dos vocábulos. Ressalva-se que tal processo, considerado por muitos/as como “subversão” das normas, só ocorre em função de as normas serem restritivas na representação de gênero.

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de seus objetivos. Mesmo sendo visível o investimento financeiro na aquisição de obras literárias para os diversos espaços possíveis de fomento à leitura (escola, biblioteca pública, residência de estudantes, de educadoras e educadores) e a busca em atingir todas as modalidades de ensino, o simples fato da aquisição e distribuição não foi responsável por contribuir na tentativa de sanar os problemas relacionados aos baixos índices de leitura e o combate ao analfabetismo funcional. Uma publicação do Ministério da Educação (BRASIL, 2008) realizada com profissionais da educação, estudantes e familiares, intitulada Avaliação diagnóstica do Programa Nacional de Biblioteca da Escola – PNBE possibilitou, por meio de seus dados, uma verificação mais detalhada da veiculação e disponibilização dos livros distribuídos pelo PNBE às escolas públicas. Compondo uma amostra formada por 149.968 unidades, sendo 96.600 na área rural e 53.368 na área urbana, os dados apresentados referem-se ao ano de 2003, época em o número de estudantes matriculados/as nas escolas da amostra foi de 31.162.624, com 6.136.317 em área rural e 25.026.307 em área urbana. Sendo uma pesquisa de imersão no cotidiano da escola, e possibilitando ouvir as vozes dos diversos sujeitos que compõem o ambiente escolar no que se refere à difusão do livro como um bem cultural para a comunidade no qual se insere, os resultados apontaram para uma realidade pessimista: Nenhum programa de incentivo à leitura, vinculado a políticas educacionais, entretanto, pode subestimar as condições em que a educação escolar vem sendo realizada nas Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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redes públicas deste país. O cotidiano das escolas visitadas pelas equipes, as condições sociais onde estão inseridas, revelam o PNBE como uma ação cultural de baixo impacto em políticas de formação de leitor e produtor de textos (BRASIL, 2008, p. 123).

É válido considerar, portanto, que um Programa de dimensão nacional que tem como objetivo primordial a democratização da leitura não acontece de maneira efetiva a ponto de ser reconhecido e reconhecer-se com tal função. Embora alguns resultados da pesquisa tenham apontado boas práticas de incentivo à leitura que acontecem mesmo em condições de infraestrutura adversas, a maior parte dos dados coletados e analisados ratifica a informação de que o PNBE tinha, até sua interrupção em 2015, ficado restrito à mera função de aquisição e distribuição de livros, ou seja, “[o] modelo de intervenção adotado vem historicamente privilegiando um único aspecto que compõe uma política de formação de leitores: a compra e a distribuição de livros às escolas e aos alunos” (BRASIL, 2008, p. 5). Sob outro prisma de interpretação da ideologia, se a constatação de que as influências ideológicas operam de forma a produzir, nos meios de comunicação de massa (especialmente na produção literária infantojuvenil) uma “bipolarização dominador-dominado” (ROSEMBERG, 1985, p. 20) relegando a criança a um espaço menor, no que se refere às relações raciais esta influência se expressa de forma ainda mais evidente. A desigualdade na caracterização de personagens negras em relação a brancas, aliada à estereotipia e

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explícitas manifestações racistas, fizeram da literatura um dos maiores fomentadores do preconceito racial no Brasil, pois, concordando com o que afirma Regina Dalcastagnè (2008, p. 88) “[...] uma vez que a opressão é tanto material quanto simbólica, podemos percebê-la também na própria literatura, uma forma socialmente valorizada de discurso que elege quais grupos são dignos de praticá-los ou de se tornar seu objeto”. Para enfatizar a produção infantojuvenil e sua intrínseca aproximação com as relações raciais no Brasil, um artigo de Maria Cristina Soares de Gouvêa (2005), Imagens do negro na literatura infantil brasileira: análise historiográfica, recuperou, em obras clássicas deste gênero literário, a representação de personagens negras. Sua pesquisa recaiu sobre a produção das três primeiras décadas do século 20, cujos principais expoentes são Olavo Bilac, Menochi Del Picchia e Monteiro Lobato. Diante da análise de publicações da época, a autora chegou à seguinte síntese de resultados: Por um lado, o negro vinha reafirmar a identidade nacional, associado ao folclore brasileiro e marcando com suas histórias, práticas religiosas e valores, a infância dos personagens. Por outro, esses mesmos valores não encontravam lugar no seio de uma sociedade que se pretendia moderna, fazendo-o ocupar um espaço social à parte. Enquanto a modernidade, associada à urbanidade, ao progresso, à técnica, e à ruptura, era representada pelos personagens brancos adultos, os negros eram relacionados a significantes opostos, como tradição e ignorância, universo rural e passado (GOUVÊA, 2005, p. 84). Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Assim como a literatura endereçada ao público adulto estava firmada nas bases do racismo científico, não é de se estranhar que a literatura infantojuvenil seguisse os mesmos passos, porém com um agravante: seu caráter didatizante que, por consequência, servia para reafirmar às novas gerações quem ocupava cada um dos “seus devidos lugares” na sociedade da época. E, inegavelmente, Monteiro Lobato firmou-se como um dos maiores representantes desta característica eugenista, tema apresentado na pesquisa de Paula Arantes Botelho Briglia Habib (2003). Por meio da investigação de parte da vida e obra de Lobato e relacionando-as com as teorias racistas da época, a pesquisadora apontou que, em diversas produções, seus anseios por uma nação próspera estavam firmados no ideal de raça pura, livre das mestiçagens, ou “má semente” (LOBATO apud HABIB, 2003, p. 168) encontradas no Brasil. A regeneração da espécie seria responsável pela realocação do país a um status de progresso, digno de sua história. Com tais apontamentos, a intenção é de evidenciar muito além de um momento histórico específico: é, sobretudo, discutir o cânone e quais os aspectos que o constituem como tal. Neste prisma, concordo com Habib (2003, p. 20) que afirma que: [...] o objetivo central [...] não é, diferente do que possa parecer, destruir um mito ou negar o encanto de páginas que marcaram sucessivas gerações de brasileiros nas quais, evidentemente, me incluo. Pretende-se chamar a atenção para uma outra faceta deste escritor tão popular e cultuado, tanto no meio acadêmico quanto pelas pessoas

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em geral, – através do livro ou da TV – para enxergá-lo em seu tempo histórico, como um sujeito que viveu intensamente seus equívocos e contradições.

Acabaria por se tornar inviável assumir uma empreitada de interpretação da ideologia por meio do discurso e da literatura sem buscar desvelar aspectos subjetivos (e outros nem tantos) que podem ser responsáveis por construir as bases desta ideologia, como é o caso da herança literária deixada por Lobato. Em duas pesquisas (mestrado e doutorado) sobre as discriminações raciais nos livros didáticos, Ana Célia da Silva (2001; 2004) discutiu amplamente o caráter ideológico imbricado nas produções didáticas e literárias para a escola: Os materiais pedagógicos têm papel fundamental na reprodução das ideologias, uma vez que expandem visões estereotipadas dos segmentos oprimidos da sociedade. Entre eles, sobressai-se pela importância que lhe é conferida pelos pais, alunos e professores, o livro didático, considerado o depositório da verdade, a memória conservada das civilizações. Contudo, muitos processos civilizatórios e muitas visões de mundo são omitidos ou minimizados pelo livro, que veicula, na maioria das vezes, a visão de mundo e o processo civilizatório das classes dominantes (SILVA, 2004, p. 51).

Mesmo fazendo referência direta ao livro didático, é possível inferir que é o que faz, em suma, Lobato ao descrever Tia Nastácia como uma “negra beiçuda [...] Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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sem cultura nenhuma, que nem ler sabe [...] e que outra coisa não faz [...] senão ouvir as histórias de outras criaturas igualmente ignorantes, e passá-las para outros ouvidos, mais adulterados ainda” (LOBATO, 1982 [1937]). Associar o conhecimento de uma personagem, que traz tradições orais advindas da cultura africana (e que o próprio autor as resgata) a um conhecimento inferior e alienante, é negar qualquer possibilidade de descendentes que têm acesso a estas leituras de se identificarem com tal cultura. Ou seja, “[o]mitindo e minimizando a história, os valores culturais, o cotidiano e as experiências da criança negra, o livro concorre significativamente para o recalque da sua identidade étnica e seu branqueamento mental e físico” (SILVA, 2004, p. 52). Além disso, para as crianças de forma geral, mensagens que poderiam operar no sentido de valorização da origem africana fazem o contrário, a desvalorizam. Da mesma forma, Célia Maria Escanfella (1999; 2007), em uma análise comparativa de 30 obras infantojuvenis publicadas entre 1976 e 2000, “com o objetivo de compreender como o setor editorial tem representado a questão étnica/racial” (ESCANFELA, 2007, p. 1), apontou para manutenções na relação assimétrica entre a disposição (tanto imagética quanto literária) de personagens brancas e não-brancas: Os resultados ressaltam, apesar do aumento na representação de personagens negros, a manutenção da assimetria na representação racial na produção literária para crianças, pois permanece pouco expressivo o índice de personagens negros no texto e nas ilustrações tanto na produção de edito-

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ras laicas como católicas. Evidencia-se, assim, que o leitor implícito no texto é a criança branca para a qual a relação étnica/racial é apresentada de forma ideológica, acima de tudo pela ausência de representação de grupos étnicos não-brancos, universalizando-se a representação da espécie como branca, ou por meio de uma representação estereotipada. [...] Ao comparar esses resultados com outros estudos sobre a questão racial, pode-se afirmar que a literatura infantil contemporânea não sofreu grandes alterações quanto aos aspectos raciais nela representados, principalmente quando se toma como referência a produção de editoras católicas, permanecendo, portanto, uma fonte de produção, manutenção e reprodução das assimetrias raciais (ESCANFELA, 2007, p. 7).

Com isto, pode-se concluir que não basta, a quem pretende discutir a trajetória da literatura infantojuvenil, focar-se somente nas produções do início do século 20 (mesmo estando presentes ainda hoje em bibliotecas e escolas) mas também intensificar a análise de publicações atuais, que visam manter relações assimétricas de poder, já que elas compõem, juntamente com muitas obras mais antigas, acervos de bibliotecas de escolas podendo, desta forma, atuarem de modo negativo e depreciativo na formação de estudantes acerca da população negra. Com relação à Construção da mensagem dos meios de comunicação, este enfoque tem relação com a análise formal ou discursiva, proposta na Hermenêutica de ProRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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fundidade. Neste trabalho especificamente, esse segundo enfoque recairá sobre a análise das produções infantojuvenis que apresentam personagens negras. O objetivo é, portanto, de analisar elementos que apontem para a valorização ou depreciação deste grupo em função dos preceitos de uma Educação para as Relações Étnico-Raciais. Diante dos estudos já desenvolvidos sobre a relação entre literatura infantojuvenil e educação, é possível identificar a produção literária como uma relação intrinsecamente ideológica por revelar-se criadora de um fenômeno simbólico específico – a leitura literária inserida num espaço de poder, a escola – que atua para “estabelecer e sustentar uma relação de dominação” (THOMPSON, 2002, p. 76). Portanto, este campo, por si só, já se torna possível e passível de análise e interpretação da ideologia. Mas, se adicionarmos o elemento “relações raciais”, esse campo amplia-se consideravelmente, por firmar-se em uma base ideológica a priori que passa a refletir também a ideologia racista, da qual estas duas grandes instituições sociais (literatura e escola) atuaram historicamente para a sua manutenção e reificação; ou, como, nas palavras de Silva (2007, p. 161), “[o]s nossos leitores infantojuvenis continuam convivendo com discursos literários que difundem a hierarquia entre brancos e negros e que discriminam a não-brancos”. Para ilustrar o que se afirma como uma considerável ampliação do campo de literatura juvenil e escola acrescida do estudo sobre relações raciais, um quadro, inicialmente elaborado por Silva (2007) e que recebeu a adição de novas categorias e pesquisas, busca explicitar a gama de produções científicas que se preocupou

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com estes eixos. Nele inseridas estão pesquisas elaboradas desde o final da década de 19703. Quadro 1. Síntese de formas de hierarquização captadas por pesquisas sobre personagens negras na literatura infantojuvenil brasileira entre 1985 a 2008. • Praticamente não existiam personagens negras na literatura infantojuvenil anterior a 1920 (GOUVÊA4, 2004, 2005); • obras do período entre 1890-1920 cujos enredos ignoram as atrocidades da escravização, embora relatem o período (FRANÇA, 2006) e obra atual que apresenta a mesma omissão (OLIVEIRA, 2003); • sub-representação de personagens negras, em textos e ilustrações (ROSEMBERG, 1985; BAZILLI, 1999; LIMA, 1999; GOUVÊA, 2004, 2005; KAERCHER, 2006; PESTANA, 2008; FERREIRA, 2008; VENÂNCIO, 2009); • menor elaboração de personagens negras, com altas taxas de indeterminação de situação familiar e conjugal, escolaridade, origem geográfica, religião (ROSEMBERG, 1985; BAZILLI, 1999; OLIVEIRA, 2003; GOUVÊA, 2004, 2005; KAERCHER, 2006); • estereotipia na ilustração de personagens negras (ROSEMBERG, 1985; LIMA, 1999, GOUVÊA, 2004, 2005; KAERCHER, 2006; FRANÇA, 2006; FERREIRA, 2008; PESTANA, 2008); • associação do ser negro com castigo e com feiura (ROSEMBERG, 1985; OLIVEIRA, 2003; KAERCHER, 2006); • associação do ser negro com simplicidade, primitivismo, ignorância, proximidade à natureza (ROSEMBERG, 1985; GOUVÊA, 2004, 2005; KAERCHER, 2006; PESTANA, 2008); • associação com personagens antropomorfizados (não-humanos) (ROSEMBERG, 1985; OLIVEIRA, 2003; GOUVÊA, 2004, 2005); • associação, pela cor, com maldade, tragédia, sujeira, escravidão (ROSEMBERG, 1985; LIMA, 1999; OLIVEIRA, 2003; FRANÇA, 2006; PESTANA, 2008); • correlação de personagens negras com profissões socialmente desvalorizadas (ROSEMBERG, 1985; BAZILLI, 1999; LIMA, 1999; OLIVEIRA, 2003; SOUZA, 2005; PESTANA, 2008); • o/a branco/a é apresentado/a como condição humana “natural”, como representante da espécie. Ser branco é a condição normal e neutra da humanidade: os não-brancos constituem exceção (ROSEMBERG, 1985; BAZILLI, 1999; NEGRÃO 1988; NEGRÃO E PINTO, 1990; PESTANA, 2008; FERREIRA, 2008); • glamourização do mundo branco, em que se vinculam imagens de luxuosidade, requinte e riqueza a personagens brancas (KAERCHER, 2006);

3  A publicação do livro de Fúlvia Rosemberg (1985) apresenta síntese de resultados de pesquisa da Fundação Carlos Chagas com relatórios depositados na biblioteca desta fundação em 1978-79. 4  Para não expandir exageradamente a extensão deste quadro, os nomes por extenso das pesquisadoras e pesquisadores serão explicitados apenas nas referências, ou, no caso das pesquisas já indicadas no quadro original, ver mais em Silva (2007). Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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(Quadro 1 - Continuação)

• os livros são produzidos pressupondo como leitores crianças brancas. O cotidiano e a experiência da criança negra são alijados do ato de criação das personagens e do enredo dessa literatura (ROSEMBERG, 1985; NEGRÃO, 1987; NEGRÃO, 1988; NEGRÃO E PINTO; 1990); • mulher negra presa ao estereótipo de empregada doméstica, particularmente as senhoras submissas, sem vida própria, devotada aos patrões brancos (ROSEMBERG, 1985; NEGRÃO, 1998; NEGRÃO E PINTO, 1990; PIZA, 1995; LIMA, 1999; GOUVÊA, 2004, 2005; SOUZA, 2005; KAERCHER, 2006; FRANÇA, 2006). Na literatura infantojuvenil publicada após a década de 1970, entrada de outra personagem estereotipada, a “mulata sensual” (PIZA, 1995; KAERCHER, 2006; FRANÇA, 2006); • ascensão social de personagem negra devido ao auxílio de personagem branca, por meio de adoção ou de incentivo financeiro e moral, personagens brancas conseguem mudar o destino de personagens negras (OLIVEIRA, 2003; FERREIRA, 2008); • maioria de personagens masculinos, adultos e brancos, que, além de heterossexuais e representando a normatividade sexual, indicam, nos seus caracteres e personalidades, modelos a serem seguidos (KAERCHER, 2006); • ênfase no discurso sobre a mestiçagem, em uma perspectiva de “evolução da espécie” (OLIVEIRA, 2003; KAERCHER, 2006; FRANÇA, 2006); • clareamento, nas ilustrações, de personagens negras (Negritude radializada5), de modo a promover a ocultação das características fenotípicas de tais personagens, padronizando as ilustrações (KAERCHER, 2006); • personagem negra com identidade construída de modo fragmentado, em que não há referências específicas e corretas sobre sua verdadeira origem (OLIVEIRA, 2003); • discurso de tolerância às diferenças ao invés de valorização das diferenças, reafirmando a inferioridade e desconsiderando uma perspectiva de olhar altero acerca de personagens não-brancas (KAERCHER, 2006); • auto-rejeição e desejo de embranquecimento por parte de personagens negras, como uma fuga diante do sofrimento que as atingem (OLIVEIRA, 2003; FRANÇA, 2006); • nomes atribuídos a personagens negras que representam metaforicamente uma carga negativa ou apelidos depreciativos, seja pela sua relação de vinculação comumente feita com profissões de menor prestígio social ou pobreza (OLIVEIRA, 2003; PESTANA, 2008); • configuração pedagógica e didática formando um “manual da cultura afrobrasileira”, em que ilustrações indicam a composição de instrumentos musicais, mapas de quilombos e de locais de origem de povos africanos, minivocabulários, etc. (FRANÇA, 2006). FONTE: Paulo Silva (2007, p. 161-162); Araujo (2010, p. 22) 5  A autora define Negritude radializada como o “[...] resultado da fusão dos conceitos de raça e cor no Brasil que [...] termina por criar um leque de matizes cromáticos (como um radial) que pode chegar ao infinito e que, apesar disto, exclui as cores localizadas nas extremidades: o branco e o preto. Ou seja, ao articular o processo de reificação da branquidade com o processo de radialização da negritude, terminamos por criar representações cromáticas da negritude que excluem o preto, e os demais matizes escuros, como cores possíveis de serem utilizadas em suas ilustrações. Deste modo, ao promover o desaparecimento do escuro implementa-se um embranquecimento” (KAERCHER, 2006, p. 137-138).

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Contudo, diante de resultados diferentes sobre a leitura de outras pesquisas, surgiu a necessidade da elaboração de um quadro em separado, apontando os resultados que revelam algumas mudanças nas hierarquias sociais, com resultados positivos para a população negra – ainda que com limites – no tocante à criação literária e ilustrações. Quadro 2. Síntese de mudanças captadas por pesquisas sobre personagens negras na literatura infantojuvenil brasileira entre 1985 a 2008 presença de narradores/as negros/as, ainda em desvantagem em relação a brancos/as, mas com um aumento em relação a pesquisas anteriores (Venâncio, 2009); incidência maior, no acervo do PNBE/2008 (ainda com “lacunas”) de personagens negros em contextos familiares (Venâncio, 2009); enredos contemporâneos que expressam crítica à escravidão capitalista ao invés de ênfase na escravização como fato passado, evidenciando outros elementos (problemas sociais) que compuseram este momento histórico do Brasil (França, 2006); personagem negra escravizada em obra contemporânea cuja imagem distancia-se da representação de escravo submisso, em que sua voz ganha um tom de denúncia em relação ao processo ao que foi submetida (França, 2006); diminuição da taxa de branquidade relativa a personagens masculinos negros e aumento relativo a personagens femininas negras em obras do acervo do PNBE/2008 (Venâncio, 2009); resultados menos desiguais que pesquisas anteriores, no que se refere ao percentual de personagens brancas ilustradas nas capas e no corpo da obra (Venâncio, 2009); traços físicos e comportamentais de personagens negras idealizadas e superiorizadas em obras contemporâneas (França, 2006); aumento no número de protagonistas negras em obras de 1979-1989, embora a representação quantitativa não represente qualidade na construção de suas identidades, enredos e contextos sociais (Oliveira, 2003). FONTE: Araujo (2010, p. 24)

Em síntese, os resultados de pesquisas brasileiras sobre relações raciais na literatura infantojuvenil apontam Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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para um tratamento profundo e sistematicamente desigual entre brancos/as e negros/as e as pesquisas mais recentes indicam mudanças nos discursos dessa literatura, passando a apresentar algumas formas mais favoráveis a negros/as, concomitante com a manutenção de formas de hierarquização branco/a-negro/a. Essas pesquisas focaram-se nas desigualdades manifestadas nos discursos dos textos de obras literárias infantojuvenil. Por último, a Recepção e apropriação das mensagens comunicativas forneceu elementos para investigar se a ideologia se faz presente no campo da recepção das mensagens ou se o encaminhamento e os debates suscitados pela leitura podem estabelecer relações de dominação ou hierarquização entre o modelo cultural eurocêntrico, bastante difundido no espaço escolar, e o africano (e/ou afro-brasileiro). Em função do espaço, os resultados aqui apresentados remetem a três turmas de apenas uma das escolas pesquisadas, aqui intitulada como “Escola B”, localizada em uma região historicamente de imigração italiana, porém que rompe com os estereótipos construídos no início da pesquisa: uma escola localizada em um bairro de boa estrutura, com crianças provenientes de famílias com renda salarial razoável e, sobretudo, em sua maioria branca. O que verifiquei, contudo, foi uma escola de periferia, com diversos problemas de ordem econômica e social e uma população negra razoavelmente grande para os índices da cidade. Código transcritivo: o sistema de convenção utilizado foi baseado em Luiz Paulo da Moita Lopes (2002), com algumas adaptações:

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Quadro 3. Códigos das transcrições AS G M P M¹, M², M³, etc. G¹, G², G³, etc. Gn e Mn Pq ( ) [

quando várias crianças falam ao mesmo tempo fala de um garoto fala de uma menina fala da professora para meninas cujos nomes não são conhecidos para garotos cujos nomes não são conhecidos quando houve a dificuldade de identificação até dentro de uma sequência numérica fala da pesquisadora algo inaudível fala sobreposta

FONTE: Adaptado de Araujo (2010, p. 109).

1. Branquidade como norma: os limites entre alteridade e ideologia

É concordando com a tarefa do antirracismo que a proposta desta seção é discutir quais os limites verificados na branquidade no que se refere à criação ou reprodução de ideologias racistas, e a construção de elementos relacionados à alteridade e reconhecimento do Outro como ser constituinte de sua própria identidade branca. A professora de literatura participante da pesquisa na Escola B foi heteroclassificada por branca, tendo suas características associadas ao modelo do imaginário coletivo de Curitiba, de uma cidade que teve sua imagem construída como sendo eminentemente de origem europeia (especialmente italiana – quando se refere ao bairro onde a escola se localiza). Contudo, o destaque de sua atuação profissional revelou-se muito mais de Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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interesse desta pesquisa no que se refere à abordagem pedagógica sobre a representação do continente africano. Os discursos analisados a seguir são partes de aulas de leitura em que a professora utilizou três contos e um filme. Os contos são Ulomma: a casa da beleza (SUNNY, 2006), Okpija (SUNNY, 2006) e Kiriku e a feiticeira (Roberto BENJAMIN et al., 2006) sendo que este último é também o título do filme que foi exibido nas semanas subsequentes. A apresentação e análise não serão estabelecidas cronologicamente em relação aos discursos produzidos, pois a preocupação é de reuni-los de acordo com as categorias. a) A alteridade e o reconhecimento das diferenças

Com limitações bem demarcadas, certamente, a postura da professora das turmas pesquisadas serviu para romper com estereótipos também construídos no bojo desta pesquisa, seja por mim como pesquisadora e militante, seja pelo próprio contexto de estudo voltado para as relações raciais. Pesquisas diversas apontaram para problemas relacionados à forma de abordagem pedagógica acerca da cultura afro-brasileira e africana por parte de professoras da educação básica e, de certa forma, o olhar deste estudo também foi direcionado para encontrar tais elementos. Buscando elucidar e evidenciar características de destaque (positivos e negativos) na atuação de uma professora branca na forma de encaminhamento das leituras, inicialmente indicarei aspectos positivos, tendo como suporte teórico estudos sobre branquidade. É o caso, por exemplo, do produzido na 4ª B, no dia 05/06/2009:

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01 P: O que que a gente percebe do comportamento da Okpija, gente? O que que a 02 gente pode perceber? Por que que ela não se casou cedo? 03 Gn: Porque ela sempre rejeitava os maridos. 04 P: Mas por quê? 05 AS: Porque ela se achava bonita. 06 P: Ela se achava bonita. 07 GEORGE: Mas num era bonita. 08 P: Ela era bonita. Todos achavam ela muito bonita. E realmente era muito bonita. Só 09 que ela tinha um pequeno problema, né, ela tinha uma vaidade muito grande. Será 10 que é legal a gente ter essa vaidade, achar que é melhor do que os outros? 11 AS: Não. [...] 12 P: E me diga uma coisa: é... ela se achava, e realmente ela era muito bonita, né? 13 É... e aí você, daí alguns disseram: “ah professora mas ela não era bonita não ela era 14 feia”. Por que ela era feia? Por que vocês acham que ela era feia? 15 M1: Eu não sei. 16 G1: Eu não falei nada. 17 P: Acho que foi você, Ryan? 18 AS: Foi. 19 P: George, por que que você acha, não, a gente tá conversando. Não to dizendo se tá 20 certo ou tá errado, quero saber a opinião. Por que você acha que ela era feia? Vou 21 mostrar de novo pra você olhar bem pra ela pra não... pra [não 22 GEORGE: Ah, por causa do rosto dela, professora, cheio de enfeite. 24 P: Por causa do rosto. 23 G2: [O rosto não tem nada de enfeite. 25 GEORGE: Tem sim, tem umas bolinhas. 26 P: Tem, ela tem alguns desenhos no rosto. 27 G2: Ah. 28 AS: [( ). 29 GEORGE: ( ) que ela é indiana. 30 P: E me diga uma coisa, e aquelas pessoas que usam piercing, põem piercing aqui na 31 sobrancelha, 32 GEORGE: [Nossa eu acho ridículo, horrível! 33 G2: [No nariz. 34 P: [No nariz? 35 G2: [Na língua. 36 GEORGE: Nossa eu acho ridículo! 37 P: Elas também, elas também têm ( ), Elas são feias? 38 AS: [Sim. 39 AS: [Não. ( ). 40 G3: O professora, professora, meu primo tá assim, ó: ele coloca uma bola assim, ó. 41 P: E me diga uma coisa, e aqueles meninos que fazem topete, passam gel no cabelo 42 pra ficar arrepiadinho, eles são feios? 43 AS: [Sim. 44 AS: [Não. 45 P: [É uma maneira de se arrumar. 46 AS: Eu uso assim, professora. 47 P: É? E aquelas meninas que fazem os frufruzinhos, põem as presilhinhas, arrumam 48 [maria-chiquinhas, 49 Gn: [Ridículas! Acho elas ridículas!

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50 P: Elas também são feias? 51 AS: [Sim. 52 AS: [Não. 53 P: Olha só, em todas as perguntas que eu fiz eu ouvi sim e não 54 AS: ( ). 55 P: Uma parte sim e uma parte não. Então olha só, gente, na verdade, é bem o caso lá 56 da Ulomma, que a professora Charlote contou semana passada. É... não existe o 57 feio. 58 Gn: A Ulomma é feia porque ela é careca. 59 P: Mas ela não é feia, sabe por quê? Porque lá na tribo onde ela mora, é... [ter 60 Gn: [Tudo careca. 61 P: [A cabeça raspada é um sinal de nobreza e um sinal de beleza. 62 M1: E se a gente raspasse a cabeça? 63 AS: [( ) (Risos). 64 P: [Pra nós ia ser normal? [...] 65 P: Pois é, olha lá. O Marvin tem a cabeça raspada, vocês é... deram risada. 66 AS: É a maneira [( ). 67 P: [Por que o que acontece? É uma coisa normal? 68 AS: [Não. 69 AS: [É. 70 P: Pra nós é normal? 71 AS: [É. 72 P: [É normal ( )? Por que normal? 73 AS: [Não é normal. 74 P: [( ). Então, o que que [acontece, 75 Então olha só, como disse o George, ela é feia porque ela tem uns desenhos, né? 76 Então veja ( ), qualquer pessoa que tenha algo ( ) vai se tornar feia? 77 AS: Não. 78 P: Não. Até porque lembram que nós estamos vendo contos africanos. Então, assim 79 como vocês estão vendo na novela do Caminho das Índias, 80 Gn: É massa. 81 P: Então o que que acontece? Aquela parte do mundo na Ásia e na África, as 82 pessoas têm por é... tradição, 83 M3: Aquele carinha careca, lá que tem aqueles negocinhos... 84 P: Isso! Eles têm por por símbolos, por por maneiras, [por costumes, 85 Gn: ( ) é um Dalit. 86 AS: ( ). 87 P: Então olha só, eles têm, por tradição esses costumes, e a gente pode pensar, 88 bem aquilo, né: é feio pra mim, mas pra uma outra pessoa é bonito. O George de 89 topetinho e gel pode ser feio, mas para uma outra pessoa pode ser bonito, né? A... 90 Grace, de touquinha na cabeça aqui pode estar feia para alguns, pra alguns ela pode 91 estar bonita. [A Marie, com o cabelinho preso, pra alguns pode estar feia, pra outros 92 pode estar bonita. [...]

Neste momento, verifica-se uma tentativa da professora de propor às crianças uma nova forma de interpretação acerca das diferenças. Usando como exemplo

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a novela Caminho das Índias6 que foi, inclusive, uma “leitura” feita por algumas crianças de outras salas, a sua abordagem tentou despertar nos/as alunos/as novas perspectivas para o reconhecimento e valorização das diferenças, como sendo marcas culturais presentes em todas as sociedades. A sugestão proposta por uma aluna (linha 62) “E se a gente raspasse a cabeça?” amplia o debate para a perspectiva da alteridade, em que o “Outro” pode se transmutar no “Nós”. E neste trecho como em diversos outros, mesmo que com dificuldades, a professora não se omitiu do debate. Pode-se considerar, portanto, que sua postura acaba por não promover o silêncio (SILVA, 2008) como forma de omissão acerca dos preconceitos. Sob a perspectiva proposta por Moita Lopes (2002) para a interpretação dos discursos no espaço escolar, é possível considerar que a postura da professora ao não se furtar da promoção de um debate crítico sobre as diferenças responsáveis por construir as hierarquias entre a estética africana e a ocidental, favoreceu para a construção de identidades que têm sua base fundada na alteridade. Esta inferência é possível se concordarmos com a afirmativa de que “[...] os significados gerados em sala de aula têm mais crédito social do que em outros contextos, particularmente devido ao papel de autoridade que os professores desempenham na construção do significado” (MOITA LOPES, 2002, p. 38). É possível considerar outros elementos sobre tal episódio: levando-se em conta a fragilidade ainda vigente em cursos de formação sobre propostas 4

6  Novela exibida pela emissora TV Globo durante o ano de 2009 abordou como

tema os costumes e tradições, sob a concepção e perspectiva de sua autora, Glória Peres, da população indiana, dividida em castas e religiões. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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teórico-metodológicas de encaminhamentos acerca da forma mais “adequada” de se abordar a(s) cultura(s) africana(s), a postura de tal professora surpreendeu, sobretudo, se considerado do ponto de vista de sua posição numa escala de branquidade, do grupo que poderia afirmar: “[...] o significado de ser branco é a possibilidade de escolher entre revelar ou ignorar a própria branquitude... não nomear-se branca...” (PIZA, 2002, p. 75). Tal postura remete ao que Helms (1990, apud Bento, 2002) propõe como uma sequência de estágios pelos quais uma pessoa branca pode passar até desenvolver a autonomia, ou seja, “a internalização de uma nova percepção do que é ser branco [...] [em que o]s sentimentos positivos [...] energizam os esforços pessoais para confrontar a opressão e o racismo na sua vida cotidiana” (BENTO, 2002, p. 44). É possível, portanto, considerar que, independentemente de maior ou menor qualidade na formação específica sobre a Educação das Relações Étnico-Raciais, a opção teórica da professora pelo não-silenciamento ou omissão acerca do que sabia sobre a cultura africana demonstrou seu posicionamento, se não autônomo em relação a sua condição, pelo menos aproximado e em constante evolução. Os cursos de capacitação (e o incentivo da presença desta pesquisa de cunho observatório participante) auxiliaram a professora na ampliação de suas possibilidades de trabalho com a literatura infantojuvenil para além do cânone, ou seja, dos modelos tradicionais de literatura. Esta atitude interfere diretamente na formação das crianças acerca das diferenças étnico-raciais, culturais, sociais e econômicas, além de atuar de forma relevante na constituição de sua forma-

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ção identitária, conforme defende Ware (2004): “[o] esforço necessário para que o sujeito se identifique com as histórias e contextos de outras culturas oferece-lhe uma oportunidade de interpretar sob uma nova luz aquilo que é conhecido em sua própria cultura” (WARE, 2004, p. 16). b) A ideologia da branquidade como norma

Embora elementos de avanços existam no que se refere à branquidade como componente não mais de uma perspectiva normativa e sim de uma possibilidade de reconhecimento das diferenças, é possível ainda definir alguns episódios como sendo frágeis por estabelecerem-se em uma linha tênue entre a valorização e a folclorização. O próximo episódio ocorreu no dia 03/07/2009 na 4ª B, quando as crianças estavam assistindo à parte final do filme Kiruku e a feiticeira, que havia iniciado na aula anterior (dia 26/06/2009). O trecho compilado a seguir corresponde a mais de 4 minutos de exibição da última cena do filme, quando os homens da aldeia retornam junto com o avô de Kiriku. Eles estão tocando tambores e dançando. 01 G1: Parece uns macaquinho (Risos) 02 G2: Batendo, né? (Risos). 03 G1, G2: ( ). 04 G1: Parece uns macaco, cara! 05 Gn: Todos macaquinhos! 06 G3: Ó o pai do Kiriku ali! 07 G3: Ó o pai do Kiriku! 08 G1: É o pai do Kiriku? 09 G3: Ali, ó! 10 G1: Kiriku! (Risos) 11 G2: É o Kirikão! (Risos)

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12 G2: É o pai dele! Parece ( ). 13 Gn: Todos macaquinhos! 14 P: Gostaram do filme, gente? 15 AS: Sim! 16 P: Legal, né? 17 G1: Professora, traz mais filme igual este. 18 G2: Traz o Negrinho do Pastoreiro! 19 P: Então olha só, gente, ( ) O que que vocês acharam do filme?

Os comentários feitos pelas crianças não foram tema de pauta do debate que a professora desenvolveu na sequência. Para estabelecer a interpretação sobre este episódio, será preciso descrever alguns aspectos sobre a professora e os produtores do discurso. A professora, que estava de pé ao lado do aluno que emitiu o primeiro comentário (linha 1), continuou ali até o momento quando outro aluno fez o comentário sobre o pai de Kiriku (linha 11). A posição de ambos era próxima à porta que se localizava a frente da sala, ao passo que eu – que ouvi o comentário independentemente de ter sido captado pelos dois gravadores (e o foram) – estava no fundo da sala em uma fileira do meio. Diante isso, é possível propor três hipóteses acerca do silêncio por parte da professora: i) ela não ouviu tais comentários (o que de certa forma parece impossível, dada a distância); ii) ela não considerou relevante o tema e/ou concordou que as ilustrações realmente indicaram características daqueles homens parecidas com as de macacos, ou, ainda; iii) por não saber como encaminhar a situação, optou por ignorar ou silenciar-se diante do fato. Como este trabalho propõe interpretar “se o sentido, construído e usado pelas formas simbólicas, serve ou não para manter relações de poder sistematicamente assimétricas” (THOMPSON, 2002, p. 16), e nem sem-

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


pre estes tipos particulares de formas simbólicas “são ideológicos em si mesmos” (THOMPSON, 2002, p. 16), o exercício de análise e interpretação deste episódio exige uma atenção especial do ponto de vista da dimensão que tais comentários têm para as relações raciais no Brasil. Recorrendo ao que Michel Apple (1996, p. 36) aponta sobre a branquidade como um “conceito espacial” , a proposição defendida pelo autor converge com os efeitos que o silenciamento por parte da professora criou: Isto requer que vejamos a branquidade como sendo ela mesma um termo relacional. O branco é definido não como um estado, mas como uma relação com o preto, ou com o marrom, ou amarelo, ou vermelho. O centro é definido como uma relação com a periferia.

Nos nossos modos usuais de pensar essas questões, a branquidade é algo sobre o qual não temos que pensar. Ela está simplesmente aí. Trata-se de um estado naturalizado de ser. Trata-se de uma coisa ‘normal’. Tudo o mais é o ‘outro’. É o lá que nunca está lá. (APPLE, 1996, p. 39-40).

A naturalização com que o fato ocorre e é ignorado reitera a constatação do autor de que a branquidade atua de modo a não reconhecer o que não se relaciona com sua construção identitária. Assim, se acrescentada de outras estratégias e modos de operação da ideologia, é válido caracterizar este episódio como uma marca da ideologia Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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racista operando de maneira latente por meio da recepção de formas simbólicas. Sobretudo o expurgo do outro, estigmatização e silêncio são os modos mais evidentes pelos quais foi possível interpretar tal microcena.

2. Ideologia e discurso para a construção de imagem da África a) A África tribal: os limites na construção do imaginário infantil sobre povos africanos e suas culturas

O momento a seguir aconteceu na 4ª C da Escola B quando, na semana anterior (dia 29/05/2009), havia sido a primeira aula de campo, ainda em caráter de observação. Na primeira aula, uma das pedagogas da escola é que havia feito, por meio de contação de histórias, a narração do conto Ulomma: a casa da beleza. A professora, portanto, ao retomar o tema (neste dia 05/06/2009) e comentar sobre a protagonista da próxima história (Okpija) diz: 01 P: Ela também mora na África, tá, ela faz parte de uma tribo e, a gente vai observar 02 que neste conto acontece também algumas situações que a gente tem que pensar, 03 tá? Então eu quero que vocês prestem bastante atenção, não quero que vocês 04 conversem agora, porque a gente vai conversar [...]

Já na aula anterior, quando foi a pedagoga que realizou a contação de histórias, um aspecto havia sido evidenciado por seu discurso: a ideia de África tribal. Um recurso utilizado historicamente para a construção depreciativa da imagem do continente africano é a sua associação com a ideia de tribo. Historicamente este

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termo sofreu alterações na sua aplicação semântica, embora etimologicamente o vocábulo tenha como significado “grupo racial unido pela mesma língua, tradições e costumes e que vivem em comunidade sob um ou mais chefes” (LUFT, 2000, p. 651) sendo, portanto, passível de associação a qualquer grupo étnico. Porém, escolhas ideológicas marcam a sua real aplicação: generalizadamente não se encontra em exemplos midiáticos, sobretudo, expressões como “conflitos tribais” associados a guerras civis ocorridas na história recente europeia (como a guerra da Bósnia e antiga Iugoslávia, por exemplo) mas, frequentemente é possível identificá-la quando a referência é feita a grupos étnicos de países africanos. Um estudo italiano, de Bernardo Bernardi (1998), aponta elementos relevantes na correlação entre África e tribo: No curso dos últimos cem anos da História da África se chegou à adoção dos conceitos de etnicidade e de etnia, pelo refuto ao uso, antes prevalente, de tribo e tribalismo. A palavra tribo, já obsoleta, foi ‘repescada’, na metade do século XIX pelos antropólogos evolucionistas, da linguagem bíblica e latina para indicar a organização de parentesco dos ‘povos primitivos’. Na Bíblia as ‘doze tribos de Israel’ afirmam a descendência de todos do patriarca Jacó. Na antiga Roma monárquica a tribo – tribus – era uma espécie de bairro pois indicava a distribuição territorial do parentesco, distinto em tribo urbana e tribo rústica ou do campo. O termo foi largamente aplicado às sociedades tradicionais africanas, mas a atribuição percebiRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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da de sentidos negativos torna-se ofensiva. No mesmo campo antropológico é descartada quando a concepção evolucionista de povos primitivos foi considera da errada. Na África independente o termo tribo soa impróprio e seu derivado tribalismo assumiu o significado sinônimo de atitudes conservadoras e retrógradas contrárias ao progresso político ou, comumente, com interesse pessoal a favor de parentes ou do próprio eleitor. Durante o processo Otieno7 o jovem filho do advogado morto refuta a palavra ‘tribú’, como notado, e se serve da expressão ‘grupos étnicos’ (BERNARDI, 1998, p. 47). 5

Nesse sentido, a escolha pelo vocábulo ‘tribo” ao invés de “grupo étnico”, “civilização” ou “nação”, por exemplo, denota uma negação da possibilidade de reconhecimento de um grupo humano como sendo civilizado, participante de um mesmo patamar que o identifica como ser de características humanas. É o que afirma Augustinho Portera (2000, p. 138-139): “[o] uso do termo tribo é criticado por relacionar-se a abordagem exterior e folclórica de povos africanos, contribuindo para mediar a imagem preconceituosa e estereotipada do ‘selvagem violento e primitivo’”. Em análise de notícias jornalísticas da imprensa europeia, Teun A. van Dijk (2008, p. 146) identifica marcas do racismo por meio das escolhas lexicais: Assim, a imigração é sempre definida como um problema fundamental, e nunca como 7  Caso de “conflito étnico entre direito comum e direito consuetudinário” analisa-

do pelo autor nas páginas 45-46.

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um desafio, muito menos como um benefício para o país, frequentemente é associada a um fardo financeiro. [...] O crime, ou os tópicos relacionados ao crime, tais como as drogas, são quase sempre entre os primeiros cinco retratos das minorias – inclusive focando no que é tido como crimes étnicos ‘típicos’, tais quais tráfico e venda de drogas, mas também definido como ‘terrorismo’ político [...].

Não é adequado associar diretamente que o contexto de produção dos discursos analisados por van Dijk (2008) tenha a mesma carga ideológica que os verificados na Escola B nas falas das duas professoras. Mas o que se verifica em relação à ideologia é que, ao servir para sustentar relações de dominação, ela é capaz de produzi-las em novos sujeitos. Em outras palavras, não há como reconhecer uma explícita intencionalidade das professoras em formar nas turmas analisadas a ideia de associação de grupos humanos africanos como “tribo”, mas é possível interpretar tais falas como ideológicas por serem frutos de acúmulo teórico (ou do senso comum) que representa a África como tribal (sendo sinônimo de atrasada, primitiva ou tacanha, por exemplo). b) Estética africana: os limites na representação estereotipada das personagens

Por meio da análise de um evento discursivo e produção de ilustrações por parte de algumas crianças, os modos de operação pelos quais foi possível afirmar a reificação ideológica da estética africana foram unificação e fragmentação, sendo que do primeiro a padroniRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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zação e simbolização da unidade foram as estratégias identificadas, e do segundo, a estratégia de expurgo do outro. O episódio a seguir refere-se ao momento em que a professora apresenta à 4ª B, também no dia 05/06/2009, o conto que irá ler (Okpija). 01 P: Então olha só, eu vou contar a história o conto sobre a Okpija. Então olha só, a 02 Okpija é essa moça, 03 Gn: Horrível! (Risos) 04 P: Tá? Lembram que a... professora Charlote havia comentado com vocês sobre a 05 questão dos costumes? Porque nós estamos falando de tribos africanas, 06 que nem nessa tribo, essa é a Ulomma, [o costume é, até pelo sinal de nobreza, era 07 Gn: [Ui! 08 Mn: [Deixa eu ver, professora. 09 AS: [( ). 10 Gn: [Todas careca! 11 Gn: [Ô professora, acho que essas mulher tá tudo sem ( ). 12 P: Manter a cabeça raspada. 13 AS: ( ). 14 P: E agora, olha só, neste outro nesse outro conto já, a gente não percebe mais que é 15 um sinal de nobreza estar com a cabeça raspada, então 16 Gn: ( ). 17 P: Então provavelmente aqui é uma outra tribo, é... os enfeites já são diferentes. 18 ela tem adornos no cabelo, ela tem os colares, ela tem pinturas no [corpo né? 19 Gn: [Professora, é implante, num é cabelo não, né? 20 P: Não, não é implante de cabelo. São os cabelos dela mesmo.

Além da ideia de tribo presente nesta passagem, outros elementos chamam a atenção: os comentários relacionados às características fenotípicas e estéticas das personagens (linhas 03, 07 e 10), e a hipótese de um aluno sobre as origens do cabelo da personagem Okpija (linha 19) evidenciam marcas do olhar ocidental, ou do Nós (nas palavras de van Dijk) sobre o Eles. O estranhamento presente nos comentários das crianças só ganha reforço com a argumentação rasa de que as di-

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ferenças entre uma e outra personagem são relacionadas às diferenças entre as “tribos”. A seguir, ilustrações de ambas as histórias apresentam personagens negras retratadas em sua altivez, mas que foram insuficientes para impedir um olhar e interpretação estereotipados. Como assinalado anteriormente, a proposta (que partiu da professora) de ilustrar as histórias, teria como objetivo ampliar as possibilidades de interpretação de recepção sobre a compreensão das crianças acerca das leituras realizadas. As duas primeiras ilustrações feitas pelas crianças (figuras 1 e 2) evidenciam os efeitos de uma abordagem pedagógica que enfatiza a relação entre “tribal” e povos africanos. Mesmo que as ilustrações não apresentem

Figura 1. Ilustração produzida por Figura 2. Ilustração produzida por aluno/a sobre o conto Okpija. aluno/a sobre o conto Ulomma. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Figura 3. Ilustração produzida por aluno/a sobre o conto Okpija.

Figura 4. Ilustração produzida por aluno/a sobre o conto Ulomma.

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tonalidade de pele condizente com as personagens, as vestimentas indicam marcas que associam as personagens a um contexto primitivo. Já nas figuras 3 e 4 a presença de uma formação eurocêntrica arraigada impede que a leitura de uma obra literária sob perspectiva diferente seja “lida” de modo mais aproximado de seu contexto de enredo e de produção. Tanto no que se refere às marcas físicas (tipo e cor dos cabelos, vestimentas, etc.) como às marcas de cenário (castelos, disposição e tipo de mobílias, entre outros) a presença de ideologia é explícita, dentre os quais se podem identificar alguns dos modos e estratégias em que ela opera: a) padronização: no que se refere às ilustrações de personagens negras retratadas em contextos e com características europeias, fator influenciado, sobretudo, pelo fato de as crianças terem contato constante com um único grupo humano nos enredos literários8;6; b) simbolização da unidade: a recorrência de ilustrações que apresentam as personagens com características “tribais” ou, nas palavras de Thompson (2002, p. 86) “envolve a construção de símbolos de unidade, de identidade e de identificação coletivas”. Esta estratégia, como bem aponta o autor, relaciona-se diretamente com a narrativização, estratégia difundida para “tratar o presente como parte de uma tradição eterna e aceitável” (THOMPSON, 2002, p. 83). A aproximação está, portanto, no fato de símbolos, como as roupas feitas de peles de animais ou uma seminudez, por exemplo, serem associados constantemente como representação simbólica de grupos 8  Não considero que esta interpretação seja fruto de uma inferência. Acredito

ser consenso entre pesquisadoras/es e profissionais da educação que a presença constante de enredos literários e de uma branquidade como modelo civilizatório estabeleçam esta elaboração de cenários e locações de origem europeia. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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africanos, por firmar-se “na medida em que símbolos de unidade podem ser uma parte integrante da narrativa das origens que conta uma história compartilhada e projeta um destino coletivo” (THOMPSON, 2002, p. 86); c) expurgo do outro: quando o comentário “horrível” (linha 3) seguido de risos evidenciam o quão estranho é a imagem de uma mulher negra em sua estética de origem. Thompson (2002, p. 87) define esta estratégia como sendo “a construção de um inimigo, seja ele interno ou externo, que é retratado como mau, perigoso e ameaçador e contra o qual os indivíduos são chamados a resistir coletivamente ou a expurgá-lo”. Embora não tenha essa complexidade, a interpretação dessa estratégia como recorrente nesse episódio denota do fato de que o estabelecimento de um comentário como este pode representar, do ponto de vista histórico para nossa sociedade, como uma demarcação étnica sobre qual estética é a tradução do belo e qual simboliza a feiura. Sobre isso, Gomes (2002, p. 21) aponta: Foi a comparação dos sinais do corpo negro (como o nariz, a boca, a cor da pele e o tipo de cabelo) com os do branco europeu e colonizador que, naquele contexto, serviu de argumento para a formulação de um padrão de beleza e de fealdade que nos persegue até os dias atuais. Será que esse padrão está presente na escola? A existência de um padrão de beleza que prima pela “brancura”, numa sociedade miscigenada como a nossa, afeta ou não a nossa vida nas diferentes instituições sociais em que vivemos? Essas representações estão presentes na escola? Como?

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Considerações finais

Dada a dimensão dos dados produzidos/coletados poderiam suscitar novas categorias, com vistas a elucidar outros aspectos que certamente aqui podem não ter sido apontados, já que foram análises e interpretações feitas sob um prisma e olhar específicos. Contudo, o mesmo autor também aponta para uma importante consideração a respeito de pesquisas com o perfil deste trabalho: Afirmar que existe grande exigência para uma reflexão crítica desse tipo é um fato que não pode ser colocado em dúvida por ninguém que esteja familiarizado com as múltiplas formas de desigualdades e conflito, que permanecem como características generalizadas, explosivas e aparentemente intocáveis do mundo moderno (THOMPSON, 2002, p. 417).

Num contexto de interpretação da ideologia racista, os modelos expressos por meio da teoria de Thompson sobre ideologia e meios de comunicação de massa representam subsídios teóricos relevantes e adequados. A presença desse modelo tríplice de análise em todos os momentos da pesquisa foi responsável por ampliar as possibilidades de interpretação da ideologia desde a produção, difusão ou transmissão das formas simbólicas, perpassando pela construção das mensagens comunicativas e a sua respectiva recepção e apropriação.

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NEAB Capítulo 3

RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E LITERATURA INFANTIL

Verediane Cintia de Souza de Oliveira Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Capítulo 3 Relações étnico-raciais e literatura infantil

Verediane Cintia de Souza de Oliveira1

Introdução

Esta pesquisa toma parte do campo de estudos sobre relações raciais no Brasil, em especial dos estudos que analisam desigualdades entre negros/as e brancos/as no plano simbólico. O estudo de relações raciais em produtos culturais voltados à infância iniciou-se na década de 1950 (SILVA, 2008) e embora tenha apresentado uma série de novos estudos a partir dos anos 1990, continua sendo um tema minoritário em pesquisas nas áreas de Educação, Ciências Sociais e Literatura. Com o intuito de garantir nova forma de participação dos negros nos currículos escolares, foi sancionada a Lei 10.639/2003 alterando a Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional – LDB (Lei 9.394 de 20 de novembro de 1996), para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Na sequência foi aprovado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) o Parecer 03/2004 e a Resolução 01/2004, instituindo Diretrizes 1 Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná, pedagoga pela mesma universidade, atua na direção de instituição de Educação Infantil e como formadora do Projeto “A Cor da Cultura”.

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Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, com o intuito de normatizar o artigo da LDB e apresentando a definição de necessidade de aplicação da referida lei em todas as etapas e modalidades de ensino, incluindo a Educação Infantil. Temos, por um lado, resultados das pesquisas, tanto mais antigas quanto recentes, que apontam um tratamento sistematicamente desigual a brancos e negros na literatura infantojuvenil (ROSEMBERG, 1985; PIZA, 1996; BAZILLI, 1999; OLIVEIRA, 2003; VENÂNCIO, 2009; ARAUJO, 2010). Por outro lado, observa-se significativa movimentação social em torno das desigualdades raciais na educação e são aprovadas normativas orientadas pela perspectiva dos movimentos sociais e de pesquisadores. A pesquisa orienta-se para como estão configuradas as relações raciais nos acervos distribuídos pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) para a etapa de Educação Infantil em 2008. A opção pelo ano de 2008 foi em função de ter sido pela primeira vez incorporada a Educação Infantil (etapa da Educação Básica) nas compras do PNBE (embora ainda de forma parcial, tendo sido comtemplada naquele ano somente a pré-escola). A análise de amostra de livros distribuídos para essa etapa focou relações étnico-raciais, verificando possíveis formas de hierarquização racial e/ou a valorização de negros/as e brancos/as2. O objetivo central foi analisar as estratégias ideológicas presentes no acervo de 2008 do Programa Nacional Biblioteca da Escola destinada à Educação Infantil. 2  A partir desse momento e no decorrer do texto será utilizado o genérico masculino. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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A pesquisa fez uso do conceito de ideologia definido por Thompson (2002) como o estudo das formas pelas quais os sentidos servem, em circunstâncias particulares, para estabelecer e sustentar relações de poder que são sistematicamente assimétricas (denominadas de “relações de dominação”). Adotou também a metodologia de estudo da ideologia proposta por esse autor, a Hermenêutica da Profundidade (HP), com organização da pesquisa em três partes: análise do contexto sócio-histórico; análise formal ou discursiva e interpretação/ reinterpretação da ideologia. A investigação foi realizada analisando a bibliografia disponível sobre a temática, os editais do PNBE e um acervo de livros de literatura infantil distribuídos pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) no ano de 2008, com a intenção de discutir os discursos presentes nos livros e possíveis formas de hierarquização racial. Nessa perspectiva, buscou-se observar que tipo de relações de poder foram estabelecidas entre os personagens, traçar um perfil dos livros e dos personagens, procurar manifestações sobre o cumprimento das definições das Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação das Relações Étnico-Raciais. O ensino de História e cultura Afro-brasileira e africana, de acordo com as determinações da Resolução 01/03 e do Parecer CNE/CP 03/2004, do Conselho Nacional de Educação salientam que as políticas têm como meta o direito dos negros de se reconhecerem na cultura nacional, expressarem visões de mundo próprias, manifestarem autonomia, individual e coletiva. Também, tem como meta o direito dos negros, assim como o de todos os cidadãos brasileiros, cursarem cada uma das etapas e

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modalidades (inclui, portanto, a Educação Infantil), em escolas devidamente instaladas e equipadas, orientadas por professores qualificados para o ensino das diferentes áreas de conhecimentos com formação para lidarem com as relações produzidas pelo racismo e discriminações, sensíveis e capazes de conduzir a reeducação entre diferentes grupos étnico-raciais. Em função das limitações de artigo este item será menos detalhado nos resultados que apresentamos. A partir do ponto de vista apresentado, os propósitos da pesquisa podem ser sintetizados na pergunta: Que estratégias ideológicas, particularmente formas de racialização entre brancos e negros, são observadas em amostra de livros de literatura infantojuvenil distribuídos para escolas de Educação Infantil pelo PNBE em 2008?

1. Sobre o PNBE e seus editais

A política de acesso à cultura é abordada nesta pesquisa relacionada à expansão e distribuição de livros às várias etapas de ensino. Criado em 1997, nos anos 2000 o PNBE teve um incremento significativo: tendo distribuído cerca de 160 milhões de livros entre 2001 e 2009. Sendo uma política pública do governo, gerida pelo FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) o PNBE afirma como objetivo proporcionar a professores e alunos acesso aos bens culturais por meio da distribuição gratuita de livros de Literatura. O Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Programa tem como objetivo também a expansão das bibliotecas escolares e o incentivo à leitura. A distribuição de livros pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) alcançou a Educação Infantil apenas no ano de 2008 e limitada à pré-escola (4-6 anos), apesar de existir desde o ano de 1997. O PNBE adquiriu e distribuiu uma quantidade significativa de livros para o ensino fundamental e, além de incluir a Educação Infantil (EI) tardiamente, tratou essa etapa de forma fragmentada, dividindo-a entre creche e pré-escola, andando na contramão das pesquisas da área que defendem políticas integradas para a EI e para a Educação Básica (FARIA, 2005). A ausência de inclusão da EI no PNBE foi tomada por Rosemberg (2007) como manifestação da perspectiva adultocêntrica na execução das políticas educacionais, apontando que idosos e crianças, via de regra, não têm seus direitos respeitados. Nesse caso, fere-se o direito das crianças pequenas de acesso ao livro nas instituições escolares. Paralelo à expansão do PNBE observaram-se significativas mudanças em propostas educacionais de atendimento à diversidade étnico-racial do país. A busca por políticas de igualdade racial tem sido intensa, principalmente por parte dos movimentos negros. Analisando os editais durante a trajetória do Programa Nacional Biblioteca da Escola, visualizamos algumas mudanças (e esperamos por outras). Foram analisados os editais referentes aos anos de 2003, 2005, 2008, 2009, 2011 e até de 2012. Apresentaremos algumas ideias e contradições encontradas na leitura do material, com destaque para questões relacionadas ao edital de 2008.

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O edital de 2003 não apresentava qualquer restrição para as obras a serem adquiridas. Neste edital não aparece nenhuma solicitação de qualidade literária, e nenhum aspecto relacionado à presença da diversidade. No ano de 2004 apenas deu-se continuidade ao PNBE 2003, e por essa razão em dois anos seguidos não foi possível vislumbrar nenhum tipo de mudança. No edital do ano de 2003 foi possível perceber uma preocupação grande com os processos burocráticos para adquirir as obras, bem como entrega de documentos e cumprimento de prazos por parte dos editores. Quanto ao edital de 2005, este previa que seriam selecionadas obras com temáticas diversificadas, de diferentes contextos sociais, culturais e históricos. Ainda, que os temas não deviam apresentar didatismos ou moralismos, e ausência de preconceitos, estereótipos ou discriminação de qualquer ordem (BRASIL/MEC, 2005). Sobre a representatividade das obras pedia-se que esta apresente unidade e consistência de seleção, bem como diversidade de estilo, época e região. Ainda, para o edital de 2005 pedia-se que o projeto gráfico apresentasse qualidade nas ilustrações, ainda que fossem em preto e branco. Diz que “são desaconselháveis reprodução de clichês, preconceitos, estereótipos ou qualquer tipo de discriminação” (MEC, 2005). O edital nesse aspecto não proibia que as imagens apresentassem situações de preconceito, apenas salientava que não eram aconselháveis a veiculação de certas imagens. Houve um detalhamento considerável nos textos dos editais a partir de 2005. Pelo que foi possível observar, alguns acréscimos foram feitos aos textos no decorrer Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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dos anos, ao passo que mais algumas partes do texto se repetem em todos os editais, inclusive no edital de 2012. O edital do PNBE/2008 possuía, entre os anexos, um específico sobre critérios de avaliação e seleção das obras. Quando o acervo era destinado à Educação Infantil, o edital enfatizava que o contato das crianças com a literatura “deve promover momentos de alegria, de desafios para a imaginação e a criatividade, de troca e de experiência com a linguagem escrita. O livro destinado às crianças precisa envolver sentimentos, valores, emoção, expressão, movimento e ludicidade, permitindo inúmeras interações” (BRASIL/MEC, 2008). Além de citar esses e outros aspectos importantes no momento de avaliação dos livros, o edital dava explicação sobre a origem das crianças que chegam à escola. E afirma que, como esses alunos eram provenientes de contextos sociais diferentes e possuíam experiências diferenciadas de contato com a leitura e a escrita, que as obras e acervos de literatura, além da qualidade e do valor artístico, deviam contar com títulos e temáticas diversificadas, capazes de aproximar as crianças das diferentes realidades e ampliar suas experiências de leitura. O edital expressava ainda, que os textos deviam ser eticamente adequados, evitando-se preconceitos, moralismos e estereótipos (MEC, 2008). Essa formulação de carácter genérico sobre a não presença de preconceito e estereótipo repetiu-se nos diversos editais. No que se refere aos livros didáticos Silva (2005) criticou a formulação como não levando em consideração as formas, via de regra, implícitas pelas quais operam os discur-

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sos do “racismo à brasileira”, não oferecendo subsídio aos avaliadores e tendo pouco impacto nas avaliações. No caso dos livros didáticos as prescrições deixaram o carácter genérico e negativo, para serem propositivas e específicas, afirmando que os livros deviam promover a valorização dos diferentes segmentos étnico-raciais da sociedade brasileira. Tal tipo de formulação não foi observada nos editais do PNBE. O edital do PNBE/2010 ganhou uma mudança significativa no texto e na composição dos livros destinados às crianças. Neste edital afirmava-se que a literatura é um patrimônio cultural a que todos os cidadãos devem ter acesso. O edital trouxe considerações dos direitos estabelecidos na Constituição de 1988 e da LDB que ressaltava o dever do Estado em oferecer uma educação básica de qualidade nas três etapas que a constituem: Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio, inclusive a Educação de Jovens e Adultos (MEC, 2010, p.25). Ainda, de acordo com o edital, a escola é reconhecida como um dos espaços mais importantes e democráticos de acesso aos bens culturais, e é direito de todo cidadão desfrutar desse espaço para obter conhecimentos. O texto do edital dizia que como uma das formas de assegurar esses direitos, o MEC tem constituído acervos literários para as escolas das bibliotecas públicas. “Os acervos por sua vez precisam dar conta da diversidade que caracteriza o público escolar dos diferentes níveis e modalidades a educação” (BRASIL/MEC, 2010). A análise dos editais do PNBE e do edital específico de 2008 apontou para melhora gradativa nas formulações e detalhamento, mas que ainda apontavam para a efeRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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tividade do objetivo de valorização dos grupos racializados no Brasil, em especial a valorização de negros/as e indígenas. Como estratégias ideológicas observou-se no texto dos editais o silêncio sobre as particularidades culturais da população negra brasileira e formulações que podiam operar para dissimular as desigualdades no tratamento dos grupos étnico-raciais, bem a moda do “racismo à brasileira”. Ou seja, num contexto em que as formas generalizantes e indiretas foram constituintes do discurso racista, não ser explícito não foi suficiente. Ainda corríamos o risco de que o implícito operasse socialmente para manter as coisas do jeito que eram.

2. Análise formal e estratégias ideológicas

Para a análise formal foi definido analisar um acervo do PNBE 2008, sendo que cada acervo contava com 20 livros. Definidos os critérios de análise, iniciou-se a busca pelo acervo 1 distribuído pelo PNBE em 2008 para Centros Municipais de Educação Infantil de Curitiba. Os livros foram lidos na integra e em seguida submetidos a técnicas de análise de conteúdo. Foram definidos como unidades de análise, personagens no texto, na capa e nas ilustrações e utilizadas planilhas e manuais adaptados da pesquisa de Silva (2008). Os personagens são definidos como ficcional de pessoa, podendo assumir naturezas distintas (humana, antropomorfizada ou fantástica); existir no contexto ficcional ou fora dele, realizar ações ou somente ser mencionados. Os personagens fo-

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ram enumerados de acordo com o número de vezes que apareciam, quando apareciam no coletivo e possuíam características distintas uns dos outros eram contabilizados individualmente. Não foram considerados personagens não mencionados no texto ou quando faziam parte da imagem e não tinha ação nenhuma como exemplo: o ursinho encostado na parede do quarto. Personagens quando antropomorfizados também eram contabilizados. Os personagens foram descritos usando uma série de atributos pré-determinados, posteriormente gerando tabelas de frequência e de cruzamentos de variáveis. Foram observados 382 personagens nos textos, 315 nas ilustrações e nas ilustrações das capas 23 personagens. No Quadro 1 estão transcritos resultados correspondentes aos personagens brancos e negros na ilustração, com o cruzamento da variável cor/etnia com as variáveis natureza e individualidade. São também apresentadas as “Taxas de branquidade” (ROSEMBERG, 1985) que fornece a relação entre número de personagens brancos identificados correspondentes à unidade de personagem negro identificado. Foram levantados 263 personagens humanos nas ilustrações, sendo que 166 (63,1%) são brancos, e 42 (15,9%) são negros, sendo a taxa de branquidade de 3,95. Observamos aqui um aparecimento intensivo de personagens brancos na ilustração, além desses personagens serem tendencialmente mais complexos que os personagens negros. Com relação a individualidade foram categorizados 112 personagens sendo 65 (38,9%) dos personagens brancos, enquanto que 8 (7,2%) negros. Para a categoria multidão foram encontrados 269 personagens 102 (61,1%) brancos e 36 Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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(25,5%) negros. Comparando as taxas de branquidade observa-se que personagens brancos/as são tendencialmente mais humanos e indivíduos, ao passo que personagens negros/as são proporcionalmente mais antropomorfizados (embora somente três personagens antropomorfizados tenham sido contabilizados, contou-se 0,5 personagem branco/a antropomorfizado para cada personagem negro/a) e multidão. Quadro 1. Resultados personagem na ilustração. ITENS ANALISADOS

COR/ETNIA

VALOR ABSOLUTO Humana 263 Branco 166 Negro 42 Taxa de Branquidade 3,95

Natureza

Antropomorfizada 52 Branco Negro Indeterminado Taxa de Branquidade Indivíduo 112 Branco Negro Taxa de Branquidade Individualidade Multidão 269 Branco Negro Taxa de Branquidade

PORCENTAGEM 100% 63,1% 15,9% 19,4% 100%

1 2 49 0,5

1,9% 3,8% 94,2% 100%

65 8 8,12 102 36 2,83

38,9% 7,2% 100% 61,1% 25,5%

FONTE: Tabulações da autora.

Ou seja, de forma geral esses resultados reiteram outros estudos (ROSEMBERG, 1985; BAZILLI, 1999; OLIVEIRA, 2003; GOUVÊA, 2004, 2005; KAERCHER, 2006, ARBOLEYA, 2009; DEBUS, 2010) que apontam que os personagens negros/as, além de menos fre-

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quentes, são também, via de regra, menos elaborados que os personagens brancos/as, compondo um quadro de “desvantagem cumulativa”. Nas relações etárias o número de personagens crianças encontrados foi bastante relevante, sendo os livros destinados a um público infantil buscando maior identificação dos leitores com os personagens. O número de vezes que apareciam personagens infantis foi 153, sendo 93 (55,7%) personagens brancos e 15 (9,8%) negros, com taxa de branquidade de 6,2, uma proporção ainda maior quando comparada com o estudo de Bazilli (1998, amostra 1977-1997) de personagens brancas em comparação com negras, que fora de 3,6. A síntese dos resultados dos livros apontou mudanças e permanências. Como exemplo, temos a participação de personagens negros ilustrados positivamente em relação ao ambiente em que se encontram. Apesar de aparecerem algumas personagens negras, observou-se uma participação muito limitada em relação à presença de personagens brancas. Dos livros analisados, percebemos que alguns personagens recebiam características diferenciadas, ou seja, alguns continuaram recebendo características estereotipadas, enquanto que outros eram apresentados visualmente com características positivas. Pode-se dizer que apesar de receber características positivas os negros ainda estão sujeitos à estratégia de passifização, pois nenhuma das personagens negras recebeu fala como personagem principal. Nas falas e imagens analisadas nos livros, os negros que aparecem estão todos relacionados a papéis secundários, e tais personagens não tem voz, são apenas figurantes. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Também analisamos que diante dos textos e imagens, os personagens negros não receberam um papel de exercício de poder ou ao menos dividem essa possibilidade com algum outro personagem. Interpreta-se nesse aspecto a diferenciação, personagens negros não sendo relacionados a nenhum papel de poder, apenas apresentados nas imagens, apesar de as imagens trazerem em alguns livros personagens negros bem desenhados e bem colocados diante das figuras de personagens brancos. Visualizando ainda as condições em que os personagens aparecem, percebeu-se que ainda permanece no imaginário coletivo a imagem do branco como representante da espécie, estando sempre bem colocado e numa situação de naturalização do ser branco. O conjunto de livros trazem características de naturalização de que a felicidade, o conforto e a beleza são específicos de um mundo branco, caracterizando a branquidade normativa como ligada ao bom, ao belo, a riqueza. Sobre a permanência constante de personagens brancos nos livros, interpretamos como estratégia de dissimulação da racialização, que permanece devido ao fato de os personagens brancos em sua grande maioria apresentarem-se em situações de privilégio em comparação aos negros. Pode dizer que essa situação permanece relacionada ao silêncio e à omissão da participação de personagens negros na literatura brasileira. Interpretamos as estratégias ideológicas apreendidas na análise formal, como meio de operação dos modos gerais da ideologia, propostas por Thompson (2002). As formas simbólicas em contextos específicos atuaram por meio da universalização e os interesses dos

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brancos operaram para a legitimação das desigualdades raciais. As considerações foram feitas através das formas simbólicas, que em contextos específicos atuaram para a manutenção da hierarquização, nesse caso, entre os grupos negro e branco. Em outros momentos, ocorreu o deslocamento de sentidos relativos à discriminação racial, a dissimulação das desigualdades sociais entre negros e brancos. As estratégias continuam operando a fim de promover a diferenciação e a estigmatização de personagens negros em suas formas de representação, elementos que contribuem para reforçar a construção social que impede o negro de assumir na sociedade posições de poder, ou seja, a fragmentação. Mas, as formas simbólicas atuaram, principalmente, para determinar o branco como representante da espécie, além de serem colocados nas obras sempre como personagens principais. Pudemos observar que o negro pode não aparecer, em alguns livros, subalternizado, mas aparece na maioria das vezes como personagem secundário, aliado a passifização do negro, ou seja, ao uso de voz passiva em determinadas histórias, em decorrência da participação dos personagens brancos nas mesmas. Ainda, deparamo-nos com situações racistas baseadas, principalmente, na omissão e/ou pequena parcela de participação dos negros na literatura, o que nos levou a considerar que os discursos ditos ou silenciados atuam para a reificação das relações de desigualdades sociais entre negros e brancos no Brasil. A análise das obras permitiu a constatação de alguns resultados encontrados em outras pesquisas como: a) a sub-representação de personagens negras nos textos e Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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ilustrações (ROSEMBERG, 1985; BAZILLI, 1999; LIMA, 1999; GOUVÊA, 2004, 2005; KAERCHER, 2006; PESTANA, 2008; FERREIRA, 2008; ARBOLEYA e ERES, 2008; ARBOLEYA, 2009; VENÂNCIO, 2009; MONTEIRO, 2010; DEBUS, 2010), limitando o aparecimento de personagens negros; b) alguns personagens no acervo analisado ainda aparecem estereotipados; c) o branco continua aparecendo como representação da espécie (ROSEMBERG, 1985; NEGRÃO E PINTO, 1990; NEGRÃO 1988; BAZILLI, 1999; FILHO, 2004; PESTANA, 2008; FERREIRA, 2008; ARBOLEYA e ERES, 2008; DIAS, 2008; ARAUJO, 2010). Observou-se ainda no processo de análise, que existe a permanência da figura do branco como protagonista da história, e a prevalência de personagens infantis também brancos. A mudança observada foi em relação à valorização da estética negra por meio de representações de características étnicas valorizadas em ilustrações.

Considerações finais

No que se refere aos resultados relativos à cor/etnia, a taxa de branquidade é consideravelmente alta quando a questão de quantos personagens brancos para cada personagem negro é examinada. De forma geral, os resultados reiteram outros estudos (ROSEMBERG, 1985; BAZILLI, 1999; OLIVEIRA, 2003; GOUVÊA, 2004, 2005; KAERCHER, 2006, ARBOLEYA, 2009; DEBUS, 2010)

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que apontam que os personagens negros/as, além de menos frequentes, são também, via de regra, menos elaborados que os personagens brancos/as, compondo um quadro de “desvantagem cumulativa”. Resultados positivos também foram encontrados, principalmente no que diz respeito à representação de personagens negras. Apesar de perceber um silenciamento relativo à participação dos negros nas obras analisadas, foi constatada uma melhora na qualidade das ilustrações, sejam elas correspondentes aos personagens indígenas ou negros. Os livros analisados apontam para uma frequência maior de personagens infantis, mas a cultura adultocêntrica permanece, levando-se em consideração que personagens adultos aparecem mais que personagens infantis negros ou indígenas. E, aparecem também para cultivar a perspectiva de dominação do adulto para com a criança, intensificando a relação de emissor adulto e receptor criança. A utilização, como forma de reinterpretação da ideologia, do método proposto por Thompson (2002) proporcionou a identificação das estratégias ideológicas das obras, que muitas vezes passam despercebidas por um olhar menos preciso. A síntese a seguir responde ao problema de pesquisa proposto, que indaga que estratégias ideológicas, particularmente forma de racialização entre brancos e negros, são observadas em amostra de livros de literatura infantojuvenil distribuídos para escolas de Educação Infantil pelo PNBE em 2008. As análises realizadas possibilitam a identificação de diversas formas de operação e estratégias ideológicas nos processos relacionados ao PNBE 2008. Na análise Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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dos editais e em particular do edital de 2008 identificamos o silêncio sobre particularidades culturais da população negra brasileira e formulações que podem operar para dissimular as desigualdades étnico-raciais, de forma similar aos processos de hierarquização implícita comuns ao “racismo à brasileira”. Se por um lado os editais do PNBE apresentaram ao longo do tempo determinadas mudanças que avaliamos positivamente e maior detalhamento, no que se refere ao objetivo de valorização das populações negra e indígena as mudanças são de pouco impacto. Ou seja, as formas discursivas que valorizam a diversidade étnico-racial encontram pouco subsídio no processo normatizador do Programa, tendo pouca efetividade no cumprimento da legislação vigente, do artigo 26A da LDB (modificado pela Lei 10.639/03 e pela Lei 11.645/08) da Resolução 01/04 e do Parecer 03/04 do CNE/CP sendo pouco são atendidos. Na análise dos personagens nos textos, nas ilustrações e nas capas da amostra observamos também diversas manifestações de estratégias e modos de operação da ideologia. Como nos editais, na análise dos personagens também se observou o de operação da dissimulação, aliada à estratégia ideológica do deslocamento de sentidos de poder e valorização social a personagens brancos em detrimento de negros; e a estratégia ideológica do silêncio nas páginas de tal literatura sobre a participação da população negra na realidade brasileira. Os livros analisados reforçam a ideia do silenciamento relativo às relações étnico-raciais na literatura infantil. Ressaltam-se nas obras as estratégias ideológicas dominantes ocultadas pela representação de brancos com características peculiares, fazendo parte

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de uma composição familiar, recebendo nome e sendo inseridos num contexto social melhor. Umas das formas de hierarquia que atua em discursos diversos no Brasil (SILVA, 2008; SILVA e ROSEMBERG, 2009) e que identificamos em nosso estudo é a branquidade normativa, a estratégia ideológica de naturalização do branco como representante da humanidade, que na amostra analisada estabelecia a imagem do branco como representante da espécie e associado com bondade, beleza e riqueza. As formas simbólicas que atuaram definindo o branco como representante da humanidade também os colocaram via de regra como personagens principais. Personagens negros, por outro lado, foram mantidos em papéis secundários, majoritariamente personagens sem voz, compondo papéis de figurantes. Nenhuma personagem negra da amostra pronunciou fala como personagem principal. Nas raras falas de personagens negras ainda foi observado o uso de voz passiva, configurando a estratégia ideológica de passificação do discurso do negro. Aliado aos papéis secundários, observou-se que os personagens negros não usufruíram, nos textos ou nas imagens, de papéis de exercício do poder. Analisamos que nos textos e imagens os personagens negros não ocuparam espaços de poder ou ao menos dividem essa possibilidade com algum outro personagem. Os espaços sociais de subalternidade estabelecidos nos discursos da amostra enfatizaram características que dificultam a tais indivíduos e grupos a participação no exercício do poder, configurando-se, portanto, como forma de diferenciação de personagens negros. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Analisando as ilustrações, observamos uma série de personagens negros ilustrados de forma a valorizar os traços fenotípicos africanos. Por outro lado, ainda foram observadas passagens específicas com estereotipia de personagens negros, que interpretamos como formas de diferenciação e estigmatização de personagens negros, de forma que contribuem para reforçar a construção social que impede o negro de assumir na sociedade posições de poder, ou seja, a fragmentação. Ainda, deparamo-nos com situações racistas baseadas, principalmente, na omissão e/ou pequena parcela de participação dos negros na literatura, o que nos levou a considerar que os discursos ditos ou silenciados atuam para a reificação das relações de desigualdades sociais entre negros e brancos no Brasil. Ou seja, num contexto em que as formas generalizantes e indiretas foram constituintes do discurso racista, não ser explícito não foi suficiente. Identificamos o implícito operando socialmente para manter as coisas do jeito que eram.

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NEAB Capítulo 4

O SILÊNCIO COMO ESTRATÉGIA IDEOLÓGICA: A INVISIBILIDADE NEGRA NA HISTÓRIA, NA ARTE, NAS DIRETRIZES CURRICULARES DE ARTE PARA A EDUCAÇÃO BÁSICA E NO LIVRO DIDÁTICO PÚBLICO DE ARTE DO PARANÁ

Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas Megg Rayara Gomes de Oliveira

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Capítulo 4 O silêncio como estratégia ideológica: a invisibilidade negra na história, na arte, nas Diretrizes Curriculares de Arte para a Educação Básica e no Livro Didático Público de Arte do Paraná

Megg Rayara Gomes de Oliveira1

Introdução

No campo de estudos sobre currículo têm sido desenvolvidas críticas sobre o eurocentrismo e a organização discriminatória de conteúdos, de sistemas e de políticas educacionais. Michael W. Apple2 (1989) afirma que o Estado, logo a escola pública, é um local de conflito entre classes e também entre grupos raciais e por isso procura forçar todo mundo a pensar de forma igual, e o currículo, por sua vez, decide o que deve fazer parte dos conteúdos e o que deve ficar distante do ambiente 1  Travesti preta, doutora e mestra em educação pela Universidade Federal do Paraná; especialista em História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, Educação e Ações Afirmativas no Brasil pela Universidade Tuiuti do Paraná/IPAD Brasil – Instituto de Pesquisa da Afrodescendência; especialista em História da Arte pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná; graduada em Licenciatura em Desenho pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná. 2  Como propõe Débora Cristina de Araujo (2010, p. 14, nota 3), “por defender uma educação não-sexista, [...] além de utilizar o gênero feminino e masculino para me referir às pessoas em geral, adoto também outra postura originada dos Estudos Feministas: o destaque dos/as autores/as citados/as. Sendo assim, na primeira vez que há a citação de um/a autor/a, transcrevo seu nome completo para a identificação do sexo (gênero) e, consequentemente, para proporcionar maior visibilidade às pesquisadoras e estudiosas [...]”.

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escolar. Considero ser importante refletir a respeito do que não faz parte dos conteúdos e questionar os silêncios de um texto (e também das imagens) para descobrir quais os interesses ideológicos em funcionamento (APPLE, 1989, p. 46). Em minha dissertação, Arte e Silêncio: a Arte Africana e Afro-Brasileira nas Diretrizes Curriculares Estaduais e no Livro Didático Público de Arte do Paraná (2012), de onde deriva esse texto, levanto a hipótese de que o processo de uma possível invisibilização da população negra na história oficial do estado do Paraná atualiza-se na construção de um currículo que silencia a estética africana e afro-brasileira no ensino da Arte, no ensino médio. A partir dessa hipótese procuro investigar quais as estratégias de hierarquização entre brancos/as e negros/as podiam ser observadas nesses documentos, produzidos e publicados pela Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Para realizar essa investigação, utilizo o conceito de ideologia e do método da Hermenêutica de Profundidade, ambos propostos por John Brookshire Thompson (2009).

1. Ideologia e Hermenêutica de profundidade

a) Ideologia Para construir seu conceito de ideologia Thompson fez um estudo detalhado da obra dos principais pesquisadores ocidentais que discutiram o tema a partir do séRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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culo XVIII e definiu ideologia como formas simbólicas que operam para criar ou manter relações de poder desiguais (THOMPSON, 2009, p. 72). Formas simbólicas, de acordo com o autor, compreendem uma série de ações, falas, imagens e textos, podendo ser linguísticas, ou não, e decodificáveis – por quem produz e por quem as recebe – para que possam operar da maneira pretendida. Os estudos de Thompson apontam para cinco modos de operação da ideologia – Legitimação, Dissimulação, Unificação, Fragmentação e Reificação –, podendo ser identificados agindo separadamente ou em conjunto. Paulo Vinicius Baptista da Silva (2008) propõe o acréscimo de uma estratégia ideológica relacionada ao modo de operação da dissimulação: o silêncio, que age tanto para ocultar o processo social de desigualdade racial, quanto “na hierarquização entre brancos/as e negros/ as (como entre brancos e indígenas)” (SILVA, 2008, p. 5). Quatro formas de silêncio são identificadas pelo autor, sendo fundamentais para nossa discussão. a) O silêncio sobre a branquidade: que atua para estabelecer o branco como norma de humanidade; b) A negação da existência plena ao negro: invisibilidade e sub-representação; c) O silêncio sobre particularidades culturais do negro brasileiro; d) O silêncio como estratégia para ocultar desigualdades (SILVA, 2008, p. 6-7). b) Hermenêutica de Profundidade Nas pesquisas às quais esse trabalho afilia-se, o foco volta-se para a análise crítica de desigualdades raciais

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em discursos específicos e o método da Hermenêutica de Profundidade foi utilizado de forma estruturadora. Esse método compreende três fases e é bastante eficaz para a análise dos meios de comunicação de massa3, inclusive porque possibilita tanto a interpretação de textos quanto de imagens. 1) Análise sócio-histórica: procura reconstruir as condições sociais e históricas em que as formas simbólicas foram produzidas, transmitidas e recebidas. Nesse trabalho, as análises sobre a presença de negros e negras no Paraná e sobre a presença negra na arte paranaense fazem parte desse primeiro nível de análise. A discussão refere-se a um contexto específico de racialização e dá sustentação a interpretações posteriores à análise discursiva. 2) Análise formal ou discursiva: trata as formas simbólicas como produtos que tem por objetivo dizer alguma coisa sobre algo e não deve ser feita separadamente da análise sócio-histórica para evitar o risco de uma análise abstrata, sem relação com as condições de produção e recepção das formas simbólicas (THOMPSON, 2009, p. 369-370). Nessa pesquisa, a análise formal foi realizada sobre as Diretrizes Curriculares de Artes e Arte para a Educação Básica do Paraná e sobre o Livro Didático Público de Arte para o Ensino Médio. Foram utilizadas técnicas de Análise Crítica de Discurso e de Análise Semiótica 3  Nesse artigo, assim como em minha dissertação, as Diretrizes Curriculares de Ensino de Artes e Arte para a Educação Básica do Estado do Paraná e o Livro Didático Público de Arte para o Ensino Médio foram considerados meios de comunicação de massa, não porque um determinado número ou proporção de pessoas receba esses produtos, mas porque esses produtos estão disponíveis a uma pluralidade de receptores (THOMPSON, 2009, p. 287). Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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para o exame dos discursos de tais documentos, identificados inclusive nas imagens. 3) Interpretação/reinterpretação: essa última faceta da Hermenêutica de Profundidade implica a construção criativa de novos significados, ou seja, “uma explicação interpretativa do que é representado ou do que é dito” (THOMPSON, 2009, p.375). Uma forma simbólica, porém, pode apresentar mais de um sentido ou até mesmo vários, possibilitando múltiplas e divergentes interpretações, situação comum no estudo de imagens4. Nos estudos do NEAB-UFPR em que o presente se insere, a reinterpretação da ideologia dialoga com os modos de e estratégias de operação da ideologia.

2. Presença negra no Paraná

Nesse artigo, as análises sobre a presença de negros e negras no Paraná5 e sobre a presença negra na arte paranaense fazem parte do primeiro nível de análise da Hermenêutica de Profundidade. Tal discussão é importante para minha argumentação de que havia – e ainda há – uma ação deliberada de invisibilização da população negra na história oficial do estado, ou seja, um processo ideológico que procura 4  Nesse artigo, trabalhamos com duas categorias de imagem. A primeira é a imagem construída especificamente através de uma narrativa escrita que repassa ao leitor a tarefa de dar forma às personagens, aos fatos e as cenas descritas. A segunda é a imagem iconográfica – desenho, pintura, gravura, fotografia, escultura, etc. – que, via de regra, está subordinada a um texto, dando suporte para as ideias apresentadas de forma escrita. 5  Apesar da Província do Paraná ser criada apenas em 1853, os fatos que aconteceram em seu território antes dessa data serão tratados como pertencentes a sua história, como tem sido feito pelos/as autores/as que servem de referência para esse trabalho.

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negar a existência plena da população negra (SILVA, 2008). Tal argumento se apoia inclusive na oferta reduzida de pesquisas que discutem o assunto e, na maioria dos trabalhos a que tivemos acesso essa população está restrita ao período escravista, ainda assim redimensionada para menos, com alguns autores (Romário MARTINS, 1920; Wilson MARTINS, 1995) apresentando dados manipulados para omitir sua participação no processo de ocupação do território paranaense (Marcilene Garcia de SOUZA, 2003, p. 31). Outros/as pesquisadores/as, no entanto (Eduardo Spiller PENA, 1990; Sérgio Odilon NADALIN, 2001; SOUZA, 2003; Beatriz Gallotti MAMIGONIAN, 2011; Adriano Bernardo Moraes de LIMA, 2011), apresentam dados que procuram provar o contrário e afirmam que além de numerosa a população negra foi fundamental no processo de estruturação da província do Paraná. Embora importantes esses trabalhos trazem poucas informações a respeito da população negra livre e/ou liberta6, bem como de suas estratégias de resistência contra o regime escravista, e acaba contribuindo, em certa medida, para reafirmar que a única possibilidade de relação entre brancos/as e negros/as até 1888 era a de escravizado7 e escravizador.

6  “Liberta” é a pessoa livre, porém, em alguma fase de sua vida, foi escravizada. 7  Opto pelo conceito de escravizado por entendermos que “o conceito de escravo tem o nítido sentido de reduzir uma realidade histórico-cultural ao estado de natureza” (Dagoberto José FONSECA, 2011, p. 15), ou seja, “o escravo nasce, cresce e morre irremediavelmente preso a sua natureza” (FONSECA, 2011, p. 15). O conceito de escravizado, está mais de acordo com a realidade vivenciada pela população negra aqui no Brasil até 1888, mesmo porque se tratava de uma situação transitória que poderia ser alterada de muitas maneiras, individual ou coletivamente, através de dispositivos legais, como a compra de cartas de alforria ou questionando de maneira mais incisiva a legitimidade do regime escravista através de fugas, da organização de quilombos e de rebeliões e revoltas. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Outra situação recorrente entre os/as autores/as que discutem a história do Paraná e que contribui para silenciar a respeito da presença de negros/as é ignorar o estado como rota para o tráfico e comércio de pessoas escravizadas. Até a proibição oficial do tráfico em 1830, Paranaguá era a principal porta de entrada de africanos/as no estado, porém as “localidades de Guaraqueçaba, Antonina, Superagui e Guaratuba” (LIMA, 2011, p. 104) também eram utilizadas com essa finalidade. Tal proibição não representou, de fato, o fim do comércio de pessoas e o ingresso de africanos/as no Paraná e “nas décadas de 1830 e 1840, o litoral paranaense abrigou o tráfico ilegal [...] graças à corrupção dos oficiais da alfândega e das autoridades judiciais e policiais” (MAMIGONIAN, 2011, p. 4). Em dois anos apenas, 1837 e 1839, “foram desembarcados comprovadamente mais de 4 mil africanos em Paranaguá” (MAMIGONIAM, 2011, p. 4). Entre eles Horácio Gutierrez (1988) identificou, através das listas nominativas de habitantes8 no início do século XIX, dois grupos principais, Bantos e Sudaneses. Entre os Bantos havia pessoas de origem Benguela, Angola, Congo, Rebolo, Cassange e Cabinda, enquanto que entre os Sudaneses, Gutierrez identificou apenas duas etnias: Mina e Guiné9 (1988, p. 11). Muitos/as desses/as africanos/as foram mantidos ali mesmo, outros encaminhados para fazendas e vilas 8 As listas nominativas deviam, por ordem imperial, indicar a procedência de todos os moradores da província. 9  Essas denominações “podiam significar etnias, ou também, portos de embarque, faixas costeiras de intermináveis quilômetros, estuários fluviais, famílias linguísticas e até linhagens ou antropônimos” (GUTIERREZ, 1988, p. 10), isso porque “o olhar do branco dos europeus que participaram do comércio negreiro raramente conseguia perceber as diferenças étnicas dos povos africanos” (LIMA, 2011, p. 107).

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serra acima e, outros ainda foram apreendidos/as pelo governo imperial e declarados emancipados, o mesmo que livre de acordo com os estudos de Mamigoniam (2011). Mesmo de posse da carta de emancipação que provava nunca terem sido escravizados, esses/as africanos/ as eram obrigados/as a adotar o mesmo comportamento dos libertos10, registrando na polícia seu endereço e qual a atividade profissional que desempenhavam. Outra categoria que acredito ser composta majoritariamente por negros/as e pouco discutida pelos historiadores paranaenses é o/a agregado/a, definido por Carlos Roberto Antunes dos Santos (2001, p. 31) como pessoa juridicamente livre, mas que vivia subordinada à classe senhorial. Minha suposição leva em consideração o fato de o conceito de liberdade jurídica em operação durante o regime escravista ser diferente do atual que, de maneira resumida, consistia em questionar na justiça a condição de escravizado/a. Tal atitude tinha motivações variadas, como a tentativa de se impedir uma venda que não havia sido previamente consentida pelo/a escravizado/a, chamada por Pena (1990) de “venda vingativa”: Para escapar da possibilidade de ter que se transformar num cativo ordeiro e disciplinado ou de ser vendido para a temida ‘zona cafeeira’, o nosso protagonista lança mão, por sua vez, do próprio espaço que a lei lhe oferecia, entrando com uma ação de liberdade para alegar que era uma pessoa livre 10  “Libertos” são pessoas oficialmente livres, porém em alguma fase de suas vidas, foram escravizados. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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por ter seu senhor o abandonado, doente e esfarrapado (PENA, 1990, p. 21).

Não apenas os/as pesquisadores/as, mas o próprio poder público, de forma ainda mais eficiente, procurou negar a existência da população negra em nosso estado. Os recenseamentos foram utilizados com essa finalidade e consideravam em suas contagens apenas duas categorias – as livres e as escravizadas –, às vezes subdivididas em sexo masculino e feminino, sem especificar o pertencimento racial, dando a entender que o conceito de “escravo” era o mesmo que negro, já que o termo “preto”, “por força do uso, tornou-se sinônimo de escravo” (GUTIERREZ, 1988, p. 9). Em 1772, de acordo com o primeiro censo geral da Capitania de São Paulo, “a população paranaense era composta de 7.627 habitantes, dos quais 28,8% eram escravos” (SANTOS, 2001, p. 33). Já “a Vila de Curitiba possuía uma população escrava que correspondia a 18% da população total” (SANTOS, 2001, p. 34). Em 1780, oito anos após o primeiro censo, Brasil Pinheiro Machado (1780 apud Etelvina Maria de Castro TRINDADE; Maria Luiza ANDREAZZA, 2001, p. 27) afirmava que dos 17.685 habitantes do Paraná, 5.336 eram escravizados, ou seja, 33,14% da população. Os números apresentados por Santos (2001) e Machado (1780) são oficiais, porém incompletos. Por isso chamamos a atenção para a necessidade de se contabilizar ao/as negros/as livres, libertos/as e agregados/ as para que tenhamos uma contagem, se não exata ao menos aproximada da população negra que vivia no Paraná.

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Em 1798, por exemplo, a população escravizada em Curitiba era de 17,6 %, menor que a população negra livre que era de 27,2 %. Juntas, somavam 44,8% do total da população da futura capital da província11. Em todos os censos realizados a população negra livre12 era mais numerosa que a população negra escravizada, e à medida que nos aproximamos do final do regime escravista essa diferença aumenta. A redução no número de pessoas escravizadas, no entanto, não representa uma diminuição expressiva da população negra em Curitiba que continua mantendo, ao longo do século XIX, um percentual próximo dos 40%. A situação observada em Curitiba se repete em outras cidades paranaenses o que me autoriza a supor que número de pessoas negras vivendo em nosso estado seja maior do que os números oficiais. O Relatório do Presidente da Província do Paraná Zacarias de Góes e Vasconcelos apresentado na abertura da Assembleia Legislativa Provincial, em 15 de julho de 1854, em Curitiba, por exemplo, colabora com nossa argumentação e leva o próprio presidente a afirmar que um em cada 2,5 habitantes da província não era branco. No período pós-abolição o silêncio em torno da população negra aumenta, e autores considerados importantes para a historiografia paranaense (MARTINS, 1920; MARTINS 1995; Ruy WACHOWICZ, 1995) destacam apenas a presença de imigrantes europeus na construção do Paraná. Tal posicionamento é estratégico para a 11  Dados extraídos da Tabela II - Participação da população escrava e livre na Comarca de Curitiba — séculos XVIII e XIX (SPILLER PENA, 1990, p. 85). 12  Há diferenças entre os conceitos “livres e libertos”, no entanto essas diferenças não são consideradas nos números relacionados à população negra não escravizada, por desempenhar a mesma função. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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política de embranquecimento do estado já que opera para promover o apagamento de fatos e personalidades negras importantes e é ideológico no sentido que utilizamos, pois atua para estabelecer diferentes espaços de poder. A respeito da política de embranquecimento, em nível federal, é possível afirmar que nas primeiras décadas do século XX ela realmente funcionou e reduziu significativamente a população negra em todo país que caiu de 47,0% em 1890 para 35,8% em 1940. O Paraná, que recebeu um contingente significativo de imigrantes europeus, conseguiu resultados mais expressivos e reduziu drasticamente a presença de negros/as em todas as suas regiões. Para tanto, foi mais específico em sua política de embranquecimento e apoiou abertamente os imigrantes europeus, distribuindo terras, priorizando a contratação de mão de obra estrangeira no serviço público, etc. e ignorou a população negra, forçando, assim, seu deslocamento para outros locais. Ainda assim a população negra paranaense continuou com uma presença importante e, a partir da década de 1970, a exemplo do que acontece em todo o país, só aumentou e hoje com 27, 8% é a mais numerosa entre os três estados da Região Sul. 2.1 Presença negra nas Artes Plásticas

Durante o regime escravista a população negra exercia as mais variadas funções, tanto na cidade quando na zona rural e dominavam técnicas de tecelagem e costura, teciam rendas finas de bilro, fabricavam roupas e

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objetos em couro, extraiam e fundiam o ouro na região de Curitiba, fabricavam e tocavam instrumentos musicais, conheciam técnicas de entalhe em madeira e também de arquitetura. A música e a dança faziam parte de suas celebrações religiosas e de suas festas, embora a Congada, o Batuque, a Dança de São Gonçalo e a Capoeira fossem “especialmente reprimidas” (TRINDADE; ANDREAZZA, 2001, p. 27) e sofressem “constante assédio da polícia e das autoridades provinciais” (PENA, 1990, p. 3), por estarem associadas à ociosidade que poderia conduzir à criminalidade. Dentre as contribuições negras para as artes plásticas no estado do Paraná no período escravista, destaco a arquitetura religiosa. Ainda que sob a influência estética do escravizador, nasceu da iniciativa de uma irmandade negra que construiu em 1578, em Paranaguá, a primeira igreja do país em homenagem a Nossa Senhora do Rosário “protetora das irmandades terceiras dos negros, que a ela pediam proteção e alívio dos sofrimentos” (Roberto CONDURU, 2007, p. 19). A Igreja do Rosário13, em Curitiba, inicialmente chamada de Igreja do Rosário dos Pretos de São Benedito, também foi patrocinada, projetada e construída por pessoas negras, em 1737. Em estilo colonial, era maior e mais bonita que a igreja matriz, bem mais simples, construída em madeira onde os/as negros/as não podiam entrar. Provavelmente foi a segunda igreja inaugurada na capital paranaense, pois entre 1875 e 1893 serviu de igreja matriz enquanto a nova catedral era construída. 13  O prédio atual é uma construção em estilo barroco, inaugurado em 1946. Da igreja construída em 1737 foram mantidos apenas os azulejos que decoram parte da fachada. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Embora importante, a arquitetura religiosa introduzida no Paraná pela população negra é mal estudada e impede-nos, por exemplo, de identificar quem eram os arquitetos, os mestres-pedreiros e os artistas que decoravam as igrejas patrocinadas pelas irmandades que atuaram em várias regiões, principalmente nas cidades litorâneas. Em meu entendimento, essa é mais uma das formas de operação do silêncio situação que envolve não apenas a arquitetura, mas as artes plásticas como um todo, sendo praticamente inexistentes os registros de artistas negros em atividade no Paraná até a década de 1960, mesmo que a história da pintura paranaense comece a ser escrita em 1806 em Curitiba por um deles: João Pedro – O mulato, primeiro “artista paranaense que se tem notícia” (Adalice ARAÚJO apud Aramis MILLARCH, 1986). Essa afirmação também foi feita pelo professor Newton Carneiro em 1975 no livro O Paraná e a caricatura, que ainda reivindica para João Pedro o título de primeiro caricaturista brasileiro. Parte da produção de João Pedro foi localizada em Portugal em 1966 e fez parte do acervo do Visconde de Vieiros. Essas obras foram encaminhadas a Europa por Antônio de Araújo de Azevedo, o Conde da Barca, uma espécie de Ministro das Relações Exteriores da época e que também organizou a Missão Artística Francesa, em 1816. Essa aproximação com personalidade tão ilustre atesta o reconhecimento de seu talento por seus contemporâneos, porém o mesmo não aconteceu após a sua morte, uma vez que caiu no esquecimento. Além de ser o primeiro pintor em atividade no Paraná, João Pedro também fez os primeiros registros da população negra em nosso estado. Depois dele identifica-

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mos registros semelhantes em algumas aquarelas de Jean Baptiste Debret (1827) e William Lloyd (1872) em cenas que procuram mostrar o cotidiano de Curitiba, Antonina, Paranaguá, Ponta Grossa e Castro. Debret e Lloyd são considerados artistas viajantes, já que fixaram residência no país por poucos anos, o que nos permite afirmar que durante todo o século XIX os artistas paranaenses negaram de forma sistemática a existência de grupos raciais não brancos. Essa situação se mantém até 1928 quando o pintor italiano Guido Viaro se muda definitivamente para Curitiba e insere a população negra em suas obras de forma recorrente. A obra de Viaro encantava a classe artística pelas novidades pictóricas que apresentava, mas não pela temática e somente a partir das décadas de 1940 e 1950 é que outros artistas vão retratar pessoas negras com certa frequência, algumas vezes como protagonistas, como fazem Erbo Stenzel, Margarida Wollemann e Nilo Previdi, outras integrando a paisagem ou compondo uma cena de multidão, como fazem Theodoro de Bona, Arthur Nísio, Paul Garfunkel e Luiz Carlos de Andrade Lima. Ainda assim a obra desses artistas é caracterizada por uma estética e um pensamento eurocêntrico, pois a presença negra é percebida em situações pontuais. Em algumas obras ainda é possível identificar certos estereótipos, como a associação da população negra a pobreza e ao trabalho braçal, mesmo nos raros retratos individualizados, numa evidente associação com o regime escravista. É o que Thompson chama de naturalização, ou seja, determinadas situações são descritas e tratadas como naturais e não como o resulRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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tado das relações sociais estabelecidas (THOMPSON, 2009, p. 88). Depois de João Pedro – O Mulato, somente na década de 1960 é que encontro registros de artistas negros em atividade no Paraná. Esses registros são feitos quando eles/as conseguem expor seus trabalhos em espaços elitizados como museus e galerias, depois de passarem por um criterioso processo de avaliação. Esse processo, que leva em conta as qualidades estéticas impostas pelo modelo europeu, via de regra, atua de forma a dificultar e até impedir que artistas sem uma formação nesses moldes consiga algum reconhecimento. O acesso a um conhecimento formal significa também o afastamento das estéticas africana e afro-brasileira já que estas não fazem parte dos programas oficiais dos cursos de arte em todo o país, inclusive aqueles que formam professores/as, críticos/as e historiadores/as. A relação entre o conhecimento formal e uma estética europeia acaba representando um trajeto mais seguro em direção à visibilidade no cenário das artes plásticas, o que também é uma forma de silenciamento. Talvez isso explique, ao menos parcialmente, as escolhas estéticas de vários/as artistas negros/as que evitam tratar de temas relacionados ao seu grupo racial. Por sua vez, os/as artistas negros/as que optam por linguagens que dialogam com a arte e com a estética de matriz africana têm sua produção analisada de maneira superficial, não sendo raras as classificações, por críticos/as e historiadores/as, de primitiva e/ou popular. Esses equívocos estão atrelados, como já alertei, ao processo de formação desses/as profissionais, mas

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também a uma visão preconceituosa em relação a arte africana, considerada inferior em relação a arte europeia. Como afirmei anteriormente, a partir das décadas de 1970 e 1980 a população negra paranaense apresenta índices significativos de crescimento, aumentando também o número de artistas negros que conseguem alguma projeção. No entanto, de maneira geral, a arte paranaense sofre poucas alterações em sua estrutura e se caracteriza pelo silêncio em relação à estética e à cultura afro-brasileira, bem como em relação ao trajeto de artistas negros/as, principalmente em relação àqueles que se mantiveram fora de espaços elitizados, como museus e galerias de arte. Essa situação também é observada nas Diretrizes Curriculares de Artes e Arte Para a Educação Básica do Estado do Paraná e no Livro Didático Público de Arte para o ensino médio que discutiremos a seguir.

3. Diretrizes Curriculares de Artes e Arte Para a Educação Básica do Estado do Paraná e o Livro Didático Público de Arte

As reflexões que fiz até aqui servem-nos para compreender o contexto de análise das formas simbólicas expressas nas Diretrizes Curriculares de Artes e Arte para a educação básica do Estado Paraná e o Livro Didático Público de Arte14 para o Ensino Médio. A partir 14  O Livro Didático Público de Arte para o Ensino Médio faz parte do “Projeto Folhas” e reuniu quatro autoras e três autores de seis cidades diferentes, todos/as professores/as Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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da análise empreendida posso afirmar que o conjunto de ideias, principalmente o silêncio em relação à população negra e suas contribuições para a construção do estado e do país, está em operação dentro do sistema educacional do Paraná. Ao menos é o que explicitam as publicações que analisei. Tanto as Diretrizes quanto o Livro Didático Público foram construídos ao longo de três anos, entre 2003 e 2006. As duas publicações, no entanto, ignoram as modificações no artigo 26A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) pela Lei 10.639/2003 que institui a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira em todos os níveis da educação básica, nos estabelecimentos de ensino públicos e privados. No artigo 26-A da LDB lê-se: § 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. de Arte vinculados à Secretaria de Estado da Educação do Paraná (SEED). Dois autores e uma autora também participaram do processo de construção das Diretrizes Curriculares de Artes e Arte para a educação básica do estado do Paraná – 2006, integrando a equipe técnico-pedagógica de Arte do ensino médio da SEED. O Livro Didático Público se propunha a inovar na maneira de se produzir livros didáticos no estado do Paraná. A proposta consistia em aproveitar professores e professoras da rede estadual de ensino como autores e autoras. Para tanto, deveriam produzir textos (artigos), chamados “folhas”, e proporem atividades que pudessem ser aplicadas em sala de aula e submetê-los a um processo de seleção. Os trabalhos selecionados, no entanto, antes de serem publicados em 2006 passaram pela análise de professores/as que trabalham com ensino superior, contratados/as pela Secretaria de Estado da Educação como consultores/as.

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§ 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras (BRASIL, 2004, grifo nosso).

Como suporte teórico para a aplicação da Lei 10.639/2003, em março de 2004, o Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, tendo como relatora a professora doutora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (BRASIL, 2004). O curioso é que no mesmo período em que as Diretrizes Curriculares e o Livro Didático Público foram elaborados era intensa a relação dos Movimentos Sociais de Negros e Negras com a Secretaria de Estado da Educação do Paraná (SEED) para implementar o artigo 26A da LDB, resultando, entre outras coisas, na realização do I Seminário Estadual de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e na instituição do I Encontro de Educadores/as Negros/as do Paraná, em 2004 e no I Encontro do Fórum Permanente de Educação e Diversidade Étnico-Racial do Paraná, em 2005. Essas e outras ações revelam que a SEED estava inteirada a respeito das normativas e das políticas de reconhecimento e valorização da população negra brasileira desenvolvidas pelo Ministério da Educação. Por outro lado, o silêncio em torno da estética e da cultura africana e afro-brasileira nas Diretrizes Estaduais e no Livro Didático Público de Arte evidencia a falta de uniRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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dade e de comunicação no seu interior e que as ações que desenvolveram em âmbito estadual parecem não ter atingido, ainda que superficialmente, as equipes que trabalharam nas duas publicações. Posso compreender que a formação que é hegemonicamente “analfabeta da diáspora”, ou seja, a formação secular que estabelece as ideias de Europa como “lugar” do desenvolvimento e da racionalidade e a África como espaço de subdesenvolvimento e ausência de racionalidade é atuante em diversos espaços de formação e na formação escolar, produzindo e reproduzindo hierarquias raciais e atuando para a naturalização das mesmas. Embora distintos, e produzidos no mesmo período por equipes diferentes, do ponto de vista das relações raciais os dois materiais analisados revelam uma visão muito similar e vários dos modos e estratégias de operação da ideologia propostos por Thompson (2009) podem ser observados. No QUADRO 1 apresento uma síntese das ideias presentes tanto nas Diretrizes Curriculares de Artes e Arte para a Educação Básica do Estado do Paraná quanto no Livro Didático Público de Arte para o Ensino Médio, e relaciono o tratamento dado às relações étnico-raciais a formas de operação da ideologia propostas por Thompson (2009), complementadas pelo estudo de Silva (2008).

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Quadro 1. Formas de operação da ideologia identificadas Diretrizes Curriculares de Artes e Arte para a Educação Básica do Estado do Paraná – 2006

Livro Didático Público de Arte para o Ensino Médio – 2006

Formas de operação da ideologia

Omissão em relação à temática africana e afro-brasileira.

Omissão em relação às contribuições da população negra para a estética da arte nacional e internacional.

Silêncio sobre particularidades culturais da população negra brasileira e, nesse caso, do/a negro/a africano/a.

A população branca é apresentada como norma de humanidade.

A população branca é apresentada como norma de humanidade.

Naturalização do/a branco/a como representante da humanidade e silêncio sobre a afirmação da branquidade.

A arte europeia é apresentada como modelo para as demais.

A arte europeia é apre- Padronização: formas simbósentada como modelo licas são apresentadas como para as demais. referencial padrão, como se fosse um fundamento partilhado e aceito pela coletividade.

Reforça a ideia de hierarquia entre brancos/as e negros/as.

Reforça a ideia de hierar- Naturalização: determinadas quia entre brancos/as e situações são descritas e tratanegros/as. das como naturais e não como o resultado das relações sociais estabelecidas.

Na impossibilidade de omitir fatos envolvendo indígenas e negros/as, a participação destes/ as é redimensionada de modo que pareça insignificante.

Alguns fatos envolvendo a população negra ficaram no campo da suposição, revelando a falta de interesse pelo assunto.

Eufemização, efetuando pequenas modificações de sentido e que podem alterar o grau de certeza ou de realidade (pode ser, talvez, possivelmente).

Invisibilidade de artistas Invisibilidade e sub-re- A negação da existência plena negros/as. presentação de artistas ao/à negro/a: invisibilidade e negros/as. sub-representação; Silêncio sobre particularidades culturais do/a negro/a brasileiro/a. Sub-representação da mulher branca e invisibilidade da mulher negra.

Sub-representação da mulher, especialmente da mulher negra.

Uso genérico do masculino nos discursos, ignorando a existência das mulheres; A negação da existência plena da mulher: invisibilidade e sub-representação de artistas do sexo feminino, especialmente negras.

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(Quadro 1 - Continuação) Imagens estereotipadas da população negra associadas ao grafite, ao futebol, ao samba, ao jazz, à pobreza e ao trabalho braçal, operando para estabelecer qual o espaço que deve ocupar na geografia social do país.

Naturalização: determinadas situações são descritas e tratadas como naturais e não como o resultado das relações sociais estabelecidas

Ausência de identidade das personagens negras, identificadas ora pela cor da pele ora pela função que exercem

Nominalização e passivização: concentram a atenção do ouvinte ou leitor em certos temas com prejuízos de outros.

A população negra contemporânea é retratada como se ainda estivesse presa ao regime escravista.

Narrativização: o passado e o presente são apresentados como parte de uma tradição eterna e aceitável; Eternalização: determinados fatos são apresentados como permanentes, imutáveis, reafirmando um caráter a-histórico. Costumes, tradições e instituições que parecem prolongar-se em direção ao passado, adquirindo uma rigidez que não pode ser facilmente quebrada.

O funk, a axé-music e o pagode foram classificados como músicas sem qualidade e de forte apelo sexual.

Expurgo do Outro: é a construção de um inimigo, retratado como mau, perigoso e ameaçador e contra o qual se deve lutar coletivamente.

FONTE: Organização do autor com aportes de Thompson (2009) e de Silva (2008)

Os resultados de minha pesquisa, infelizmente, pouco se distanciam de outros obtidos nas pesquisas que foram desenvolvidas a partir da década de 1950 e que tiveram como objeto livros didáticos produzidos pela iniciativa privada. Mesmo depois que o Programa Nacional para o Livro Didático (PNLD) passou a considerar

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situações de racismo em suas avaliações o problema manteve-se e publicações com conteúdos racistas foram aprovadas e chegaram às salas de aula em todo o país. Segundo Wellington Oliveira dos Santos (2012) a formulação das políticas do PNLD sofreu o impacto das posições defendidas pelos Movimentos Sociais de Negros e Negras e, ao longo dos anos anteriores, foi incorporando e dando maior ênfase, nos editais, à necessidade de valorização da população negra, afirmando que os livros devem, como critérios de qualificação, promover positivamente a imagem de afrodescendentes, promover positivamente a cultura afro-brasileira e abordar a temática das relações étnico-raciais. Além disso, os editais citam explicitamente as normativas relacionadas com a temática: a LDB, com as modificações determinadas pelas Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, a Resolução 01/2004 e o Parecer 03/2004 do Conselho Nacional de Educação. Tais definições nos editais tiveram algum impacto positivo no tratamento dado à população negra nos discursos dos livros, em especial no tratamento de imagens e ilustrações (SANTOS, 2012). No entanto, permanece o tratamento desigual em relação a personagens negras e brancas, que se manifesta via distintas formas de discursos que hierarquizam a brancos e negros, expressos de forma heterogênea se consideradas as diferentes disciplinas escolares e etapas de ensino a que se destinam os livros. O fato dos livros com formas específicas de discursos racistas continuarem sendo aprovados, comprados e distribuídos, revela que as normatizações têm um alcance limitado na produção dos discursos e na efetivação das políticas educacionais. Estamos lidando com Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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formas simbólicas muito arraigadas e que circulam de forma diversa nos discursos de meios diversos, sem a percepção que operam para criar e manter desigualdades raciais. O impacto das normativas sobre equipes de avaliadores dos livros, que são leitores muito especiais e atentos a aspectos variados dos discursos, também não tem incorporado as determinações das normativas. Os resultados de pesquisas revelam que as equipes de avaliadores do PNLD não estavam exatamente preparadas para identificar situações de racismo implícito, atendo-se a exemplos mais visíveis de discriminação. O fato de um documento oficial e um livro didático produzidos pelo estado do Paraná apresentarem conteúdos racistas apontam que as equipes responsáveis, mesmo com assessoria de professores e professoras universitários/as, alguns/mas atuando na área de formação docente, não estiveram atentas para as formas de hierarquização entre brancos/as e negros/as que configuram discursos racistas. É possível que tal situação pudesse ter sido minimizada com a aproximação entre as equipes que efetivaram tais políticas educacionais e os Movimentos Sociais de Negros e Negras que estavam atuando em comissão dentro da própria SEED. Muitos/as integrantes e lideranças desses movimentos buscaram formação especializada para se expressarem de forma mais acadêmica e buscarem legitimação para suas denúncias e reivindicações. Como a SEED já vinha desenvolvendo uma série de ações em parceria com essas organizações não é possível argumentar desconhecimento a respeito da existência desses movimentos e do trabalho que desenvolviam na área da educação.

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Embora ambas as publicações deixem de cumprir o artigo 26A da LDB é o Livro Didático Público de Arte para o Ensino Médio que me preocupa um pouco mais por ter sido distribuído em todo o estado, levando-me a questionar a respeito de seu impacto em sala de aula. Algumas formas de racismo são implícitas, outras, porém, são mais evidentes e podem atuar para eclodir ou justificar atitudes discriminatórias, já que estão presentes em um livro produzido e distribuído pelo próprio governo do Paraná.

Algumas considerações

Ao longo de minha discussão a respeito da presença negra na sociedade paranaense, durante e depois do regime escravista, identifiquei formas diversas de operação da ideologia nos moldes propostos por Thompson, sendo a dissimulação a mais frequente, agindo das quatro formas apresentadas por Silva (2008), ou seja, estabelecendo o branco como norma de humanidade; negando existência plena ao negro; silenciando sobre as particularidades culturais do negro brasileiro e ocultando as desigualdades historicamente construídas. A mesma situação é observada nos dois documentos analisados, as Diretrizes Curriculares de Artes e Arte para a Educação Básica do Estado do Paraná e o Livro Didático Público de Arte para o Ensino, tanto nos textos, quanto nas imagens.

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Minha crítica não se dirige apenas às equipes responsáveis pelos materiais analisados, mas a uma estrutura de governo representada pela SEED que permitiu a construção das Diretrizes Curriculares de Artes e Arte para a Educação Básica do Estado Paraná e o Livro Didático Público de Arte para o Ensino Médio sem demonstrar nenhuma preocupação, ao menos aparente, com a promoção da igualdade racial, já que as formas de hierarquização entre brancos/as e negros/as estiveram bastantes presentes e atuantes nos discursos analisados, mantendo um quadro de muito mais permanência que mudança nos discursos das políticas educacionais analisadas.

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NEAB Capítulo 5

RELAÇÕES RACIAIS NO LIVRO DIDÁTICO PÚBLICO

Tânia Mara Pacifico

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Capítulo 5 Relações raciais no Livro Didático Público

Tânia Mara Pacifico1

Introdução

Este artigo foi desenvolvido a partir da dissertação Relações raciais no Livro Didático Público do Paraná2. Foi realizada a análise das relações raciais no Livro Didático Público – Folhas, que foi uma Política Pública do Estado do Paraná. A pesquisa para tanto utilizou-se do conceito de ideologia e da metodologia da Hermenêutica de profundidade (HP) desenvolvida por Thompson (1995). Os focos de análise foram: a) em que medida o Livro Didático Público – Folhas contempla as definições legais do artigo 26-A da LDB (modificado pela Lei 10.639/03 e alterado pela Lei 11.645/08), o Parecer 03/2004 e Resolução 01/2004 do CNE; b) que estratégias ideológicas de hierarquização entre brancos/as e negros/as foram captadas nas políticas públicas e nos livros. A análise das políticas de produção apontou que não foram levadas em consideração as propostas de promoção de igualdade racial que ocorriam dentro da 1  Pedagoga, Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná, pesquisadora do NEAB-UFPR, foi coordenadora pedagógica no convênio NEAB-UFPR e Projeto A cor da Cultura (2012-2014). 2 Defendida em 2011 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná, na Linha de Políticas Educacionais.

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própria estrutura da Secretaria Estadual de Educação. Foram selecionados para análise livros de duas disciplinas, Língua Portuguesa e Educação Física. De forma geral somente o livro de Educação Física atende, parcialmente e com contradições internas às definições legais sobre Educação das Relações Étnico-Raciais. Foram analisadas formas simbólicas dos livros que naturalizam ao branco como representante da humanidade; que estigmatizam as/os personagens negros/ as, em especial à mulher negra; que silenciam sobre a presença negra; sobre a história e cultura africana e afro- brasileira; sobre os processos de discriminação e desigualdade racial.

1. Análise de contexto

O contexto histórico e político, ao ser analisado, possibilita inferências sobre a política de produção e distribuição de livros didáticos pela Secretaria Estadual de Educação do Paraná (SEED). Hutner (2008) descreveu o processo de formulação do projeto do Livro Didático Público como paralelo à implementação pelo MEC do PNLEM. Segundo a autora, em 2003, a SEED recebeu informações que muitas escolas da rede estadual solicitavam ou mesmo exigiam que os/as alunos/as de Ensino Médio comprassem livros didáticos ou apostilas. Além da preocupação com a qualidade dos livros e em especial de apostilas, a medida adotada pelas escolas contrariava a legislação sobre gratuidade do ensino público. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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O Departamento de Ensino Médio (DEM) resolveu realizar compra de livros para distribuição às escolas. Como o processo de aquisição dos livros através do pregão eletrônico foi dificultado pelas editoras, a iniciativa de transformar os Folhas no Livro Didático Público, teve como um dos objetivos sanar esta lacuna, no que tange à falta de livros para o Ensino Médio com distribuição gratuita. O formato Folhas foi elaborado inicialmente como produções de professores/as sobre temas específicos que pudessem circular entre outros/as professores/as e posteriormente foram utilizados para estruturar os capítulos do Livro Didático Público. A SEED implementou o programa do Livro Didático Público - Folhas como um projeto relacionado com a formação continuada e buscando a “produção colaborativa” entre os docentes da rede. Os livros foram produzidos pelo Governo do Estado do Paraná através da Secretaria Estadual de Educação, com recursos públicos. Foram editados para cada disciplina escolar que compõe a matriz curricular da Educação Básica da escola pública paranaense, conforme citado na introdução: Arte, Biologia, Educação Física, Física, Filosofia, História, Língua Portuguesa e Literatura, Língua Estrangeira Moderna – Inglês e Espanhol, Matemática, Química e Sociologia. Os livros foram produzidos com o intuito de serem utilizados, nas correspondentes disciplinas, nas três séries do Ensino Médio. Os/as autores/as do Livro Didático Público – Folhas, que são os/as professores/as da rede pública estadual, também sofrem influência do momento histórico, social e político em que estão vivendo.

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Analisar criticamente uma política pública, na qual estão desenvolvidos/as professores/as da rede pública estadual, sendo uma pedagoga da rede pública estadual, não é tarefa fácil. A inovação da iniciativa tendo como uma das perspectivas formar professores/as pesquisadores/as exige um olhar diferenciado para esta política. Inovadora, termo proposto por Hutner (2008), levando em consideração qual ponto de vista? O do Governo do Estado? O dos professores/as/autores/as? O dos/as professores/as que “deveriam” utilizar desta produção para “enriquecer” suas aulas? O/a dos/as alunos/as? O projeto tem aspectos que consideramos inovadores, mas uma análise criteriosa aponta contradições e limitações, muitos pontos que merecem críticas e, conforme o foco dessa pesquisa, uma ausência de preocupação, quando da produção, sobre atender a critérios de Educação das Relações Étnico-Raciais. Não observamos, na análise documental sobre o processo de produção, qualquer preocupação sobre integrar as políticas de promoção de igualdade racial que repercutiam na própria Secretaria, o mesmo ocorrendo às diversas temáticas relativas à diversidade. A existência de uma política pública, tais como o artigo 26-A da LDB e a Resolução 01/04 do CNE, ou a política de formação continuada que resultou na publicação do Livro Didático Público, por si só, não se efetiva na escola. Demanda um esforço dos/as envolvidos/as, nestes casos, acompanhamento por parte da SEED e investimento para acompanhamento da implantação destas políticas. Segundo Hutner (2008, p. 83), no processo de elaboração do Livro Didático Público foi consultada a sociedade civil, através do Conselho do Idoso. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Quais os critérios para selecionar somente um movimento social como interlocutor? Sendo que essa parte importante da sociedade civil, que é o Conselho Estadual do Idoso foi consultado, por que não foi consultado o Movimento Negro? Acredito que a contribuição poderia se constituir como contribuição tão importante quanto a dada pelo CEDI/PR, com a possibilidade de minimizar equívocos que porventura foram realizados em relação à Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER). Tal consulta provavelmente era relativamente fácil de executar, pois a SEED propiciava, à época, alguns espaços de interlocução com movimento docente e movimentos negros, em especial na elaboração de proposições de dar cumprimento ao artigo 26-A da LDB. No que se refere à ERER, ainda em 2003, a SEED promoveu o “Seminário de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”, em articulação com movimentos negros. Nesse momento de adaptação à mudança do artigo 26-A da LDB e início de governo que se propunha a retomar valores democráticos, foi definido pela SEED que a gestão da educação das relações étnico-raciais passava por um Grupo de Trabalho formado por equipe da SEED e membros da APP-Sindicato (que tinha acúmulo de discussão na temática e articulação com movimentos negros). Em 2004, os relatos são de organização de reunião técnica com representantes dos 32 Núcleos Regionais tendo como pauta as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, visando à divulgação das diretrizes e sua implementa-

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ção nas escolas de cada jurisdição. Em 2005, foram editados e distribuídos pela rede 6 mil exemplares do “Caderno Temático de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”, que trazia impressos a Lei 10.639/03, a Resolução 01/04 e o Parecer 03/04 do CNE. Em 2006, foi impresso o II Caderno Temático sobre o assunto, trazendo novamente o texto da Lei 10.639/03; a Deliberação 04/06 do Conselho Estadual de Educação (CEE); seleção de trabalhos de professores apresentados no I Simpósio de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana; de artigos de colaboradores, a maioria profissionais da educação das redes públicas; artigo do pesquisador Henrique Cunha Junior e de indicação de filmes e sítios de internet relacionados com Educação das Relações Étnico-Raciais. No mesmo ano, o Conselho Estadual de Educação era presidido pelo Prof. Romeu Gomes de Miranda, representante da APP-Sindicato e ativista do movimento docente e Movimento Negro, que atuou como relator e articulador da Deliberação 02/06 do CEE, que estabeleceu normas complementares às Diretrizes Curriculares Nacionais para ERER, definindo a existência de equipes multidisciplinares, nas redes de ensino e nas escolas, responsáveis pela implementação do artigo 26-A da LDB. Em 2007, algumas mudanças internas ocorreram na SEED: a criação do Departamento de Educação Básica (DEB), congregando os departamentos de Ensino Fundamental (DEF) e Médio (DEM), e a criação do DEDI – Departamento da Diversidade. Englobou também a História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. No âmbito de um setor específico da SEED, as movimenRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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tações foram bastante significativas e revelam que o tema da Educação das Relações Étnico-Raciais esteve presente. A hipótese elaborada para esta pesquisa, é que essa movimentação repercutiu pouco nesse programa em específico. Mais ainda, os anos de gestação do Livro Didático Público – Folhas eram os anos em que a educação das relações étnico-raciais estava sendo gerida por uma comissão que tinha participação dos movimentos negros e, embora situada no Departamento de Ensino Fundamental, tinha representação do próprio Departamento de Ensino Médio. Notória a falta de diálogo e execução de uma política educacional de forma não integrada. Levando em consideração a referida consulta ao Conselho Estadual do Idoso, a ausência de consulta a outros segmentos da sociedade civil e em particular aos movimentos negros que atuavam internamente na SEED pode ser interpretada como manifestação do silêncio em torno da promoção de igualdade racial na educação, que pode ter se refletido nos silêncios em torno da educação das relações étnico-raciais e do ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nos conteúdos abordados pelos livros.

2. Análise formal

Foram analisados qualitativamente, ancorada em estudos críticos sobre desigualdades raciais no Brasil, os livros de duas disciplinas escolares: Português e Literatura, Educação Física. A partir da análise formal dos

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livros, buscamos a reinterpretação da ideologia, por meio da análise de modos de operação e estratégias ideológicas observadas nos discursos dos referidos livros. Optou-se pelo Livro de Português e Literatura por apresentar alguns equívocos teóricos que mereciam ser pontuados e pelo de Educação Física, por apresentar conteúdos indicados pela Lei 10.639/03 e Parecer Nacional 01/04 abordados de forma adequada. A sugestão teve como critério fazer um contraponto entre um livro que mais se aproximasse da resposta positiva às normativas de Educação das Relações Étnico-Raciais e outro que não atendia às demandas da educação promotora de igualdade racial. O livro didático público é organizado com algumas especificidades, seguindo a estrutura contida nas Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná, elaborada através de encontros coletivos com os/as professores/as das respectivas áreas. A teoria norteadora que serviu como base para essa discussão e elaboração que se propôs a ser coletiva, foi o Materialismo Histórico Dialético. Os livros foram organizados partindo de conteúdos estruturantes. O processo de seleção da produção científica, denominado “Folhas”, apresentou-se de forma a exigir um rigor metodológico dos/as professores/as autores/ as, que seria elaborado de forma dialógica com duas áreas do conhecimento que tivessem convergência, para posterior validação pelo Departamento de Educação Básica em parceria com docentes de instituições de Ensino Superior.

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3. Análise do Livro Didático Público de Português e Literatura

O livro de Língua Portuguesa e Literatura tem início com o Rap da Língua Portuguesa, escrito pelos/as autores/as do livro, que está organizado seguindo um único conteúdo estruturante – “O discurso como prática social: oralidade, leitura, escrita, literatura”. Contém dezesseis capítulos, totalizando 208 páginas, tamanho A4. Teve como consultores dois professores da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e como leitora crítica uma professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL). As ilustrações são coloridas e trazem desenhos e imagens retirados da internet. É um livro não consumível e foi publicado pela Editora do Estado do Paraná. O Livro Didático Público de Língua Portuguesa e Literatura, encontra-se em formato eletrônico no site Dia a dia Educação (www.diaadiaeducacao.pr.gov.br) e pode ser acessado e impresso. Neste artigo estão destacados os capítulos que se referem a temática étnico-racial. O capítulo três intitula-se Discursos da Negritude. O termo negritude remete a um movimento político e literário desenvolvido por pesquisadores/as e políticos com objetivo de valorizar o continente africano e mostrar para o mundo a contribuição desse continente em vários aspectos. Bernd (1984) descreve que o termo surgiu pela primeira vez num poema de Aimé Césaire (poeta da Martinica), que convidava o povo negro a se conscientizar da existência de diferentes mundos – um branco e um negro – afirmando os valores negros, na tentativa de recuperar o orgulho negro. Destaca também que as revoltas no

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Haiti, vividas pelos/as escravizados/as, e os quilombos brasileiros, podem ser consideradas as primeiras manifestações da negritude. Munanga (2009) destaca os principais nomes da negritude que, segundo ele, podem ser considerados os fundadores do movimento: Aimé Cesairé, Leon Damas, Léopold Sedar Senghor, Leonard Sainville, Aristide Maugée, Birago Diop, Ousmane Soce e irmãos Achile. Esses autores escreveram obras da literatura negra de expressão francesa. No capítulo em análise, no entanto, observa-se o silêncio sobre esse movimento literário, como no restante do livro de Português e Literatura. Um argumento que por vezes aparece como justificativa para a não tematização da “literatura negra” seria o não reconhecimento como movimento literário e a ausência em manuais gerais. Nesse caso, a ausência não se justifica, visto que a qualidade literária da obra do criador do movimento é inegável e reconhecida internacionalmente. As proposições da modificação do artigo 26-A da LDB são na direção de que esse conhecimento de matriz africana seja parte do currículo escolar. No entanto, o capítulo em questão tem no título o nome do movimento literário mais significativo, tanto para a literatura africana quanto para a africana da diáspora, e nem o conceito do referido movimento é apresentado. Observamos que no Brasil (e na América Latina, conforme SILVA, 2008c) ocorre uma tendência de silenciar sobre a negritude em específico e sobre o legado de conhecimento de matriz africana em geral. Interpretamos esse silêncio como estratégia ideológica que opera socialmente para manter no plano simbólico uma hegemonia dos que se autorrepresentam como de origem europeia em relação Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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aos de origem africana (e indígena). Caracterizando o racismo acadêmico e institucional, decorrente da relação com o movimento do poder pelas elites da América Latina. Na parte inicial do capítulo, abaixo do título Discurso da Negritude, apresenta quatro textos, três deles relacionados à escravidão (termo adotado pela autora, ao longo de todo o capítulo), e lança a pergunta: A que tipo de escravidão referem-se esses textos? O primeiro texto anuncia a pretensão de alugar um preto ou uma preta para cozinhar e arrumar casa de família. O segundo anuncia a venda de uma preta. No terceiro, um morador de Paranaguá (cidade portuária do Estado do Paraná) anuncia a fuga de um escravo e o quarto solicita um motorista particular com 2º grau, inglês, espanhol e domínio de internet e boa aparência. Por essa abertura, é possível fazer uma ideia nada otimista do desenvolvimento do capítulo, pois ao retrata diversos tipos de escravização, reforçando uma das formas de hierarquia que é comum na sociedade brasileira, a desvalorização do negro em função de seu passado como escravizado. Mesmo assim, se seu uso fosse contextualizado e os/as alunos/as convidados/as a refletir sobre esse período histórico, o uso poderia ser adequado. Entretanto, essa reflexão não é proposta. Os textos selecionados para composição do capítulo três utilizam-se da relação negro-escravo e também apresentam características de estereotipia e estigmatização que reforçam as ideias de hipersexualidade da mulher negra brasileira – no sentido negativo – além de utilizar o termo negritude de forma equivocada. Foram usados fragmentos da obra de Gilberto Freyre, o poe-

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ma Essa Negra Fulô, de Jorge de Lima, o poema Negra, de Lêdo Ivo e o texto A última crônica, de Fernando Sabino. Através do poema Essa Negra Fulô, o texto propõe como proposta pedagógica explicitar como se constrói um poema e um texto poético. Ao analisar a obra de Jorge de Lima Raça e Cor na Literatura Brasileira, Brookshaw (1983, p. 92) afirma que: [...] tudo ilustra a inabilidade fundamental de parte do autor em ver no negro algo mais do que um animal exótico, erótico, imoral, um preconceito demonstrado em um dos seus poemas mais conhecidos e mais citados Essa negra Fulô, que comenta humoristicamente a influência sexual da escrava sobre o senhor a quem ‘rouba’ da esposa.

O poema Essa Negra Fulô de Jorge de Lima foi amplamente estudado por pesquisadores/as da temática étnico-racial. Uma das estratégias ideológicas possíveis de se detectar no poema é o silêncio, pois Fulô é retratada como um objeto, sem voz, que não oferece resistência, que aceita os insultos da senhora e os abusos do senhor. Fonseca (2002) afirma que: No silenciamento da voz negra que transita nos versos do poema apenas como objeto sensual Fulô é citada num discurso que inibe o seu dizer, ou melhor, que só permite que ele se mostre em um mesmo horizonte em que as coisas estão sempre num mesmo lugar. Não é de se admirar, portanto, que o poema de Jorge de Lima, querendo tirar o negro de um espaço cultural que o vê enquanto Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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“excrescência” ou deformação, ainda fortaleça estereótipos que paralisam na cor de sua pele, em traços que fazem dele objeto, sempre objeto exótico e erótico para deleite do senhor branco (FONSECA, 2002, p. 196).

Na busca pela mudança da imagem da mulher negra e para mostrar sua resistência e luta pela sobrevivência, digna e com direito a escolhas, o poeta Oliveira Silveira, escreveu o poema Outra Nega Fulô, se contrapondo ao poema de Jorge de Lima. Seguindo essa tendência, o mais adequado seria incluí-lo no Livro Didático de Português, já que os outros textos reforçam a visão negativa sobre a mulher negra. Após a explicação de conteúdo relacionada ao poema citado, o texto argumenta que faz uso do termo “escravidão” e não “escravização” como recomendado por pesquisadores/as de relações étnico-raciais, para dar ideia de um período e não de um estado do povo negro; que não é tema exclusivamente do discurso poético (Bueno, 2006) e faz uma discussão simplista sobre mestiçagem utilizando-se do autor Lezama Lima, escritor cubano. Relata também a contribuição dos diversos povos, para a formação da identidade cultural brasileira, ressaltando a importância da mestiçagem, destaca que “na religião: santos do devocionário católico que são a máscara de deuses surgidos na África” (Bueno, 2006, p. 47). A preocupação e questionamento que surge ao ler essa informação é muito significante, pois a autora não cita a fonte dessa afirmação e adentra numa temática polêmica que é o sincretismo religioso, envolvendo a Igreja Católica e as religiões de matriz africana, sem propriedade e aprofundamento teórico. Portanto:

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O sincretismo, pois, elemento característico e de fundação das religiões afro-brasileiras, não é uma simples “colcha de retalhos”, associação superficial de símbolos ou imagens ou sobreposição mecânica de elementos culturais oriundos de tempos e lugares diferentes. O sincretismo não é algo tão simples e pueril que se possa compreender com uma olhadela de superfície: é um processo complexo que resulta na construção de culturas singulares e não parece correto considerá-lo como expressão de submissão (mesmo que essa ideia de submissão receba o adjetivo ‘parcial’) (CARVALHO, 2006, p. 188).

Para falar sobre o índio e o negro, utiliza-se da expressão “antropofagia“ e “canibalismo”, enfatizando que o índio ingeria carne humana de guerreiros em rituais, mexendo em outra temática sem aprofundamento e que pode causar constrangimentos a adolescentes do Ensino Médio, com descendência indígena ou mesmos aos demais alunos/as com discernimento para respeitar as variadas formações da população brasileira. Ou seja, ao contrário de valorização da população negra e indígena como definido pelo artigo 26-A da LDB, o texto oferece exemplos múltiplos de desvalorização. Posteriormente, para ilustrar a “contribuição da mulher negra” na educação do menino branco, filho do senhor do engenho, utiliza-se de um fragmento do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, do livro Casa Grande e Senzala, também é reproduzido: Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama de vento, a primeira sensação completa de homem. Do moleque que foi nosso primeiro companheiro de brinquedo. Já houve quem insinuasse a possibilidade de se desenvolver das relações íntimas da criança branca com ama-de-leite negra muito do pendor sexual que se nota pelas mulheres de cor no filho-família dos países escravocratas (FREYRE, 1978).

Ao fazer uso desse fragmento a autora (2006, p. 48) destaca os atributos sexuais da mulher negra e do seu papel na iniciação sexual do menino branco, filho de proprietário de escravizados. Reduz a mulher negra à ama de leite – de sexualidade exacerbada – com função de satisfazer sexualmente o desejo de seu proprietário e de seus descendentes. Nenhuma consideração foi feita a respeito do abuso sexual cometido pelo seu dono e dos traumas que a mulher negra sofre nesse período de escravização, naturalizando essa situação sem uma contextualização histórica. Utilizou-se também de uma ilustração, que traz um texto explicativo,

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retirada do site: http://www.cliohistoria.hpg.ig.com.br/ bco_imagens/escravos/escravos.htm. Os escritos não fazem menção ao texto explicativo, que contextualiza a foto, o que compromete a função ilustrativa da mesma. Chega a chocar, pois ao levantar a hipótese daquela criança ter sido iniciada sexualmente pela ama de leite, pode causar constrangimentos em quem vê e associa o fragmento de Freyre (1978) à ilustração. A gravidade do conjunto torna-se maior para leitoras adolescentes negras que estão formando sua identidade e, por vezes, iniciando sua vida sexual. Na atividade apresentada após o texto, aborda a “negritude”, usando o termo de forma equivocada, e solicita aos alunos uma comparação, destacando semelhanças e diferenças entre o posicionamento de Jorge de Lima e o fragmento de Gilberto Freyre. No texto seguinte, faz a seguinte afirmação: O pendor sexual a que se refere Gilberto Freyre, e que, no poema Negra Fulô, aparece na opção feita pelo Sinhô ao trocar a Sinhá pela Fulô, também se faz presente no poema Negra, do poeta brasileiro Lêdo Ivo. A leitura desse poema ajuda a ampliar nosso tecido sobre a negritude (BUENO, 2006, p. 49).

Durante o decorrer do capítulo, ressalta de uma forma que parece compulsiva a sexualidade da mulher negra. Autoras como Evaristo (2006) e Nascimento (2009), entre outras, escreveram sobre essa tendência ao retratar a mulher negra como símbolo de sexualidade exacerbada. Com o intuito de desconstruir essa estereotipia, Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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produzem poemas, literatura, contos e desenvolvem pesquisas. O texto em análise atua no sentido contrário, pois não produz reflexões a respeito da erotização da mulher negra. Contudo, em nada contribui para a reversão dessa visão difundida por uma parcela da população e reforçada por diversos discursos midiáticos, entre eles revistas e emissoras de televisão. Alguns ícones representando a sexualidade escancarada da mulher negra foram criados, entre eles, a “Globeleza” (personagem criada para a vinheta do Carnaval da Rede Globo) e as “mulatas” do Sargenteli (denominação que serve para se referir a dançarinas negras). Essa construção social identitária que é imputada à mulher negra desencadeia graves consequências para o posicionamento de algumas delas na sociedade e principalmente nos relacionamentos amorosos. Desde a infância, a maioria das mulheres negras tem que lidar com suas características corporais, pois o corpo da mulher e do homem negro, apresenta algumas especificidades. Em certas famílias a proteção, geralmente partindo da mãe, regula cores e modelos de roupas que disfarcem ou mascarem essas características. A extensão dessa visão para a literatura acaba reforçando a ideia. O parâmetro que utilizamos para a análise das obras, o artigo 26-A da LDB, a Resolução 01/04 e o Parecer 02/04 do CNE, corroboram a afirmação e propõe que o ambiente escolar seja um dos responsáveis pela desconstrução dessa imagem negativa da mulher negra, ao se posicionar a favor de uma educação antirracista. No caso do capítulo analisado, ocorre o inverso, causando na pesquisadora (que é negra) sentimentos de desconforto e incredulidade. Afinal esse livro foi finan-

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ciado por uma política pública paranaense e subsidiado teoricamente, no caso específico, por um doutor da UFPR. Nessa produção, se o objetivo fosse ressaltar a beleza negra e destacar a mulher negra, a sugestão seria utilizar contos, poesias e outras produções literárias realizadas também por mulheres negras e autores/ as de outros pertencimentos étnicos-raciais que a apresentasse de maneira digna e respeitosa. Evaristo (2006) discute que a mulher negra na literatura, por vezes tem suas características associadas à sexualidade, permissividade e vulgaridade e na maioria das vezes negam a ela sua função de mãe e provedora do lar, função que muitas vezes ela exerce sozinha, que exige cuidar dos filhos, da limpeza da casa e prover alimentação e todo o tipo de sustento. A luta travada para sobrevivência, por uma grande parte das mulheres negras, desde a abolição da escravatura, através do trabalho doméstico e produção de alimentos, pouco é mencionada na literatura, retirando dessas mulheres o direito à fala. Nascimento (2008) comenta como as vozes das mulheres negras são silenciadas: A prática camuflada da discriminação, ao lado de um discurso democrático racial, insere a mulher negra num contexto que denominaríamos aqui como espaço de falta. Sofrendo uma tripla discriminação – racial, social e sexual – a mulher negra, numa sociedade racista e discriminadora, nada mais faz que acumular perdas no que se refere à dificuldade de sua inserção nos quadros sociais representados no país. O silêncio em que vem envolvida sua figura e a ausênRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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cia quase total de sua representação social evidenciam a perversão e/ou hipocrisia em que está assentada nossa sociedade (NASCIMENTO, 2008, p. 50).

Dando continuidade ao capítulo, observa-se uma nova atividade, com as seguintes questões: O poema de Lêdo Ivo toca as margens do erotismo em relação à mulher negra. Identifique, no poema de Jorge de Lima, trechos que erotizam a mulher negra. É possível identificar a mesma erotização em Gilberto Freyre? Identifique os trechos e analise quais recursos discursivos ele utiliza. Por que ele não é tão explicito quanto Lêdo Ivo? (BUENO, 2006, p.50).

Nas atividades propostas, as reflexões não avançam e só reforçam e afirmam a sexualidade da mulher negra de forma pejorativa e contrária ao artigo 26-A da LDB, Resolução 01/04 e Parecer 03/04 do CNE. No texto seguinte, usa como fundamentação teórica a historiadora Hebe M. Mattos de Castro. Porém, ao fazer os comentários a respeito do texto, usa diversos termos para se referir ao negro, tais como escravo, crioulo, preto, sem justificar por que usa tantos termos num único texto. Posteriormente adota o texto A última crônica, de Fernando Sabino, que discorre sobre uma comemoração realizada por uma família negra, num botequim do Rio de Janeiro. Trata-se do aniversário de uma criança, que está acompanhada pelo pai e pela mãe. O pai compra

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um pedaço de bolo só para a menina e a mãe retira de uma bolsa de plástico três velinhas brancas e juntos cantam parabéns. Como leitora adulta e negra, consigo ver uma beleza poética no texto, mas ao me colocar no lugar de alunas e alunos do Ensino Médio, principalmente dos alunos negros e alunas negras, consigo ver a miséria, a pobreza e a falta de recursos atribuídos às famílias negras. Segundo Chinellato (1996), em tese sobre crônicas em livros de Língua Portuguesa, essa crônica foi a mais frequente nos livros. Silva (2008a) analisa como as personagens negras das crônicas transcritas para livros didáticos trazem personagens estereotipados/as, em especial na condição não somente de pobreza, mas tendencialmente de miserabilidade. Nas descrições dos personagens da crônica em pauta, os termos utilizados são: “casal de pretos”, “compostura da humildade”, “uma negrinha de seus três anos, toda arrumadinha no vestido pobre”, “três seres esquivos”, “a negrinha finalmente agarra o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo”. Ou seja, o discurso atua para definir o “lugar” do negro na sociedade, o lugar da subalternidade, naturalizando a miséria como lugar do/a negro/a na sociedade brasileira. Para finalizar, o capítulo discorre sobre a importância do Movimento Negro, fala sobre políticas afirmativas, usando o conceito sem lançar mão de nenhum teórico para subsidiá-la e faz uso de um fragmento de fala de um membro de um Conselho Estadual do Rio de Janeiro, com discurso contrário às cotas raciais para acesso ao ensino superior, se utilizando de argumento simplista de melhoria do ensino para todos. Não recorre a nenhum pesquisador(a) ou político do Paraná, na Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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intenção de promover um debate entre os/as alunos/ as, para que eles/as possam formar consciência crítica. Porém, utiliza um gráfico do Censo de 2000 do IBGE e acrescenta um box intitulado A cara da discriminação, mostrando que o acesso dos/as alunos/as negros/as à universidade, se configura de forma mais difícil do que para alunos/as brancos/as. Na atividade, propõe que os/as alunos/as pesquisem as contribuições dos afrodescendentes para a língua brasileira, sem antes ter feito qualquer menção a essa contribuição. Após a atividade, indica leituras sobre o assunto: Se você quiser saber mais sobre o assunto, leia, por exemplo, os seguintes textos da literatura brasileira e ocidental: • “A escrava Isaura” – Bernardo Guimarães. • “A Cabana do pai Tomaz” – Harriet Elizabeth Stowe. • “Coração das Trevas” – Joseph Conrad. • “A canção de Salomão” e “O olho mais azul” – Toni Morrison. • “As vinhas da Ira” – John Steinbeck. Essas são apenas algumas indicações de leitura. Há muito mais obras interessantes para ler sobre nosso tema. (BUENO, 2006, p. 53).

Ao indicar a leitura de A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, propõe a leitura de um livro que fala sobre a escravização e destaca o embranquecimento como positivo e a subserviência da escravizada de tez clara, que deve agradecer aos seus donos pela educação refinada que recebeu. Na obra, além da valorização do branquea-

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mento, o/a negro/a é induzido/a a saber qual é o seu lugar social, ou seja, mesmo recebendo uma educação refinada, deve agradecer e se comportar sabendo da sua condição de escravizado ou ex-escravizado. Brookshaw (1983), ao analisar o referido romance, afirma que: Está evidenciado que Isaura, a heroína, é uma escrava branca (...). Evidentemente, a equivalência de negritude com beleza, inocência ou pureza moral era inimaginável pela sociedade branca do século XIX, a qual estava completamente condicionada ao simbolismo tradicional de branco e preto. Além disso, Isaura vence seu amo cruel. A combinação de beleza negra e vitória negra teria sido, portanto, subversiva moral e socialmente. Em qualquer situação literária na qual o escravo estava em posição de superar o branco ou de mostrar um grau de integridade moral ou educação, então sua cor não era mencionada, ou se salientava que era branca (BROOKSHAW, 1983, p. 29).

Sem debate e discussão sobre os assuntos abordados, o livro, apesar de ser uma obra literária reconhecida, que foi transformada em novela, enfatiza e torna natural características que não favorecem a população negra. Sobre a mesma ótica está A cabana do pai Tomaz, de Harriet Elizabeth Stowe, obra da literatura afro-americana, que destaca o negro bom e submisso. Essa obra também foi transformada em novela no Brasil, tendo como ator um branco pintado de negro. Ao indicar como leitura a autora afro-americana Toni Morrison, o texto em análise poderia alcançar o objetiRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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vo de destacar uma autora norte-americana de literatura afro-americana, que escreve romances de altíssima qualidade, tendo inclusive recebido o Prêmio Nobel de Literatura no ano de 1993. O livro mais conhecido no Brasil, O olho mais azul, trata de uma menina que queria ter olhos azuis. Para tanto, usa de vários artifícios e mostra os maus tratos vividos por Pecola Breedlove ao longo de sua vida, que sempre almejou ter os olhos azuis de Shirley Temple, ícone infantil do cinema norte-americano. Permeando esse romance, algumas situações mostram a beleza e a proteção que uma comunidade negra oferece quando uma pessoa da comunidade é abandonada pela família, entre outras formas de resistência. Segue uma passagem inspirada em diversas comunidades afro-americanas, contida no livro O olho mais azul, Morrison (2003, p. 21): Há uma diferença entre ser posto pra fora e ser posto na rua. Se a pessoa é posta pra fora, vai para outro lugar; se fica na rua, não tem para onde ir. A distinção é sutil, mas definitiva. Estar na rua era o fim de alguma coisa, um fato físico, irrevogável, definindo e complementando nossa condição metafísica. Sendo uma minoria, tanto em casta quanto em classe, nos movíamos nas bainhas da vida, lutando para consolidar nossa fraqueza e nos aguentar, ou para rastejar, cada um por si, até as dobras maiores do vestuário. Nossa existência periférica, porém, era coisa com que tínhamos aprendido a lidar – provavelmente porque era abstrata. Mas estar na rua era outra história, era fato concreto, como a diferença entre o concei-

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to de morte e estar morto. Um morto não muda, e estar na rua é estar para ficar.

Através do fragmento de Morrison (2003), percebe-se a qualidade linguística e literária dessa autora negra americana, que escreve com densidade e sensibilidade sobre a temática étnico-racial nos Estados Unidos, e que por vezes acontece com maior ou menor intensidade com comunidades negras ao redor do mundo. A autora do Livro Didático Público, poderia ter lançado mão dessa e de outras passagens, não menos belas, contidas no livro O olho mais azul, para incentivar alunos/as negros/as e não negros/as a lerem essa obra. Morrison (2002, p. 02) declara em artigo intitulado Sobre o Negro: Meu trabalho requer que eu pense sobre quão livre eu posso ser como escritora Afro-Americana em meu gênero e sexualidade, neste mundo racista. Pensar sobre (e com luta) como é cheia de implicações esta minha pesada situação. Por isso peço que se considere o que acontece quando outros escritores também trabalham numa sociedade altamente e historicamente racista. Para eles, tanto quanto para mim, imaginável não é apenas olhar ou olhar para; nem estar a si mesmo intacto no outro. É, para efeitos de trabalho, tornar-se.

Ao fazer essa declaração, deixa evidente como é difícil tornar-se humano, homem e mulher, negro/a ou não negro/a, em uma sociedade racista, sexista e capitalista, Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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para pessoas dos mais variados pertencimentos étnico-raciais. Especialmente para negros e negras de qualquer lugar do mundo, o esforço exige colaboração conjunta, inclusive de escritores/as, professores/as e da sociedade como um todo. Nenhuma menção foi feita para apresentar essa respeitada e premiada autora afro-americana, simplesmente foi indicada a leitura, sem que nada fosse destacado que despertasse o interesse dos/as alunos/as. A menção à literatura afro-americana colabora com a discussão sobre a linguagem, que é bastante elaborada, pois através da produção literária e poética, os/as negros/as afro-americanos/as se expressam linguisticamente e constroem sua identidade. No Brasil, esse processo também é expressado na literatura afro-brasileira, tendo os/as escritores/as se destacado ano após ano, entre eles/as Conceição Evaristo, Cuti, Lino Guedes, Solano Trindade, Geni Guimarães entre outros/ as. Hooks (2008, p. 863) discorre sobre a importância da linguagem para os afro-americanos, que constroem sua identidade americana, sem perder a raiz africana, pois características físicas, emocionais e culturais preservam a ancestralidade africana: Reconhecer que nós nos tocamos uns aos outros na linguagem parece particularmente difícil numa sociedade que quer acreditemos que não há dignidade na experiência da paixão, que sentir profundamente é ser inferior; pois dentro do dualismo do pensamento metafísico ocidental, ideias são sempre mais importantes que a linguagem. Para cicatrizar a fissura da mente e do corpo, nós povo marginalizado e oprimido, tentamos

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retomar nós mesmos e nossas experiências na linguagem (HOOKS, 2008, p. 863).

Diante dessas considerações sobre o termo negritude e após análise criteriosa da organização do capítulo, conclui-se que a autora usou o termo de forma incoerente e até prejudicial à formação intelectual, emocional e social dos/as alunos/as negros/as e não negros/as. O texto realiza exatamente o contrário de levar a termo as normativas do artigo 26-A da LDB, Resolução 01/04 e Parecer 03/04 do CNE, como poderia se supor pelo título atribuído. A ótica centrada numa “branquidade normativa e ancorada num racismo à brasileira” é expressa de forma explícita, pela escolha dos temas e autores, das imagens e do tratamento discursivo, das propostas pedagógicas. O capítulo quatro, denominado Pescando Significados, escrito por uma professora, que aborda à temática étnico-racial. A autora destaca e valoriza o cantor negro Milton Nascimento, traz um texto com uma breve biografia dele e uma entrevista dada por ele para a Revista Raça, que é uma revista com tiragem mensal, especializada na temática étnico-racial. No capítulo nove, intitulado Estratégias de manifestar opinião, a autora apresenta formas textuais para produzir uma opinião através da fala e da escrita. Para tanto utiliza os textos: Da arte brasileira de ler o que não está escrito, de Cláudio Moura e Castro; Receita de governo, de Sérgio Andreoli e o texto Filme da campanha do agasalho, acentua o apartheid de Mário Sabino. Ao manifestar sua opinião sobre a campanha do agasalho, Mário Sabino faz uma reflexão pertinente, falando Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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da forma com que os recursos utilizados para sensibilizar a população acabam acentuando as diferenças sociais. A autora do capítulo, ao utilizar a gravura de um adolescente negro tremendo de frio, recebendo uma doação de agasalho, que foi jogado pela janela, reproduz a forma com a população negra é representada no discurso midiático – através de fotografias, gravuras, pinturas. Na imagem, ao analisar o semblante sarcástico do adolescente que está jogando o agasalho e o de sofrimento e dor do adolescente que recebe, é possível perceber a estratégia ideológica de dominação descrita por Thompson (1995) que é a do expurgo do outro. Podemos relacionar a imagem do menino branco jogando o agasalho para o menino negro como uma forma especial de expurgo do outro que, segundo Silva (2008a, p. 34) é a estigmatização. A ilustração resgata ou reforça o estigma de que o negro tem como situação peculiar a miséria social, em situação que necessita de auxílio do outro para as situações mais básicas, como a de se agasalhar. Estudos sobre representação midiática do negro observam que a situação de “negro assistido” é uma retórica constante, que estabelece o espaço da carência e necessidade social como peculiar a personagens negras (BELELI 2005; CORRÊA, 2006; SILVA, ROCHA e SANTOS, 2011). O menino em destaque se encontra em condições vulneráveis – na rua, passando frio e fome – reforça a ideia que esse espaço é o espaço social a ele destinado, e não outros espaços como o da escola. Por outro lado, a imagem estabelece de forma indiscutível uma hierarquia, colocando o personagem branco numa posição superior na imagem e numa situação de van-

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tagem social, que pode desfazer-se de um agasalho sem maiores dificuldades. O olhar do menino branco talvez mostre a indiferença, podendo ser interpretado que acredita que as condições que o outro se encontra é consequência de escolhas próprias (tendo em vista a crença de uma parte da população brasileira, na democracia racial), demonstrando não ter capacidade de análise das condições sócio-históricas que marginalizaram e continuam marginalizando parte da população negra deste país. Como comenta Hasenbalg (2005, p. 251): Do ponto de vista dos não-brancos, os efeitos dos membros da ideologia da democracia racial são semelhantes àqueles do credo liberal da igualdade de oportunidades. Isto é, a responsabilidade pela sua baixa posição social é transferida ao próprio grupo subordinado. A consequência lógica da negação do preconceito e discriminação é a de trazer para o primeiro plano a capacidade individual dos membros do grupo subordinado como causa de sua posição social, em detrimento da estrutura de relações intergrupais.

Naturalização do branco como superior e do negro como subalterno. A imagem de crianças e adolescentes negros/as em condição de vulnerabilidade é recorrente na mídia, por vezes é o retrato da realidade, mas o cuidado com a representação da população negra nos livros e materiais didáticos é imprescindível para alertar para as possibilidades que todos deveriam ter Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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na sociedade e não limitar e condicionar uma parte da população, que no caso é a negra, a pobreza e impossibilidade de viver em condições adequadas. No capítulo quinze, denominado Mercado de trabalho: que bicho é esse?, a autora faz uma abertura utilizando uma foto de Gonçalo Alonso Dias, com uma criança negra angolana, intitulada O Pensador. O discurso midiático brasileiro faz uso recorrente da imagem de crianças, adolescentes e adultos negros/as relacionando-os à feiura, demônio, maldade, a animais e bichos. Fanon afirma que: Na Europa o Mal é representado pelo negro. (...) O carrasco é o homem negro, Satã é negro, fala-se de trevas, quando é sujo, se é negro – tanto faz que isso se refira à sujeira física ou à sujeira moral. (...) Na Europa, o preto, seja concreta, seja simbolicamente, representa o lado ruim da personalidade. (...) O negro, o obscuro, a sombra, as trevas, a noite, os labirintos da terra, as profundezas abissais, enegrecer a reputação de alguém; (...) Na Europa, isto é, em todos os países civilizados e civilizadores, o negro simboliza o pecado. O arquétipo dos valores inferiores é representado pelo negro (FANON, 2008, p. 160).

Nesse caso, vários questionamentos surgem: Sendo o assunto relacionado ao mercado de trabalho, por que a ilustração traz uma criança negra? É possível inferir que o uso tenha sido inadequado, pois criança em idade escolar inicial tem como preocupação básica estudar e não trabalhar. Infelizmente no Brasil e em outras partes do mundo crianças negras e não negras, são submeti-

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das de forma precoce ao mercado de trabalho; Por que a indagação que bicho é esse? Outra associação possível é a de que para uma criança negra, caso ela tenha baixa escolaridade, o mercado de trabalho torna-se um bicho, pois sua condição de empregabilidade é menor.

4. Análise do Livro Didático Público de Educação Física

O livro de Educação Física está organizado seguindo cinco conteúdos estruturantes: 1) Esporte, 2) Jogos, 3) Ginástica, 4) Lutas, 5) Dança. Contém 14 capítulos, totalizando 248 páginas, tamanho A4. Internamente as ilustrações são coloridas com desenhos e imagens retiradas da internet. O Livro Didático Público de Educação Física, encontra-se em formato eletrônico no site Dia a dia Educação (www.diaadiaeducacao.pr.gov.br) e pode ser acessado e impresso. O primeiro capítulo intitulado Para além das quatro linhas foi escrito por dois professores, um homem e uma mulher. Os autores abordam o futebol e propõem aos(às) alunos/as a apreciação do futebol “por trás da cortina”. São enfatizadas as sensações positivas, causadas pela alegria de uma boa partida de futebol e os aspectos negativos, que são as brigas e confusões que podem ser geradas após e durante a partida. Ao destacar os jogadores que se tornaram grandes ídolos do futebol brasileiro, os autores acentuam o lugar social reservado, para o jovem negro e homem negro Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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no Brasil, com possibilidade de sucesso. No discurso midiático, o jovem negro e homem negro, aparecem com chances de alcançar uma boa condição financeira e sair da miséria, através do futebol. Afirmam que: Pelé, Garrincha, Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho, todos jogadores espetaculares, que saíram da miséria, e talvez da criminalidade, para ganharem o mundo, com um futebol de encher os olhos e conquistarem milhões de fãs pelos clubes que passaram (SANTOS; CÁSSIA, 2006, p. 19).

Na afirmação de que os jogadores citados, todos negros (apesar de não terem explicitado seu pertencimento étnico-racial no texto, por serem muito conhecidos na mídia, são notadamente negros), de que se não fosse o futebol, poderiam até se envolver com criminalidade, reforça um determinismo social para população negra. Como determinar que pessoas como Pelé, Garrincha, Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho só poderiam alcançar o sucesso financeiro e profissional através do futebol? Eles não poderiam escolher outra profissão e serem bem-sucedidos? Para alunos do Ensino Médio que não são habilidosos como jogadores de futebol, uma das perspectivas possíveis é o crime? Estando no Ensino Médio, vislumbrar outras condições de vida e de trabalho numa sociedade que prime por uma educação antirracista é possível para alunos negros e não negros. Para Nascimento (2003, p. 147): Os estereótipos da preguiça, indolência, atraso intelectual e tendências criminais dos

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afrodescendentes frequentam o imaginário social por meio da noção de que tais características se ocultam “no sangue” dessas populações, assim como se considera que um talento especial e uma vocação para o ritmo, samba e futebol “correm nas veias” dos descendentes de africanos. Trata-se do racismo de critério biológico, inequívoco, vivo e ativo, porém recalcado.

Adotando uma definição marxista de ideologia, os autores discutem o futebol, como o ópio do povo e afirmam que “Os defensores do futebol, como ópio do povo, entendiam este esporte como uma das possibilidades de veiculação ideológica do pensamento da classe dominante (SANTOS; CÁSSIA, 2006, p. 20). O capítulo quatro, chamado Competir ou cooperar: eis a questão!, apresenta uma ilustração com dois personagens. Um homem branco, representando um economista, vestindo terno e gravata e, logo abaixo, um jogador de basquete, vestindo o uniforme de um time, batendo um cartão de ponto. As ilustrações representam uma forma de determinismo social, típico de uma sociedade em que as estruturas de desigualdade se articulam com papéis sociais bem definidos. O papel de destaque permitido ao negro, via de regra, está associado aos esportes (que demandam habilidades físicas “naturais” e pouco investimento intelectual) e a profissões ligadas à arte. Essas atividades profissionais são importantes, o que se questiona, no entanto, é o estabelecimento de espaços sociais específicos para os grupos raciais, a diferença de oportunidades de acesso para negros/as e brancos/as em profissões de alta hierarquia e que deRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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mandam formação intelectual (por exemplo, medicina, engenharia e odontologia): No trabalho, a pessoa obtém não somente um salário, mas também um sentimento de utilidade (econômico, técnico e social), de mérito, portanto de reconhecimento. Mas na medida em que as oportunidades de acesso aos postos de prestígio não se apresentam da mesma maneira quando se é branco e negro, já que se observa a presença de uma hierarquia racial implícita na sociedade brasileira, pode-se dizer que o reconhecimento de conformidade predomina entre os negros que são levados, de acordo com os lugares que lhes são tacitamente atribuídos, a aspirar posições intermediárias ou subalternas. A trajetória para a conquista, para o prestígio, não lhes é desconhecida, mas as escolhas são reduzidas, excetuando o esporte e a música. Para os brancos, se existe o reconhecimento de conformidade, as oportunidades de escolha são mais extensas (D’ADESKY, 2006, p. 90).

O capítulo dez, intitulado Capoeira: Jogo, luta ou dança?, escrito por um professor, inicia-se com o refrão de uma música Paraná uê, Paraná uê, Paraná! Paraná uê, Paraná uê, Paraná! E a pergunta: No Paraná tem capoeira? Capoeira é jogo, luta, ou dança? A proposta do capítulo é definir, o que é jogo, luta e dança e, ao final do capítulo, levar o/a aluno/a a refletir e chegar à conclusão do que é a capoeira. O autor descreve a criação da capoeira, realizada pelos escravizados, e destaca

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o Quilombo de Palmares e seu líder Zumbi, como um ágil capoeirista. No texto A capoeira como expressão de luta pela liberdade, o autor trata da prática da capoeira e descreve a identificação hierárquica dentro de um grupo específico, chamado Beribazu, que é determinado por cores diferenciadas de cordões: Hoje considerada um dos símbolos da cultura brasileira, a capoeira sempre foi perseguida, tendo sido descriminada apenas há cerca de setenta anos. Apesar das tentativas de libertos e membros da elite carioca do começo do século XX de fazer dela uma ‘gymnastica brasileira’, seria pelas mãos de dois mestres de capoeira baianos, negros e oriundos das classes populares que a capoeira se tornaria, de fato, um esporte nacional, a partir das décadas de 1930 e 40 (REIS, 2004, p. 189).

No texto A história da capoeira, o autor aborda mais detalhadamente a importância do Quilombo de Palmares e seu líder Zumbi. Para ilustrar, traz um desenho de Zumbi dos Palmares e um box explicativo sobre o significado da capoeira. Utiliza uma ilustração de Johan Moritz Rugendas intitulada Jogar Capoeira e um texto explicativo de R. Naves A forma difícil: ensaios sobre a arte brasileira. O autor utilizou uma modalidade da capoeira, a capoeira regional, versou sobre seu criador, o Mestre Bimba, mas não faz nenhuma referência ao Mestre Pastinha, que difundiu a capoeira angola, que tem características diferentes:

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Mestre Bimba – Manoel dos Reis Machado (1899-1974) – e mestre Pastinha – Vicente Ferreira Pastinha (1889-1981) – formularam, cada qual a seu modo, um projeto regional e étnico para a luta. Mestre Bimba, pioneiro na criação de uma pedagogia para a prática esportiva da capoeira, chamou a nova modalidade que desenvolveu de capoeira regional baiana. Já mestre Pastinha é considerado o principal sistematizador da modalidade conhecida como capoeira angola (REIS, 2004, p. 189).

Foi enfatizado que a capoeira é uma manifestação cultural e teve origem no Brasil, com os escravizados. O autor utilizou um texto descrevendo os benefícios da capoeira e fez a demonstração de alguns movimentos, usando desenhos explicativos. O capítulo doze, intitulado Quem dança seus males..., tem início com um fragmento da letra da música Cardápio do Amor, que tem como uma das autoras, Tati Quebra Barraco, e é por ela interpretada. Posteriormente, os autores fazem uma explicação sobre dança, ritmo e as intenções nas letras das músicas. Num texto intitulado A dança como reprodutora de modelos, são explorados os aspectos da dança reproduzida pela mídia. Também diferenciam a “dança como movimento” e a “dança como arte”. Ao fazer referência a ritmos e estilos musicais, os autores afirmam que: Você já prestou atenção nos estilos de dança, como o axé, o rap e o funk, entre outros, nos quais os gestos são sugeridos, determinando a forma de expressão dos grupos

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que dançam esses estilos? Muitas vezes, quando as pessoas estão dançando, acabam se preocupando com a execução das coreografias, o que impede a reflexão sobre as mensagens veiculadas pelas letras das músicas e sobre os movimentos corporais, “muitas vezes apelativos”, sugeridos nestas coreografias (FUGIKAWA; GUASTI, 2006, p. 196).

Através dessa afirmação, surge a pergunta: Quem são os jovens brasileiros que gostam dos estilos de dança, como o axé, o rap e o funk? Esses estilos de dança são expressões culturais de jovens, em sua maioria, negros, da periferia, ou seja, que têm sua maior representatividade na camada popular brasileira, distribuídos pelas diversas regiões do país. Os autores sugerem que esses estilos de dança, que por vezes estão acompanhadas de letras apelativas, ao serem utilizados em sala de aula, devem ser problematizados. Mesmo com essa ressalva, a utilização do fragmento da música Cardápio do Amor, de Tati Quebra Barraco, e a afirmação de que os movimentos dos estilos de dança, como axé, rap e funk, muitas vezes são apelativos, adquire uma conotação preconceituosa e discriminatória. Existem diferentes gêneros musicais com letras, que produzem coreografias que exploram a sensualidade, não se restringindo aos ritmos citados acima. Esses ritmos são expressões culturais e políticas de uma parcela da população, que luta por inserção e liberdade de expressão. Os autores desse livro didático teriam outras opções de letras de música, que representassem esses sentimentos. Duarte (1999) comenta que: Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Na cultura ocidental, a dança baseia-se fundamentalmente na sincronia dos movimentos – daí a necessidade de aprendizagem. No caso do rap, a dança contrapõe-se exatamente a essa disciplinarização dos corpos imposta pela mesma sociedade que segregou todas as manifestações culturais negras, à medida que faz uma contraposição do particular ao coletivo. Nesse sentido, poderíamos dizer que o corpo individual se especifica totalmente, ou seja, assume plenamente todas as suas potencialidades. Assume uma autonomia significativa, explorando plenamente suas capacidades, assumindo sua identidade. O corpo se expõe, não se retrai, se esconde (DUARTE, 1999, p. 20).

O texto continua trazendo a letra da música Cardápio do Amor e propõe uma interpretação do significado da letra. Os aspectos relacionados à estimulação da sexualidade são ressaltados e a importância do papel da mídia na veiculação deste tipo de música é destacado, bem como o incentivo à aquisição de objetos e roupas que caracterizam um estilo musical e uma padronização de vestimentas e atitudes dos adeptos deste estilo, que no caso específico é o funk. A letra da música em questão realmente tem um forte apelo à sexualidade e à vulgaridade, mas o cuidado necessário ao abordar esta temática é o de não reduzir o funk a uma música de qualidade duvidosa, tendo em vista a importância desse movimento musical, no Brasil e em outras partes do mundo, como expressões relacionadas com a valorização de aspectos de cultura de matriz africana.

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O soul, o funk e o movimento black power são importantes no Brasil, uma vez que o povo negro norte-americano desencadeou um processo no qual a diversão nos bailes blacks dos anos 70 só se completava se fosse transformada em espaço de conscientização (TELLA, 1999, p. 58).

O texto segue discorrendo sobre a massificação dos movimentos que são veiculados pela mídia: “O entendimento do senso comum, superficial e simplista de compreender a realidade, é veiculado intencionalmente pela mídia, na exploração da repetição dos movimentos coreografados para determinado estilo de música” (FUGIKAWA; GUASTI, 2006, p. 199). Para ilustrar a afirmação, foi utilizado um desenho que reproduzimos abaixo, em que um jovem negro está no seu quarto dançando e ouvindo um cantor negro estilizado com boné e correntes no pescoço, numa transmissão pela televisão. No quarto do jovem estão colados cartazes, com as inscrições Funk, Hip Hop e Rap, no cartaz escrito Rap está o símbolo do poder negro (Black Power), importante movimento político criado nos Estados Unidos. Segundo LOPES, “Poder negro – tradução da expressão ‘Black Power’, lema e título do movimento criado nos Estados Unidos, na década de 1960, para afirmar o orgulho de ser negro e a crença na superioridade das culturas de origem africana” (2004, p. 536). O desenho utilizado traz uma série de aspectos relevantes sobre a cultura afro da diáspora, que poderiam ser tematizados a partir das proposições do Parecer 03/04 do CNE. No entanto, o discurso do livro em questão, além de não tematizar as questões relativas ao significado dos símbolos dispostos na imagem, não Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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agrega informações sobre o papel de protesto e resistência do rap e hip hop. Ao contrário de apresentar aspectos de valorização, circunscrevem essas expressões culturais em sua relação com o consumismo. Em nossa interpretação da ilustração, essa mostra um jovem negro se divertindo e se identificando com o estilo musical que representa seu pertencimento étnico-racial e os cartazes indicam uma forma política de se posicionar diante da realidade e não um “entendimento do senso comum, superficial e simplista de compreender a realidade”, como declaram os autores do texto. Uma análise da imagem do ponto de vista das relações étnico-raciais discutiria o significado de Hip Hop e de movimento Black Power; indicando que os cartazes são a imagem para criticar a massificação cultural realizada pela mídia. O capítulo catorze, intitulado Hip Hop – movimento de resistência ou de consumo foi o que abordou a temática étnico-racial de forma mais detalhada. O capítulo inicia com perguntas sobre os jovens que gostam de hip hop: Quem são? Onde estão? Segue descrevendo o que é o movimento Hip Hop e que sua origem foi nos guetos dos Estados Unidos1. No texto que acompanha a imagem foi destacada a importância de líderes negros como Martin Luther King (1929-1968) e Malcolm X (1925-1965) que foram referências para o movimento Hip Hop. Na definição dada pelos autores, o termo Hip Hop é: “A palavra Hip Hop é de origem estadunidense, e significa ‘saltar movimentando os quadris’ (Hip: saltar; Hop: movimentando os quadris). O termo foi criado pelo DJ Afrika Bambaataa, fundador da organização Zulu Nation.” A seguir, apre-

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sentam um box, falando sobre o DJ Afrika Bambaataa e a organização Zulu Nation, fundada por ele, no Bronx, Nova Iorque, em 12 de novembro de 1973. Andrade (1999) comenta a relevância desse movimento: O rap é um dos elementos artísticos de um movimento juvenil chamado hip hop. Esse fenômeno é um movimento social dos jovens excluídos, em sua maioria negros. Nos EUA, o movimento surgiu nos ghetos de Nova York, numa articulação de jovens negros e hispânicos. O objetivo dessa articulação era diminuir a violência generalizada entre a juventude agrupada em gangues. Embora os jovens daquela época, meados dos anos 70, conhecessem a arte da dança – denominada break e a arte da pintura denominada grafite (dois elementos básicos – constitutivos do movimento hip hop), foi somente com a introdução do rap (nos ghetos) por um DJ (disc-jóquei) jamaicano, que se possibilitou às equipes de bailes sugerirem uma competição entre guangues em torno da produção artística – o que foi de imediato aceito (ANDRADE, 1999, p. 86).

Os autores enfatizaram ao longo do capítulo o grande significado do Hip Hop, como movimento político, envolvendo a juventude negra dos Estados Unidos e posteriormente a juventude brasileira. O texto dá ênfase ao movimento de conscientização e de luta pela igualdade de direitos entre negros e brancos. Foi utilizado o conceito de cultura popular e os autores explicaram que os grupos negros se uniram para elimiRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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nar a segregação racial, produzindo cultura popular de resistência. Os autores apresentaram o Hip Hop de forma bem articulada com a produção acadêmica sobre tal movimento e propuseram exercícios de pesquisa que consideramos interessantes, para que os/as alunos/as pudessem conhecer o contexto histórico em que vários movimentos políticos/culturais foram desencadeados nos Estados Unidos contra o racismo e a segregação racial. A seguir, um exercício que foi proposto: Pesquise sobre o contexto histórico-social e cultural dos EUA, na segunda metade dom século XX. Cite os acontecimentos históricos que julgar importantes, relacionando-os com as condições de vida da população estadunidense da época. Ainda, pesquise quem foram Martin Luther King, Malcolm X e os Panteras Negras. Qual a relação deles com a luta social e, portanto, com o surgimento do movimento Hip Hop? (ANGULSKI; FIDALGO; NAVARRO; 2006, p. 229).

Portanto, além de fornecer uma série de informações elaboradas sobre o tema, indica, para os/as alunos/as, o aprofundamento de estudos e informações. Um breve relato foi realizado, sobre o contexto histórico em que o Hip Hop foi desenvolvido, aliado a outras práticas culturais que objetivavam criticar a estrutura social estadunidense. Foram destacadas a Guerra do Vietnã (1965-1975), que causou indignação e revolta, pois a maioria dos soldados colocados na linha de frente era de negros e latinos, e as milhares de mortes que ocorreram nesta guerra; a morte de Malcolm X e Martin Luther

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King que tiveram grande repercussão mundial. Andrade (1999) comenta o significado do break: O break é uma dança caracterizada por movimentos em que o dançarino tenta reproduzir o corpo debilitado dos soldados que voltavam da Guerra do Vietnã; há ainda movimentos que copiavam as hélices dos helicópteros utilizadas na guerra. O objetivo dessa dança era justamente mostrar o descontentamento dos jovens com relação à guerra – um instrumento de protesto simbólico, mas de grande significado para a juventude daquela e desta época (ANDRADE, 1999, p. 86).

Na sequência, para situar o leitor sobre o início do Hip Hop no Brasil, foi utilizada referência sobre a questão que declarou que este movimento teve início no Brasil durante o Regime Militar (1964-1985), com o crescimento de “bailes blacks” na periferia e nas grandes cidades, em especial em São Paulo. Os autores fizeram uma crítica à forma como veículos midiáticos tentaram se apropriar do Hip Hop, massificando e inserindo palavras indutoras à sexualidade, para a popularização e obtenção de lucro através da venda de CD e roupas. O movimento Hip Hop é contrário a essa exposição midiática. Alguns representantes desse movimento não concedem entrevistas para canais de televisão, principalmente canais como a Globo e o SBT, e para jornais de grande circulação como a Folha de São Paulo e o Globo, sendo os Racionais MC’s o grupo que mais se preserva e se contrapõe a essa exposição. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Os autores destacam que os grupos que pertencem ao movimento Hip Hop preferem divulgar suas músicas nas rádios comunitárias, por estarem inseridas no contexto social em que as músicas são criadas e por ser o local onde os criadores das letras residem, ou seja, geralmente nas comunidades localizadas nas periferias e nas favelas. Herschmann (2000) aponta que: Os b-boys, portanto, têm procurado desenvolver sua própria indústria da cultura. Para os membros do hip hop, os programas nas rádios comunitárias e emissoras de televisão, selos e gravadoras independentes, revistas e fanzines, representam uma “estratégia” que não só esperam que garanta isso, como também um relativo controle sobre o trabalho, isto é, sobre o sentido e significado da produção que realizam (HERSCH­ MANN, 2000, p. 206).

Essa prática se fundamenta no desejo de que a intenção de revolta, denúncia e resistência que, na maioria das vezes, tem as letras das músicas, não seja manipulada e distorcida pelos veículos midiáticos de grande alcance. Salles (2004) afirma que: Eles (rappers) estabelecem um vínculo entre a arte, cultura e cotidiano de suas comunidades, o qual implica uma recuperação de aspectos do fazer artístico há muito tempo superados na história da cultura ocidental, realizando uma arte profundamente arraigada na cotidianidade, nos problemas e nas belezas que fazem parte da vida dos setores populares (SALLES, 2004, p. 92).

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Os autores valorizam a tentativa dos integrantes do movimento Hip Hop de preservação de seu pertencimento étnico-racial e social e a defesa de melhores condições de vida para uma parcela da população, composta na maioria das vezes por negros/as e pobres. Para tanto, apresentam um artigo escrito por Eliana Antônia, chamado “Folha de São Paulo joga o leitor contra os Racionais MC’s”, que é um questionamento a respeito de uma reportagem escrita na Folha de São Paulo, que acusa os Racionais MC’s de terem sido cooptados pela Rede Globo, por permitirem a inserção de um fragmento da música Negro Drama, num quadro do Fantástico, apresentado por Regina Casé. Os autores propuseram a seguinte atividade para os/as alunos/as: “Pesquise, em revistas, jornais e na internet, reportagens que abordem outros pontos de vista sobre o Movimento Hip Hop. Escreva um texto comparando os diferentes pontos de vista com sua opinião sobre o assunto” (ANGULSKI; FIDALGO; NAVARRO, 2006, p. 235). O artigo apresentado e a atividade proposta pelos autores fornecem elementos para que o leitor, no caso específico alunos/as do Ensino Médio, possa formular uma visão crítica sobre os meios de comunicação de massa e as formas simbólicas que são usadas para manipular a opinião pública. Os autores dão voz e visibilidade aos integrantes do movimento Hip Hop, ao transcreverem um fragmento de uma entrevista concedida ao repórter Sérgio Kalili, para edição especial da Revista Caros Amigos, por Pedro Paulo Soares, o Mano Brown, um dos integrantes dos Racionais MC’s. O capítulo continua com a apresentação de um texto denominado Os elementos do Hip Hop. No texto são exRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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plicados detalhadamente os elementos que compõem o movimento Hip Hop: Rap (MC+DJ), o Break e o Graffiti. Os autores explicaram os elementos do Hip Hop: Rap (abreviação de rythym and poetry, ritmo e poesia, em inglês) (DJ+MC), Break e Graffiti, e destacaram que alguns estudiosos e integrantes do movimento Hip Hop consideram o conhecimento como o quinto elemento. Zeni (2010) corrobora esse ponto de vista: Alguns integrantes do movimento consideram também um quinto elemento, a conscientização, que compreende principalmente a valorização da ascendência étnica negra, o conhecimento histórico da luta dos negros e de sua herança cultural, combate ao preconceito racial, a recusa em aparecer na grande mídia e o menosprezo por valores como ganância, a fama e o sucesso fácil. Certos grupos reúnem-se em posses, associações que têm por objetivo organizar o movimento, tanto do ponto de vista musical como social, disponibilizando para a comunidade aulas de hip hop e outras matérias, como educação sexual, informática, cultura negra e história, por exemplo (ZENI, 2010, p. 731).

O reconhecimento do movimento Hip Hop como importante para a inserção do jovem negro/a na sociedade, com responsabilidade e conscientização política e étnico-racial, vem ao encontro de reivindicações de vários segmentos do Movimento Negro. Apesar da mídia, por vezes associar o Hip Hop ao uso de drogas, roubo e vandalismo, um estudo mais aprofundado mostra que essa não é a essência do movimento e, como os au-

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tores bem pontuaram nesse capítulo, o uso de drogas, roubo e vandalismo não é prerrogativa dos membros do Hip Hop, pois está inserido na sociedade. As letras das músicas versam sobre a realidade da comunidade em que os autores das letras estão vivendo, geralmente em favelas e comunidades localizadas na periferia. Muitas vezes, ao trazer a dura realidade do dia a dia, chocam os ouvintes que vivem longe dessa realidade. O garoto que dança break foi convencionado chamar de Break Boy (B. Boy) e a garota Break Girl (B. Girl) (ANGULSKI; FIDALGO; NAVARRO, 2006). Ao longo do capítulo trataram com muito respeito o movimento Hip Hop, enfatizando que é um movimento de luta e resistência, com um forte apelo étnico-racial; fizeram um histórico do desenvolvimento desse movimento que teve início nos Estados Unidos e como ocorreu no Brasil; apontaram que, ao ser massificado pela mídia, incluiu elementos de erotização e consumo. Foram propostas interessantes de atividades para os/as alunos/ as. As duas últimas foram: 1 – Debate sobre o filme, Entre Nessa Dança: Hip Hop no pedaço (You got Served). A sugestão foi que os alunos/as assistissem ao filme e formassem grupos de discussão, registrando os pontos discutidos, destacando qual a ideia sobre o Hip Hop que o filme passa. Após a discussão, os pontos discutidos pelos grupos deveriam ser apresentados em forma de dança (break) ou teatro. Outra sugestão foi convidar um grupo de dança ou colegas para apresentarem movimentos básicos do break. 2 – Organização de um evento que contemplasse os quatro elementos do Hip Hop e outras manifestações corporais, tais como: Street Ball e Skate (ANGULSKI; FIDALGO; NAVARRO, 2006). Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Ao abordarem o significado do Graffiti, afirmaram que é uma expressão artística, com compromisso político, que difere da pichação, que é geralmente um ato de vandalismo. Essa ressalva colabora para a formação de opinião através do conhecimento, pois explicita que as pichações feitas em monumentos públicos e espaços particulares não estão associadas ao movimento Hip Hop: Os materiais comumente utilizados por graffiteiros são: spray de tinta, rolinho, pincel, corante e tinta de galão. Mas cuidado! Muitas pessoas associam a prática do Graffiti com pichação. Não são a mesma coisa! Esta última não está comprometida com a crítica social, e pode ser considerada apenas um ato de vandalismo (ANGULSKI; FIDALGO; NAVARRO, 2006, p. 243).

Ao salientar essa diferença, os autores levantaram um problema que é muito sério nas escolas de Ensino Médio onde, por vezes, o patrimônio público é danificado por pichações. Para terminar o capítulo, os autores retomaram o questionamento que propuseram no início e fizeram considerações sobre a importância do Hip Hop, como movimento que iniciou com propósito de resistência e conscientização, e destacaram as contradições que passaram a existir através de alguns grupos que se tornaram seguidores de modismos característicos de uma sociedade de consumo. Durante todo o capítulo, a temática foi abordada com compromisso, por parte dos

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autores, com a proposição de pesquisa e transmissão de conhecimento através de fragmentos de pesquisadores e, portanto, reconhecimento da riqueza da temática étnico-racial, utilizando-se de expressão artística e cultural, seguindo as indicações contidas nos documentos que contemplam as definições legais da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (doravante LDB), artigo 26-A (modificado pelas Leis 10.639/03 e 11.645/06), da Resolução 01/2004 e Parecer 03/2004 do CNE.

Considerações finais

Ao analisar o contexto de gestação da política, fica patente a falta de diálogo entre as diferentes instâncias que compunham a Secretaria de Estado da Educação. As políticas de promoção de igualdade racial via implementação do artigo 26-A da LDB, naquele momento, passavam por uma comissão articulada com movimentos sociais e localizada no Departamento de Ensino Fundamental, ao passo que a política levada a termo pelo Departamento de Ensino Médio não foi sequer permeável a qualquer diálogo com tal comissão e expressa o silêncio em relação à promoção de igualdade racial. Sobre os mecanismos de produção do “Folhas”, verificou-se que a chancela de especialistas de áreas disciplinares específicas das universidades não é suficiente para resolver questões relacionadas à diversidade étnico-racial (ou de gênero, de sexualidade, etc.). As avaRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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liações dos livros didáticos por especialistas realizadas pelo PNLD também não são suficientes. As hipóteses explicativas são a formação de tais especialistas consonante com a formação ainda hegemônica no Brasil, orientada pelo mito da democracia racial, e as formas de discriminação que são principalmente implícitas, necessitando de leitura atenta aos mecanismos de discriminação para além de generalismos simplistas. No segundo nível, análise formal ou discursiva, selecionamos os livros didáticos das disciplinas escolares de Língua Portuguesa e de Educação Física. Esses dois livros foram analisados de forma qualitativa, tendo como parâmetro as políticas de promoção de igualdade racial na educação (em especial o artigo 26-A da LDB, a resolução 01/04 e o parecer 03/2004 do CNE); uma perspectiva crítica de análise das relações raciais no Brasil. O livro didático público do Paraná, apresenta muitas peculiaridades, já descritas anteriormente, mas foi possível verificar (nos livros analisados) a variação da qualidade de um artigo – denominado Folhas (que originou um capítulo), para o outro. Alguns capítulos apresentaram abordagem mais apropriada e aprofundada do que outros sobre a mesma temática, no mesmo livro. No livro de Educação Física isto ficou bem visível; no capítulo 12 (intitulado – Quem dança seus males...) ao analisar os estilos de danças (axé, rap, funk) que são de preferência da juventude negra e em sua grande maioria pobre, enfatizaram o lado apelativo de determinadas danças, sem fazer uma contextualização da origem destes estilos e a importância que eles têm para a juventude negra. Entretanto no capítulo 14 (intitulado Hip Hop – movimento de resistência ou de consumo?)

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verificou-se um cuidado especial ao retratar esses estilos de dança e música, problematizando sobre a função da mídia ao introduzir em determinadas músicas, apelos sexuais, para aumentar o mercado de consumo. No livro de Português e Literatura o capítulo analisado apresentou vários equívocos teóricos, com textos e ilustrações inadequados. O terceiro nível de análise, a re-interpretação da ideologia, nesse estudo está expresso pela pergunta de pesquisa principal que formulamos: Quais estratégias ideológicas de hierarquização entre brancos e negros observamos nos processos de produção e nos textos do “Livro didático público (Folhas)?” Segundo Thompson (1995) dentre as formas simbólicas estão imagens e textos, e ao serem analisadas num contexto histórico, podem estar a serviço do poder e estabelecer relações de dominação. O Livro Didático Público - Folhas no contexto histórico em que foi produzido e distribuído (um mês antes das eleições para governo de Estado) para manutenção do poder em vigência. A atuação aconteceu através do modo de operação da ideologia, denominado legitimação, por meio da estratégia ideológica da racionalização, pois pode-se inferir que a produção e distribuição do Livro Didático Público - Folhas, foi uma forma simbólica utilizada para criar uma rede de raciocínio, entre os eleitores, para defender a instituição social, representada pela SEED, vinculada ao governo da época (candidato a reeleição), que merecia credibilidade por estar apoiando uma educação de qualidade, ao produzir este material didático; credibilidade esta demonstrada através do voto, que garantiria a continuidade do governo e da política públiRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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ca educacional. Esta inferência tem como fundamento relatos de funcionários/as que acompanharam o processo de idealização, produção e distribuição do livro didático público, além do período em que foi realizada a distribuição (setembro de 2006), sem que não houvesse a necessidade de devolução por parte dos alunos/as; ou seja, final de terceiro bimestre e finalização do ano letivo. Tendo em vista que o plano de trabalho docente é realizado bimestralmente, a inserção dos conteúdos contidos nos livros, foi dificultada por alguns fatores, sendo no meu ponto de vista o mais importante, o tempo para reelaboração dos planos de trabalho docente. Voltando o foco para os discursos dos livros didáticos, no capítulo três do livro de Português e Literatura – Discursos da Negritude percebeu-se o uso inadequado do termo “negritude” e da temática étnico-racial. O silêncio como estratégia ideológica de dominação, foi evidenciado ao não se fazer nenhuma menção ao movimento literário da negritude (nesse capítulo e em todo o livro), que foi um movimento de repercussão mundial, muito importante para população negra – resultado coincidente com os de Freitas (2009) e Lima (2010). Foi possível observar a estigmatização da mulher negra, pois o capítulo a retratou como coisa, objeto sexual. Aliado a tal, foi discursivamente tratando tal hirpersexualidade da mulher negra como “natural” (ou seja, usando da estratégia ideológica de naturalização) e aliada esteve a estratégia de passivização, pois a descreve de forma passiva e submissa, sem vontade própria. Os textos utilizam-se da relação negro-escravo e também apresentam características de estereotipia e estigmatização que reforçam as ideias de hipersexualidade da mulher negra.

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No capítulo nove do Livro Didático Público de Português – Estratégias de manifestar opinião, observa-se uma gravura com um adolescente negro tremendo de frio, recebendo uma doação de agasalho, que foi jogado pela janela, por um adolescente branco. Interpretamos a imagem do menino branco jogando o agasalho para o menino negro como uma forma especial de expurgo do outro (segundo Silva, 2008a, p.34) que é a estigmatização. No Livro Didático Público de Educação Física, o capítulo 10 (Capoeira: Jogo, luta ou dança?) elegeu um estilo de capoeira, denominada Regional e não mencionou a capoeira Angola, porém apresentou aspectos de valorização da cultura de matriz africana. O capítulo 14 (Hip Hop – movimento de resistência ou de consumo?) foi o que melhor atendeu as definições legais do artigo 26-A da LDB (modificado pelas Lei.10.639/03 e 11.645/06), da Resolução 01/2004 e Parecer 03/2004 do CNE, pois apresentou um texto bem elaborado e fundamentado em pesquisas, que proporcionaram aos alunos/as possibilidades de reflexões sobre a importância do movimento hip hop para a juventude negra; um movimento com contradições mas que significa resistência e afirmação da cultura negra. Nos Livros Didáticos Públicos – Folhas, analisados, nesta pesquisa, ficou evidenciada a representação do branco, (nos textos e ilustrações) de forma mais elaborada e a sub-representação do negro. Nossos resultados apontam para a continuidade do predomínio da branquidade normativa; hierarquizando em posição superior aos brancos em relação aos negros. Com resposta principal desse estudo realizamos uma crítica (e autocrítica) em relação a uma possível guetiRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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zação de políticas públicas de promoção de igualdade racial e sua não incorporação nas políticas mais amplas. No caso específico, ao mesmo tempo em que uma coordenação colegiado e com participação dos movimentos sociais atuava de forma específica, com pessoas e equipes subsumidas de tarefas (sempre urgentes), as políticas educacionais mais amplas, e a produção e distribuição do Livro Didático Folhas, eram levadas a termo sem nenhuma preocupação com a promoção da igualdade racial.

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NEAB Capítulo 6

PERSONAGENS NEGROS E BRANCOS EM LIVROS DIDÁTICOS DE ENSINO RELIGIOSO

Sergio Luis do Nascimento

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Capítulo 6 Personagens negros e brancos em livros didáticos de Ensino Religioso

Sergio Luis do Nascimento1

Introdução

A dissertação da qual deriva este artigo voltou-se para a análise dos discursos sobre os segmentos raciais negros e brancos em livros didáticos de Ensino Religioso. Como referencial metodológico, utilizou-se da Hermenêutica de Profundidade (HP), proposta por Thompson (1995). A análise da ideologia, para o autor, que é uma forma particular de HP, cujo foco dirige-se às inter-relações entre significado e poder. O artigo apresenta os resultados da análise de personagens nos textos das unidades de leitura dos livros didáticos de Ensinos Religiosos, dirigidos à 5ª e à 8ª séries do ensino fundamental, publicados entre 1977 e 2007. A proposta inicial para coleta de dados era contemplar livros didáticos produzidos de acordo com três modelos tradicionalmente presentes em diversas escolas do Brasil, a saber: as concepções denominadas Confes1  Doutor em Educação pela UFPR na linha de Políticas Educacionais. Possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (1998), mestrado em Educação pela Universidade Federal do Paraná (2009). Atualmente é professor - Secretaria Estadual de Educação do Paraná e professor de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


sional, Interconfessional e a Fenomenológica. Salientamos que, além destas três proposições, existem outras derivadas. Além disso, as formas de classificação usam, via de regra, de generalizações e estão pouco atentas a detalhes, gerando, quase inexoravelmente, imprecisões ou ambiguidades. Reconhecendo estas possíveis imprecisões, ou incertezas, ainda assim consideramos que a classificação em diferentes “modelos” de Ensino Religioso no Brasil ajuda a compreender mudanças de propostas pedagógicas e pensar que tais mudanças se refletem nos livros didáticos. Tomamos, pois, a classificação em três modelos que se organizam em períodos sucessivos, em função do Ensino Religioso presente nos currículos das escolas brasileiras e que, também, estão de acordo com o Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER) que reconhece essas três correntes como marco estruturador de leitura e interpretação da realidade (JUNQUEIRA, 2008). Fixamos um período de 30 anos para a análise de dados, porque nesse período ocorreram momentos em que as propostas de ensino religioso passaram pelas três proposições descritas. Consideramos que o período de 1977 até 2007 abrange momentos marcantes do Ensino Religioso, em particular alguns aspectos da história recente da Igreja católica. Pós Concílio Vaticano II em 1965, a Igreja Católica se abre para o mundo e passa a rever seu lugar nele. A preocupação é como o homem concreto, o homem histórico, reconhece a importância da cultura e se reconcilia com os avanços tecnológicos uma vez que esses avanços são vistos como possibilidade para progresso mundial. Todo esse processo postula o projeto de misRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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são num cenário de diversidade cultural que dinamiza a igreja Católica e leva-a substituir a noção de aculturação pela noção de inculturação rompendo com a antiga concepção do paganismo das culturas locais para uma concepção de alteridade cultural. Indianizar-se e africanizar-se são perspectivas tensas, mas a Igreja Católica busca adaptar-se às culturas locais e com isso manter a universalidade de suas verdades (ESCANFELLA, 2006, p.102). Todo esse processo pode ser observado nas duas Conferências dos bispos latino-americanos em Puebla (1979) e Santo Domingo (1992). Ambas respondiam à desafios diferentes em contextos históricos alterados pela situação política das repúblicas latino-americanas que passavam de ditaduras a regimes mais democráticos. Apesar das diferenças, Santo Domingo reforça atenção aos pobres e às culturas indígenas e afro-americanas e a inculturação do Evangelho. Nesse mesmo período, o Ensino Religioso legitimado no Brasil pela Constituição de 1988 e pela Lei de Diretrizes Bases/LDB abriu perspectiva para o mercado de trabalho, em detrimento do mercado livreiro que “têm as escolas como público cativo e o Estado como grande comprador... com editoras católicas participando ativamente da disputa desse mercado livreiro” (ESCANFELLA, 2006, p.102). No período estudado, para a realização desse artigo 1977 a 2007, alguns eventos sobre relações entre negros e brancos foram marcantes, destacam-se: o surgimento do Movimento Negro Unificado/ MNU, em 1979; os Agentes de Pastoral Negra/APNs, em 1983 e 1984. Nesse período a Fundação para o Livro Escolar (FLE)

196

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propõe a busca de um livro didático “livre da presença de preconceitos e inverdades”. Ao mesmo tempo, aparece a Assessoria Técnica de Planejamento e Controle Educacional (ATPCE) da Secretária de Educação do Estado de São Paulo com a criação da Comissão Especial de Luta Contra as Formas de Discriminação. Em 1984, no mês de abril, foi realizado, em São Paulo, o III Encontro de Agentes de Pastoral Negros. Em 1986, foi concluída a pesquisa “Diagnóstico sobre a situação educacional de negros (pretos e pardos) no Estado de São Paulo”, realizada pela fundação Carlos Chagas em convênio com a Secretaria de Educação e o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São de Paulo. Em 1988, o Ministério da Cultura promoveu o Programa do Centenário da Abolição, com incentivos à realização de trabalhos sobre o negro em que foi incluso o projeto “Salve 13 de maio”, organizado pelo Grupo de trabalho para Assuntos Afro-Brasileiros- GTAAB. Como parte das atividades, o Dia da Abolição da Escravatura foi transformado e incorporado, por solicitação dos movimentos negros e por força de uma Resolução da Secretaria da Educação, em dia de Debate e denúncia contra o Racismo. Por ocasião do centenário da Abolição da Escravatura, em 1988, e depois em 1994, o Ministério da Educação realiza e divulga um estudo reconhecendo que os conteúdos veiculados pelo livro didático vinham estimulando o preconceito racial (BEISIEGEL, 2001). Nesta mesma época, (1995) as comemorações dos trezentos anos da morte de Zumbi dos Palmares, resultou na Marcha Zumbi Contra o Racismo pela Cidadania e Vida. Nessa mesma ocasião foi encaminhado um docuRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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mento à Presidência da República que incluía, dentre as reivindicações na área da Educação, modificações nos livros didáticos e inclusão de conteúdos de História e Cultura Afro-brasileira, além de definir o dia 20 de novembro como data de Comemoração da Consciência negra. Em 2001 acontece em Durban a III Conferência Mundial das Nações Unidas Contra o racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata. Por fim, em 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 10.639 que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira no Ensino Fundamental e Médio e criou a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial/SEPPIR. O quadro abaixo ilustra os 20 selos desses 30 anos estabelecidos para realização da amostragem dos livros de Ensino Religioso e bem como informa os anos de suas respectivas edições. Nesse período, as editoras lançaram títulos diferentes ao longo dessas três décadas para atender a exigências do mercado e diferentes propostas pedagógicas. Tal característica é importante para a análise que empreenderemos, pois isso indicará em que medida essas mudanças foram feitas para atender aos contextos históricos nos quais as publicações estavam inseridas, bem como, em que medida essas mudanças estavam vinculadas às próprias contingências de mudanças culturais que cada modelo do Ensino Religioso passou a exigir nesses períodos específicos2. Na última coluna do quadro colocamos a classificação do selo segundo o foco de conteúdo que cada selo apresentou. Nesse caso o modelo Confessional incor2  No quadro a seguir realizamos uma classificação das unidades de leitura seguindo as orientações de Junqueira (2008), no que se refere aos modelos de educação religiosa e o perfil característico de cada um dentro do contexto histórico em que foi publicado.

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pora uma linha de conteúdos doutrinais, Interconfessional que apresenta uma linha de conteúdos cristãos e Fenomenológicos e outra de conteúdos culturais. Essa classificação tem que ser compreendida como uma aproximação, não como um critério que engloba todos os aspectos de cada uma das obras. Assim, usando os critérios de cronologia de publicação e de exame das obras, classificamos os selos conforme a sua maior proximidade com essas linhas de conteúdos que os selos apresentam. Ou seja, a classificação tem efeitos para essa pesquisa, mas não pode ser compreendida como definidora precisa de cada umas das obras, isso porque, em passagens específicas cada uma das obras pode possuir aspectos que são peculiares a outro modelo de ensino religioso, mas na nossa classificação o esforço foi de classificar os selos conforme o predomínio em um modelo. Quadro 1. Títulos, autores, série, editoras e anos de referência de edição analisada. Nº

1

2

3

4

5

Título e autor Deus nos quer construtores de um mundo Secretariado Arquidiocesano de Pastoral (São Luis. MA) Deus liberta o seu povo Secretariado Arquidiocesano de Pastoral (São Luis. MA) Alegria de Viver - Educação religiosa Maria Izabel de Oliveira Tongu Alegria de Viver - Educação religiosa Maria Izabel de Oliveira Tongu De Mãos Dadas Amélia Schneiders; Avelino Antônio Correa

Modelo

Série

Editora

Ano

Vozes

1983

Confessional

Vozes

1983

Confessional

Moderna

1996

Confessional

Moderna

1997

Confessional

Scipione

2002

Confessional

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199


(Quadro 1 - Conclusão) 6

7

8 9 10 11 12 13 14

15

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17

18

19

20

Educação Religiosa Escolar Conselho Interconfessional para Educação Educação Religiosa Escolar Conselho Interconfessional para Educação De Mãos Dadas Amélia Schneiders; Avelino Antônio Correa Irmãos a Caminho Therezinha Motta Lima da Cruz Irmãos a Caminho Amélia Schneiders; Avelino Antônio Correa Descobrindo caminhos Therezinha Motta Lima da Cruz Descobrindo caminhos Therezinha Motta Lima da Cruz Religião no Mundo Maria Inês Carniato Nossa opção Religiosa Maria Inês Carniato Entre Amigos André F. Seco; Luiz E. Fernandez; Márcia Braga; Maria Del Mar I. Barbosa e Sonsoles C.de La Pena Entre Amigos André F. Seco; Luiz E. Fernandez; Márcia Braga; Maria Del Mar I. Barbosa e Sonsoles C.de La Todos os jeitos de crer-Vidas Dora Incontri e Alessandro César Bigheto Todos os jeitos de crer-Vidas Ideias Dora Incontri e Alessandro César Bigheto Redescobrindo o Universo Religioso Mário Renato Longen Redescobrindo o Universo Religioso Mário Renato Longen

Vozes

1977

Interconfessional

Vozes

1980

Interconfessional

Scipione

1992

Interconfessional

FTD

1993

Interconfessional

FTD

1993

Interconfessional

FTD

1998

Interconfessional

FTD

1998

Interconfessional

Paulinas

2001

Fenomenológico

Paulinas

2002

Fenomenológico

Moderna

2004

Fenomenológico

Moderna

2004

Fenomenológico

Ática

2004

Fenomenológico

Ática

2004

Fenomenológico

Vozes

2007

Fenomenológico

Vozes

2007

Fenomenológico

FONTE: Nascimento (2009).

A seguir está a análise comparativa, na qual apresentamos os resultados da análise de personagens dos tex-

200

Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


tos das unidades de leitura dos livros didáticos de Ensino Religioso dirigidos de 5ª e de 8ª séries do ensino fundamental, publicados entre 1977 e 2007, nos modelos: Confessional, Interconfessional e Fenomenológico.

1. Análise comparativa de personagens negros e brancos no texto

No quadro abaixo, estão dispostos os 19 personagens negros das unidades de leitura, dos modelos confessionais, interconfessionais e fenomenológico. Quadro 2. Descrição dos personagens negros das unidades de leitura.

No

No do livro (L) No do texto (T)

1

L4

2

L9

3

L9

4

L9

Nome

Caracterização

Modelos

Personagem que segundo a unidade de Confessioleitura lutou contra o egoísmo e as injusnal tiças. No texto o personagem é colocado como InterconT9 modelo que deveríamos procurar conhefessional cer. Personagem que ilustra na unidade de Maria leitura e aparece como personagem no José do texto. Na ilustração é uma figura estereo- InterconT9 Nascitipada, mal vestida, desdentada, envolta fessional mento em lixo e com balão de fala que reafirma a crendice popular. Personagem ilustrado e presente no texto. Analfabeta, moradora de um barraco Aparecida embaixo do viaduto do metrô no RJ, que InterconT15 David tentava matricular a filha em uma escola, fessional Dias mas não conseguiu por não ter residência fixa. T18

Martin Luther King Martin Luther King

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201


(Quadro 2 - Conclusão)

5

L11

T3

6

L13 T1.3

7

L13 T4.1

8

L13 T4.1

9

L13 T4.1

10

L13 T4.1

11

L18

T3

12

L18

T3

13

L18

T3

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L18

T3

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L18

T3

16

L18 T15

17

L18 T15

18

L18 T15

19

L18 T15

Aparece como personagem ilustrado e no texto é descrito como pessoa capaz Nelson de viver e morrer por um ideal, ilustrando Mandela a frase: “... a conquista dos direitos dos negros na África do Sul, nos EUA...” Aparece com um poema de sua autoria Kahlil para abrir o tema abordado no texto sinal Gibran no transcendente em nosso mundo. Apresentado como personagem dentro da descrição de uma celebração destinaOxossi da a este Orixá designado como o deus da caça, dentro do Candomblé. Descreve a festa de Xangô, orixá dos Xangô raios e trovões, a festa descreve o mito de Xangô e suas mulheres. Festa de Oxalá o pai criador, descreve o texto que a festa dura 16 dias e passa Oxalá pelos rituais de obrigações das “Águas de Oxalá”. Orixá que leva água da terra para o céu e Oxumaré para os outros orixás. Descrita no texto as muitas faces da diIsis vindade como a deusa que criou ou o Nilo com suas lágrimas Descrito no texto como deus do céu e Hórus protetor do Faraó. Representante humano egípcio protegido Faraó pelo deus Hórus Osíris

Esposo de Isis era o deus supremo.

Descrita como deusa mãe na Mesopotâmia que deu à luz o céu e a terra. É apresentado no texto como Babalaô muito procurado por doentes, os quais Orunmilá curavam suas enfermidades com o uso das ervas miraculosas. Descrito como o nome de um escravo que foi vendido a Orunmilá e assim o ajuOssaim dava a receitar remédios aos doentes e acabou sendo conhecido como um grande médico. Gnomo de uma perna só que ensinou Aroni todo o segredo das ervas para Ossaim Divindade egípcia que conduzia as almas Anúbis no além. Nammu

FONTE: Nascimento (2009).

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Interconfessional Fenomenológico Fenomenológico Fenomenológico Fenomenológico Fenomenológico Fenomenológico Fenomenológico Fenomenológico Fenomenológico Fenomenológico Fenomenológico

Fenomenológico Fenomenológico Fenomenológico


Os personagens negros catalogados nos modelos Confessionais e Interconfessionais aparecem nos selos em situações diversas ao apresentarem papéis diferentes na sociedade. Algumas vezes como heróis de causas nobres, como a luta contra o racismo e direitos humanos e, às vezes, perpetuando um modus operandi dos discursos dos livros didáticos de naturalização/eternização de ações discriminatórias, como os exemplos dos casos que ilustram estas tendências nas personagens femininas, abaixo. As personagens humanas, Maria José do Nascimento e Aparecida David Dias são apresentados nos textos em posições socialmente desfavorecidas. Como nas pesquisas de Rosemberg (1985), Bazilli (1999) e Silva (2005), não se observaram expressões explícitas de racismo e discriminação racial, mas, como nas pesquisas anteriores, os personagens femininos dos textos descritos são estereotipados, sendo que a mulher negra não existe, quem aparece é a empregada doméstica negra, representada monotonamente com os traços “modelares” (lábios grandes, gorda, lenço na cabeça, brincos e avental, conforme ROSEMBERG, 1985; também BAZILLI,1999). A primeira personagem foi colocada numa situação de miséria, com signos de pobreza muito explícita, em especial a imagem de uma mulher desdentada. Evoca a crença num milagre de São Cosme e Damião no combate a uma epidemia que se alastrou em Pernambuco no século XVII, e da qual ninguém foi vítima. O texto contrapõe essa “crendice” descrevendo que uma lavadeira de 41 anos deveria ter a clareza de perceber a diferença entre o que é responsabilidade humana e o que é ação Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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de Deus. Ou seja, o papel desempenhado pela personagem negra é o de ausência de capacidade de julgar, ausência de inteligência. O velho estereótipo de “ingênuos”, “infantis”, representantes de uma cultura inferior, não-civilizada, tão presentes na literatura infantojuvenil (GOUVEIA, 2005) e na literatura (EVARISTO, 2005). A personagem caricaturada e envolta de lixo é apresentada como se estivesse berrando para que todos acreditassem nos santos populares que realizaram o milagre em outros tempos, em oposição à crença, na ciência e na religião oficial. É explicitado, nesse exemplo, que as crenças populares baseadas na tradição e costumes dos antepassados não têm valor nenhum diante do conhecimento estabelecido no meio científico e na fé que segue princípios racionais e institucionalizados na religião oficialmente detentora dos desígnios divinos. A personagem Aparecida David Dias é representada no texto como moradora de rua no viaduto da Praça Bandeirante no Rio de Janeiro, ao ter a matrícula de sua filha recusada, e resolve educá-la no viaduto mesmo que, com o tempo, passa abrigar outras crianças. O texto ressalta que a personagem não tem residência fixa e por isso não pode realizar a matrícula. Por um lado, o texto é uma crítica social à condição de pobreza que gera impossibilidade de acesso à educação. A mulher negra é colocada numa posição de solução e é ativa, pois não tendo o direito à educação respeitado, busca alternativa própria para tal situação. Por outro, é uma das duas únicas personagens femininas negras e circunscritas à situação miséria e de tarefas do lar. É significativo que ambas as personagens estereotipadas foram as duas únicas mulheres negras humanas

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


que figuraram na amostra. Ou seja, a representação de forma totalmente alienada da realidade e de forma exclusivamente estereotipada vinculou-se especificamente às mulheres negras, reiterando que a hierarquização racial pesa de forma particular nas mulheres negras e, que o discurso dos livros didáticos de religião, acentua o papel ideológico quando olhado pela perspectiva de gênero. Ao lado dessas personagens estereotipadas figuram três personagens negros que representam o contraponto. São discursivamente compostos de forma positiva e representam características valorizadas, em particular na luta antirracismo. Notável que sejam todos personagens masculinos. Martin Luther King aparece em selos diferentes, desempenhando papéis similares em ambos os textos. Dois deles foram evocados pela sua importância histórica nas lutas contra a segregação racial tanto nos Estados Unidos como na África do Sul. A presença de tais personagens, que trazem aspectos de humanização e defesa de direitos humanos, embora diminuta, é importante como forma de valorizar os personagens negros. Por outro lado, pelo fato de serem justamente personagens que se destacam pela luta antirracista, acabam representando, para o discurso dos livros, uma mensagem de duplo sentido. Tais personagens afirmam o antirracismo, porém, ao mesmo tempo, reforçam velhas práticas racistas que se mantêm implícitas no discurso dos livros. No modelo fenomenológico foram catalogados 14 personagens negros sendo que 12 são divindades, um personagem humano, Kahlil Gibran, (nesse caso catalogado na categoria cor-etnia do manual catalográfico como Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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parda, classificação essa devido à origem libanesa do personagem) e outro personagem humano presente na história mundial como Faraó. Os dados revelaram uma abordagem diferente nos livros didáticos desse modelo em relação às religiões de matriz africana. Em alguns selos são demonstradas ilustrações com rituais desses segmentos religiosos. Também, verificou-se que as mesmas estão circunscritas a espaços limitados e muitas vezes a ilustração desses rituais não está associada aos textos. Nesse modelo os personagens negros descritos em forma de divindades são Xangô, Oxossi, Oxalá, Oxumaré que foram apresentadas em textos diferentes, de selos distintos. Em uma das unidades analisada, houve uma reflexão sobre os conflitos entre ciência e religião. O conto relatava sobre Ossaim, o orixá detentor da sabedoria das folhas e ervas miraculosas. Vale salientar que para ilustrar a discussão sobre ciência e religião houve menção nesse caso, de uma divindade de religião de matriz africana. Num segundo selo observou–se uma unidade todo dedicado às festas dos orixás Xangô, Oxalá, Oxossi, descrevendo as comidas dos orixás e algumas passagens dos rituais festivos do Candomblé. Em ambos os casos, os selos citam essas manifestações religiosas, mas não fazem menção às doutrinas, ensinamentos, diferentemente das unidades que retratam o cristianismo: uma vez que quando tratam deste assumem cunho catequético; compondo os textos com atividades com consultas e pesquisas na Bíblia. Com relação às religiões prestigiadas nos textos, os selos Confessionais e Interconfessionais sequer mencionaram elementos das religiões de matriz africana. Os

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selos que fazem menção a ela são selos recentes e datados na década de 2000 e seguem a orientação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) que apresentam como um dos eixos transversais, o tema da Pluralidade Cultural. Essa constatação trazendo à baila a necessidade de se levar em conta esta dimensão no cotidiano escolar para contemplar o que diz a Leis de Diretriz e base da Educação/LDB quando estabelece uma nova concepção para o Ensino Religioso, cujo foco deixa de ser teológico para assumir um perfil pedagógico de releitura das questões religiosas da sociedade. Nos selos analisados do modelo fenomenológico foi possível perceber uma preocupação dos autores em conjugar as ciências humanas com a fenomenologia religiosa e a antropologia religiosa. De acordo com Piza (1998) isso é uma característica dos pensadores pós-modernos que se inspiram na fenomenologia heideggariana, cuja filosofia do Ser procura compreender a existência humana na dimensão fenomênica “(as formas de aparecimento, permanência e desaparecimento) dedicando muito pouco espaço à experiência humana, diferenciada nas sociedades, culturas e tempos históricos, embora se refira à trama social onde o ser está mergulhado” (PIZA, 1998, p.72). Uma das considerações que deve ser levada em conta ao analisar teoricamente esses assuntos, é que os autores abordam, nas suas temáticas, ao relatar as manifestações religiosas na perspectiva da existência, a forma que é dada ao ser humano comum e universal a todos e, a experiência, que não varia intensamente não pode ser tomada como universal (VARIKAS, 1989 apud PIZA, 1998). Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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No final da década de 1987, o primeiro estudo que identificamos sobre relações raciais em manuais catequéticos apresentava uma análise crítica ao discurso racista que esses manuais ilustravam ao colocar a criança negra em situação de inferioridade em relação às crianças brancas. O artigo de Triumpho (1987), já citado anteriormente, foi inspirador, porque, já passados 20 anos de todas as reivindicações e mobilizações dos movimentos negros sobre os discursos de brancos e negros em livros didáticos, podem ser analisados os livros da nossa amostra sobre o modelo Confessional, Interconfessional e Fenomenológico. É importante ressaltar que da amostra analisada 4 dos 20 livros são posteriores ao artigo de Triumpho (1987) e do III Encontro de Agentes de Pastoral Negros, realizados em abril de 1984 em São Paulo, que propôs reflexão sobre a presença dos negros nos livros didáticos. O encontro contou com a presença de representes de algumas editoras3 que participaram de um painel sobre “O negro e a Educação” (TRIUMPHO, 1987, p. 95). Segundo a pesquisadora, as discussões foram polêmicas, entretanto “hoje, essas editoras já modificaram parcialmente sua postura e, às vezes, até solicitaram nossa assessoria para uma análise crítica do que será editado” (TRIUMPHO, 1987, p. 95). Na constituição da amostragem, em específico nos 16 livros do modelo interconfessional e fenomenológico, pode-se observar os indicativos dessas modificações e assinalar a permanência ou a superação de discursos racistas apontados pela pesquisadora. 3  Triumpho (1987) não cita no seu artigo quais foram as editoras presentes neste encontro.

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Nos 5 primeiros selos, que datam de 1983 a 2002 e correspondem ao modelo Confessional, os negros praticamente não existiram enquanto personagem, reiterando resultados de outras pesquisas (como TRIUMPHO, 1987; OLIVEIRA, 2000; SILVA, 2005) e a omissão do personagem negro no contexto sociocultural brasileiro (SILVA, 2005, p. 14). A negação da população negra que Triumpho (1987) ressalta na sua pesquisa é transportada para os “livros didáticos, justamente por ser o pensamento da sociedade dominante” (p .93). O silêncio em relação a este grupo étnico quando refletirmos a distribuição por cor-etnia nesse modelo e cruzamos os dados que cada categoria nos fornece, mostra o personagem branco muito mais frequente nos textos e nas ilustrações, representados na maioria das posições de destaque (SILVA, 2005). Na Tabela 1 os resultados dos livros dos três períodos, Confessional, Interconfessional e Fenomenológico, foram dispostos de forma desagregada. Os indicadores dispostos nessa tabela revelaram no modelo Confessional e Interconfessional, uma diferença pequena ou inexistente. Por exemplo, nesses dois modelos os personagens de natureza religiosa negros não existiram; os livros didáticos publicados nesses dois modelos não fizeram referências às religiões de matriz africana nem mesmo de elementos que as caracterizam. Já no modelo fenomenológico os indicadores apresentaram mudanças. Apareceram 7(50,6%) personagens negros de natureza religiosa nos selos analisados. Os personagens citados no texto, divindades religiosas das religiões de matriz africana, por exemplo os orixás citados no quadro 10, representados na ilustração por pessoas. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Na categoria sexo, os índices de personagens negros novamente nos modelos Confessional e Interconfessional são muito baixos. No período confessional não observamos ocorrência de qualquer personagem feminina, negra. O índice de personagens femininas negras no modelo Interconfessional foi 2 (50%) e no modelo Fenomenológico 3 (21,1%), sendo que tal proporção de personagens negras foi muito superior à de personagens femininas brancas, 12,8%. Importante salientar que a maior frequência de personagens negras nesses dois períodos não amenizou a estereotipia presente, principalmente, no modelo Interconfessional que incorporou uma linha de conteúdos cristãos. Já no modelo fenomenológico essas estereotipias não se apresentam; as personagens são descritas e os selos apresentam uma linha de conteúdos que se orientam pelo conhecimento do conjunto de normas de cada tradição religiosa e o contexto da respectiva cultura, buscando estar em acordo com a proposta pedagógica desse modelo de “sensibilizar o educando para a força e a beleza da diversidade do fenômeno religioso”. No que se refere à idade, observa-se a não existência de qualquer personagem negro/a ao passo que os personagens infantojuvenis brancos foram diminutos em número e em percentual nos três modelos, 3,4% no Confessional, 6,9% no Interconfessional e 1,1% no fenomenológico. Os negros passam a ser mais frequentes no modelo fenomenológico, mas a sub-representação praticamente se manteve, em função do aumento significativo de personagens brancos que somam 94. Calculadas as taxas de branquidade (razão entre personagens brancos/ e

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


Tabela 1. Atributos de personagens brancos e negros presentes em amostra de 467 unidades de leitura, por modelos confessionais, interconfessional e fenomenológico e por cor. Atributos

Modelo Modelo Modelo Confessional Interconfessional Fenomenológico Cor-etnia Cor-etnia Cor-etnia Brancos Negros Brancos Negros Brancos Negros (N = 29) (N =1) (N =29 ) (N = 4) (N =94 ) (N =14 ) N (%)

Natureza

Humana Religiosa

Individua- Indivíduo lidade Multidão

Sexo Idade

N (%)

N (%)

N (%)

N (%)

N (%)

27 (93,3) 1 (100) 23 (79,3) 4 (100) 85 (90,4) 6 (42,3) 2 (6,9)

0 (0,0)

4 (13,8)

29 (100) 1 (100) 29 (100) 0 (0,0)

0 (0,0)

0 (0,0)

0 (0,0)

7 (7,4)

7 (50,6)

4 (100) 92 (97,9) 14 (100) 0 (0,0)

2 (2,1)

0 (0,0)

Masculino 27 (93,1) 1 (100) 25 (86,2)

2 (50)

80 (85,1) 11(78,9)

Feminino

2 (50)

13 (13,8) 3 (21,1)

Adultos Crianças

2 (6.9)

0 (0,0)

4 (13,8)

28 (96,6) 1 (100) 25 (86,2) 4 (100) 92 (98,9) 14 (100) 1 (3,4)

0 (0,0)

2 (6,9)

0 (0,0)

1 (1,1)

0(0,0)

FONTE: Nascimento (2009).

negros/as) houve uma redução em relação aos dois primeiros modelos: 29 no modelo confessional, no modelo interconfessional 7,25 e no fenomenológico a taxa de branquidade foi 6,7, ou seja, a desproporção foi enorme no modelo confessional e em escala bem menor nos dois últimos modelos, mesmo assim muito significativa. No período de 1992 a 1998 correspondente ao modelo Interconfessional a ação de movimentos negros irão exercer, a partir da década de 1990, uma preocupação explícita e uma reivindicação de que “a inclusão de novas orientações escolares privilegiam a História dos afro-brasileiros e africanos, além de ser a concretização de uma política pública há muito almejada, é também a oportunidade de refletirmos sobre a naturalização das desigualdades e oportunidades para trabalharmos asRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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pectos ainda pouco conhecidos da história de uma população que desconhece sua própria história” (SILVA, 2007, p. 14). No entanto, o impacto nos livros didáticos de Ensino Religiosos parece ter sido relativamente pequeno nesse modelo, sendo mais perceptível no posterior, o Fenomenológico. No modelo Interconfessional verificamos os mesmos estereótipos e preconceitos que a pesquisadora Rosemberg (1985) constatou na sua amostra de literatura infantojuvenil. Os personagens brancos, considerados pela pesquisadora “os mais dignos”, também aparecem em nossa amostra, o que vem validar as observações feitas em seu estudo. Rosemberg (1985) verificou na sua pesquisa que as personagens negras “eram apresentadas, nas ilustrações, em traços estereotipados: gordas, lábios avantajados, lenço na cabeça, avental” (ROSEMBERG, 1985). Já no período de vigência da nossa amostragem de 2001 a 2007 temos no modelo fenomenológico uma mudança nesse cenário. Nos selos pesquisados, em particular na análise qualitativa, quando os livros foram lidos na integra, os personagens negros figuram com mais frequência em situações favoráveis e foram observados em ilustrações que os reforçam positivamente. No selo “Todos os jeitos de crer” e no capítulo 15, intitulado “Todos somos iguais” há subtemas que falam sobre o povo escravizado, como surge um líder, a luta pela não violência nos quais, os personagens ilustrados veem figurar e exemplificar os temas. Alguns estereótipos e temáticas se mantêm. Por um lado, temos personagens que vêm à baila para dar subsídios e reforço positivo a ideias e fatos como a resistência do povo negro a escravidão. Por outro,

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


os selos ainda estão presos a personagens importantes e históricos como Zumbi e Martin Luther King. Negam informações valiosas no sentido de oferecer aos estudantes negros a chance de reconhecimento e pertencimento cultural e racial positivos que poderiam ser representados nos selos por personalidades negras contemporâneas, pelos movimentos negros e pela Lei 10.639 que dispõe sobre ensino de História e Cultura Afro-Brasileira. Ao analisar os indicadores de importância dos personagens nos três modelos nos quais estamos realizando a comparação de cor-etnia (tabela 2), verificamos que os personagens que tiveram menção no texto por serem nomeados ou por serem narradores do texto ou, ainda, terem suas falas relatadas por outro narrador e personagens que contribuem de maneira positiva para o texto ou apresentando-se com neutralidade mas que, em ambos os modelos, tanto no Confessional, Interconfessional e fenomenológico praticamente não existiram. No primeiro modelo os personagens negros tenderam de 0 a 1 % no total em todas as categorias. Nesse caso específico o modelo Confessional para esses indicadores destacou o que Triumpho (1987) ressalta sobre a predominância de perspectiva eurocêntrica e a não abordagem das culturas africanas nos livros didáticos. No segundo modelo, o Interconfessional, houve um aumento da representatividade, mas ainda ficando percentualmente muito inferior aos personagens brancos. Calculando a taxa de branquidade temos para cada personagem negro que recebe um nome nos textos, 9,3 brancos. Nos personagens vivos em toda história 7,3. Portanto nesse modelo, observa-se a presença de Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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personagens negros, mas as relações de desigualdade entre brancos e negros continuou acentuada. No modelo fenomenológico os personagens negros vivos em toda a história apresentam uma taxa de branquidade em torno de 6,5 inferior ao do modelo anterior, mas com um número de personagens brancos 92 (97,9%) bem superior aos personagens negros 4 (28,9%). Tabela 2. Indicadores de importância dos modelos confessional, interconfessional e fenomenológico de personagens brancos e negros presentes em amostra de 467 unidades de leitura. Indicadores de Importância

Modelo Confessional Cor-etnia Brancos Negros (N =29 ) (N =1 ) N (%)

Nome Vida e Morte Diálogo Valor do Personagem

N (%)

Modelo Interconfessional Cor-etnia Brancos Negros (N =29 ) (N = 4 ) N (%)

N (%)

Modelo Fenomenológico Cor-etnia Brancos Negros (N =94 ) (N = 14) N (%)

Recebe um 27(93,1) 1 (100) 29 (100) 4 (100) 92 (97,9) nome Personagem vivo em toda 20 (69,0) 0 (0,0) 11 (37,9) 3 (75,0) 63 (67,0) história Personagem 15 (51,7) 0 (0.0) 6 (20,7) 2 (50) 1 (1,1) fala Positivo ou neutro

29 (100)

1 (100) 28 (96,6) 4 (100)

90 (95,7)

N (%) 14 (100) 4 (28,9) 0 (0,0) 14 (100)

FONTE: Nascimento (2009).

Esses resultados comparativos dos personagens nas unidades de leitura, tanto nos modelos Confessional e Interconfessional quanto no Fenomenológico, mostram que os livros didáticos organizam os seus conteúdos, não permitindo a visibilidade dos personagens negros e dos leitores negros enquanto sujeito do processo histórico. Nossos resultados apresentam particularidades, mas as tendências gerais na perspectiva racial, seguem tendência similar à de outros estudos (ROSEMBERG,

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


1985; TRIUMPHO, 1987; BAZILLI, 1999; SILVA, 2005) em que os personagens negros continuam sub-representados, ocupando posição de menor destaque, confinamento da população negra a determinadas temáticas, como escravidão, apartheid, servidão e, mesmo no modelo fenomenológico o aumento de personagens negros está circunscritos as religiões de matriz africana. Isso muitas vezes, reafirmando o lugar social e negando a sua identidade enquanto grupo se comparadas às de personagens brancos; além de representados, muitas vezes, de forma estereotipa (ESCANFELLA, 2006). Foram analisados também os personagens negros e brancos nas ilustrações que acompanharam os textos de leitura. Repetiu-se nas ilustrações também a hegemonia de personagens de natureza humana e ao passo que em todos os modelos figuram alguns personagens brancos religiosos, porém inexistem personagens negros religiosos nas ilustrações dos modelos Confessional e Interconfessional. Ou seja, somente no modelo Fenomenológico o personagem negro religioso passa a existir nas ilustrações. Neste modelo observou-se um caso de contradiscurso relativo à norma branca de humanidade, visto que, nas ilustrações, ocorreu uma proporção de personagens negros infantis superior ao de personagens brancos infantis. Parece que as ilustrações têm apresentado resultados mais expressivos nessa direção de atender a demandas sociais e a normativas relativas à diversidade. Por um lado, podemos interpretar como salutar o fato das ilustrações apresentarem resultados melhores. A partir da análise das formas de produção dos livros didáticos, podem ser resultados de equipes de arte e de ilustração Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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mais atentas às demandas sociais e à diversidade. Por outro lado, as ilustrações com maior diversidade podem operar como expressão do modo de atuação ideológica da dissimulação, com a estratégia ideológica de deslocamento, contribuindo para obscurecer os discursos racistas, sexistas e adultocênticos presentes nos textos. Além disso, as ilustrações guardam resquícios de uma “midiação do sofrimento”, que Silva (2007) descreve, em retratar a criança negra em situação de exploração, de trabalho e pobreza. Em nossa análise qualitativa, identificamos ilustrações que relacionaram a infância a “problemas sociais” e, da mesma forma que Silva (2007) descreve, a infância tem cor e origem. Essa cor é representada tanto nos textos como nas ilustrações da amostragem nessa pesquisa, associadas a figura da criança negra e pobre. As ilustrações, muitas vezes, operam como formas complementares aos textos de comunicar determinados sentidos como atribuições de juízo de valor levando à possíveis formas de interpretação (SILVA, p. 16, 2007). No caso específico, as imagens que se repetem de crianças negras em condições de pobreza, sofrimento, desvalorização social, necessidade de assistência, por um lado, podem operar como mote para críticas sociais; por outro, circunscrevem um espaço social específico para o negro, o espaço da miséria, da subalternidade e da necessidade de assistência social ou de caridade. Seria expressão do modo de operação da ideologia da fragmentação, da segmentação de grupos sociais em espaço de poder específico. Ao observar que os personagens negros virtualmente não existiam nos livros dos modelos Confessional e Interconfessional, eles passam a existir nos discursos

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


dos livros do modelo Fenomenológico, mas sua entrada é particularmente, em certas situações de subalternidade, principalmente para mulheres e crianças. As tendências dos livros publicados, mesmo após a década de 1990 e já na década de 2000, é manter os personagens negros confinados a determinadas temáticas, limitando as posições sociais do negro às situações de desvalorização social, em especial crianças negras circunscritas à situação de miséria. Observou-se tendência a naturalizar a criança negra como em situação de miséria, operando para manter a subalternidade. Em síntese, as ilustrações dos livros didáticos de Ensino Religioso estudados apresentam, no modelo Fenomenológico, alguns aspectos de valorização do negro. No entanto, apresentam também algumas formas discursivas que podemos qualificar de “discurso racista”, pois operam de forma a produzir e reproduzir a hierarquia racial entre brancos e negros. Ocorreram modificações nas ilustrações do negro, mas o discurso racista não deixou de existir, tomou outros formatos.

Considerações finais

Nestes trinta anos de produção (1977 a 2007), os selos didáticos de Ensino Religioso apresentaram avanços e permanências no que se refere a relações entre brancos e negros. Ao longo de todo esse período de mobilização e sensibilização junto às editoras. Essas, por sua vez, em certa medida, buscaram responder às Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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reivindicações dos movimentos sociais negros e aos pesquisadores sobre a produção e a veiculação de discursos racistas. A movimentação em torno do tema foi particularmente importante a partir do final dos anos 1980, com a constituinte e a Constituição de 1988, o Centenário da Abolição em 1988, em 1994 a Marcha Zumbi Contra o Racismo, pela Cidadania e Vida, a estruturação do Programa Nacional do Livro didático/PNLD, o processo de avaliação do Livro didático iniciado em 1996, a discussão e aprovação, em 1996, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, as avaliações promovidas pelo Ministério da Educação/MEC. Relacionado a toda essa movimentação o tema racismo em livros didáticos manteve-se na agenda das discussões. O feito influenciou para que os editores de livros didáticos mudassem sua aparência, seu layout e assimilassem determinados avanços pedagógicos no combate às manifestações de racismo explícito e implícito nos livros didáticos. O problema de pesquisa sobre discursos ideológicos remete, nessa dissertação, à perspectiva de Thompson (1995) sobre ideologia e suas proposições sobre estratégias ideológicas (que a pesquisa buscou apreender na análise formal) e os modos gerais de operação da ideologia. No modelo Confessional, observaram-se publicações que negaram a existência de negros no conjunto da sociedade brasileira. Os livros didáticos de Ensino Religioso faziam referência a grupos humanos e as suas respectivas religiões, mas os personagens negros analisados, no modelo Confessional, foram submetidos, principalmente, ao modo de operação ideológica de

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


dissimulação que ocultava, a existência social desse grupo étnico e apresentava um silêncio em torno de sua participação na sociedade brasileira. Além disso, a presença do branco como representante natural da espécie, a “branquidade normativa”, que expressa a estratégia ideológica de naturalização (umas das estratégias do modo de operação reificação) esteve muito presente nos discursos das obras desse modelo. No modelo Interconfessional, vistos os quatro personagens negros identificados na amostra (quadro 10), as principais estratégias ideológicas identificadas foram a diferenciação e a estigmatização. Além disso, observamos que nos selos publicados e classificados do modelo Interconfessional, em seu conteúdo as formas simbólicas atuaram de forma a naturalizar os personagens brancos como representantes da espécie e como interlocutores em potencial dos textos. O modo de operação denominado por Thompson (1995) como fragmentação esteve presente em todos os selos analisados, nos três modelos, sendo mais acentuando no modelo Fenomenológico. Os livros didáticos desse modelo apresentaram alterações na representação ficcional de personagens negros, com modificações significativas em relação aos dois outros modelos, porém, não escapou de apresentar esse modo de operação ideológica. Os livros didáticos pesquisados nos três modelos, ainda atuam no sentido de diferenciação ou estigmatização dos personagens negros, estabelecendo e difundindo sentidos que dificultam a possibilidade do negro brasileiro de assumir posição de exercício de poder. Os textos e as ilustrações, muitas vezes, procuram personificar os negros em representações de exRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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pressiva subordinação aos personagens brancos. Os livros mais recentes valorizaram aspectos fenotípicos de personagens negros, como no caso do modelo Fenomenológico, mas, permanecem formas de hierarquia racial e a sub-representação em relação aos personagens brancos. O modelo Fenomenológico provocou, nesse trabalho, uma série de indagações sobre a presença e o aumento de personagens negros nos selos publicados. As mudanças observadas resultaram, por exemplo, na presença de religiões de matriz africana, de mães de santo, de contos fazendo referência aos Orixás. Esse fato é muito significativo para os anseios e desejos dos movimentos negros e de pesquisadores que há muito tempo refletem as desigualdades raciais no Brasil e a ausência de personagens negros nos livros didáticos. Essas mudanças são importantes e significativas e respondem às lutas e reivindicações de outrora e atuais. Os livros Didáticos do final da década 1990 e início da década seguinte dão espaços em suas páginas às religiões de matriz africana, modificaram seu discurso racista. No entanto, a análise qualitativa e quantitativa aponta que as modificações nas estruturas simbólicas das publicações foram limitadas. Dentro das unidades de leitura dos livros didáticos analisados, prevalecem enquanto legítimos, os discursos cristãos, tendo mais representatividade e espaços de conexão entre as temáticas abordadas e a realidade do seu público leitor: os brancos. A análise captou uma preocupação em abrir espaço para a presença das religiões de matriz africana. Mas estabeleceu esse espaço como o único do negro e os espaços hegemônicos, das religiões cristãs, como

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exclusivo para brancos. Interpretamos que tais formatos atuam na correlação entre o modo de operação ideológica da unificação, construção de uma identidade coletiva tendencialmente cristã, branca e europeia, que seria a superior e desejável, complementar ao modo de operação ideológica da fragmentação, a segmentação em relação às religiões de matrizes africanas, negras, construídas discursivamente como o “outro”.

Referências

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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NEAB Capítulo 7

A DIFERENÇA BANALIZADA: DISCURSOS DE INCLUSÃO DO NEGRO EM LIVROS DIDÁTICOS DE GEOGRAFIA

Wellington Oliveira dos estratégias Santosideológicas Racismo, discurso e Educação:

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Capítulo 7 A diferença banalizada: discursos de inclusão do negro em livros didáticos de Geografia1

Wellington Oliveira dos Santos2

Introdução

Neste texto, analisamos o modo como os personagens negros/as3 são incluídos em livros didáticos brasileiros, a partir da análise de personagens negros e brancos presentes em ilustrações de livros didáticos de Geografia para o 2º ano do ensino fundamental recomendados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2010. Argumentamos que essa inclusão pode, em certos casos, contribuir para a estigmatização e racialização do negro no Brasil, quando ocorre de forma banalizada. Os critérios de combate ao racismo e promoção da igualdade racial nos livros didáticos resultam de pressões feitas pelos pesquisadores e de movimentos sociais negros para mudanças na forma como a população negra brasileira vem sendo tratada pela educação e pelo 1  Versão reduzida deste texto foi apresentada no IV CIEP em 2012. 2  Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) na linha de Políticas Educacionais. Possui graduação em Psicologia (2009) e mestrado em Educação pela UFPR (2012). Professor de Psicologia da Educação; Educação e Relações Étnico-Raciais nos cursos de Extensão e Especialização em Educação das Relações Étnico-Raciais oferecidos pelo NEAB-UFPR 3  A partir deste ponto utilizamos o genérico masculino.

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


currículo. Nesse sentido, o movimento negro tem feito pressões junto ao Estado para que aprove medidas que modifiquem a apresentação de negros nos currículos e materiais didáticos. A alteração feita na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei 10.639/2003, que inclui o ensino de História e Cultura Afro-brasileira no currículo do ensino básico, foi um primeiro passo para essa modificação. Tanto é que ela teve desdobramentos na política dos livros didáticos brasileiros: a partir do edital do PNLD de 2005, ficou estabelecido que os livros didáticos também devem observar a Lei 10.639/2003 (PAIXÃO; CARVANO; ROSSETTO; MONTOVANELE, 2010). Santos (2010) destaca que após o momento de conquista, por parte dos movimentos negros, a Lei 10.639/2003 torna-se um instrumento para o fortalecimento da luta do movimento no campo educacional “[...] e isto lhe coloca novas pautas: articulação e capacitação de secretarias, escolas e professores, produção de materiais de referência, pesquisa e produção de conhecimento, revisões de currículos, advocacy frente ao não cumprimento da lei, entre tantas outras” (SANTOS, 2010, p. 142). Consideramos que a análise da presença de negros e brancos entre os personagens das ilustrações dos livros didáticos é importante para destacarmos o quanto os critérios dos editais dos livros didáticos, como definidos pelo Ministério da Educação (MEC), conseguem garantir que parte da diversidade étnico-racial brasileira esteja presente nos livros didáticos. O texto busca avaliar, então, o resultado de uma política educacional que busca garantir diversidade étnico-racial em livros didáticos de Geografia. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Tomamos os livros didáticos como formas simbólicas capazes de atuar, em contextos sócio-históricos específicos, de maneira a criar ou sustentar relações de dominação, conforme a proposta de John Thompson (1995). O autor apresenta alguns modos gerais de operação da ideologia; modos como o sentido pode servir para estabelecer e sustentar relações de dominação em contextos sócio-históricos específicos. A análise desses modos gerais e estratégias é a forma de reinterpretar a ideologia operada neste estudo. Neste texto, voltamos o foco para um modo de operação da ideologia sugerido por Guareschi (2000). Quando analisa o discurso de um programa televisivo que utiliza o humor para falar de política e de problemas da sociedade brasileira, Guareschi (2000) sugere que o discurso pode atuar de maneira ideológica quando banaliza a importância de determinados temas que são relevantes para os grupos dominados, induzindo à conformação. Esse modo geral pode atuar de acordo com três estratégias típicas: divertimento, que é o desvio, por meio do cômico, da atenção das relações de dominação para questões triviais ou ridículas; fait-divers, que é uma forma de lidar com o assunto de maneira sensacionalista, exagerando seu valor emocional e desviando o foco de atenção; e a ironia, que é o dizer o contrário do que se pensa, de maneira intencional, com uma lacuna entre o explícito (o que se diz) e o implícito (o que se quer dizer). O que sugerimos é que a proposta inicial de banalização como modo geral de ideologia também pode ser aplicada quando o discurso atua de modo a tratar a diferença racial como uma diferença equivalente a diferenças construídas de maneira sócio-

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


-historicamente distintas, desconsiderando as relações de poder existentes entre os diferentes grupos raciais no Brasil, ao mesmo tempo em que a presença negra é explicitamente inferior à presença de personagens brancos nos livros didáticos.

1. Racismo em livros didáticos

Consideramos os livros didáticos formas simbólicas que podem ser relacionadas a outras, tais como a literatura, mas não deixamos de lado suas particularidades. Entre elas damos destaque ao discurso de ciência/ verdade que acompanha esses livros; discurso esse que também resulta da concepção dos livros didáticos como manuais de ensino de disciplinas aos estudantes. Como argumenta Apple (1995) o livro didático frequentemente define a cultura legítima4 a ser transmitida, estabelecendo grande parte das condições de ensino e aprendizagem em muitos países. Por essa razão ele é objeto de estudo e reflexão de pesquisadores, movimentos sociais e do próprio Estado no que se refere ao combate a desigualdades socialmente construídas. A permanência das desigualdades entre negros e brancos no Brasil costuma ser justificada como consequência direta da escravidão. Silva (2005) diz que tal argumento desconsidera as oportunidades de ascensão social 4  A cultura que tende a ser considerada a legítima é aquela dos grupos dominantes. De acordo com Apple (1995, p. 84): “[...] a escolha de conteúdos particulares e das formas como devem ser abordados na escola está relacionada tanto com as relações de dominação existentes quanto com as lutas para alterar essas relações”. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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após a abolição (ou mesmo antes, pois a maior parte dos negros já era livre antes da Lei Áurea) e ao racismo dirigido aos negros. Santos (1984) afirma que culpar a escravidão pelo fracasso dos negros em competir na sociedade moderna desvia a atenção do que mantém as desigualdades atuais, apontando para um passado que não pode ser alterado. Parte das desigualdades existentes é consequência de práticas sociais que privilegiam o grupo branco, desprezando a existência do negro (e do indígena) na sociedade brasileira. O racismo no Brasil é interpretado, neste texto, como baseado principalmente nos traços físicos das pessoas, como cor de pele, formato do nariz, textura do cabelo. Tal racismo pode ser considerado um racismo de status, que privilegia os traços brancos em detrimento dos traços negros (GUIMARÃES, 1997), ainda que em determinadas esferas da sociedade negros e brancos convivam em igualdade, o que indica que as relações entre grupos raciais no Brasil podem ocorrer de maneiras horizontais (sem hierarquias) ou verticais (com hierarquias) (TELLES, 2003). As relações verticais tendem a considerar os traços físicos como marcadores de privilégios, e no racismo brasileiro, os traços físicos são usados para competir por bens matérias e simbólicos, ou seja, o racismo tende a se manifestar abertamente em espaços de competição (SANTOS, 1984). No discurso brasileiro, a tendência sócio-historicamente construída a um tratamento desigual de negros e negras estabelece espaços distintos de apresentação desses personagens na mídia. Em revisão de literatura sobre racismo em livros didáticos e seu combate no Brasil, nas cinco últimas décadas do século XX, Ro-

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semberg, Bazilli e Silva (2003) constataram que os resultados dos estudos com livros didáticos, que tiveram como marco o estudo de Dante Moreira Leite nos anos de 1950 (LEITE, 2008), já captavam a manifestação de formas de preconceito racial não explicitadas, como a não apresentação do negro na sociedade e/ou sua representação em situação socialmente inferior5. Nos anos de 1970 e 1980, as pesquisas, no geral, indicavam: a naturalização e universalização da condição de ser branco, pois sua condição racial geralmente não era explicitada e aparecia com mais frequência nas capas dos livros; a sub-representação de negros (e indígenas) em textos e ilustrações; negros, adultos e crianças, como coadjuvantes – associação à subalternidade; sub-representação de alunos e professores negros; e associação do negro à animalidade (ROSEMBERG; BAZILLI; SILVA, 2003). As produções mais recentes (décadas de 1980 e 1990) apontavam algumas mudanças, como maior humanização da criança negra; ausência de associação entre o negro e animais negros; destaque maior nas ilustrações; e maior diversificação de contextos sociais, familiares e profissionais na representação de negros, além de valoração positiva de traços físicos (ROSEMBERG; BAZILLI; SILVA, 2003). Os pesquisadores apontam a presença de discursos igualitaristas nos livros que conviviam com representações discriminatórias de personagens. Ou seja, ao mesmo tempo em que o tratamento igualitário é evocado pelos livros didáticos, apoiando-se 5  Leite (2008 [original 1950]) destacou que os/as negros/as apareciam somente em situações subalternas, como empregados. Ele afirmou que “[...] a maneira de ver a posição das raças [inferiores e superiores] se traduz pelo lugar destinado aos negros no mundo social” (LEITE, 2008 [1950], p. 220, destaque no original). Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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na mestiçagem da população brasileira, personagens negros continuam a ocupar menos posições de destaque, sendo, portanto, tratados de maneira desigual; personagens brancos ainda tendem a ser usados como referência de humanidade (o próprio público leitor suposto tende a ser branco); a Europa ainda é tomada como referência de civilização e humanidade. No caso dos livros didáticos de Geografia, de acordo com Tonini (2001), precisamos atentar para o fato de que eles assumem discursos de verdade, de ciência, sobre etnias e continentes. De acordo com Carvalho (2008), os estudantes negros sentem incomodo com a constante presença de negros em fotografias nos livros didáticos em situações de miséria, tais como morando debaixo de viadutos e mendigando. Na sua pesquisa, os estudantes também relataram que percebem quando os professores valorizam a aparência de determinados estudantes (via de regra com traços da raça branca) em detrimento de outros; e quando alguns estudantes começam a fazer piadas de mau gosto durante as aulas, no momento em que os professores começam a falar da África (CARVALHO, 2008). Discutindo o ensino de Geografia e as relações raciais no Brasil, Anjos (2005) destaca dois pontos que contribuem para a inferiorização da população negra: Primeiro, são os livros didáticos que ignoram o negro brasileiro e o povo africano como agentes ativos da formação territorial e histórica. Em seguida, a escola tem funcionado como uma espécie de segregadora informal. A ideologia subjacente a essa prática de ocultação e distorção das comu-

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nidades afrodescendentes e seus valores tem como objetivo não oferecer modelos relevantes que ajudem a construir uma auto­ imagem positiva, nem dar referência a sua verdadeira territorialidade e sua história, aqui e sobretudo na África (ANJOS, 2005, p. 175).

O silêncio acerca da participação histórica da população negra brasileira e a segregação do negro na educação de que o autor fala pode ser relacionado ao mal-estar que foi relatado pelos estudantes na pesquisa de Carvalho (2008): pouco era dito nos livros didáticos quanto à participação de sujeitos de sua cor/raça na construção do país, o que lhes deixava poucos modelos de identificação além dos que eram apresentados em situações socialmente inferiores. Situações como essa, denunciadas por pesquisadores e pelo movimento negro, levaram o Estado a adotar avaliações mais criteriosas no seu PNLD quanto à participação dos grupos racializados (negros e indígenas) (SILVA, 2005).

2. Metodologia

Trabalhamos com uma população de 22 coleções de livros didáticos de Geografia; as 22 aprovadas no PNLD/2010. Selecionamos os livros de Geografia de 2º ano do ensino fundamental para compor a amostra. Optamos por livros de 2º ano do ensino fundamental por três razões: 1) são os primeiros livros da discipliRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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na de Geografia que os estudantes recebem no ensino fundamental de nove anos, ou seja, é o primeiro contato que os estudantes têm com as coleções; 2) nas escolas que visitamos para compor a amostra de livros, notamos que a maior parte dos livros enviados pelas editoras como amostra das coleções aos professores eram livros de 2º ano (as poucas exceções eram livros de 3º e 4º ano); 3) o edital de 2010 para as coleções de Geografia aponta que os livros de 2º ano são dedicados à introdução dos conceitos básicos e elementares do componente curricular. Ainda que as questões relativas ao conteúdo dos livros não sejam objeto de análise de nossa pesquisa, interessa saber que personagens são utilizados para apresentar esse conteúdo. Utilizamos procedimentos de análise de conteúdo (BARDIN, 1985) para análise preliminar das ilustrações. Bardin (1985) apresenta três fases distintas da análise de conteúdo. A primeira, a pré-análise, em nossa pesquisa consistiu no momento em que entramos em contato com os livros didáticos de Geografia de cada coleção, fazendo uma leitura flutuante, iniciando a formulação de hipóteses, objetivos e melhor maneira de preparar o material para o tratamento. Na segunda fase, de exploração do material em codificação com regras preestabelecidas, buscamos transformar os dados brutos em unidades de análise. Criamos, com o auxílio do programa computacional Excel, para Windows XP, planilhas de frequência. Na terceira fase, fizemos o tratamento dos resultados obtidos com o auxílio do programa computacional Statistical Package for Social Sciences 17 (S.P.S.S) para Windows 7.

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3. Banalização da diferença

Contamos 3.217 personagens nas ilustrações dos livros da amostra. A maioria deles (98,8%) foi classificada como personagens humanos. A participação de personagens masculinos (57,9%) foi maior que a de femininos (33,8%). Grandes grupos com ambos os sexos foram 4,8% do todo. Personagens brancos foram 60% do total (1929), pretos 16,1% (517), pardos 4,5% (146), indígenas 5,2% (167), amarelos 2,8% (89), personagens grupo multiétnico 3,9% (127), personagens de outras cores/etnias 2,3% (74), e como personagens indeterminados (que não se encaixavam em nenhuma das categorias utilizadas) 5,2% (168). Considerando pretos e pardos como negros, então temos um percentual de 20,6% de personagens negros na amostra. Contamos em taxa de branquidade (divisão do número de personagens brancos pelo número de personagens negros conforme proposta por SILVA, 2005) 2,9 personagens brancos para cada personagem negro. Essa taxa de branquidade é menor que a encontrada por Silva (2005) entre as ilustrações de personagens de livros de Língua Portuguesa editados no período de 1994 a 2003, de 3,9 brancos para cada personagem negro, ainda que esteja distante de representar a participação de negros e brancos na população brasileira6. Após leitura flutuante dos livros da amostra, decidimos analisar contextos em que os personagens atuam de 6  Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010 a população negra (declarados pretos e pardos) correspondia a 50,7% da população brasileira, enquanto a declarada branca correspondia a 47,7%. Foi a primeira vez na história dos Censos do IBGE que a população negra superou o percentual da população branca. (Fonte: adaptado de IBGE, 2011. Dados disponíveis em: <http://www.ibge.gov.br/home/>. Acesso em: 20 ago. 2011). Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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modo a compor quadros de diversidade. Verificamos que em determinados contextos dos livros (capítulos ou seções), os textos e ilustrações buscavam apresentar personagens em um quadro de diversidade humana. O critério que utilizamos para selecionar os contextos de diversidade foi semelhante ao critério que Beleli (2005) usou para selecionar as peças publicitárias que evocavam diferenças entre os corpos de brancos e negros e de homens e mulheres em sua pesquisa. Selecionamos os personagens presentes em ilustrações, independentemente de sua cor-etnia, que estivessem em contextos que evocavam a diferença – tais como textos que solicitavam comparações entre os personagens, ou que indicavam a importância da convivência entre os diferentes. Não selecionamos contextos que evocavam diferenças e que não apresentavam personagens em ilustrações. Contamos 25 contextos de diversidade. Apenas três livros da amostra não apresentaram um contexto de diversidade segundo os critérios que utilizamos. Faz parte do próprio critério de construção da cidadania, dos editais do PNLD, a valorização da diversidade entre as pessoas, seja de origem, gênero, etnia, idade, religião e outras. O edital de 2010, já na sua introdução, apresenta preocupação com a promoção positiva da imagem de afrodescendentes e indígenas, e da temática de gênero, apontando para a promoção positiva da imagem da mulher. Também há a preocupação na abordagem da temática das relações étnico-raciais: Quanto à construção de uma sociedade cidadã, os livros deverão:

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1. promover positivamente a imagem da mulher, considerando sua participação em diferentes trabalhos e profissões e espaços de poder; 2. abordar a temática de gênero, da não violência contra a mulher, visando à construção de uma sociedade não sexista, justa e igualitária; 3. promover a imagem da mulher através do texto escrito, das ilustrações e das atividades dos livros didáticos, reforçando sua visibilidade; 4. promover positivamente a imagem de afrodescendentes e descendentes das etnias indígenas brasileiras, considerando sua participação em diferentes trabalhos e profissões e espaços de poder; 5. promover positivamente a cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros, dando visibilidade aos seus valores, tradições, organizações e saberes sociocientíficos; 6. abordar a temática das relações étnico-raciais, do preconceito, da discriminação racial e da violência correlata, visando à construção de uma sociedade antirracista, justa e igualitária (BRASIL, 2007, p. 31).

O edital de 2010 aborda preconceitos étnico-raciais e de gênero nos critérios eliminatórios comuns a todas as áreas: Observância aos preceitos legais e jurídicos no que diz respeito aos princípios éticos e de cidadania Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Em respeito à Constituição do Brasil e para contribuir efetivamente para a construção da ética necessária ao convívio social e à cidadania, as obras não poderão: (i) veicular preconceitos de condição econômico-social, étnico-racial, gênero, linguagem e qualquer outra forma de discriminação; (ii) fazer doutrinação religiosa ou política, desrespeitando o caráter laico e autônomo do ensino público; (iii) utilizar o material escolar como veículo de publicidade e difusão de marcas, produtos ou serviços comerciais (BRASIL, 2007, p. 31, destaque no original).

A valorização da diversidade também faz parte do discurso da democracia racial no Brasil, que afirma que no país existe uma harmonia entre diferentes grupos raciais, étnicos e religiosos (TELLES, 2003). O mito da democracia racial se sustenta, entre outras coisas, porque existe uma mistura racial relevante no Brasil, em comparação com países como Estados Unidos e África do Sul (TELLES, 2003). O mito da democracia racial se sustenta, também, porque existe uma mistura racial relevante no Brasil, em comparação com países como Estados Unidos e África do Sul (TELLES, 2003). Entretanto, argumentamos que quando diferentes eixos de desigualdade são tratados como equivalentes, sem considerar as construções sócio-históricas específicas entre sofrer discriminação por ser gordo e sofrer discriminação por ser negro, por exemplo, poderíamos estar diante de uma possibilidade de banalização das diferenças. Aqui utilizamos a interpretação do modo geral

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da ideologia que Guareschi (2000) chama de banalização, pois consideramos que a banalização pode atuar no discurso sem necessariamente estar ligada às estratégias típicas de divertimento, fait-divers ou ironia. Consideramos que ao apresentar variadas diferenças em um mesmo contexto que se propõe a valorizá-las, pode ocorrer uma banalização de temas que são relevantes para os grupos dominados, o que pode induzir à conformação. Trata-se, portanto, da banalização do direito à diferença. (Assim como outros modos de operação da ideologia, consideramos que a banalização, como a empregamos, apenas pode ser considerada ideológica, isto é, a serviço de determinadas relações de dominação, considerando o contexto sócio-histórico em que é veiculada). Poderíamos dizer que apresentar esses personagens juntos é apresentar juntos aqueles que Goffman (1988) chama de socialmente estigmatizados. Quando discute uma das formas de interação entre estigmatizados e pessoas “normais”, o autor aponta para uma forma de discurso que tende a neutralizar as desigualdades existentes ao afirmar que tanto os estigmatizados quando os normais têm problemas cotidianos, portanto os estigmatizados não deveriam sentir autopiedade ou ressentimento. Entendemos que o que ocorre nesses casos é uma banalização das diferenças, ao colocar estigmas de naturezas distintas em um mesmo plano. Bento (2003) explica que mesmo no discurso dos engajados na luta pela superação das desigualdades sociais no Brasil, existe a tendência a relativizar (banalizar, em nossos termos) o debate sobre desigualdades raciais quando esse incomoda o status quo do branco e, por Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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sua vez, o branco passa a admitir, por exemplo, que os negros sofrem discriminação mas argumenta que outros grupos, como pessoas obesas, também sofrem. Tal discurso é utilizado para evitar enfrentar o problema e manter os privilégios (BENTO, 2003), o que significa dizer que o discurso age, em casos como esse, de maneira ideológica. De acordo com o estudo realizado por Cavalleiro (2005), as reclamações de discriminação racial dos estudantes, nas situações de sala de aula, tendem a ser tratadas como de pouca importância pelos professores, que geralmente resolvem conflitos utilizando o discurso da igualdade entre todos, mas sem discutir com os estudantes as relações raciais. Ao banalizar desse modo as diferenças, o discurso pode diminuir a efetividade da luta dos grupos estigmatizados, já que aponta que eles são de certo modo iguais aos normais (afinal todo mundo tem problemas), ao mesmo tempo em que são retirados das situações em que desafiam o status quo dos normais – o que Goffman (1988) chama de “bom ajustamento”. Um dos discursos possíveis sobre os estigmatizados, então, é o seguinte: aponta que todos são humanos, ao mesmo tempo em que apresenta um padrão de normalidade. A seguir apresentamos alguns dos contextos de diversidade encontrados, que consideramos relevantes para a discussão. O livro A Escola é Nossa (MARTINEZ; VIDAL, 2008) apresentou ilustrações que dialogavam com a diversidade ao tratar da convivência entre as pessoas que os estudantes encontram no ambiente escolar. Em uma das ilustrações (Figura 1), uma menina branca pede auxílio a um menino branco cadeirante em uma ativida-

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de, enquanto um menino branco pede desculpas por ter derrubado o caderno de um menino negro. Figura 1. Personagens em contexto de diversidade no livro A escola é nossa.

FONTE: A escola é nossa (MARTINEZ; VIDAL, 2008, p. 155).

A convivência com o diferente, com a diversidade, é representada nessa sequência de ilustrações. Nesse sentido, a diferença da deficiência parece ser tratada no mesmo modo que a diferença entre os grupos raciais. Por outro lado, o menino na cadeira de rodas é aquele que presta ajuda a sua colega, o que nos parece uma busca pela desconstrução do estereótipo do cadeirante que sempre precisa de ajuda. Outro rompimento de estereótipo parece ocorrer entre a menina negra e o menino branco: quem possui o lápis é ela, o que pode sugerir que ela tem mais posses materiais que ele. O livro Aprendendo Sempre (VESENTINI; MARTINS; PÉCORA) apresentou, entre seus contextos de valorização da diversidade, a seguinte ilustração (Figura 2): Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Figura 2. Personagens em contexto de diversidade no livro Aprendendo sempre.

FONTE: Aprendendo sempre (VESENTINI; MARTINS; PÉCORA, 2009, p. 19-20).

A ilustração vem acompanhada de um poema de Regina Otero e Regina Rennó, chamado “Ninguém é igual a Ninguém”. Antes, o texto do livro é assim apresentado:

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Alto ou baixo, gordinho ou magrinho. Moreno, loiro, negro, sardento, ruivo, corado. Cabelo crespo, encaracolado, liso, fino, grosso ou espetado. Falante ou calado, bagunceiro ou comportado, tímido ou estabanado. Quais dessas palavras você acha que servem para falar como você é? E quais delas servem para o colega ao seu lado? (Aprendendo Sempre, 2009, p. 19).

Ao trabalhar as diferenças desse modo, interpretamos que o livro desconsidera como as variadas diferenças são construídas de modos distintos, o que consideramos uma banalização das diferenças, o que pode levar a conformação (GUARESCHI, 2000), pois se todos são em alguma medida diferentes, não se justifica a luta por igualdade. Ainda, a única personagem que tem sua cor marcada é a menina negra, que o poema indica que não quer ter essa cor de pele. É como se a diversidade fosse trabalhada, mas sem abandonar o tipo ideal, isto é, o branco, tomado como norma de humanidade ao mesmo tempo em que todos os outros são tomados como diferentes (GIROUX, 1999). O tipo branco é encarado como representante da espécie humana e, ser gordo, ruivo, alto, ou mesmo negro são variações desse tipo humano ideal. O branco não é tratado como uma possibilidade pelo discurso. Ele é, assim como as pesquisas com livros didáticos têm apontado, sinônimo de neutralidade racial (ROSEMBERG; BAZILLI; SILVA, 2003). O livro Aprendendo Sempre também apresentou um conjunto de ilustrações para retratar as marcas de identidade de diferentes povos. O que nos chamou a Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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atenção com relação aos diferentes personagens apresentados como exemplo é que nenhum deles é branco (Figura 3). Interpretamos tal silêncio (SILVA, 2005) acerca do corpo branco como uma estigmatização de corpos não-brancos. Corpos não-brancos já são marcados pela sua cor de pele (BELELI, 2005), e a ausência desses corpos com marcas de identidade na referida ilustração reforça o estereótipo da cor de pele branca como aquela que representa a neutralidade de cor/raça entre os grupos humanos. Figura 3. Personagens marcados.

FONTE: Aprendendo sempre (VESENTINI; MARTINS; PÉCORA, 2009, p. 28).

O livro Asas para Voar (SIMIELLI; CHARLIER, 2009) também apresentou uma ilustração (Figura 4) em que 2 meninos negros, 1 menino amarelo, 3 meninas brancas e

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3 meninos brancos ilustram um texto sobre diversidade. Trata-se de um trecho de um poema: “Um é feio/ Outro é bonito / Um é certinho / Outro, esquisito / Um é magrelo / Outro é gordinho / Um é castanho / Outro ruivinho”. Figura 4. Personagens em contextos de diversidade.

FONTE: Asas para voar (SIMIELLI; CHARLIER, 2009, p. 26).

Em nenhum momento esse excerto refere-se à cor dos personagens. Entendemos que essa é uma forma de se articular a diferença existente entre os personagens de modo a igualar diferenças como cor de cabelo, ser magro ou ser gordo e até mesmo julgamento de beleza dos personagens como se estivessem no mesmo plano de discussão de diferenças raciais. Em outras palavras, interpretamos como uma banalização ideológica das diferenças. Na amostra, consideramos que alguns casos de valorização da diversidade atuaram de maneira positiva Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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quanto a personagens negros e brancos. O livro Viver e Aprender (BRANCO; LUCCI, 2008) apresentou um exemplo em que a diversidade foi trabalhada sem que o personagem branco fosse tomado como o tipo humano ideal. Na Figura 5 são apresentadas as fotografias de rosto de uma menina negra, um menino amarelo, um menino indígena e um menino branco. Todos os personagens apresentados têm nome e idade. Figura 5. Valorização de quatro cores ou etnias brasileiras.

FONTE: Viver e aprender (BRANCO; LUCCI, 2008, p. 12).

Mas mesmo a valorização da diversidade racial do brasileiro não ocorreu sem ambiguidade. O livro Porta Aberta apresentou um exemplo de valorização da diversidade racial do brasileiro em uma mesma família. A ilustração e o texto que a acompanha são um elogio à mestiçagem (mistura de grupos raciais diferentes) brasileira. De acordo com Telles (2003), um dos pilares do mito da democracia racial brasileira é a existência real da mestiça-

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gem, isto é, existe uma mistura entre brancos e negros no Brasil maior que em países como os Estados Unidos, mas essa mistura está concentrada nas camadas mais baixas de renda e a pele branca tende a ser a mais valorizada. Considerando as ilustrações e o texto, de certo modo o mito da democracia racial está sendo evocado: não há conflitos entre brancos e negros. O texto valoriza a cor-etnia dos personagens da ilustração ao descrever os traços de cada um deles. A história da família começa a partir de um casal negro apaixonado. Há certos momentos de estranhamento da diferença entre as pessoas no texto: o homem negro puxa as tranças da mulher negra; ao mesmo tempo, o texto compara o cabelo negro ao pelo de carneiro (o que é uma comparação com um animal, deslocamento dos atributos deste para o homem), e o sorriso do homem negro se destaca em seu rosto. Também chama a atenção que os olhos verdes são elogiados no texto. Interpretamos que essa valorização da diversidade racial é ambígua, pois ao mesmo tempo em que valoriza a mistura racial, a sequência de ilustrações parece indicar um futuro cada vez mais branco para a família. Além disso, esse elogio à mistura racial coexiste com a sub-representação de personagens negros nos livros didáticos.

Considerações finais

Neste texto apresentamos o resultado da análise de personagens negros e brancos em ilustrações preRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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sentes em livros didáticos de Geografia para o 2° ano do ensino fundamental recomendados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2010 e o modo como personagens negros são incluídos em contextos de valorização da diversidade. A teoria que adotamos para a análise das formas simbólicas, ideologia proposta por Thompson (1995), foi explorada, tendo em vista o contexto histórico e social em que os livros didáticos analisados foram produzidos. Consideramos útil expandir o conceito de banalização proposto ao quadro de estratégias ideológicas por Guareschi (2000) para interpretar as formas simbólicas que podem atuar de maneira ideológica, apelando para o discurso da igualdade, desconsiderando diferentes eixos de desigualdade que existem em nossa sociedade. Não que diferenças de altura, de idade, de cor/etnia e etc. não possam ser trabalhadas juntas. O problema reside quando tais grupos excluídos são pouco apresentados fora de contextos que destaquem o que os torna diferentes desviantes de um padrão de normalidade, sendo apresentados com ênfase em discursos de igualdade banalizada. Tais discursos, em nossa interpretação, resultam da busca dos produtores dos livros didáticos pela adequação às demandas dos editais do PNLD. Mas se atentarmos para o que o edital dos livros de 2010 diz e o que é apresentado nos livros (2,9 brancos para cada negro), constatamos que os livros ainda não se adéquam as demandas dos editais; e na tentativa de evitarem preconceitos acabam por perpetuarem a racialização do negro. Os interesses das editoras pela adequação podem ser entendidos, via de regra, como interesses de mercado: manter a concentração do lucrativo mercado

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de livros didáticos brasileiro. Como argumenta Cassiano (2007), isso também está relacionado a uma contradição: apesar do Brasil não ser um país de leitores é um excelente mercado para as editoras de livros didáticos graças à compra governamental e as dimensões da educação brasileira. Sendo assim, a agenda antirracista, além de cobrar maior inclusão de negros nos livros didáticos deve estar atenta aos modos como essa inclusão vem sendo feita, para que a racialização e a estigmatização do negro, aliadas a neutralidade do branco, não permaneçam no discurso dos livros didáticos.

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NEAB Capítulo 8

OS DISCURSOS PRODUZIDOS SOBRE OS DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM O USO DO LIVRO DIDÁTICO

Karina Falavinha Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Capítulo 8 Os discursos produzidos sobre os direitos de crianças e adolescentes com o uso do livro didático

Karina Falavinha1 Mas, se as formas simbólicas assim produzidas servem para sustentar relações de dominação ou para subvertê-las, se servem para promover indivíduos e grupos poderosos ou para miná-los, é uma questão que só pode ser resolvida examinando como essas formas simbólicas operam em circunstâncias sócio-históricas particulares, como elas são usadas e entendidas pelas pessoas que as produzem e as recebem nos contextos socialmente estruturados da vida cotidiana. John B. Thompson (2009, p. 89)

Introdução

O debate sobre os direitos de crianças e adolescentes emerge, a partir do século XX, nos países vinculados à tradição ocidental de matriz europeia, muito embora 1  Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR, 2013) Pedagoga pela Faculdades Integradas do Brasil. Desenvolve pesquisas que abordam temáticas relacionadas aos direitos humanos, em especial os direitos de crianças e adolescentes/ jovens, como também sobre construção social da infância e juventude, livros didáticos, relações raciais. Atualmente é professora no curso de Pedagogia do Centro Universitário do Brasil (UNIBRASIL).

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o reconhecimento de tais direitos encontra-se atravessado por tensões e contradições que se estendem aos dias atuais. Ao falarmos sobre tais direitos, encontram-se intrínsecas a esse debate, representações da infância que a elegem enquanto ator social, assumindo o estatuto de sujeito de direitos e, portanto, tendo a garantia dos direitos de provisão, proteção e os de participação, os quais foram preconizados pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança de 1989, conforme apontado por Carmem Lúcia Sussel Mariano (2010). Concomitante, a existência de tais contradições integra a discussão sobre tais direitos, uma vez que, a ideia de proteção explicitada tanto na Convenção como pelo Estatuto da Criança e do/da2 Adolescente (1990) se confronta com o referencial de autonomia à criança proposto por ambos os marcos legais. Com base nos aportes teóricos sustentados pelos Estudos Sociais da Infância, consideramos que crianças constroem cultura e história, de forma que participam ativamente nas relações e nas práticas sociais (JENS QVORTRUP, 2005). Sob esse prisma, portanto, apresentamos no referido texto, uma síntese dos resultados da pesquisa3 que se integra às investigações desenvolvidas pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná (NEAB-UFPR). O estudo teve como mote central compreender os discursos produzidos sobre a criança sob o estatuto de sujeito de direitos, por meio do uso do Livro Didático 2  Estudos de gênero pós-estruturalistas preconizam a possibilidade de “desconstrução” da linguagem predominantemente masculina por meio da utilização também do genérico feminino. Dessa forma, no referido texto contemplaremos ambos os genéricos. 3  A pesquisa de mestrado foi realizada no período de 2011 a 2013, por meio do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Paraná (UFPR). O trabalho de campo foi desenvolvido entre os meses de abril a dezembro de 2012. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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de Língua Portuguesa (LDLP) do 5º ano do Ensino Fundamental (EF), buscando analisar se ocorrem relações de hierarquia etárias. O estudo também vai ao encontro com as investigações que se reportam a discutir as relações que se consolidam no espaço escolar, dentre elas e, em particular, aos usos4 que têm sido feito do LDLP por professores/as e alunos/as (Alain CHOPPIN, 2004). O Livro Didático é entendido enquanto um dos elementos principais que constituem a cultura escolar (Jean Claude FORQUIN, 1993) e, sobretudo, um meio de comunicação que possui um grande poder de circulação (Paulo Vinicius Baptista da SILVA, 2005) veiculando um conjunto de textos, imagens, desenhos, fotos e personagens que produzem sentidos para quem os utiliza. Para o desenvolvimento do corpo teórico e metodológico, a pesquisa se ancorou na teoria de ideologia de John Brookshire Thompson (2009) e no método proposto pelo mesmo autor, a Hermenêutica de Profundidade (HP), que se encontra acompanhada, neste estudo, pelo Enfoque Tríplice, um enfoque específico que propõe ao pesquisador/a examinar de forma mais ampla a produção, difusão e recepção de formas simbólicas (THOMPSON, 2009). Em associação, adentramos na política educacional do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de forma a analisar o processo de produção, difusão e recepção desse material, concomitante à produção de discursos sobre os direitos de crianças e adolescentes; à difusão de tais discursos e 4  O termo “usos” está inscrito nas relações que professores/as e alunos/as (re) estabelecem com os Livros Didáticos em seus cotidianos escolares, implicando tanto no uso constante do LD para nortear as aulas, bem como no não uso (desuso) deste material (FREITAG; MOTTA; COSTA, 1993).

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a apropriação dos mesmos pelos atores envolvidos em sala de aula, professora e crianças. Para o trabalho empírico e exploratório, apropriamo-nos de entrevista semiestruturada com quatro professoras do 5.º ano de duas Escolas Municipais da Região Metropolitana de Curitiba – uma que utilizava o Livro Didático (LD) e outra que não se apropriava do mesmo. Dessa forma, as observações e as gravações de cinco aulas de Língua Portuguesa, ocorreu na escola que fazia uso do LD em sala. Realizamos análise qualitativa dos dois Livros Didáticos (com uso e sem uso) e também, examinamos o Guia de LD de 2010 de Língua Portuguesa e o Edital de Convocação para Inscrição no Processo de Avaliação e Seleção de Obras Didáticas para o PNLD de 2010. Para a contemplação das vozes das crianças, analisamos sete registros fotográficos referentes a uma atividade de um Livro Didático de Língua Portuguesa. Partindo das colocações sobre o gênero enquanto construção social, postuladas por Joan Scott, Rosemberg (1996) considera que a idade é categoria útil para se analisar as desigualdades entre adultos e crianças. Nessa configuração também se encaixa a categoria adolescência entendida como construção social e, tal qual a infância, grupo subordinado ao adulto. Rosemberg (1985) destaca ainda que a infância adquire valoração na interação com a sociedade adulta, sendo configurada pela referência do sujeito adulto que ainda não é. Portanto, a infância é categoria relacional, à medida que exprime o envolvimento com o outro adulto, em que a relação social depende desse outro para se corporificar. A infância possui uma dinâmica Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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específica num complexo sistema de imbricações com as categorias de classe, gênero, raça e etnia (ROSEMBERG, 1985, 1996). Assim sendo, o trabalho caminhou no sentido de compreender as hierarquizações de idade estabelecidas nas quais produzem desigualdades entre adultos e crianças, mas não deixando de apontar formas outras de desigualdade. A infância, por sua vez, é categoria estrutural, em que a “idade” deve ser examinada em relação aos fatores sociais que se encontra inserida (QVORTRUP, 2002). Recolocando o argumento para a metodologia thompsoniana, consideramos profícuo dizer sobre a relevância de considerar a infância como grupo etário que é situada e significada por diversos fatores sociais implicados em contextos específicos. De acordo com Thompson (2009), os contextos se caracterizam de muitas maneiras, ao mesmo tempo em que em cada um se concentram especificidades. Mantenedores de formas simbólicas (discursos e práticas), os contextos podem ser perpassados ou não por relações de dominação. Podemos dizer que nos contextos sócio-históricos encontramos vários significados sobre o fenômeno da infância, maneiras distintas de vivenciá-la, como também várias formas e fórmulas de dominá-la. Nesse sentido, apreendemos os discursos (formas simbólicas) sobre os direitos das crianças e adolescentes veiculados pelo contexto particular do Livro Didático em uso na sala de aula, a fim de analisarmos se tais discursos produzem e sustentam relações de dominação de adultos sobre crianças. Na sequência a seguir, apresentamos os resultados compilados que integram a análise formal ou discursiva

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da referida pesquisa, iniciando a partir das considerações sobre o Guia e o Edital de Língua Portuguesa do PNLD de 2010.

1. O guia do livro didático de língua portuguesa e o edital do PNLD de 2010

O Edital do PNLD de 2010, elaborado em 2007, com o período de inscrição de obras didáticas entre o mês de janeiro e o mês de maio de 2008, possui como objetivo a convocação de titulares de direito autoral, para participar do processo de avaliação e seleção de Manuais Didáticos. Ou seja, um documento elaborado para o acesso da editora servindo como um orientador à equipe técnica para a produção dos Manuais. O Guia de LDLP de 2010 é destinado aos professores e professoras e traz orientações pedagógicas e metodológicas sobre o Livro Didático do/a aluno/a, bem como sobre o Manual do/a Professor/a. Compõe-se de duas partes, a de Letramento e Alfabetização e a de Língua Portuguesa. A parte de Letramento possui 141 páginas e traz em seu sumário tópicos sobre o Ensino Fundamental de nove anos e o ciclo de alfabetização inicial, bem como critérios de avaliação para as coleções e resenhas de 19 obras. Esta parte indica as resenhas de LD voltados ao 1.º e 2.º ano do EF, séries que possuem como princípio educativo, apontado no Guia, a alfabetização matemática e a linguística. O Guia foi elaborado em 2009 para atender o ano de 2010. Ambos trazem orientações Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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pedagógicas, metodológicas e critérios de escolha para o processo de avaliação dos Livros Didáticos. Quanto às obras de LP destinadas aos três últimos anos do primeiro segmento do EF, 43 foram inscritas, dentre elas, 19 foram excluídas (44,18%) e 24 (55,81%) foram aprovadas. De acordo com o Guia, no ano de 2010, em comparação com anos anteriores, houve um menor percentual de aprovação de obras didáticas. Também, o Guia enfatiza que entre as 24 obras aprovadas, “metade delas aparece no Guia pela primeira vez”, havendo um alto índice de renovação da produção editorial (BRASIL, 2009, p. 176). Considerando o “novo Ensino Fundamental5”, o Guia indica que “os cinco anos iniciais” são um período decisivo à criança, no que diz respeito à sua permanência e sua progressão nos estudos, e sugere que a nova estruturação do EF dá a possibilidade de ampliação e diversificação de formas de se planejar o processo de escolarização do/a aluno/a, que passa a ingressar na escola com seis anos. Dessa maneira, o Guia aponta que se manifesta, [...] na escola, uma demanda de grande potencial renovador: reorganizar a vida escolar do aluno do ensino fundamental de forma a acolhê-lo ainda como criança; mas colaborar de forma significativa, ao longo de nove anos, para a sua formação como jovem cidadão (BRASIL, 2009, p. 165, grifos nossos).

5  Em decorrência da Lei 11.274, de 06/02/2006, que estipula a ampliação do número de alunos/as nas escolas e um tempo maior de permanência destes/as.

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Podemos observar que a ideia da condição da criança considerada acima se refere à criança de seis anos e à contribuição do processo de escolarização para a formação do jovem cidadão, de modo que não aponta a ideia da criança cidadã. O discurso acaba favorecendo um olhar voltado à criança de que ela ainda não é, ela virá a ser (ROSEMBERG, 1985). Entende-se que a formação que terá durante os nove anos tem como meio a criança aluno/a para se atingir futuramente o/a jovem cidadão. No Edital do PNLD 2010, aborda-se a necessidade de uma readequação no ensino e na escola, por conta da entrada da criança de seis anos no EF, nos seguintes elementos: na gestão, no projeto pedagógico6, na avaliação, no currículo, na formação continuada de professores, no tempo, no espaço, nos conteúdos e na metodologia. No Edital também é mencionado como relevante à readequação na escola os “conceitos de infância e adolescência” (BRASIL, 2010, p. 27), embora não haja uma definição explícita desses conceitos. Além disso, o Edital aponta que a mudança do EF “tem por objetivo respeitar os ritmos dos alunos de seis e sete anos” (BRASIL, 2010, p. 27), no que se refere ao processo de alfabetização. Observamos que a explicação é mais completa no Edital, pois tais informações não aparecem no Guia. A criança, no decorrer de todo o texto do Guia, é entendida como aluno/a, de modo que a expressão “criança” é citada pouquíssimas vezes. Criança e aluno/a se (con) fundem em um só. O termo mais recorrente encontrado está no genérico masculino, “aluno”, de modo que 6  Não é mencionado o termo Projeto Político-Pedagógico no Edital. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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não foi encontrada nenhuma expressão que contemple o genérico feminino. No Edital, a linguagem também é exclusivamente masculina. No Guia, a criança é mencionada como “sujeito” apenas em âmbito escolar. Isso se apresenta inclusive em um dos objetivos do EF mencionados no Guia, o de [...] inserir a criança como sujeito pleno do universo escolar e, portanto, levá-la a compreender as particularidades da escola, num processo que não poderá desconhecer nem a singularidade da infância, nem a lógica que organiza o seu convívio social imediato (BRASIL, 2009, p. 166).

Não há uma explicação mais detalhada sobre o que seria o conhecimento da singularidade da infância, expressão que por si só compromete a ideia de uma pluralidade da infância. No texto transcrito, a criança figura como objeto, pois “é levada” a compreender, ou seja, há uma contradição entre a afirmação da criança como sujeito pleno e o papel social que o discurso lhe confere. Ainda como um dos objetivos do EF, o Guia aponta “garantir seu acesso qualificado no mundo da escrita” (BRASIL, 2009, p. 166). Observamos aqui que a questão da autonomia aparece diretamente ligada aos estudos, de tal maneira que deve ser resultante, também, da fase de consolidação do processo de alfabetização, “desenvolver na criança a autonomia progressiva nos estudos” (BRASIL, 2009, p. 166). No Edital do PNLD 2010, por exemplo, é apontado a relevância do brincar para o/a aluno/a de seis anos. “Os

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alunos de seis anos ainda estão em um momento da vida em que o brincar é parte inerente de seu desenvolvimento [...]” (BRASIL, 2007, p. 27), todavia não sugere o brincar para idades posteriores, fomentando a ideia de que é uma atividade necessária apenas a idades anteriores à destacada. No entanto, é pertinente frisar que o brincar já é apontado no artigo 16 do ECA como um dos aspectos de direito à liberdade da criança: “brincar, praticar esportes e divertir-se” (ECA, 1990). Entretanto, mesmo no ECA, o direito de brincar encontra-se ligado à ideia de uma atividade de lazer e de diversão, de forma que não é apontado também como atividade norteadora da prática pedagógica. Consideramos que, nesse sentido, o discurso apresentado pelo Edital reforça a ideia de que o brincar é voltado apenas para crianças pequenas, e no ECA, o brincar configura-se como pertencente somente à diversão e não como uma prática que pode estar inserida também em âmbito escolar. No Guia, sobre a relevância do brincar nada é mencionado. Com relação aos critérios gerais de avaliação do LDLP, critérios considerados comuns a todas as disciplinas, o Guia aborda cinco como requisitos indispensáveis, na seguinte sequência: coerência e adequação metodológica; respeito às especificidades do Manual do Professor; adequação da estrutura editorial e dos aspectos gráfico-editoriais; correção dos conceitos e informações básicos; e observância de preceitos éticos, legais e jurídicos. Na entrevista com as professoras sobre os critérios para escolha do LD, todas as respostas se remeteram a critérios específicos do ensino de LP. As três professoras argumentaram que o processo de escolha realizado em Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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2009 manteve aparentemente um caráter autônomo no que se refere à escolha, entretanto, frisaram que alguns livros foram indicados pela Secretaria de Educação do Município, não havendo, portanto, muitas opções de escolha pelas professoras. De início, destacaram que o livro de Língua Portuguesa “escolhido” por elas, no ano de 2009, não foi o que chegou à escola, mas ressaltaram que o livro enviado estava entre “os indicados” pela SEMED. As professoras acrescentaram ainda que, em anos anteriores, a segunda opção de livro é a que chegou à escola, e, portanto, poucas vezes a primeira foi contemplada. Também disseram que leram superficialmente o Guia para apoiar o processo de escolha, salientando que, no contato com ele, consideravam relevante a leitura dos critérios trazidos pelo documento; entretanto, afirmaram não conseguir ler todas as informações contidas por falta de tempo, devido ao acúmulo de atividades dentro e fora da escola. Dessa forma, apontaram como primeiro critério para avaliação do LD a relevância deste estar configurado de acordo com a proposta curricular do Município. Por segundo, consideraram “a proficuidade e a diversidade dos gêneros textuais”, principalmente em relação à “interpretação e ortografia”, com preferência de textos que denotem certa dificuldade nas atividades. Em terceiro, comentaram como relevante a necessidade de o livro não possuir imagens muito infantilizadas. Para elas, imagens infantilizadas se referem a “textos com desenhos infantis”. Escolhem textos que não possuam essas imagens, preferindo contos e poemas “que façam o aluno7 pensar nas en7  Por conta da fala da professora mantivemos o genérico masculino na frase.

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trelinhas”, com outros tipos de imagens. “Contos clássicos, por exemplo, não chamam mais a atenção dos alunos”, disse uma delas. Outra frisou que no primeiro semestre trabalhou com contos africanos a partir de livros de literatura. Entre as três, apenas uma trabalhou com este tipo de conto. A questão destinada a saber sobre as percepções das professoras sobre a infância teve respostas que se remeteram a questões ainda ligadas às imagens contidas no LD, de modo que argumentaram sobre a importância de o LD atrair a atenção dos/as alunos/as, contendo, por exemplo, “imagens reais de crianças, em lugares que são próprios à criança, como brincando no parque ou estando na escola”. Apesar de as professoras apontarem o brincar e o estudar, que são direitos reconhecidos da criança, ao mesmo tempo, em seus apontamentos, se fortalece o discurso de que o lugar da criança é prioritariamente a escola e o parque, de forma que não houve a referência da atuação da criança em outros espaços sociais. Com relação aos gostos e escolhas das crianças quanto ao LD, as professoras responderam que, pelo contato diário com as crianças, acabam percebendo o que lhe agradavam ou não, como é o caso dos contos clássicos acima citados. Mas, afirmaram que nunca perguntaram diretamente às crianças sobre as suas vontades quanto à escolha do livro, ou seja, o adulto acaba falando pela criança. Podemos destacar que no discurso das professoras houve referência a critérios considerados específicos, ou seja, critérios voltados aos objetivos da LP, todavia, não houve a referência, por nenhum momento, à imporRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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tância de imagens e textos que privilegiem os direitos da criança ou de textos e imagens que não veiculem preconceito e discriminação de raça, gênero e classe. No Guia, os direitos de provisão, proteção e, em especial, os de participação não são mencionados, nem mesmo como princípios educativos. Não é referenciado o Estatuto como legislação vigente, no entanto, a não presença dele no LD se consolida como um critério eliminatório apresentado na questão 27 do Guia, pertencente ao anexo 2: “A obra em análise obedece aos dispositivos legais pertinentes (Constituição Federal, Estatuto da Criança e do Adolescente e outros)?” Convém ressaltar que tal informação poderia ser privilegiada antes no texto do documento, mas é apresentada apenas no anexo. No Edital, é enfatizado que os Livros Didáticos devem propiciar o diálogo, o respeito e a convivência e devem contribuir “ao crescimento pessoal, intelectual e social dos atores envolvidos no processo educativo, atuando como propagador de conceitos e informações necessários à cidadania” (BRASIL, 2007, p. 29). Para a construção da cidadania o Edital aborda que os livros devem: 1. promover positivamente a imagem da mulher, considerando sua participação em diferentes trabalhos e profissões e espaços de poder; 2. abordar a temática de gênero, da não violência contra a mulher, visando a construção de uma sociedade não sexista, justa e igualitária; 3. promover a imagem da mulher através do texto escrito, das ilustrações e das ati-

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vidades dos livros didáticos, reforçando sua visibilidade; 4. promover positivamente afrodescendentes e descendentes de etnias indígenas brasileiras, considerando sua participação em diferentes trabalhos e profissões e espaços de poder; 5. promover positivamente a cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros, dando visibilidade aos seus valores, tradições, organizações e saberes sócio-científicos; 6. abordar a temática das relações étnico-raciais, do preconceito, da discriminação racial e da violência correlata, visando à construção de uma sociedade antirracista, justa e igualitária (BRASIL, 2007, p. 29).

Tanto no Edital, mas, preferencialmente, no Guia de LDLP/2010, que norteia o processo de escolha do LD pelos/as professores/as, essa questão é mantida na invisibilidade. Portanto, inferimos que em ambos os documentos a questão dos direitos das crianças é mantida em silêncio, e esse silêncio é perceptível também nos critérios proferidos pelas professoras. Nesse sentido, as considerações indicam mais distanciamentos do que aproximações quanto ao reconhecimento da criança enquanto cidadã8. Desse modo, alça8  Cabe ressaltar que, a partir do edital do PNLD de 2011, a inserção da criança e adolescente é colocada dessa forma: “promover a educação e cultura de direitos humanos, afirmando o direito de crianças e adolescentes” (BRASIL, 2008, p. 36). Todavia, a afirmação recai numa compreensão muito genérica dos direitos humanos, de forma que a expressão direito relacionada a tais sujeitos encontra-se no singular e não aponta especificidades e particularidades dos direitos destinados a crianças e adolescentes. Nesse sentido, podemos levantar a hipótese de uma continuidade do silêncio em editais posteriores a 2010. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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mos a alternativa de uma inserção mais completa das categorias criança e adolescente em próximos Editais, de forma a refletir sobre a possibilidade de tal questão se consolidar como um critério de avaliação privilegiado pelas editoras que produzem os Livros Didáticos, bem como pelas professoras que escolhem tais livros. Suscitamos tal inserção da seguinte maneira: 7. promover positivamente a imagem da criança e adolescente, considerando sua participação em diferentes espaços de poder; 8. abordar a temática das relações de idade, da não violência contra a criança, visando à construção de uma sociedade não adultocêntrica, justa e igualitária; 9. promover a imagem da criança e adolescente através do texto escrito, das ilustrações e das atividades dos Livros Didáticos, reforçando a sua visibilidade; 10. promover positivamente a imagem da criança e adolescente afrodescendente e descendente das etnias indígenas brasileiras, considerando sua participação em diferentes espaços de poder; 11. promover positivamente a cultura infantil afro-brasileira e das crianças e adolescentes indígenas brasileiros/as, dando visibilidade aos seus valores, tradições, organizações e saberes sociocientíficos.

2. Análise dos livros didáticos

Apresentamos a descrição realizada de dois Livros Didáticos: o Manual do/a aluno/a (Projeto Buriti) e o Ma-

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nual do/a Professor/a (Projeto Conviver), apontando os discursos sobre os direitos das crianças e adolescentes veiculados por eles, bem como de temas associados. O livro reproduz uma série de textos que foram originalmente publicados em jornais e revistas. Identificamos uma “midiação” dos textos didáticos que ocorre, via de regra, com a simples transposição de textos em função de sua finalidade didática, por exemplo, ao tratar de diferentes gêneros textuais, mas sem se preocupar com uma adaptação crítica de textos que foram originalmente produzidos para adultos e com finalidade comercial (para vender mais jornais ou mais revistas). Podemos também dizer, que há preocupação no LD quanto ao discurso sedutor da propaganda, no entanto, não há no que se refere aos objetos comerciais dos discursos noticiosos. O tema dos direitos da criança e adolescentes é tratado de forma indireta, por meio da discussão sobre o trabalho infantil numa abordagem que enfatiza o direito de adolescentes ao “não trabalho”. Nessa perspectiva, Silva (2005) identificou em um conjunto de LDLP para a mesma série/ano o tema “trabalho infantil” como tão frequente que se utilizou da expressão “jornalismo de cruzada”, ou seja, identificou no conjunto de livros uma tendência à abordagem da infância de forma similar à abordagem midiática, com a transposição dos mesmos temas e vícios, nesse caso, em específico, com a tendência à estigmatização da infância pobre (ANDRADE, 2001). Nesse sentido, os Livros Didáticos analisados veiculam imagens que remetem à estigmatização das crianças ilustradas, por dois vieses: o da associação prioritária Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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do trabalho infantojuvenil com a condição de classe, se apresentando como produto da pobreza, concomitante à associação com a raça, em que a infância apresentada é exclusivamente negra, reiterando resultados dos estudos realizados por Silva (2005) e por Freitas (2004). Nas imagens, textos e personagens analisados, identificamos certas rupturas, em número menor, de discursos voltados aos direitos das crianças, que se direcionaram a apresentá-las na efetivação de alguns direitos, como direitos de se manifestar, de participar, de se apaixonar e de se expressar. No entanto, identificamos mais permanências de discursos, principalmente nos textos e quadrinhos, que veiculam, de início, certa ideia de participação dos/as personagens crianças, mas no decorrer dos textos constatamos que o direito de participação consiste em atos de resistência que se encontram acompanhados por atos de desistência de princípios, por consequência de ações de dominação dos/as personagens adultos/as. Também percebemos que unidades de leitura que apresentavam a participação ativa das crianças, como o direito de se manifestar e o de se apaixonar, apresentam permanências relacionadas a outras desigualdades como as de raça e as de gênero. As ações dos/as personagens infantis encontram-se condicionadas à decisão e à vontade dos/as personagens adultos de forma a coibir o direito de escolha das crianças. A maioria dos textos apresenta personagens crianças prioritariamente acompanhados de personagens adultos, como mãe, pai e professora. No que se refere ao uso do Livro Didático de Língua Portuguesa, este norteou todo o desenvolvimento das aulas observadas sobre os direitos das crianças, de

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modo que identificamos certas práticas que interferiram diretamente na interpretação dos discursos proferidos pela professora. Na relação entre professora e crianças, os discursos da professora prevalecem em detrimento dos discursos das crianças, de forma que o direito de participação destas encontra-se regulado por meio da centralidade do discurso da professora. Um exemplo, apresentamos a seguir, em que as crianças tentam expressar sua interpretação quanto ao comentário de uma reportagem que a professora assistiu sobre trabalho infantil. A conversa foi direcionada a abordar as instituições que trabalham com “crianças desfavorecidas”. No entanto, a discussão é contemplada pela fala da professora, que acaba utilizando um ditado popular para explicitar a situação de tais crianças. As crianças questionaram para obter respostas consistentes e, haja vista, não as obtiveram. Podemos destacar certa hegemonia na interpretação da discussão, bem como no discurso da professora que, via de regra, se apresenta bem mais longo e duradouro que o das crianças: Cças: Como será que seria ajuda deles? Cças: Dá comida... Cça: Dá umas roupas pra eles. P: Não é bem por aí. Nessas instituições bixixxx... posso falar? Presta atenção. Nessas instituições gente, não é só dá comida, vai lá comer, mas nós temos que ensinar a pescar, não só dá o peixe. Cça: Pescar?! P: É. Cça: Pescar peixe? Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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P: Tem que ensinar a pescar o peixe e não ir distribuindo o peixe. O que é ensinar a pescar? Nessas instituições tem escolinha de futebol né, natação, quadras de esporte. Cça: ( ) P: Lá eles descobrem atores, autores é, atletas... e jogadores de futebol, jogadores de vôlei, e eles estão ali, ensinado, educando... dando a essas crianças... Tem uns lugares que são de albergues. Lá sim as pessoas vão lá pra receber comida, vai dormir pra receber um apoio, mas aquilo ali é pra sempre? É educativo? Não. É só um socorro de imediato. Agora quando é uma instituição, normalmente eles vão para pedir o que? Para poder encaminhar essas pessoas, ajudar. Têm várias igrejas. Então, essas reportagens, geralmente são para poder mobilizar esse tipo de coisa.

Também identificamos a predominância de um direcionamento interpretativo entre os discursos do livro e os discursos das crianças em prejuízo de uma retórica mediadora, sobretudo por tal direcionamento carregar uma prática de leitura contraditória sobre os direitos das crianças advinda pela professora. Sob esse prisma, a ideia predominante é que os direitos se encontram intrínsecos ao dever, uma vez que, pela interpretação da professora, são direitos a serem conquistados pelas crianças através de ações que remetem ao dever: dever de estudar, de ser responsável, de não faltar às aulas, de ser bom aluno/a, indo no sentido contrário à ideia de que esses direitos são assegurados às crianças constitucionalmente. Portanto, detectamos nos discur-

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sos advindos da professora uma estratégia da ideologia atuando na direção de deslocar os sentidos sobre direitos considerados universais às crianças que passam a ser compreendidos como resultantes das vontades e quereres pessoais. P: O que que é qualidade? Hã? Olha, nós aqui do município estamos tentando passar para o aluno uma educação de qualidade, só que tem muitos que nem querem saber de nada. Pensa que só é chegar aqui na sala, por a poupança na cadeira, que já resolve a situação. Cça: Professora, professora? P: Se não tiver vontade, e não tiver interesse vai ter uma educação de qualidade?

A professora acaba reiterando que, para garantir uma vida melhor no futuro, a criança necessita estudar muito, de forma que o discurso tendeu para um viés normatizador, se aproximando, por sua vez, da responsabilidade e do compromisso exclusivo de alunos/as e pais quanto à garantia da condição de estudar: P: ( ) o que é preciso ser feito, o que é preciso ser feito para que tenham uma vida melhor no futuro? Cça: Professora! Cça: Eu sei. Estudar bastante. P: Exatamente ser responsável. [como os estudos das crianças e dos adolescentes devem ser garantidos? Ôooo gente, os estudos das crianças não é ( ) agora o aluno começa a faltar muito a professora tem que ir lá na secretaria, ligar pros pais e ameaçar. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Cça: Ameaça? Cça: Tipo bate? AS: Ameaça P: Se ele não vir pra aula eu vou ligar para o conselho tutelar, aí o pai fica manda o filho para escola por quê? É o único respaldo que nós temos.

O discurso que recai na compreensão da responsabilização dos pais quanto à educação de seus/suas filhos/ as, se encontra fortalecida em outro episódio de sua história pessoal, que ela indica como exemplo, como uma possibilidade de os pais acompanharem a vida escolar de seus/suas filhos/as: P: É uma obrigação da mãe e do pai, principalmente hoje em dia que as coisas estão muito difíceis. É observar o filho diariamente. Eu nunca fui de falar assim que eu não confiava nos meus filhos. Eu confio muito nos meus filhos. Confiava e confio. Só que, às vezes, as más companhias são terríveis. Cansei de chegar disfarçadamente pra que meu filho não ficasse ofendido comigo, mas que eu não podia fechar meus olhos pra isso. Pega mochila, pegar e olhar os bolsos, olhar a carteira... Cça: Professora! P: Olhar as coisas por quê? Porque eu não queria meus filhos em má companhia. Cça: Professora, você disse que chegava meia-noite eles já estavam dormindo e ( ) pra você olhar. P: Isso mesmo. Deixa a matéria todo em cima da mesa pra mim olhar. Era um combi-

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nado nosso. Chegava rapidinho, olhava os cadernos, via as lições do dia, o que eles tinham feito se eles tinham terminado. Se não tinham terminado, deixava um bilhetinho com um papelzinho dentro, olhava agenda, assinava, via o bilhete da professora, isso era sagrado sa- gra- do. Cinco minutos eu perdia, pra não perder várias noites de sono depois, não é verdade?

Outro discurso é reiterado pela professora no que diz respeito aos estudos das crianças que devem ser garantidos pelos pais: P: Como os estudos das crianças e dos adolescentes devem ser garantidos? Os pais têm que ser responsáveis por quê? O município dá todo o material, o município dá a aula, dá o professor, o município recebe o espaço né? AS: Professora? P: Continuando. Não deixa terminar. Tá, então, é nesse sentido que temos, temos que... vocês têm a garantia do bom estudo né? E os pais são obrigados a mandar os filhos para a escola.

Sobre as questões citadas pelo LD e no que se refere às respostas encontradas nas orientações e subsídios ao/a professor/a, observamos a informação de que: As mudanças necessárias são complexas e profundas, por isso, não são fáceis nem rápidas. A má distribuição de renda parece ser Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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um dos motivos mais sérios da exclusão social no mundo inteiro e do pouco atendimento às crianças mais pobres. As políticas públicas em nosso país, em processo de implantação, visando sanar esse problema, precisam ser aceleradas, assim como os programas de inclusão social para os pais, crianças e adolescentes carentes e a geração de emprego (PROJETO BURITI, 2008, p. 102).

Podemos observar que a informação trazida pelo LD encontra-se fragmentada de forma que não sabemos exatamente que tipo de “mudanças” o texto está abordando no início. Também, se remete à referência exclusiva da exclusão social como produto da má distribuição de renda. Aborda sobre a implantação de políticas públicas e sobre a necessidade de uma rápida atuação dessas e dos programas sociais, no entanto, é pertinente frisar que, mesmo com informações de apoio restritas para auxiliar a professora, esta não apoiou sua discussão por meio das orientações trazidas pelo livro. Ainda com relação as questões, o Livro Didático aponta como respostas indicadas: a “[...] má distribuição de renda, a pobreza e a falta de um sistema de educação de qualidade efetiva” (PROJETO BURITI, 2008, p. 101); as crianças não podem estudar pelo cansaço do trabalho e porque não têm tempo para os estudos. Quando adultas não poderão enfrentar o mercado de trabalho por estarem sem escolarização, bem como não terão a oportunidade de ampliar sua cultura; o texto aborda a necessidade da garantia “[...] dos direitos de se alimentar, de viver em ambiente acolhedor e afetuoso, de estudar e brincar” (PROJETO BURITI, 2008, p. 102).

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Tais questões foram resolvidas pelas crianças como atividade para ser feita em casa, de forma que a discussão acima apresentada precedeu à atividade. No que se refere às opiniões das crianças quanto ao trabalho infantil, trazemos registros de duas delas. Para a criança A, para garantir uma vida melhor para crianças e adolescentes, eles/as devem ser responsáveis e estudar bastante. Quanto à garantia dos estudos, isso se dá por meio de “escolas gratuitas e bons professores”. Essa outra aluna considera que, através do trabalho infantil, as crianças e adolescentes prejudicam a coluna e a saúde. Para a garantia de uma vida melhor é necessário “estudar muito para ser alguém”, da mesma forma que “as crianças têm que estudar” para garantir os estudos, no entanto, para a aluna, as crianças que moram longe não estudam. A atenção direcionada das respostas dessas duas alunas se concentra prioritariamente na garantia do direito de estudar pelo próprio ato de estudar, mas não somente por ele, também se efetiva por meio da existência de bons professores. Não obstante, podemos dizer que, de certa forma, os discursos proferidos pelas crianças compactuam com os discursos da professora em sala de aula. Ainda, com relação aos discursos reguladores da professora, que favorecem a questão sobre a responsabilidade das crianças quanto ao direito de estudar, outra situação é apontada, em que ela faz alusão à passagem do 5.º para o 6.º ano, de forma que ressalta a existência de um cenário diferenciado, em que as crianças serão obrigadas a alcançar a responsabilidade.

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lá no sexto ano, lá, se eu não me engano, são 11 matérias e um professor não quer saber se o outro deu trabalho ou deixou de dar. [...] Não fez lição, não fez trabalho, tem que se virar nos 30. Então agora é hora de se virar nos 30 também... segundo semestre, e agora eu vou dar trabalho de história, geografia, de língua portuguesa, e vocês vão ter que correr atrás, vão ter que fazer, porque vão perder nota. Porque vai funcionar assim no ano que vem. Então, a professora de português, não quer saber se tem livro para ler, não sei o que lá. E outra coisa, é só se organizar. É só se organizar, tem gente que termina a aula e ficam conversando, brincando, enquanto você tem muita lição e a água bate na bunda. Você pega um tempinho seu, na hora que você tá aqui, tá conversando, você ta aqui lendo o texto para você aproveitar seu tempo / e em casa não é diferente (ruídos). Porque depois de uma idade você tem que trabalhar, tem que estudar e tem que dar conta. Então, a partir de agora, eu não quero desculpa, quem não fez o trabalho vai ficar com vermelho, porque faz parte da educação, então vamos lá.//

Convém salientar, pela fala anterior, que a professora acaba explorando o argumento da ideia de responsabilidade máxima quanto à permanência nos estudos, sobretudo da progressão neles pelas crianças. Além disso, a professora também se refere, de forma ameaçadora, sobre o fato de que, quem não fizer o trabalho escolar, ficará com “nota vermelha”, pois faz parte da

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“educação”. Atitude que, de certa forma, podemos considerar indo em sentido contrário a uma efetiva educação que privilegie a participação significativa da criança na construção de sua autonomia. Nesse momento, observei que as crianças ficaram quietas e receosas quanto a esse possível cenário apontado pela professora. Na sequência do Livro Didático, outras perguntas são apresentadas com o título “Educação em valores: trabalho infantil”, que apresenta as seguintes questões, que foram lidas coletivamente em sala, copiadas e respondidas pelas crianças nos cadernos: Qual dessas ações é mais importante para você: comer, brincar, estudar, dormir? Em que ordem você as colocaria? Qual delas lhe dá mais prazer? Se você ajuda sua família em algumas tarefas domésticas, isso pode ser considerado trabalho infantil? Você conhece alguma criança que trabalha e, por isso, não pode frequentar a escola? O que você pensa sobre isso? O que você acha possível fazer para acabar com o trabalho infantil? (PROJETO BURITI, 2008, p. 193).

Podemos destacar que, para as crianças, a ação considerada mais relevante é a de estudar, seguida pela ação de dormir e, posteriormente, com a de brincar. Sobre a primeira ação apontada pelas crianças consideramos haver certa compreensão pelas próprias crianças do ofício de aluno, no sentido de que se escolarizar torna-se um processo imprescindível da infância contemporânea, influenciando inclusive na maneira de Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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se relacionar com o mundo (SARMENTO, 2000). No entanto, a experiência da condição de aluno/a apresenta certas contrariedades, pois nem todos/as possuem os mesmos acessos no processo de escolarização. Por conta disso, a escola acaba também atuando na hierarquização das crianças, contribuindo também para a compreensão da infância enquanto uma etapa destinada à preparação (SARMENTO, 2000). Com relação à questão seguinte, as crianças não consideram que ajudar em casa seja trabalho infantil e, para “acabar” com ele, as crianças consideram necessário “chamar a atenção dos pais”, ter mais “trabalho” para eles, como também “mais educação” e que “a lei precisa ser cumprida”. No geral, considerando todas as respostas das crianças, apreendemos que elas apresentam mais semelhanças do que diferenças em relação à discussão incitada pela professora, no que diz respeito a implicações que o TIJ acarretaria nas crianças. O discurso da professora, bem como a menção ao TIJ pelo LD, trazem exemplificações apenas de casos isolados de exploração de mão de obra infantil e juvenil. No livro, as imagens veiculadas figuram situação de crianças voltadas à extrema pobreza, fortalecendo a compreensão do TIJ como consequência única da miséria social, portanto, se apresenta uma relação de exclusão entre TIJ e escola que não se confirma na realidade (FREITAS, 2004). A pobreza não é mencionada de forma direta nos discursos das crianças, mas ela foi considerada um fator ligado à desigualdade econômica como, por exemplo, a necessidade de “ter mais trabalho para os pais”. Po-

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demos pensar, portanto, em uma reprodução e/ou permanência de discursos no que se refere a uma analogia entre livro, discurso da professora e discurso das crianças. Todavia podemos pensar, também, em uma produção e/ou ruptura pelos discursos das crianças no que diz respeito às suas opiniões que, de certa forma, contraria o livro e o discurso da professora, uma vez que uma das formas para acabar com o TIJ é “falar com o governo para tirar essas pessoas” do TIJ, pois “as crianças trabalham e ganham muito pouco” não possuindo, portanto, condições “de pagar a escola para ter bons estudos”. A criança faz menção à participação da criança por meio do trabalho, como também sugere que elas recebam um valor melhor para poderem custear os seus estudos. Em síntese, a relação geracional, entre a professora adulta e as crianças, se consolida como uma relação desigual em que o poder se encontra manifestado pela imposição de discursos reguladores advindos da professora, se constituindo como uma relação de dominação de adultos sobre crianças e, portanto, na acepção de Thompson (2009) tais discursos são considerados ideológicos. As estratégias ideológicas atuaram no sentido de silenciar, por meio da ausência e/ou da pouca informação, o tema contido no LD, como também no sentido da naturalização, em que personagens infantis na relação com personagens adultos se apresentam em condições de subalternidade discursivamente construída como parte integrante do desenvolvimento humano, coadunando, nesse sentido, com os resultados de Freitas (2004), Silva (2005) e Mariano (2010). Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Dessa maneira, identificamos discursos que silenciam a contemplação efetiva da infância de direitos, e que atua no sentido de ocultar relações desiguais. O silêncio é proposto por Silva (2012) como estratégia de construção simbólica ideológica, acrescentado ao modo geral de dissimulação preconizado por Thompson (2009). O silêncio, na presente pesquisa, atuou para estabelecer o sujeito adulto como norma e a ocultar as desigualdades entre adultos e crianças. No que se referem a outras pesquisas, nossos resultados apresentaram algumas compatibilidades. Aproximamo-nos dos resultados da investigação de Jacques (2007), que considera que os discursos produzidos pelos Livros Didáticos instituem relações de poder; bem como os de Hickmann (2008), que considera que a proliferação de discursos em sala influencia a criança na construção de sua subjetividade. As duas autoras preconizam que tais discursos são normalizadores e governam as crianças. Por outro lado, não utilizamos como Hickmann do método etnográfico para captar as impressões das crianças que poderiam revelar tal consideração com mais amplitude. Esta pesquisa também possui resultados que coadunam ainda com alguns resultados de Freitas (2004), Silva (2005) e Mariano (2010), uma vez que constatamos: a associação da discussão dos direitos da criança à infância pobre e negra; o pouco espaço para a autonomia das crianças em sala de aula; formas generalizantes de o Livro Didático abordar a infância, o reforço de posturas adultocêntricas por parte da professora, bem como discursos que acentuam a vulnerabilidade estrutural da infância, principalmente por conta do tema trabalho infantil, veiculado pelo Livro

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Didático. Nossos resultados não compactuaram com os da pesquisa de Bordalo (2006), que evoca, em sua análise, que os Livros Didáticos contemplam a criança como cidadã. Ao contrário, apreendemos que os Livros Didáticos veiculam uma sub-representação da infância de direitos, bem como uma relação de dominação de adultos sobre crianças.

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NEAB Capítulo 9

SOBRE TEORIAS DE RAÇA NO PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO: ACERCA DA IDEOLOGIA E DA RUPTURA DO LEGADO EPISTEMOLÓGICO

Sergio Luisdiscurso do Nascimento Racismo, e Educação: estratégias ideológicas

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Capítulo 9 Sobre teorias de raça no pensamento social brasileiro: acerca da ideologia e da ruptura do legado epistemológico

Sergio Luis do Nascimento1

Introdução

Os atores sociais negros2, organizados em movimentos, constituíram-se, ao longo das décadas do século XX, analistas e operadores de políticas públicas, principalmente porque coube à boa parte dessas lideranças negras a luta pelo movimento antirracista. Lideranças que compreenderam que se tratando do Estado a sua intervenção constitui-se na ação ou na omissão. As intersecções e as correlações de forças se dão nesse campo. Cabe aos atores sociais negros reler e reinterpretar a sua própria história perceberem na anterioridade histórica dos africanos e dos negros da diáspora o reconhecimento dos seus valores e da contribuição histórica que esses proporcionaram à humanidade. A extensão desse texto relaciona-se com a necessidade 1  Doutor em Educação pela UFPR na linha de Políticas Educacionais. Atualmente é professor - Secretaria Estadual de Educação do Paraná e professor de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. 2  Os atores sociais que dialogam com o mundo atual são chamados a interagir e a pensar localmente, sem olvidar, contudo, que necessitam de ferramentas globais, entre elas a suspeita do discurso oficial. Essa ferramenta pode conferir sentido aos atos humanos e possibilitar novo significado à história e seus momentos de evolução e retrocesso.

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de traçar um quadro sócio-histórico aprofundado acerca das teorias raciais na modernidade, bem como a descrição sobre o constructo do racismo epistemológico. Ali se opera a desconstrução do imaginário brasileiro de valores e ideias que subjugam os afro-brasileiros como herdeiros de uma cultura “incivilizada”, “selvagem” e impregnada de fetichismo. As práticas e as atitudes dos atores sociais negros, ao longo de nossa história sócio-racial, desafiam-nos a tensionar as estruturas sociais e a identificar se as assimetrias e as diferenças são sistemáticas ou estáveis. Principalmente quando os sujeitos envolvidos nesse tema deixam de ser objeto de estudo e passam a sujeitos da sua própria história, provocam reflexões como a de Guerreiro Ramos (1965) que, ao escrever a obra de maior visibilidade de toda a sua produção sociológica, A redução sociológica, traça uma perspectiva argumentativa do que pretendemos desenvolver nesse tópico. Para o pesquisador, “quanto mais uma população assimila hábitos de consumo não vegetativo, tanto mais cresce a sua consciência política e maior se torna a sua pressão no sentido de obter recursos que lhe assegurem níveis superiores de existência” (RAMOS, 1965, p.78). Na sua proposição de análise do contexto sócio-histórico do objeto de estudo, Thompson (1995) ajuda-nos a problematizar sobre o estudo das assimetrias. Ao utilizarmos o seu método de análise, permitimo-nos compreender a estrutura social e principalmente identificar quais “manifestações não são apenas de diferenças individuais, mas diferenças coletivas e duráveis em termo de distribuição e acesso a recursos, poder, oportunidaRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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des e possibilidade de realização” (THOMPSON, 1995, p. 367). As estratégias ideológicas do autor3 irão ajudar no exame da construção simbólica que políticos e intelectuais lançaram sobre a marcha civilizatória tendo como referencial a Europa frente ao continente africano e aos seus descendentes “incivilizados sem história”. Como ferramenta de apoio na construção desse texto, utilizaremos o conceito de legado sobre como a nossa elite de intelectuais e de políticos substanciou uma ideia de nação e uma construção da identidade nacional que negava a contribuição e a herança dos africanos e de seus descendentes da diáspora. E o conceito de ruptura da continuidade aborda em que medida e circunstancias o signo desse imaginário permanece no constructo social que atribui aos descendentes do continente africano não possuírem anterioridade histórica. Tal conceito tem como desafio romper com essas categorias que subjugam os personagens herdeiros das tradições culturais do continente africano.

3  Essas estratégias se apresentam sob a orientação de construir e desconstruir referidos discursos nos três modos gerais de operação da ideologia de análise de Thompson (1995), quais sejam: Dissimulação; Unificação; e, Legitimação. A categoria da Dissimulação é observada quando formas simbólicas são representadas de modo que desviam a atenção, ocultando, negando ou obscurecendo as relações de dominação e processos existentes. Este fenômeno ocorre por meio de transferência de sentidos, conotações – positivas ou negativas – de pessoas ou objeto a outros (as). A categoria da Unificação, por sua vez, consiste no processo pelo qual se cria uma identidade coletiva, independentemente das diferenças individuais e sociais, difundindo-se a unidade como simbolização da identidade. Por fim, entende-se por Legitimação a apresentação das relações de dominação como justas e dignas de apoio, isto é, legítimas, baseadas em “fundamentos racionais (que fazem apelo à legalidade de regras dadas), fundamentos tradicionais (que fazem apelo à sacralidade de tradições imemoriais), e fundamentos carismáticos (que fazem apelo ao caráter excepcional de uma pessoa individual que exerça autoridade)” (THOMPSON, 1995, p. 83).

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1. A construção do legado e suas matrizes ideológicas

A onipresença do “racismo europeu” considerava que os africanos e os africanos da diáspora não seriam detentores de discurso político legítimo, como se vê na obra de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1989 [1830]), por exemplo. Para esse autor alemão, a África não é um continente e sim “é um país criança” e está em envolta de uma “negrura da noite, fora da luz da história consciente” (1989 [1830] p.180)4. Para Hegel, não há na África “nenhuma subjetividade e sim somente uma série de sujeitos que se destroem”5 sem história e a sua população “está em estado bruto; configura nesse continente a selvageria e a Barbárie de homens feiticeiros (HEGEL, 1989[1830], p. 182; 184)6. Hegel e outros não pouparam suas críticas à população do continente africano e, diante delas, podemos inferir que suas interpretações direcionadas àquele continente se estenderam a todos os descendentes da diáspora africana. Não é surpresa que boa parte da elite pensante e letrada em meados do século XIX e início do século XX celebraram o pensamento hegemônico pautado no racialismo europeu. É na Europa que surgem as primeiras publicações 4  Segundo Hegel (1989[1830], p. 180): El África propiamente dicha no tiene interés histórico propio, sino el de que los hombres viven allí en la barbarie y el salvajismo, sin suministrar ningún ingrediente a la civilización. Por mucho que retrocedamos en la historia, hallaremos que África está siempre cerrada al contacto con el resto del mundo; es Eldorado recogido en sí mismo, es el país niño, envuelto en la negrura de la noche, allende la luz de la historia consciente. 5  Para Hegel (1989 [1830], p. 182): En esta parte principal de África, no puede haber en realidad historia. No hay más que casualidades, sorpresas, que se suceden unas a otras. No hay ningún fin, ningún Estado, que puede perseguirse; no hay ninguna subjetividad, sino solo una serie de sujetos que se destruyen. 6  Hegel (1989 [1830], p. 184) afirma: En África todos son hechiceros. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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com as bases teóricas do movimento, que defendia a existência de raças humanas e uma hierarquia “natural” entre elas. Tais teorias acarretaram um legado histórico do branco europeu como “grupo étnico-racial dominante e civilizado” em detrimento aos Outros grupos étnicos. Como declara Van Dijk (2008, p.13): Do Norte ao Sul, no México, na Venezuela, na Colômbia, no Peru e, especialmente, no Caribe e no Brasil, as pessoas de origem africana foram sistematicamente inferiorizadas em todos os domínios da sociedade. Preconceitos contra os negros aliados a uma vasta rede de práticas discriminatórias reproduziram, por conseguinte, a pobreza, o baixo status e outras formas de desigualdade social no que concerne ao branco dominante e às elites mestiças.

Posteriormente, dentro da perspectiva de ressignificar e de permitir que os novos atores sociais negros releiam e interpretem a sua própria história, encontramos nos autores pós-colonialistas7 não apenas uma redefinição 7  De acordo com (GIROUX, 1999, p. 49) e com os estudos que estamos realizando, a literatura sobre o anticolonialismo e o pós-colonialismo, é vasta e inclui nomes com suas respectivas obras: Frantz Fanon, The Wretched of the Earth; Black skin, White Masks (Nova York: Grove Press, 1976), Kwame Nkrumah, Consciencism (Nova York: Monthly Review Press, 1964); Albert Memmi, The Colonizer and Colonized (Boston: Beacon Press, 1965); Ngugi Wa Thiong’O, Decolonizing the Mind; Jan Carew, Fulcrums of change (Trenton, N.J: Africa World Press, 1988); Edwar W. Said, Orientalism (Nova York: Vintage Books, 1979); Rinajit Guha e Gayatri C. Spivak, Eds., Selected Subaltern Studies (Nova York: Oxford University Press, 1988); Número especial de Inscriptions sobre ‘Feminism and the Critique of Colonial discourse”, Nºs. 3/4 (1988); James Clifford, The Predicament of Culture (Cambridge: Harvard University Press, 1988); Marcien Towa, Léopold Sedar Senghor: negritude ou servitude? (Yaoundé, Ed. Clé, 1971); Kabengele Munanga, Negritude: usos e sentidos (Belo Horizonte: Autêntica, 2009); Cheikh Anta Diop, Civilisation ou barbárie (Paris: Présence Africaine, 1981); Nkolo Foé, África em diálogo, Àfrica autoquestionamento: Universalismo ou provincialismo? “Acomodação de Atlanta” ou iniciativa histórica, Educar em Revista, Curitiba, Brasil: Editora UFPR, n. 47, p. 175-228, jan./mar. 2013.

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da nova política cultural da diferença, mas o tensionamento e a ruptura desse velho legado que subjugava os africanos e seus descendentes da diáspora africana à categoria de raça inferior. O que se verifica nas últimas décadas é a construção de uma consciência de resistência e de luta pelo respeito da diversidade, por meio de práticas institucionais e epistemológicas que vão além das já constituídas historicamente pelo legado colonialista. É importante ressaltar o comentário de Cornel West (1990) a esse respeito: Distinctive features of the new cultural politics of difference are to trash the monolithic and homogeneous in the name of diversity, multiplicity, and heterogeneity; to reject the abstract, general, and universal in light of the concrete, specific, and particular; and to historicize, contextualize, and pluralize by highlighting the contingent, provisional, variable, tentative, shifting, and changing. Needless to say, these gestures are not new in the history of criticism or art, yet what makes them novel – along with the cultural politics they produce – is how and what constitutes difference, the weight and gravity it is given in representation, and the way in which highlighting issues like exterminism empire, class, race, gender, sexual orientation, age, nation, nature, and region at this historical moment acknowledges some discontinuity and disruption from previous forms of cultural critique. To put it bluntly, the new cultural politics of difference consists of creative responses to the precise circumstances of our present moment – especially those of Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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marginalized First World agents who shun degraded self – representations, articulating instead their sense of the flow of history in light of the contemporary terrors, anxieties, and fears of highly commercialized North Atlantic capitalist cultures (with their escalating xenophobias against people of color, Jews, women, gays, lesbians, and the elderly) (WEST, 1990, p. 93)8.

O deslocamento e o tensionamento epistemológico impulsionam os atores sociais negros a requererem novas propostas epistemológicas que tenham como princípio básico a contextualização, a pluralização e a historicização como estratégia de ruptura do discurso monolítico. Necessariamente, para que isso ocorra, o rompimento com o antigo legado é imprescindível. São esses os desafios que os atores sociais negros assumem ao reconhecer nos discursos pós-coloniais a perspectiva de reler a sua própria história; agora não mais como objeto dela e sim como seus sujeitos. Encontra-se nos autores pós-colonialistas a revisão crítica do que representaram os discursos e as ideias dos pensadores e filósofos modernos sobre a humanidade ou não do negro. Inclusive, tal revisão passa pela discussão da importância das ideias colonialistas na formação do pensamento e da cosmovisão das elites pensantes (branca e, mui8  Tradução encontrada em Giroux (1999, p. 32): “Podar o monolítico e homogêneo em nome da diversidade, da multiplicidade e da heterogeneidade; rejeitar o abstrato, o geral e o universal à luz do concreto, do específico e do particular; e historiar, contextualizar e pluralizar, destacando o contingente, provisional, variável, tentativo, alterado e móvel ... o que torna essas ideias novas - juntamente com a política cultural que produzem - é o como e o que constitui a diferença, o peso e a gravidade que ela recebe na representação, e a maneira em que, neste momento histórico, a ênfase em questões como extermínio, império, classe, gênero, orientação sexual, idade, nação, natureza e região reconhece parte da descontinuidade e do rompimento com as formas anteriores da crítica cultural”.

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tas vezes, mestiça). A relevância dessa discussão tem em vista o grau de importância que adquiram alguns cânones9, tanto colonialistas, quanto pós-colonialistas, na história, na construção e na formação de muitos os quais partiam das suas colônias ou ex-colônias, para se formarem a partir do viés eurocêntrico. Por mais que estejamos cientes de que os textos clássicos devam ser avaliados unicamente em termos históricos, também temos de estar cientes de que os pensadores Iluministas gozaram e gozam de um status privilegiado. Como define Jeffrey Alexander (1999, p. 24): Um clássico é resultado do primitivo esforço da exploração humana que goza de status privilegiado em face da exploração contemporânea no mesmo campo. O conceito de status privilegiado significa que os modernos cultores da disciplina em questão acreditam poder aprender tanto com o estudo dessa obra antiga quanto com o estudo da obra de seus contemporâneos. Além disso, tal privilégio implica que, no trabalho diário do cientista médio, essa deferência se faz sem prévia demonstração: é tacitamente aceita porque, como clássica, a obra estabelece critérios básicos em seu campo de especialidade.

9  Alexander, em A importância dos Clássicos, discute o seguinte: “Para os autores do positivismo, a própria questão da relação entre ciência social e os clássicos conduz imediatamente a outra: existirá mesmo uma relação dessas? Por que as disciplinas que se dizem orientadas para o mundo empírico e para o acúmulo de conhecimento objetivo sobre ele precisam recorrer a textos escritos por autores que já morreram e se foram há muito tempo? Segundo os cânones do empirismo, afinal de contas, o que quer que fosse relevante em tais textos já deveria ter sido, de longa data, verificado e incorporado à teoria contemporânea ou refutado e lançado à lata de lixo da história” (ALEXANDER, 1999, p. 23). Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Thompson (1995) propõe como método da Hermenêutica de Profundidade a superação daquilo que Alexander (1999, p.24) mostra ser “tacitamente aceito porque, como clássica, a obra estabelece critérios básicos em seu campo de especialidade”. O processo de interpretação ou reinterpretação como método da análise sócio-histórica e da análise formal ou discursiva “transcende a contextualização das formas simbólicas tratadas como produtos socialmente situados, e o fechamento das formas simbólicas tratadas como construções que apresentam uma estrutura articulada” (THOMPSON, 1995, p. 376). Para o autor, as formas simbólicas ou discursivas “representam algo, referem-se a algo e dizem alguma coisa sobre algo” (THOMPSON, 1995, p.376). Pode-se perceber a atuação dessas formas simbólicas tratadas discursivamente na maneira com a qual certos filósofos Iluministas pensavam o papel do negro. Autores como Immanuel Kant (1724-1804), David Hume (1711-1776), Alexis de Tocqueville (1805-1859), Auguste Comte (1798-1857), Montesquieu (1689-1755), Voltaire (1694-1778) e Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), que detinham e detêm um status privilegiado no pensamento moderno contemporâneo, estavam “convencidos da inferioridade congênita dos negros” (FOE, 2013, p. 184). Aporia, em que tudo aquilo que no cotidiano da vida prática se manifesta como sendo senso comum, outrora foi senso. Ao tratarmos de legado e das matrizes ideológicas não há como não reportamos aos grandes autores do pensamento europeu que se tornaram grandes influenciadores da ordem pensante no ocidente. O processo de ruptura terá que perpassar pelos matizes

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conceituais que conotaram durante séculos a dicotomia entre os indivíduos e com isso estabeleceram relações assimétricas de poder e valorização hierárquica de ideias. Autores como Théophile Obenga (1990), Edward Said (1995), Nkolo Foè (2008), Cheich Anta Diop (1981), Marcien Towa (1979), Frantz Fanon (2008) e Aimé Césaire (2010) se dispuseram a reinterpretar e retomar a iniciativa histórica a partir de uma narrativa emancipatória que exaltava “no protagonismo negro a única via possível para a descolonização política e mental das sociedades negras sob dominação ocidental” (CÉSAIRE, 2010, p.17). Acerca da ruptura do legado epistemológico eurocêntrico acadêmico da América Latina e dos Estados Unidos, alguns estudos propuseram vieses epistemológicos confrontando a hegemonia europeia, entre eles os de: Enrique Dussel (1986), Aníbal Quijano (2000), Walter Mignolo (2003), Ramón Grosfoguel (2006), Nelson Maldonado–Torres (2008) e Abdias do Nascimento (1968, 1980). Estes autores assumiram uma perspectiva interpretativa e reinterpretativa baseados no discurso crítico da Filosofia da Libertação; do Multiculturalismo; do Quilombismo; das Epistemologias Descoloniais; da Diversidade; das Identidades Plurais; do combate ao racismo; da crítica ao Racismo Epistêmico; da crítica à colonialidade; da crítica à colonialidade do ser. Tal perspectiva teve como direcionamento o encorajamento de fomentar intelectuais que rompam com o colonialismo presente nos manuais de aprendizagem, nos livros didáticos, nos critérios de seleção de trabalhos acadêmicos, na cultura, no senso comum, na estereotipização das manifestações, sejam elas religiosas, linguísticas, artísticas, comportamentais dos povos Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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não brancos. Nas palavras e argumentação de Ramón Grosfoguel (2006), que analisa o racismo epistêmico, a produção de conhecimento pelos privilegiados pensadores europeus é pautada no etnocentrismo e no eurocentrismo e sustenta uma lógica que invadiu todos os campos imaginários da formação humana, estabelecendo a exclusividade da verdade sobre as diferentes formas simbólicas que as sociedades representam como legítimas; arraigadas à filosofia, à ciência, inclusive à religião. Desse modo, Grosfoguel (2006) prossegue: O racismo epistêmico é um dos racismos mais invisibilizados no “sistema-mundo capitalista/patriarcal/moderno/colonial”. O racismo em nível social, político e econômico é muito mais reconhecido e visível que o racismo epistemológico. Este último opera privilegiando as políticas identitárias (identity politics) dos brancos ocidentais, ou seja, a tradição de pensamento e pensadores dos homens ocidentais (que quase nunca inclui as mulheres) é considerada como a única legítima para a produção de conhecimentos e como a única com capacidade de acesso à “universidade” e à “verdade”. O racismo epistêmico considera os conhecimentos não ocidentais como inferiores aos conhecimentos ocidentais. Se observarmos o conjunto de pensadores que se valem das disciplinas acadêmicas, vemos que todas as disciplinas, sem exceção, privilegiam os pensadores e teorias ocidentais, sobretudo aquelas dos homens europeus e/ou euro-norte-americanos [...] O mito que, entretanto, subjaz à academia é o discurso cientifi-

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cista da “objetividade” e “neutralidade” que esconde o “lócus de enunciação”, ou seja, quem fala a partir de qual corpo e espaço epistêmico nas relações de poder se fala. Sob o mito da “ego-política do conhecimento” (que na realidade sempre fala a partir de um corpo masculino branco e uma geopolítica do conhecimento eurocentrada) se desautorizam as vozes críticas provenientes dos pensadores de grupos subalternos inferiorizados pelo racismo epistêmico hegemônico (GROSFOGUEL, 2006, p. 17).

A citação revela e ressalta como o racismo epistemológico se constituiu e as consequências desse fenômeno podem ser verificadas quando observarmos que os conteúdos de disciplinas e atividades curriculares dos cursos de graduações nas universidades brasileiras pautam e reverenciam matriz europeia. Isso fica evidente ao ponderarmos que um estudante ao fim de seu curso de 4 ou 5 anos na graduação, poderá concluí-lo sem nunca ouvir ou estudar Abdias Nascimento (1980) e o Teatro Experimental do Negro (TEN) e intelectuais como Lélia Gonzáles (1983) e Conceição Evaristo (2011). Segundo Walter Praxedes (2008), esse cenário ajuda-nos a problematizar e tensionar o eurocentrismo e o discurso racista presente nas obras dos mais renomados pensadores europeus. Esses, ao abordarem os grupos humanos em seus trabalhos, classificavam-nos como “pertencentes a raças e etnias misteriosas, donas de comportamentos selvagens, ideias atrasadas, costumes e religiões primitivas e bizarras, aparências horripilantes e ideias irracionais” (PRAXEDES, 2008, p. 1). Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Nesse caso, o não reconhecimento de humanidade aos povos não europeus transpõe aos estudantes defrontarem com um problema crucial de ordem ontológica, pois estabelece a negação da anterioridade histórica a que as populações africanas e africanas da diáspora estão submetidas. É uma questão ontológica por que essas populações foram tratadas como não-ser. Os pensadores iluministas dominaram o discurso público do século XVII ao XIX e, com o advento do Iluminismo e a criação de uma ciência geral do ser humano, esperava-se que esse movimento filosófico corrigisse “a imagem negativa que se tinha do negro” (MUNANGA, 2009, p.29). Ocorreu o oposto disso e pensadores importantes como Voltaire (1963 apud FOÈ, 2013, p.187) consolidaram a noção depreciativa herdada de pensadores anteriores ao detalhar a inferioridade dos negros em questões de traços físicos e intelectuais e afirmaram ainda que a inferioridade da inteligência dos negros em relação a outras espécies de homens é espantosa. Como ressalta Foè sobre a suposta inferioridade dos negros: Mas o pior é que Voltaire insiste sobre a inferioridade dos Negros para legitimar sua servidão. A prova para ele é a existência da diferença e da permanência das características das nações que mudam raramente. Isto explica o fato de que “os negros são os escravos dos outros homens. Nós os compramos nas costas da África como animais”. Voltaire detalha os motivos dessa inferioridade que é, antes de tudo, física: os Negros têm os olhos arredondados, o nariz acha-

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tado, os lábios sempre grossos, as orelhas diferentemente desenhadas, a lã sobre a cabeça etc. A inferioridade é também intelectual. Segundo Voltaire, a medida de sua inteligência mostra as diferenças prodigiosas entre os negros e outras espécies de homens. Ele reconhece que a inteligência dos Negros não é de uma natureza diferente em relação ao entendimento do branco, mas ele sublinha sua inferioridade. Por exemplo, os negros não são capazes de uma grande atenção, eles calculam pouco e não parecem feitos nem para as vantagens, nem para os abusos de nossa filosofia. Eles são originários dessa parte da África como os elefantes e os macacos; eles acreditam que nasceram em Guiné para serem vendidos aos Brancos e para servi-los (FOÈ, 2013, p. 187).

O que estudiosos como Munanga (2006) e Foè (2013) salientam acerca desse período histórico é o espírito da época, em que pensadores e movimentos importantes concebiam o negro como selvagem, sem humanidade. À época, segundo Foè (2013, p. 188), o pêndulo da contradição da filosofia e do movimento que estava por detrás via a liberdade como movimento em si “em detrimento da igualdade e da fraternidade”. A obra O espírito das leis e a ambiguidade que cercava seu autor Montesquieu, se ele era “racista ou não, antiescravista ou não” (FOÈ, 2013, p. 188), não o impediu de reproduzir os mesmos preconceitos da época. Consideremos os argumentos do filósofo no seguinte trecho:

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Se eu tivesse que defender o direito que tivemos de escravizar os negros, eis o que diria: tendo os povos da Europa exterminado os da América, tiveram que escravizar os da África a fim de utilizá-los no desbravamento de tantas terras. O açúcar seria muito caro, se não se cultivasse a planta que o produz pelos escravos. Aqueles a que nos referimos são negros da cabeça aos pés e têm o nariz tão achatado que é quase impossível lamentá-los. Não podemos aceitar a ideia de que Deus, que é um ser muito sábio, tenha colocado uma alma, sobretudo uma boa, em um corpo negro. É tão natural pensar que é a cor que constitui a essência da humanidade que os povos da Ásia que fazem eunucos privam sempre os negros da relação que eles têm conosco de uma maneira mais acentuada. Pode-se julgar a cor da pele, dos cabelos, que entre os Egípcios, os melhores filósofos do mundo, eram de uma tão grande importância que eles matavam todos os homens ruivos que lhes caíam nas mãos. Uma prova de que os negros não têm o senso comum é que eles dão mais atenção a um colar de vidro do que de ouro, fato que, entre as nações civilizadas, é de uma tão grande consequência. É impossível que nós suponhamos que essas gentes sejam homens, porque, se nós os supusermos homens, começaríamos a acreditar que nós próprios não somos nem mesmo cristãos. Os espíritos mesquinhos exageram muito a injustiça que se faz aos africanos. Pois, se ela fosse tal como eles dizem, não teria ocorrido aos príncipes da Europa,

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que fazem entre eles tantas convenções inúteis, de fazer uma convenção geral em favor da misericórdia e da piedade? (MONTESQUIEU, 2005, p. 296).

Não se pode omitir a importância desses autores. Por outro lado, a sua presença obrigatória nos currículos dos diversos cursos de formação e por muitas vezes a não contraposição de suas ideias permite um senso léxico que se configura em elementos simbólicos do cotidiano. Como esboçada por Kant (1993 [1764]) na sua obra Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, há uma noção muito presente nos cursos de filosofia em que caracteriza assim os negros africanos: Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um Negro tenha mostrado talentos, afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já que entre brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de cores. A religião do fetiche, tão difundida enRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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tre ele, talvez seja uma espécie de idolatria, que se aprofunda tanto no ridículo quanto parece possível à natureza humana. A pluma de um pássaro, o chifre de uma vaca, uma concha, ou qualquer outra coisa ordinária, tão logo seja consagrada por algumas palavras, tornam-se objeto de adoração e invocação nos esconjuros. Os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve dispersá-los a pauladas (KANT, 1993 [1764], p. 78).

Para Kant (1993 [1764], p. 65) o sublime e o belo como traços que exprimem sentimentos estavam no continente europeu e o autor elenca a características dos italianos, franceses, espanhóis, ingleses e alemães realçando os aspectos que conotam a esses povos os caracteres do sublime e do belo; ao passo que os negros do continente africano não possuíam, por natureza, nenhum sentimento que se elevasse acima do ridículo, ao contrário dos europeus têm como característica o “sentimento refinado”. Importante salientar que, do ponto vista político, sabemos que o filósofo Immanuel Kant foi, segundo Hilton Japiassú e Danilo Marcondes (1991), um dos iluministas que mais profundamente influenciou a formação da filosofia contemporânea. Encontramos perspectiva hierarquizante também nos escritos do sociólogo Auguste Comte, criador do positivismo e considerado por Raymond Aron (1999, p. 98) “um reformador social”. Comte entendia a sociedade e a caracterizava pela etapa de desenvolvimento espiritual que ela teria alcançado. Este teve grande influência no Brasil e na formação do pensamento social brasileiro

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na transição da segunda metade do século XIX e teve muitas das suas ideias incorporadas à Constituição de 1891, primeira da República brasileira. No Curso de Filosofia Positiva, publicado originalmente em 1830, sobre a análise das conquistas coloniais do século XIX estabeleceu “a preponderância material dos povos mais evoluídos sobre os menos evoluídos” (1894, p. 3)10. Na visão do autor existe incontestável superioridade da raça branca como instinto característico da sociabilidade moderna (COMTE, 1894, p. 3). E ressaltava no início da lição 52 da obra a seguinte indagação sobre a superioridade da raça branca em relação aos negros: “Por que a raça branca possui de modo tão pronunciado, o privilégio efetivo do principal desenvolvimento social e porque a Europa tem sido o lugar essencial dessa civilização preponderante?” (1894, p. 17-18)11. O próprio autor responde a essa indagação apoiando-se numa sociologia concreta e das leis fundamentais do desenvolvimento social sobre a “superioridade” da população branca em relação à população negra. Sobre isso, o filósofo aponta: 10  Segundo Augusto Comte (1894, p. 3) “Notre exploration historique devra donc être presque uniquement réduite à elite ou l’avant-garde de l’humanité, comprenant partie de La race blanche ou les nations européennes. Em nous bornant même, pour plus de précision, surtout dans lês temps modernes, aux peuples de l’Europe occidentale. A une époque quelconque, notre appréciation rationnelle devra être principalement relative aux véritables ancêtres politiques de cette population privilégiée, quelle que soit d’ailleurs leur patrie. Em um mot, nous ne devons comprendre, parmi lês matériaux historiques de cette première coordination philosophique Du passe humain, que dês phénomènes sociaux ayant évidemment exerce une influence réelle, au moins indirecte ou lointaine, sur l’enchaînement graduel dês phases successivres qui ont effectivemente amené l’état présent dês nations lês plus avancées”. 11  Segundo Augusto Comte (1894, p.17-18) “Je choisis, à CET effet, attendu sa haute importance, l’explication special de l’agent et du theater de l’évolution sociale la plus complete, de celle qui, d’après les motifs précédemment indiqués, doit être le sujet presque exclusif de notre opèration historique. Pourquoi La rece blanche possède-t-elle, d’une manière si prononcée, Le privilège effectif Du principal développement social, ET pourquoi l’Europe a-t-elle été le lieu essentiel de cette civilisation preponderante?”. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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[...] a organização característica da raça branca, e sobretudo quanto ao aparelho cerebral, alguns germes positivos de sua superioridade real; embora os naturalistas estejam, hoje, muito longe de chegar a um acordo a esse respeito. Igualmente, sob o segundo ponto de vista, podem-se entrever, de um modo pouco mais satisfatório, diversas condições físicas, químicas e mesmo biológicas que certamente tiveram alguma influência sobre a eminente propriedade das regiões europeias de servir até hoje de teatro essencial desta evolução preponderante da humanidade (COMTE, 1894, p. 18)12.

De acordo com Dante Moreira Leite (2007) também no Brasil se esteve muito próximo de teorias desenvolvidas a partir das questões climáticas sobre o desenvolvimento e a evolução da espécie humana, marcantes em autores como Silvio Romero (1888). O cientificismo do século XIX também se baseou nessas referências para fundamentar suas teses (LEITE, 2007, p. 237). A concepção explicitada na citação revela o que foi a política racial brasileira do embranquecimento, levada a cabo principalmente entre 1872 a 1940 no Brasil. Talvez possamos vislumbrar os fundamentos e a legitimação (THOMPSON,1995) dos argumentos para tal política racializada. 12  Segundo Augusto Comte (1894 p. 18): “Sans doute, on aperçoit déjà, sous le premier aspect, dans l’organisation caractéristique de la race blanche, et surtout, quant à l’appareil cerebral, quelques germs positives de as supériorité réelle; encore tous lês naturalistes sont-ils aujourd’hui fort éloignés de s’accorder convenableblemente à cet égard. De même, sous le second point de vue, on peut entrevoir, d’une manière un peu plus satisfaisante, diverses conditions physiques, chimiques et meme biologiques, qui ont dû certainement influer, à un degree quelconque, sur l’èminente propriété dês contrées européennes de servir jusqu’ici de théâtre essentiel à cette évolution preponderante de l’humanité”.

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Outro autor, Alexis Tocqueville (2005 [1835]), foi considerado por Aron (1999) um dos mais importantes pensadores políticos do século XIX, comparável a Montesquieu. Tocqueville (2005 [1835]) discutiu a democracia e a igualdade de condição, definindo-a como a situação em que todos os indivíduos que compõem coletivamente o ambiente democrático sejam socialmente iguais. Isso explicou e implicou a ideia da democracia da igualdade social. Esta concepção de democracia foi inspirada na experiência que o autor teve em 1831 nos Estados Unidos. Mesmo com toda a destreza em realizar uma análise dos fenômenos das instituições políticas estadunidense, Tocqueville (2005 [1835]) não se livrou da perspectiva de hierarquizar negros e brancos, afirmando o autor expressar sobre os grupos humanos que compunham a população nos Estados Unidos que “entre esses homens diferentes, o primeiro a atrair os olhares, o primeiro em luz, em força, em felicidade é o homem branco, o europeu, por excelência; abaixo dele aparecem o negro e o índio” (TOCQUEVILLE, 2005 [1835], p. 374). O autor ressaltou ainda que a opressão que as populações indígenas sofreram juntamente com a população negra nos Estados Unidos foram males irremediáveis ao processo de “civilização” pelo que esses povos estavam submetidos aos homens (europeus) mais civilizados (TOCQUEVILLE, 2005 [1835], p. 392-393). Essas declarações sobre a população negra estadunidense são impactantes e devem ser contextualizadas ao momento histórico, mas não podemos negar que esses intelectuais influenciaram a ciência política contemporânea e que tais declarações exemplificam como o senso unificou grandes autores clássicos desRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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se período quando o assunto era tratar da população negra. O argumento que trazemos para esse texto é tais arquétipos hegemônicos presentes nestes discursos dos filósofos iluministas e de outros pensadores europeus ajustaram e modelaram o status quo da relação entre negros e brancos, seja no continente africano, seja com os africanos da diáspora. O projeto civilizador tem um forte traço iluminista, sendo a razão a sua glorificação (BARRETO, 1995). Nesse projeto, o evolucionismo e o etnocentrismo foram correntes de pensamento impactantes no processo de não aceitação perante os povos não europeus. Segundo Munanga (2009), a Sociedade Etnológica foi uma associação cientifica fundada em Paris, em 1839, e não fugiu ao seu tempo, sendo uma das instituições que fundamentou o “racismo científico”. Diferenças culturais suscetíveis de serem lidas por meio de diferenças expressas no corpo – como a cor de pele, o tipo de cabelo, a estatura – eram reconhecidas como etapas rumo ao progresso das sociedades mais avançadas: nesse caso, as sociedades europeias (SALAINI, 2013). A outra teoria que respondeu ao seu tempo e explicava as diferentes culturas, baseando-se no predomínio exercido pelo meio ambiente, foi, segundo Munanga, o evolucionismo (2009, p.32). Esse pensamento influenciou fortemente o debate racial e colocou o “branco” como represente natural do topo da escala hierárquica das raças. O racismo doutrinal, presentes nessas correntes de pensamento, legitimou e justificou, num primeiro momento histórico, a escravidão e a colonização. Tanto como fizeram os teóricos da antropologia física,

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que ligaram os traços da população negra à inferioridade devido à cor da pele escura e ao cabelo crespo e atribuíram à superioridade da população branca a pele clara, o cabelo liso e o rosto ortognato. Ideologicamente, a antropologia física e a etnologia no século XIX constituíram as ciências auxiliares e ajudaram a esconder os objetivos socioeconômicos das empresas imperialistas e colonialistas (MUNANGA, 2006; FOÈ, 2013). Importante salientar que a desumanização da população negra africana e da população negra da diáspora não se limitou apenas a esse racismo doutrinal. Munanga (2009, p. 37) ressalta que há um legado epistemológico que transcenderá em formas explicitas e implícitas de racismo; há todo um conjunto de indivíduos que concebem como valorização a branquidade e todas as subsequentes formas de dominação social, econômica e cultural vindas desse modelo. Nesse sentido, independentemente da origem étnica do indivíduo, o que conta é a sua assimilação ideológica e epistemológica. O que se vê nos não-europeus (Outros) é o ser inferior, a desvalorização.

Conclusão

A ruptura da continuidade consiste em desvelar as grandes narrativas da época moderna13 que estabeleceram 13  Foè (2013, p. 218) considera que “o pós-modernismo e o pós-colonialismo têm um mérito incontestável, o de colocar no centro das suas preocupações a questão essencial das condições políticas do diálogo das culturas através da crítica das grandes narrativas da época moderna: a Razão, o Estado, o pregresso, a emancipação, etc.”. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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doutrinas, métodos, ideias, tecnologias e ciências que acarretaram o controle do comportamento humano14, legitimando discursos e práticas que fundamentaram um legado epistemológico e material que abrange relações de poder desiguais no acesso ao trabalho, à educação, à saúde e à habitação, aos seus direitos civis e políticos. A ruptura da continuidade tem como desafio, diante do legado que ligou o preconceito racial com o religioso, desconstruir do imaginário brasileiro valores e ideias que subjugam os afro-brasileiros como herdeiros de uma cultura “incivilizada”, “selvagem” e impregnada de fetichismo. A perspectiva que sustentamos na análise desse artigo parte de uma linha de raciocínio que compreende a importância de conhecer as origens dos aportes da teoria do racismo científico para melhor compreendê-lo e com isso confrontá-lo. O desenvolvimento da análise do contexto de produção permitiu e desafiou-nos a investigar a gênese e as matrizes epistemológicas e ideológicas do racialismo. Nesse caso, as leituras e reflexões conduziram a elencar pensadores que foram influenciados pelo iluminismo, mas não conseguiram superar a visão racialista da época em relação aos africanos e africanos da diáspora. A análise aponta como tais perspectivas permanecem como legado de uma ciência marcada pelo eurocentrismo e legitimado por cânones, mantendo uma tradição de hierarquia étnico-racial que inferioriza os negros. Por outro 14  Leite (2007, p. 237) salienta que “fundamentalmente, o prestígio das ciências naturais e a tentativa de cientificizar o conhecimento do homem decorreram não do progresso científico, mas da tecnologia científica. Vale dizer, quando as aplicações tecnológicas permitiram a transformação mais eficiente da natureza - seja pela utilização da energia seja pelo controle físico dos organismos -, a ciência tinha demonstrado sua eficiência e sua utilidade. E o seu prestígio, fora dos círculos de especialistas e curiosos, decorreu dessas aplicações e, especialmente, da ideia de chegar ao controle do comportamento humano”.

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lado, mais do que evidenciar o contexto e o legado dessas formas de hierarquizar os seres humanos, o artigo possibilitou a descoberta de autores que fizeram frente a essas concepções teóricas. Autores que possibilitaram e instigaram ao pesquisador a fazer do seu corpo negro “um homem que interroga” (FANON, 2002, p. 21). Sem dúvida, um dos principais resultados que a pesquisa e as leituras proporcionaram e podem proporcionar ao indivíduo e a quem pesquisa, são as descobertas. Principalmente quando essas descobertas mexem e alteram a consciência de forma imanente, possibilitando elaborar um conjunto de ideias voltadas a romper com estruturas normativas que acomoda e harmoniza o racismo estrutural brasileiro. A partir da percepção da iniciativa histórica de Aimé Césaire (2010); Marcien Towa (1979); Theóphile Obenga (1990); Nkolo Foé (2013), foi possível visar uma trajetória do pensamento sócio-racial.

Referências

ALEXANDER, Jeffrey C. A importância dos clássicos. In: GIDDENS, Anthony; TURNER, Jonathan (Orgs.). Teoria social hoje. São Paulo: Editora UNESP, 1999. ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. Tradução de Sérgio Bath. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

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NEAB Capítulo 10

RACISMO, PODER E LEGITIMAÇÃO: OS DISCURSOS SOBRE DIVERSIDADE NA GESTÃO DO PROGRAMA NACIONAL BIBLIOTECA DA ESCOLA (PNBE)

Racismo, discurso e Educação: Débora Oyayomi Araujoestratégias ideológicas

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Capítulo 10 Racismo, poder e legitimação: os discursos sobre diversidade na gestão do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE)

Débora Oyayomi Araujo1

Introdução

O discurso como manifestação do poder é o objeto deste artigo. Mais do que mera expressão do pensamento, o discurso pode revelar uma maior ou menor capacidade de acesso e de manipulação de recursos para o benefício de um grupo sobre outro; por isso sua direta relação com o poder. Este texto reúne parte dos dados de uma pesquisa que investigou estratégias de racialização operando no Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). Tal Programa é responsável pela distribuição de obras literárias e de referência para as bibliotecas das escolas públicas brasileiras da educação básica. Mas na referida pesquisa o interesse foi de desenvolver análise sobre PNBE que incluísse um olhar específico sobre nuances pouco investigadas até então em pesquisas acadêmicas: a maneira como a diversidade étnico-racial tem sido ou não considerada. 1  Doutora em Educação pela UFPR, graduada em Letras – Português/Inglês, com especialização em Língua Portuguesa e Literatura. Professora do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, atuando na disciplina de Educação das Relações Étnico-Raciais.

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E é com a mesma proposta que este artigo pretende analisar como os discursos produzidos por sujeitos que representam segmentos de poder (no caso específico, que selecionam os livros para o PNBE) podem expressar pensamentos e atitudes racistas, escamoteados em estratégias discursivas diversas. E, para tanto, dois importantes referenciais fundamentarão as análises: a Hermenêutica de Profundidade, desenvolvida por John Brookshire Thompson (2002) e a Análise Crítica de Discurso (ACD), a partir do enfoque teórico de Teun A. van Dijk (2008). O texto será dividido em três partes: apresentação de elementos da ACD, análise de trechos da entrevista concedida por representante da avaliação pedagógica do PNBE e as considerações finais.

1. A Análise Crítica de Discurso (ACD)

Embora Thompson (2002) reitere que em uma pesquisa com a metodologia da HP todas as fases devam ser desenvolvidas (sob pena de uma interpretação limitada ou tendente a uma ou outra fase), em função dos limites sobre a extensão do artigo, neste texto será enfatizada apenas a segunda fase: análise formal ou discursiva, por meio da Análise Crítica de Discurso. Considerando que as relações de dominação se expressam por diversas formas, dentre elas o discurso, é importante atribuí-lo uma dimensão devida, pois suas propriedades típicas (acesso a publicações de maior circulação ou controle e predomínio dos turnos de fala, Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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por exemplo) são sempre ligadas ao maior ou menor acesso ao poder. Há, portanto, na Análise Crítica de Discurso (ACD), uma intrínseca relação entre poder e discurso mas com uma especificidade: poder é relativo a controle, isto é, “controle de um grupo sobre outros grupos e seus membros” (VAN DIJK, 2008, p. 17). Se o controle, por sua vez, ocorre para favorecer os interesses de quem exerce o poder e de modo a desfavorecer os que são controlados, estamos diante de um “abuso de poder” (VAN DIJK, 2008, p. 17, grifo do autor). Analogamente é possível propor que abuso de poder se associa, por definição, ao tipo particular de ideologia proposto por Thompson (2002) já que ideologia para ele é a maneira “como o sentido, mobilizado pelas formas simbólicas, serve para estabelecer e sustentar relações de dominação” (THOMPSON, 2002, p. 78, grifos do autor). É importante reiterar, no entanto, mas sem condições de aprofundamento neste texto, que ambos os autores não comungam de um mesmo conceito de ideologia: ao passo que para Thompson ideologia é sempre um conceito negativo e crítico e refere-se à expressão de uma relação assimétrica de poder (portanto só há ideologia por parte do grupo dominante), para van Dijk o principal âmbito do seu conceito de ideologia é o sociocognitivo: [...] uma ideologia é uma estrutura cognitiva complexa que controla a formação, transformação e aplicação de outros tipos de cognição social, tais como o conhecimento, as opiniões e as posturas, e de representações sociais, como os preconceitos sociais (VAN DIJK, 2008, p. 48).

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No entanto, não se pode negar que a contribuição de ambos os autores para o campo dos estudos sobre discurso extrapola as suas diferentes perspectivas sobre o conceito de ideologia. E, concordando com van Dijk (2008) sobre o fato de a “análise crítica de problemas sociais, empiricamente adequada, é normalmente multidisciplinar” (VAN DIJK, 2008, p. 114, grifo do autor), este artigo intenta uni-los em suas características comuns, sobretudo a de que o combate às relações assimétricas de poder pode ser por meio do desvelamento de discursos hegemônicos. Retomando a discussão sobre o conceito de poder para a ACD, a adoção de uma análise crítica exige um olhar mais apurado sobre a atuação desse poder e sua incidência: “nossa principal perspectiva encontra-se nas formas como esse poder é exercido, manifestado, descrito, disfarçado ou legitimado por textos e declarações orais dentro de um contexto social” (VAN DIJK, 2008, p. 39). A partir de três maneiras pelas quais o discurso relaciona-se com o poder, o autor delimita algumas características necessárias a uma análise efetivamente crítica do discurso. A primeira delas são os gêneros de discurso e de poder, em que a predomina a via persuasiva. Nesse âmbito, o autor destaca tipologias ou caminhos “pelos quais o poder é exercido através do discurso como forma de interação social” (VAN DIJK, 2008, p. 52). Podem ser: a) por meio de um controle direto, com atitudes diretivas e pragmáticas, “tais como comandos, ameaças, leis, regulamentos, instruções” ou indiretas, “por meio de recomendações e conselhos” (VAN DIJK, 2008, p. 52); b) por meio de mecanismos retóricos, como a perRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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suasão ou repetição em que, segundo o autor, essa tipologia é bastante comum nos anúncios publicitários e propagandas que a utilizam “com o apoio dos mecanismos tradicionais de controle do mercado” (VAN DIJK, 2008, p. 52); c) através da previsão de ações futuras, ou seja, “previsões, planos, cenários, programas ou alertas, algumas vezes combinados com diferentes formas de conselho”, sendo os membros desse conselho experts no assunto “e sua base de poder assentar-se muitas vezes sobre o controle do conhecimento e da tecnologia” (VAN DIJK, 2008, p. 52); d) por meio de várias modalidades narrativas com alta carga de influência sobre os modos de ser e viver. São exemplos romances, filmes ou reportagens jornalísticas que “podem descrever a carga (in)desejável de ações futuras e podem ocorrer a uma retórica com apelos dramáticos ou emocionais, ou a várias formas de originalidade estilística ou temática” (VAN DIJK, 2008, p. 53). O autor considera que por meio desse recurso “fabrica-se a base conceitual do poder e que o público em geral fica sabendo quem possui poder e o que desejam os poderosos” (VAN DIJK, 2008, p. 53). A segunda maneira são os níveis de discurso e de poder em que o primeiro pode “favorecer, manifestar, expressar, descrever, sinalizar, esconder ou legitimar as relações de poder entre os participantes do discurso ou entre os grupos aos quais pertencem” (VAN DIJK, 2008, p. 54). O primeiro nível é o pragmático: acesso limitado ou controlado dos atos de discurso. O segundo relaciona-se à interação conversacional, em que “um dos participantes pode controlar ou dominar a troca de turnos, as estratégias de auto-representações e o

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controle sobre quaisquer outros níveis de fala espontânea ou de diálogo formal” (VAN DIJK, 2008, p. 54). O terceiro refere-se ao tipo ou gênero de discurso, que é definido pelos falantes “mais poderosos” como, por exemplo, a abertura para narrativas pessoais que logo são censuradas “em favor de gêneros de discurso controlados” (VAN DIJK, 2008, p. 54). O quarto e último assemelha-se aos anteriores, pois “os temas deixam-se controlar, geralmente, pelas regras da situação comunicativa, mas sua iniciação, mudanças ou variações são controladas ou avaliadas na maior parte das vezes pelos falantes mais poderosos” (VAN DIJK, 2008, p. 54). A terceira maneira é diretamente relacionada às dimensões de poder. Assim, o autor destaca: a) as instituições de poder, como os governos, os meios de comunicação, os sindicatos, as igrejas e as instituições de ensino, entre outras; b) os postos hierárquicos que as pessoas ocupam dentro dessas instituições que demandam “diferentes atos de fala, gêneros ou estilos, por exemplo, os que sinalizam autoridade ou comando” (VAN DIJK, 2008, p. 55); c) as relações de poder entre grupos – que pode ocorrer paralela ou combinadamente com as instituições de poder – como, por exemplo, entre “ricos e pobres, homens e mulheres, adultos e crianças, brancos e negros, nacionais e estrangeiros, os que possuem formação superior e os que não a possuem, os heterossexuais e os homossexuais, os religiosos e os não-religiosos [...]”(VAN DIJK, 2008, p. 55). O autor argumenta que nessas relações o efeito sobre o discurso incidirá no controle desigual do diálogo, por exemplo; d) o exercício do poder quanto à sua influência e abrangência, já que algumas instituições ou seus Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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integrantes “podem realizar atos discursivos que afetam, por inteiro, países, estados, cidades ou grandes organizações, ou podem determinar a vida e morte, a saúde, a liberdade pessoal, o trabalho, a educação ou a vida particular de outras pessoas [...]” (VAN DIJK, 2008, p. 55); e) diferenças de poder, em que uns “têm um controle total imposto ou mantido pela força” e outros “que exercem um controle parcial, sancionado ou por uma elite, uma maioria, ou por um consenso mais ou menos geral” (VAN DIJK, 2008, p. 55). Munida dessas características teórico-metodológicas da Análise Crítica de Discurso e da metodologia da Hermenêutica de Profundidade, a proposta a seguir é de analisar os discursos produzidos acerca do PNBE.

2. Os discursos da avaliação pedagógica do PNBE

O Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) é o maior programa na história da educação brasileira em distribuição de livros a bibliotecas de escolas públicas. Desde 1997 ele modificou a “identidade” das bibliotecas das escolas públicas no Brasil ao fornecer obras literárias com qualidade tanto física (em características e formatos similares ou idênticos aos livros comercializáveis) quanto estéticas, atuando efetivamente como um Programa preocupado com a formação de leitores/as. Mas vários estudos2 que investigaram a estrutura e a composição da distribuição dos livros identificaram algumas desigualdades simbólicas no que se refere à 2  Várias dessas pesquisas foram compiladas no estudo de Araujo e Silva (2012).

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diversidade humana: predominam obras clássicas (ou canônicas) com sub-representação de personagens não brancas e/ou com tais personagens em contextos de estereotipia. E esses estudos constataram que talvez o grande problema incidisse no processo de avaliação e seleção das obras dos acervos do PNBE. Por meio desses resultados, a pesquisa de onde provêm os dados que aqui serão apresentados buscou investigar mais profundamente como se constrói a política do PNBE para comprovar se havia marcas do racismo institucionalizado atuando de modo a interpor na aquisição de obras com contextos culturais e étnico-raciais diversos (tal como é a expressão da sociedade brasileira) ou se não eram tais marcas, quais seriam os impeditivos que levariam a tal sub-representação (seria a baixa qualidade das obras, por exemplo?). Para atender às dimensões e limites do artigo, apenas parte da entrevista que foi realizada com a representante pela avaliação pedagógica dos livros do PNBE será apresentada. A entrevista ocorreu em 10/07/20013 na sede da instituição responsável pela avaliação pedagógica do PNBE pelo período de 2006 a 20153: o Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), localizado na Faculdade de Educação (FaE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Diferentemente das expectativas de que a entrevista teria alto grau de formalidade e com respostas breves em função do tema4, a 3  Em função da conjuntura política atual em que tanto o cronograma do PNBE quanto do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) estão atrasados, não é possível atualmente afirmar se tal instituição será a responsável pela avaliação das demais edições, caso elas ocorram. 4 Acrescenta-se a isso a ressalva de van Dijk (2008, p. 22): “Na prática do trabalho de campo, a regra geral é que quanto mais altos e influentes os discursos menos eles se mostram públicos e acessíveis para um exame crítico [...]”. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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maneira descontraída e a forma de recepção por parte da pessoa entrevistada levou a um processo que durou mais de duas horas. No entanto, nas fases posteriores à entrevista (devolutiva da transcrição à pessoa entrevistada e aprovação ou não do texto), foram se estabelecendo algumas dificuldades: a entrevistada solicitou alterações de ordem de linguagem (de nível informal para mais formal) pois, segundo ela, sua postura foi excessivamente “solta” e sem censuras. E mesmo concordando com van Dijk (2008) sobre a ideia de que “especialmente os autores profissionais e as organizações devem ter um entendimento acerca de quais são as possíveis ou prováveis consequências de seus discursos sobre as representações sociais de seus receptores” (VAN DIJK 2008, p. 33), foi estabelecido um maior cuidado com a análise de sua entrevista, considerando que muitas das suas declarações foram realizadas em alto nível de informalidade, reiterando: nível estabelecido pela própria entrevistada. Os registros foram realizados com dois gravadores, sendo um MP3 Player LSC_91N171V_A1 9.1.52, e um aparelho de celular Samsung Duos GT – S5303B. Para fins de facilitação da leitura, os registros de fala da pessoa entrevistada utilizarão o código: REPRESENTANTE DA AVALIAÇÃO PEDAGÓGICA DO PNBE por meio da sigla RAP-PNBE. E da pesquisadora será utilizado o código: PQ. As perguntas propostas para a entrevista analisada foram organizadas em um formato de questionário semiestruturado. Uma ressalva feita pela entrevistada é relevante ser destacada: RAP-PNBE: Eu só acho que se você conseguir produzir um trabalho falando mais do

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esforço das temáticas se fazerem presentes no acervo nos acervos do PNBE com uma literatura de qualidade, isso é melhor do que episódios que provocaram tensões.

Tal ressalva foi constantemente considerada antes e durante a produção das análises a seguir. No entanto, para os interesses deste texto, omitir ou ignorar importantes declarações sobre a relação literatura infantojuvenil, diversidade étnico-racial, racismo e movimentos sociais seria um prejuízo, além de não convergir com a posição demarcada nesse estudo que é de reconhecer e refletir “sobre seus próprios compromissos com a pesquisa e sobre sua posição na sociedade”, além “de assumir a perspectiva dos grupos dominados [...] [na tentativa de] tentar influenciar e cooperar com ‘agentes de mudança’ ou ‘dissidentes’ cruciais dos grupos dominantes” (VAN DIJK, 2008, p. 16). Perguntada sobre o perfil dos/as avaliadores/as, ficou evidente a exigência de relação profissional e/ou acadêmica com a área de Letras ou Educação, mas critérios subjetivos também se faziam presentes: RAP-PNBE: [...] Hoje, depois que esse processo está consolidado, recebemos alguns e-mails do tipo: ‘Como eu faço para ser avaliador do PNBE?’. Então hoje a demanda já surge assim. E aí nós já perguntamos à pessoa sobre suas qualificações e teve gente que já entrou assim.

No entanto, se tal subjetividade por um lado ocorre em função da qualificação comprovada como pré-requisito, Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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ao ser indagada sobre outras possibilidades de ingresso de pareceristas com perfis acadêmicos adequados e também vinculação com instituições e movimentos sociais, a autora não reconhece como legítima: RAP-PNBE: Não, nunca me ocorreu isso não. O que tentamos é absorver indivi­ dualmente as pessoas. Por exemplo, tem um grupo forte aqui de ações afirmativas. Tem pessoas que são PQ: Mas com o foco especificamente, por exemplo, uma seleção específica para a composição de membros que tenham essa vinculação, essa trajetória? RAP-PNBE: Não, eu acho que nem o edital permite.

Ao não permitir esse tipo de ingresso, mas havendo certa flexibilidade na seleção dos/as avaliadores/as, que é explicitamente subjetiva, a equipe responsável pela avaliação pedagógica dos livros também inviabiliza ações afirmativas no sentido de inserir membros de outros grupos que não aqueles já conhecidos ou “estabelecidos”, utilizando como justificativa o cumprimento dos preceitos do “edital”. Embora se trate de argumento factível e legal, ao se observar os discursos apresentados no decorrer deste texto é possível interpretar esse contexto também sob outra perspectiva: de fabricação de consensos com vistas ao atendimento de interesses de um grupo sobre outro. Por meio de investimentos seletivos, [...] contratação (e demissão) de pessoal, e algumas vezes por meio da influência edito-

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rial direta ou diretrizes, eles podem controlar parcialmente o conteúdo ou ao menos a dimensão do consenso e dissenso da maior parte das formas de discurso público (VAN DIJK, 2008, p. 45).

Do ponto de vista discursivo, essa estratégia de persuasão atua no sentido de aumentar as chances de formar representações mentais desejadas nos receptores: “Uma estratégia crucial quando se trata de disfarçar o poder é convencer as pessoas sem poder de que elas praticaram as ações desejadas em nome de seus interesses” (VAN DIJK, 2008, p. 84). Além disso, com tal procedimento informado pela entrevistada, a política assume um caráter altamente personalista pois estabelece a escolha dos membros sob critérios bastante subjetivos. Uma das perguntas versava sobre a proporcionalidade de obras literárias com diversidade humana. A entrevistada rebate essa ideia ao informar que: RAP-PNBE: Não tem ninguém é interditando livro de literatura desta ou daquela conotação. [...] PQ: Tem uma pesquisa que analisou 20085 [...], ela verificou uma questão de proporcionalidade. Ela diz na pesquisa que num acervo de vinte livros [...] a orientação [...] (ela diz que estava no edital) que um livro seria ou de temática afro-brasileira ou africana ou de temática indígena. Isso procede? RAP-PNBE: De jeito nenhum. Não. Nunca. 5  A referida pesquisa é de Venâncio (2009). Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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[...] RAP-PNBE: Não. Nós tentamos desesperadamente colocar. Desesperadamente. Mas por exemplo, se temos quatro acervos de anos iniciais para montar não podemos posso forçar, se não tiver quatro livros de temática racial bacana para inserir. Como não podemos forçar quadrinho, [...] livro de imagem, [...] RAP-PNBE: [...] mas temos que cuidar de diversidade de gênero, de diversidade de autores, diversidade de temática, diversidade de editoras. [...] PQ: Mas de qualquer maneira vocês conseguem perceber um aumento na quantidade de produção de livros que tratam da diversidade africana, RAP-PNBE: Racial? PQ: Indígena, RAP-PNBE: Bastante. Bastante. PQ: E você tem um motivo para isso? Imagina alguma coisa que fez com que RAP-PNBE: Olha, eu acho que é o contexto, é a valorização, é a consciência de que isso precisa estar presente. Muitas vezes o livro é bacana mas tem ainda aquele resquício da militância, aquele resquício da preleção, aquele ressentimento e aí isso não cabe em literatura. E então não podemos selecionar o livro. Mas tem crescido muito. Agora, como bons guardiões da literatura, nós não colocamos qualquer coisa só para contemplar a temática, não. Ele tem que ser bom literariamente. Ele tem que possibili-

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tar uma experiência estética. Por isso que é difícil você combinar literatura – livro didático eu acho que tem mais é que fazer isso; é obrigação, tem que escancarar, tem que abrir o jogo, porque está num processo de educação regular, fazendo com que esse país encare as coisas do jeito que elas precisam ser encaradas. – Agora, na literatura nós temos que achar um caminho. [...] Mas eu acho que a tendência do grupo é, dos autores, pelo menos, tanto na indígena quanto no racial é perceber que precisa ser literatura. Porque senão fica meio (sic): vira tema transversal, vira paradidático e aí o edital é claro: isso aqui é para escolher livro de literatura. Não é paradidático, entendeu? Aí tem aqueles que se inscrevem como literatura mas você vê que a estrutura narrativa, que aquele enredo ali é um mero pretexto para divulgar uma causa, para discutir panfletariamente uma temática e aí nós que somos da literatura não aceitamos. Não aceitamos porque você não pode passar para a criança, para o adolescente, nós temos o compromisso de não fazer isso, de que aquilo é literatura.

Essa perspectiva aproxima-se da argumentação de Rildo Mota (2012) sobre a não recusa, por parte do processo de avaliação pedagógica do PNBE, de obras “explícita ou implicitamente engajadas, mas sim aquelas obras em que o caráter engajado se sobrepõe ao literário, transformando o texto em propaganda” (MOTA, 2012, p. 316). As considerações de ambos os argumenRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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tos se assemelham a resultados encontrados na pesquisa de Araujo e Silva (2012, p. 216): Outro elemento a discutir é que não é o fato de uma pessoa ser negra e ter vivenciado o racismo que necessariamente sua obra será de qualidade ou com potencial para promoção de igualdade racial. Foram identificados, ao invés de promoção de igualdade, títulos que reforçaram estereótipos de diversas maneiras: seja por meio de representações tipificadas (personagem negra do sexo masculino como menino de rua [...]), ou quando se pretende problematizar o tema do racismo, mas se acaba ‘engessando’ o enredo. Em outras palavras, algumas obras preocupadas em propor a superação do racismo, trazendo tramas com tal tema, nem sempre obtêm êxito em seu objetivo, além de deixar de lado o caráter literário que toda obra infantil e infantojuvenil, sobretudo, precisam ter, sob pena de vivenciarem seus estigmas historicamente imputados e que as relegaram a práticas didatizantes e desvinculadas de qualidade estética.

Fica evidente, portanto, a complexidade que envolve a produção literária oriunda de grupos discriminados ou com temática que aborde grupos discriminados. Mas para concordar totalmente com todas essas críticas é necessário ponderar sobre o caráter militante das obras que também se faz presente em autores/as canônicos/ as. Lima Barreto, por exemplo, como aponta Manoel Freire (2008, p. 4), “teria encontrado o termo ‘literatura

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militante’ em Eça de Queiroz”; Nathalia de Aguiar Ferreira Campos (2013) destacou em sua pesquisa como escritores das décadas de 1930 a 1950, em especial Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade, apresentavam um alto nível de engajamento em suas produções; Enio Passiani (2002) enfatiza o quanto a militância fez parte da obra e vida de Lobato e na defesa de seu plano de nação: A literatura militante de Lobato procurava conquistar um público cada vez mais amplo, apontar para seus leitores os problemas do país e convidá-los para a ação. [...] E é fácil notarmos tal característica ao longo de toda sua obra. Já no seu primeiro livro de contos, Urupês, Lobato incorpora dois artigos que publicara n’O Estado de S. Paulo: Velha Praga e Urupês. Neles, o escritor paulista denuncia as queimadas comuns nas regiões interioranas do Estado e cria um dos seus principais personagens, o Jeca Tatu, avesso da imagem romântica do caboclo, para revelar, segundo ele, a ‘verdadeira’ face do homem do campo: indolente e doente. [...] O livro O problema vital alerta quanto ao problema do saneamento do país e é inteiramente dedicado à campanha da vacinação. A lista poderia continuar e seria extensa. O que é preciso frisar é o engajamento do escritor em praticamente todas as questões sociais do país: queimadas, saneamento, petróleo, eleições, etc. – problemas que faziam parte do cotidiano do povo brasileiro, sempre questões da ordem do dia. E foi este o material sobre o qual Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Monteiro Lobato se debruçou para elaborar o enredo de seus livros (PASSIANI, 2002, p. 250, grifos do autor).

Com uma lista extensa, como afirma Passiani, é importante destacar ainda o engajamento em obras como “O presidente negro” (no plano da eugenia) e “Emília no país da gramática” (no universo da Língua Portuguesa), ambos de Lobato. Sendo assim, a mera crítica à militância ou engajamento não poderia proceder, a não ser que, como afirma a entrevistada, a obra não possibilite uma “experiência estética”. Por isso a importância de um olhar menos taxativo que previamente pode estar categorizando obras com temáticas para além das convencionais como inferiores. Tratando da literatura negra e seu suposto caráter de militância como característica inata, Florentina Souza (2010) lança um alerta sobre o tema: Não podemos deixar de falar de literatura negra como essencialização, nem podemos atribuir a uma produção que resulta de experiências vivenciadas diferenciadas nenhum traço de homogeneidade. Se existem aqueles que veem a literatura como um espaço para a denúncia das desigualdades sociais e suas vinculações étnicas, ou como uma arma de combate contra o racismo e a exclusão, existem outros que com lirismo e sensibilidade combatem de outra forma e a resgatam uma memória quase esquecida dos cantos religiosos, dos cânticos míticos, das festas e outras tradições que se reconfiguraram na diáspora e que hoje resistem nos tex-

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


tos inscritos nas memórias dos velhos, nas recordações, às vezes, imprecisas dos mais jovens, nos antigos casarios e nas ruinas das pequenas cidades e vilas que guardam segredos imemoriais (SOUZA, 2010, p. 125).

Regina Dalcastagnè (2012) argumenta sobre uma perspectiva que sintetiza essa análise: “Assim, a literatura, amparada em seus códigos, sua tradição e seus guardiões, querendo ou não, pode servir para [...] exclui[r], marginaliza[r]. Perdendo, com isso, uma pluralidade de perspectivas que a enriqueceria” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 21). Outro aspecto de destaque nesse último excerto apresentado da entrevista é a ausência de correlação, por parte da entrevistada, da ampliação do número de livros com temáticas africanas e afro-brasileiras com as alterações no artigo 26A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), sugerindo o raso conhecimento sobre o tema. Além disso, ressalta-se o pouco trato com as temáticas da diversidade étnico-racial por meio dos usos de modo não convencional dos vocábulos “temática indígena” x “temática racial” (p. ex. “tanto na indígena quanto no racial”), como se o primeiro correspondesse a temas relacionados à cultura indígena e o segundo relacionados à cultura africana/afro-brasileira, sugerindo um terceiro grupo que não seria racializado: o branco. Outra parte da entrevista aqui analisada foi em relação à polêmica sobre Monteiro Lobato no PNBE. RAP-PNBE: [...] Eu sou contra qualquer tipo de censura. [...] e muito menos a censura Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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a autor fundador infantojuvenil brasileira. [...] Ou nós aprendemos a contextualizar as obras e a formar mediadores de leitura capazes de propor a leitura da obra naquele contexto tendo sido ela produzida lá atrás ou então será o fim! A literatura vai passar por uma censura xiita, militante, da pior qualidade. Será um desserviço à literatura. Fazer bula, nota explicativa em texto literário para mim [...] é inconcebível, não se ter o compromisso com a literatura produzida no tempo que ela foi produzida e saber fazer as leituras posteriores dessa obra. Se nós reverenciamos clássicos, por que faríamos isso com uma figura da literatura infantiljuvenil como Monteiro Lobato? [...] a reação [...] foi: agora a gente escolhe Monteiro Lobato. [...] Porque a resposta tem que ser: ‘Aqui não existe, não cabe esse tipo de censura feita à literatura por movimentos’. É compreensível, é extremamente compreensível, mas nós temos que lutar pela mediação adequada disso. PQ: A nota explicativa não ajudaria nisso, nessa mediação? [...] RAP-PNBE: [...] quem faria essas notas explicativas? Gente da literatura que não concorda com isso? Quem produziria uma nota explicativa que não desvirtuasse, que não que não pusesse uma venda no texto?

A preocupação da entrevistada refere-se ao caráter de censura que ameaça a manutenção da arte literária, produzida em contextos em que marcas das interações

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


sociais (como o racismo) fazem parte. No entanto, diferentemente das propostas desenvolvidas pelos estudos críticos de relações étnico-raciais que buscam destruir ou ao menos desestabilizar tais bases, a interpretação da entrevistada caminha para a ideia de naturalização. Thompson (2002) categorizou a naturalização como uma estratégia de operação da ideologia: Um estado de coisas que é uma criação social e histórica pode ser tratado como um acontecimento natural ou como resultado inevitável de características naturais, do mesmo modo como, por exemplo, a divisão socialmente instituída do trabalho entre homens e mulheres [...] (THOMPSON, 2002, p. 88).

A naturalização também se opera na continuidade da entrevista: RAP-PNBE: Tem lugar que Monteiro Lobato está banido, está proscrito, não entra mais. As pessoas se ‘arrepiam’, é ‘pecado mortal’ trabalhar com Monteiro Lobato, mas eu sou uma pessoa da literatura! E eu estou convencida de que não é esse o caminho. Não é assim que se ganha uma causa, sabe? Eu sei que tem muitos anos de opressão, eu não sou capaz de dimensionar a gravidade disso historicamente. Mas eu tenho a convicção de gente da literatura que acredita que não é pela censura, sabe? São tempos marcados e vividos, demarcados por uma história que pode criar um viés que Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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não conseguiremos sair dele depois. Daqui a cinquenta anos as pessoas olharão para esse momento e eu não sei o que irá acontecer. Eu não faço ideia. Eu acho que tudo poderia ser amenizado se tivéssemos uma formação de docentes – eu não falo nem de mediadores de leitura, porque isso já é uma coisa bem específica – mas do profissional da educação e da aproximação dele com a literatura, porque se ele é um bom leitor de literatura e se ele entende o texto literário, se ele contextualiza o texto literário, não será uma macaca na árvore, algo que o Monteiro Lobato falou lá atrás, sabe, uma nega beiçuda, então, não pode nada? Nós vamos ter que pegar todo o Aloisio de Azevedo com o ‘Cortiço’, entre outros [...].

A entrevistada encadeia o discurso buscando amenizar passagens racistas que são abundantes na obra do consagrado autor. A agressão racial é discursivamente destituída de importância e legitimidade. O ponto de vista daqueles que são ofendidos e discriminados não é assumido como forma de identificação com o oprimido; ao contrário é negado, mesmo em um contexto contemporâneo no qual as formas de racismo explícito têm sido relativamente divulgadas pela mídia (nem sempre com adequadas análises, é bem verdade), em que pessoas negras em posição de destaque – sobretudo jogadores de futebol (SANTOS, 2014; VENANCIO; TAKATA, 2014) – têm sido vítimas de racismo por meio do xingamento de “macaco”. Considerando que não temos ainda, como a própria entrevistada constata, uma formação de docentes ade-

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


quada para trabalhar de modo crítico e coerente temas relacionados ao racismo, será que “algo que Monteiro Lobato falou lá atrás” não exerce impacto hoje em seus leitores e leitoras, já que grande parte deles/as estão em processo de formação tanto de leitura quanto identitária? Lembremos que as obras do PNBE possuem também um “endereçamento escolar”, ou seja, “particularidades do uso das obras no ambiente escolar” (MOTA, 2012, p. 315). De outro lado, essa reflexão também aciona outros eventos recentes relacionados à censura de obras literárias ou biografias, demonstrando a complexidade em que se insere a arte. Essa última discussão rapidamente estimula a pergunta: deve haver limites para a produção artística?, que também rapidamente desloca a reflexão inicial de que na ponta de um dos lados alguém está sendo agredido. Van Dijk (2008) mostra que é comum para produtores de discursos em espaços de poder argumentarem “que não têm controle sobre o modo como as pessoas leem, compreendem ou interpretam seus discursos” (VAN DIJK, 2008, p. 33) o que, para o autor, não é uma ideia completamente infundada, já que “não há uma relação causal entre o discurso e sua intepretação” (VAN DIJK, 2008, p. 33). No entanto, o autor contrapõe apontando a capacidade de influência dos discursos com contextos de poder: Mesmo assim, apesar de tal variação individual e contextual, isso não significa que os discursos em si são irrelevantes nos processos de influência social. Há uma compreensão geral das maneiras como o conhecimento, o preconceito e as ideologias Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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são adquiridos também através do discurso (VAN DIJK, 2008, p. 33).

Portanto, na medida em que uma obra discursiva, literária ou não, reitera agressões destinadas a um grupo humano, estamos diante de um impasse entre os limites da censura e da coerência que se adere a práticas de respeito aos direitos humanos. Mas, para além disso, retoma-se a discussão sobre os investimentos públicos envolvidos e a força discursiva presente em “agora a gente escolhe Monteiro Lobato”, com a justificativa de que “a resposta tem que ser: ‘Aqui não existe, não cabe esse tipo de censura feita à literatura por movimentos’”. Como já ressaltado, a crítica à polêmica incidiu na possibilidade de uma censura a esse autor, considerado maior representante da literatura infantojuvenil brasileira, e na inadequada alternativa que essa censura sugeria: o recolhimento das obras ou a adoção de notas explicativas. Diante disso, uma das saídas adequadas seria, de acordo com a entrevistada, o investimento maciço na formação para bibliotecários/ as e docentes sobre um trabalho apropriado com obras com tais características. Tal perspectiva também é defendida na argumentação deste texto: é muito mais vantajosa para uma sociedade democrática a ampla discussão das obras canônicas e não canônicas em todas as suas potencialidades de análise. No entanto, coloca-se outra reflexão: a inserção de Monteiro Lobato como resposta aos “movimentos” pode ser considerada uma das alternativas adequadas? Nesse caso, é possível verificar o poder sendo exercido a serviço da manutenção de interesses de um

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


grupo. Ou, ainda, na perspectiva de van Dijk (2008, p. 15), trata-se de “abuso de poder social por um outro grupo social” por estabelecer um discurso (e posteriormente uma prática) que poderá exercer influência nos segmentos atendidos pelo PNBE. Obtém-se um controle direto sobre a ação por meio de discursos que possuem funções pragmáticas diretivas (força ilocutória), tais como comandos, ameaças, leis, regulamentos, instruções e, mais indiretamente por meio de recomendações e conselhos. Os falantes costumam ter um papel institucional e seus discursos apoiam-se com frequência no poder institucional. Nesse caso, consegue-se a aquiescência muitas vezes através de sanções legais ou de outros tipos de sanção institucional (VAN DIJK, 2008, p. 52).

Tal contexto, observado pelo viés dos modos de operação da ideologia de Thompson, também indica a ação da legitimação6, de fundamento carismático, devido ao fato de Monteiro Lobato ser um consagrado escritor da literatura infantojuvenil. Além da legitimação como categoria, uma estratégia classificada por Thompson com as mesmas características também se enquadra nesse contexto: a universalização, que se apresenta como “acordos institucionais que servem aos interesses de alguns indivíduos [e que] são apresentados como servindo aos interesses de todos [...]” (THOMPSON, 2002, p. 83). É inegável e incontestável a importância e quali6  “Relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas, como observou Max Weber, pelo fato de serem representadas como legítima, isto é, como justas e dignas de apoio” (THOMPSON, 2002, p. 82). Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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dade estético-literária da produção lobatiana tanto para o público infantojuvenil quanto para o público adulto. Mas a decisão de adquirir sua produção sob um suposto risco de perder espaço para a censura reitera a gravidade com o que os discursos de poder, fortalecidos pela tradição do cânone, podem atuar de modo ideológico na execução do PNBE. E isso ratifica, como consequência, o quanto essa política ainda se constrói em campos de tensão, mas não num sentido de tensão convencional à natureza política, e sim numa lógica de fragilidade por se revelar um Programa altamente vulnerável e submetido aos interesses de grupos. E a constante tentativa de fabricação do consenso como sendo a alternativa correta e adequada para todos é que dá o caráter de abuso de poder fundamentado numa “base de poder que permita um acesso privilegiado a recursos sociais escassos, tais como a força, o dinheiro, o status, a fama, o conhecimento, a informação, a ‘cultura’ ou, na verdade, as várias formas públicas de comunicação e discurso” (VAN DIJK, 2008, p. 117). Sobre a outra parte do último excerto aqui apresentado em que a entrevistada reconhece a gravidade do racismo operando na sociedade brasileira, é possível interpretá-lo sobre duas perspectivas. A primeira relaciona-se ao fato de que por mais que sejam válidas as reivindicações, há, por parte da entrevistada, impossibilidade de adesão a uma perspectiva mais engajada de literatura ou de concordar com censuras, sob pena de contrariar seus princípios de comprometimento com a arte literária. A segunda pode ser interpretada a partir do que Maria Aparecida Silva Bento (2002, p. 29) identificou como dificuldade de adesão em função da baixa “ligação emo-

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


cional” com o grupo reivindicador. Nesse aspecto, Bento analisa que os “agentes da exclusão moral compartilham de características fundamentais, como a ausência de compromisso moral e distanciamento psicológico em relação aos excluídos” (BENTO, 2002, p. 29). Igualmente problemáticas, essas perspectivas de intepretação apontam o quanto as tensões explicitadas por conta de uma polêmica parecem estar com solução distante. A preocupação de que o racismo institucional continue produzindo discursos e ações fundamentadas em abusos de poder por parte de grupos que controlam a seleção das obras e cujas vozes direta ou indiretamente influenciam “outros discursos que sejam compatíveis com o interesse daqueles que detêm o poder” (VAN DIJK, 2008, p. 18). E esse poder, ainda que não total, é simbólico, “isto é, em termos do acesso preferencial a – ou controle sobre – o discurso público” (VAN DIJK, 2008, p. 18). “Crucial no exercício do poder, então, é o controle da formação das cognições sociais por meio da manipulação sutil do conhecimento e das crenças, a pré-formulação das crenças ou a censura a contraideologias” (VAN DIJK, 2008, p. 84).

3. O racismo escamoteado na legitimação

Para interromper, e não encerrar essa análise, já que neste texto apenas uma parte da análise dos discursos captados na pesquisa foram apresentados, Cuti (2010) apresenta uma importante reflexão: Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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A literatura, em suas inúmeras tentativas de definição e conceituação, constitui uma das instâncias discursivas mais importantes, pois atua na configuração do imaginário de milhões de pessoas. Textos literários [...] chegam a ser impostos como leitura obrigatória em vários momentos de nossas vidas. Em outros são colocados à nossa disposição para que possamos escolher, nas vitrines e prateleiras das livrarias, em bancas de jornais ou nas bibliotecas. Essa disponibilidade de um livro [...] também é resultado de um ou de vários outros filtros. Filtrar significa reter algo e permitir que algo passe. [...] Assim como existe a tal ‘linha’ orientando o crivo (a escolha) entre os títulos a serem publicados ou não, também, posteriormente, haverá a seleção do que, estando disponível no mercado, deve receber o aval da publicidade ou da cumplicidade dos meios de comunicação e do Estado para redundar em leitura (CUTI, 2010, p. 47).

Concordando com Cuti (2010), reflete-se que se porventura não há, como afirmou a entrevistada, nenhuma interdição de livro literário de uma ou outra conotação, há pelo menos a manutenção de cânones baseados não só no “carisma” (conceito weberiano) e na qualidade literária, mas também no estabelecimento de barreiras frente a supostas tentativas de destruição da tradição pois, como lembra Cuti (2010, p. 47), “[f]alar e ser ouvido é um ato de poder. Escrever e ser lido, também”. Não se pode negar, no entanto, que em outras partes não exploradas neste artigo ficou evidente no discurso

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


da entrevistada o compromisso e o engajamento com o sucesso do PNBE como um Programa de formação de leitores/as. Mas predominaram, como aqui demonstrado, estratégias discursivas que reforçam a tese de racialização atuando nessa política educacional. E enquanto discursos e práticas legitimadoras em nome de uma “essencialização” e cristalização da arte literária restrita a determinados grupos de autores/as ou concepções continuarem sobrepondo-se à democratização das vozes na literatura (posicionadas não mais como exóticas, apartadas ou menos qualificadas), estaremos diante da também continuidade do PNBE fundamentado em bases racializantes.

Referências

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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BRASIL. Resolução CNE/CP nº 1, de 17 de junho de 2004. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 jun. de 2004, Seção 1, p. 11. CAMPOS, Nathalia de Aguiar Ferreira. Literatura e militância: o escritor brasileiro e seu ofício em sociedade nas décadas de 1930-1950. ReVeLe, Belo Horizonte, n. 5, p. 1-19, maio 2013, CUTI, Luiz Silva. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. (Coleção Consciência em Debate) DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora da UERJ; Vinhedo: Horizonte, 2012. FREIRE, Manoel. A retórica do oprimido: sobre a ideia de literatura militante em Lima Barreto. Travessias, Unioeste (on-line), v. 1, p. 1-16, 2008. MOTA, Rildo José Cosson. Avaliação pedagógica de obras literárias. Educação, Porto Alegre, v. 35, n. 3, p. 308-318, set./dez. 2012. PASSIANI, Enio. Na trilha do Jeca: Monteiro Lobato, o público leitor e a formação do campo literário no Brasil. Sociologias, Porto Alegre, ano 4, n. 7, p. 254-270, jan./ jun. 2002. SANTOS, Tarcyanie Cajueiro. A Campanha #somostodosmacacos de Neymar: uma reflexão sobre o racismo no futebol. CONGRESSO INTERNACIONAL COMUNICAÇÃO E CONSUMO – COMUNICON, 4., 2014. PPGCOM ESPM, São Paulo, 08 a 10 de outubro de 2014. Anais... Disponível em: <http://www.espm.br/download/

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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NEAB Capítulo 11

ESTRATÉGIAS IDEOLÓGICAS NOS ESTUDOS DO NEAB-UFPR

Thaís Regina de Carvalho Paulo Vinicius Baptista da Silvaideológicas Racismo, discurso e Educação: estratégias

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Capítulo 11 Estratégias ideológicas nos estudos do NEAB-UFPR

Thaís Regina de Carvalho1, Paulo Vinicius Baptista da Silva2

Neste capítulo, organizamos uma síntese de resultados das pesquisas desenvolvidas no NEAB-UFPR que fizeram uso do conceito de ideologia bem como da Hermenêutica de Profundidade, ambos desenvolvidos por Thompson (2002), em estudos no campo da Educação e da Psicologia Social. As pesquisas selecionadas referem-se aos resultados das teses de Silva (2008), Araujo (2015) e Nascimento (2015) e das dissertações de Nascimento (2009), Araujo (2010), Pacifico (2011), Oliveira (2011), Oliveira (2012), Santos (2012) e Falavinha. Com exceção da pesquisa de Silva (2008), todos os trabalhos foram defendidos no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR e são integrantes do NEAB desta instituição. Optamos por categorizar os estudos a partir das seguintes temáticas abordadas: debates que envolvem o Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE) e a utilização de obras de literatura infantojuvenil no am1  Doutora e Mestre em Educação pela UFPR, graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Pesquisadora do NEAB-UFPR e professora da rede municipal de educação de Curitiba/PR. 2  Pesquisador do CNPq, Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB-UFPR) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE-UFPR) da Universidade Federal do Paraná (PPGE-UFPR).

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


biente escolar; análises de livros didáticos do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), bem como de produções didáticas locais (do estado do Paraná). Além disso, também houve dois trabalhos que se dedicaram à verificação de conteúdos de documentos legais e materiais que subsidiam o trabalho docente, em especial diretrizes curriculares. Considerando os diferentes contextos em que as formas simbólicas estão inseridas, as pesquisas analisaram relações assimétricas de poder, ou seja, relações de dominação, conforme propõe Thompson (1995). Vale ressaltar que o foco desta síntese final são estudos que focam os Modos de operação da ideologia. Em sua dissertação de mestrado, Araujo (2010) discutiu sobre as potencialidades de tal referencial: Por meio da Hermenêutica da Profundidade foi possível construir uma estrutura de análise para além dos episódios discursivos, propiciando condições mais amplificadas de interpretação da ideologia que se mostrou presente em todos os níveis, desde a análise sócio histórica, passando pela análise formal ou discursiva e sendo identificada de modo mais evidente na (re)interpretação das formas simbólicas. Paralelamente, o Enfoque Tríplice atuou por toda a extensão da pesquisa (produção e transmissão, construção das mensagens comunicativas e posterior recepção/interpretação), o que contribuiu para fundamentar os resultados encontrados por meio do referencial metodológico da HP. (ARAUJO, 2010, p. 170).

Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Categorizando os Modos de operação da ideologia utilizados para analisar o PNBE, foram identificadas as pesquisas de Araujo (2010; 2015) e Oliveira (2011). Embora com enfoques diferentes, tratam-se de estudos que investigaram o PNBE: a primeira pesquisa de Araujo enfatizou os discursos sobre os grupos raciais brancos e negros a partir de obras de literatura infantojuvenil presentes em acervo do PNBE; já a segunda, ainda que tangencialmente no uso da teoria de Thompson, desenvolveu análise do contexto de elaboração dos editais e da seleção dos livros que compõem o PNBE; e Oliveira (2011) analisou o acervo literário do PNBE de 2008, destinado à educação infantil. O quadro a seguir ilustra como a Hermenêutica de Profundidade (HP) se apresentou nos estudos citados.

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


Quadro 1. Pesquisas sobre PNBE e detalhamento da HP. FASES HP AUTOR/A ANO

Análise SócioHistórica • Teoria literária

sobre a literatura infantojuvenil (LIJ);

• Ideologia e rela-

ARAUJO (2010)

ções raciais relacionadas à LIJ;

• Relações

na escola;

Análise Formal ou Discursiva

Interpretação/ Reinterpretação3

• Análise de discurso: • Legitimação;

estudo exploratório e observação parti- • Dissimulação; cipante de aulas de • Unificação; leitura em turmas de 4ª série. • Fragmentação; • Reificação.

raciais

• Documentos rela-

tivos ao PNBE.

OLIVEIRA (2011)

• Levantamento

das pesquisas sobre LIJ e relações raciais;

• Relações

raciais na escola brasileira;

• PNBE. • Estudos

• Análise de conteú- • Legitimação;

do: textos e imagens de obras de • Dissimulação; literatura infantil do • Fragmentação; acervo do PNBE 2008 de educação • Reificação. infantil

críticos • Análises de discursobre relações étsos, editais e docunico-raciais, LIJ e mentos oficiais do ERER; MEC, SECADI e ARAUJO (2015) Instituição de Ensi• Documentos relano Superior respontivos ao PNBE. sável pela avaliação pedagógica do PNBE.

• Legitimação; • Dissimulação; • Fragmentação; • Reificação.

FONTE: A autora e o autor.3

A segunda categoria de estudos focou as políticas do PNLD: Silva (2008), por meio dos livros didáticos de 3  Devido à extensão das informações nos quadros, optamos por apresentar apenas os Modos de operação da ideologia, sem focar nas estratégias. Para maiores detalhamentos das pesquisas, acessar: <http://www.ppge.ufpr.br/teses.htm>. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Língua Portuguesa, Santos (2012), através de análises dos livros de Geografia, e Falavinha (2013), que também estudou os livros de Língua Portuguesa. As pesquisas foram organizadas da seguinte forma: Quadro 2. Pesquisas sobre PNLD e detalhamento da HP. FASES HP

AUTOR/A ANO

Análise SócioHistórica

Análise Formal ou Discursiva

do: características das unidades de • Produção de lileitura em livros divros didáticos no dáticos de Língua SILVA (2008) Brasil. Portuguesa para 4ª série do ensino fundamental (publicados entre os anos de 1975 a 2003) • Racismo à brasi- • Análise de conteúleira; do: imagens de livros de Geografia • Pesquisas sobre do 2º ano de ensino discursos racistas fundamental. SANTOS (2012) em várias mídias e principalmente nos livros didáticos; • Papel do PNLD. • Revisão biblio-

gráfica sobre o livro didático e o PNLD;

• Infância e direito

das crianças.

• Dissimulação; • Fragmentação; • Reificação.

• Legitimação; • Dissimulação; • Fragmentação; • Reificação; • Banalização.

• Análise de discurso: • Dissimulação;

entrevistas com as professoras, dire- • Fragmentação; ção e pedagogas; • Reificação. • Acompanhamento de aulas de Língua Portuguesa no 5º ano; • Análise de conteú-

do: dois livros de Língua Portuguesa do 5º ano.

FONTE: A autora e o autor.

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Reinterpretação

• Racismo no con- • Análise de conteú- • Legitimação;

texto brasileiro;

FALAVINHA (2013)

Interpretação/

Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


O Quadro 3 também apresenta elementos essenciais para a discussão, pois retrata diferentes estratégias de análise das formas simbólicas, considerando contextos específicos. Além disso, Silva (2008) abordou de maneira detalhada a contextualização do PNLD, bem como o debate sobre relações raciais no Brasil, problematizando o impacto da ideologia racista nos livros didáticos: “Em termos de políticas educacionais, podemos afirmar que os alunos recebem uma produção homogeneizada, que veicula discurso racista normalizando a condição de branco e desvalorizando a condição de negro”. (SILVA, 2008, p. 204). E a pesquisa de Santos (2012), ao apontar que os discursos dos editais do PNLD são ideológicos, também abrange elementos relevantes no que diz respeito à banalização como um dos modos de operação da ideologia. O autor observou que tal modo se explicitou através do discurso de igualdade em detrimento do reconhecimento das desigualdades existentes. Sobre esse assunto, Silva (2008, p. 76) explanou que “[...] a negação da existência de discriminação e desigualdades raciais serviu como forma de ocultar a dominação racial”. Outro elemento relevante na pesquisa de Santos (2012) refere-se ao fato de que os editais do PNLD analisados em seu estudo focam nas formas de discriminação explícitas, porém, diante do racismo à brasileira, a discriminação continua operando de modo implícito e acaba não sendo observada a contento pelos/as avaliadores/ as dos livros didáticos. Sendo assim, o autor concluiu que ainda que avanços foram observados, o estabelecimento de prescrições no próprio Programa não foi suficiente para totais mudanças nos livros. Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Em perspectiva semelhante, Silva (2008) já analisava como as relações raciais no Brasil se configuram: Os discursos, no geral, negam a existência de discriminação racial e procuram disfarçá-la, buscam reiterar os ideários da democracia racial e das três raças, reafirmando estereótipos racistas, grande parte das vezes de forma indireta. Em geral o tratamento discriminatório não é direto, mas implícito. (SILVA, 2008, p. 95).

Já o estudo de Falavinha (2013), ao buscar apreender sobre os direitos das crianças e adolescentes em LD, deparou-se com hierarquias nas relações etárias e além uma pertinente reflexão sobre as diversas relações de dominação. Também com foco nos livros didáticos, porém com recorte para os livros públicos do estado do Paraná, Pacifico (2011) e Oliveira (2012) constataram que a ideologia também vem operando nesses contextos. O quadro a seguir sintetiza tais estudos.

358

Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


Quadro 3. Pesquisas sobre LD públicos do PARANÁ e detalhamento da HP. FASES HP

AUTOR/A ANO

Análise SócioHistórica

Análise Formal ou Discursiva

• Políticas de pro-

• Análise de conteú-

moção da igualdade racial e relações raciais no Brasil;

• Políticas

PACIFICO (2011)

educacionais sobre a produção de livros didáticos para o ensino médio na rede estadual de educação do Paraná;

Interpretação/ Reinterpretação

• Legitimação; do: textos, imagens e contextos de pro- • Dissimulação; dução do livro pú• Fragmentação; blico “Folhas” (Língua Portuguesa e • Reificação. Educação Física)

• Atualização

das pesquisas sobre relações raciais e livros didáticos.

• Processo de in-

OLIVEIRA (2012)

• Análises de conteúviabilização da do e documental: população negra Textos e imagens na história do Pado livro público Foraná e as particulhas (Arte); laridades dessa Curripopulação na • Diretrizes culares de Artes e produção e ensiArte para a Educano de Arte; ção Básica do Es• Contradições entado do Paraná tre as normativas de ERER e as políticas efetivadas;

• Legitimação; • Dissimulação; • Unificação; • Fragmentação; • Reificação.

• Pesquisas sobre

livros didáticos e desigualdades raciais.

FONTE: A autora e o autor.

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Os dois estudos assinalam a ausência de diálogo de duas produções didáticas do estado do Paraná e as políticas públicas de promoção da igualdade racial. Tais políticas foram identificadas nos livros analisados de maneira pontual. Nessa direção, Pacifico (2011) chamou atenção para o fato da “guetização das políticas públicas”, em que a efetivação se deu de forma isolada, ou seja, sem a incorporação em políticas mais amplas. Oliveira (2012) também analisou que a ausência de preocupação com a diversidade étnico-racial não se deu apenas nos livros, mas também nas Diretrizes Curriculares de Artes e Arte para a Educação Básica do Estado do Paraná, já que nesse documento a arte europeia era representada como padrão. Tal contexto evidenciou a branquidade normativa em detrimento da valorização e reconhecimento das demais culturas. Tanto a pesquisa de Pacifico (2011) quanto a de Oliveira (2012) acionaram elementos relevantes na investigação da HP em políticas educacionais, em especial na gestão das políticas de promoção da igualdade racial. A análise de diretrizes curriculares também foi desenvolvida por Nascimento (2015). Salientando a disciplina de Ensino Religioso, o autor investiu análise em livros didáticos (NASCIMENTO, 2009) e em documentos referenciais dessa disciplina na educação básica (NASCIMENTO, 2015).

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Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas


Quadro 4. Pesquisas sobre LD e documentos no ensino religioso e detalhamento da HP. FASES HP

AUTOR/A ANO

Análise SócioHistórica

Interpretação/ Reinterpretação

• Racismo e rela- • Análise de conteú- • Dissimulação;

ções raciais no Brasil;

• Estudos

NASCIMENTO (2009)

Análise Formal ou Discursiva

sobre de­sigualdades ra­ ciais nos livros didáticos e em especial nos de Ensino Religioso;

do: livros didáticos de Ensino Religioso • Fragmentação; direcionados à 5ª a • Reificação. 8ª série do ensino fundamental (publicados entre 1977 e 2007).

• Revisão da his-

tória do ensino religioso no Brasil, considerando as concepções confessional, interconfessional e fenomenológica. • Discussão sobre • Análise documental: raça; atos normativos que regulamentam o en• História do ensino sino religioso nos religioso; estados da Região Sul; Diretrizes Cur• Religião de matriz riculares da Eduafro brasileira e o cação Básica de pensamento soEnsino Religioso; cial. Caderno pedagógiNASCIMENTO (2015) co de Ensino Religioso da Secretaria de Estado da Educação do Paraná; boletins e apostilas de formação da Associação Inter-religiosa de Educação; relatórios de conferências nacionais.

• Legitimação; • Dissimulação; • Fragmentação; • Reificação.

FONTE: A autora e o autor.

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A partir desses dados é possível observar que, no que se refere às relações entre brancos e negros, tanto nos livros didáticos como nos documentos, a ideologia esteve presente nas ações e materiais que envolvem o ensino religioso no Brasil. O autor refletiu sobre tal contexto ressaltando que “[...] programas e muitas iniciativas foram normatizadas em textos de lei, mas, no campo da aplicação e normativas que orientam essas práticas ficaram, segundo a análise empreendida na tese, muito no campo da superficialidade”. (NASCIMENTO, 2015, p. 9). Com esta breve síntese, foi possível demonstrar como o conceito de ideologia e a metodologia da Hermenêutica de Profundidade, ambas de Thompson (1995), contribuíram para a interpretação das formas simbólicas em contextos específicos, além de contribuir na análise das relações assimétricas de poder, ou seja, as relações de dominação. E considerando cada contexto e todas as fases da HP foi possível verificar permanências e avanços nas discussões. Entre os avanços destacam-se: Quadro 5. Alguns avanços elencados nas pesquisas. AUTOR/A ANO

AVANÇOS

Tendência de modificações positivas no terceiro período (1994/2003), principalmente na representação das famílias dos personagens negros. Importância do papel do Movimento Negro, pois as editoNascimento (2009) ras buscaram responder às reivindicações de tais movimentos e de pesquisadores/as da área. Alterações na atuação pedagógica de professoras branAraujo (2010) cas na promoção de rupturas de modelos depreciativos de representação da cultura africana. Atendimento parcial das políticas de promoção da igualPacifico (2011) dade racial nos livros públicos de Educação Física. Melhoras nas qualidades dos desenhos e da imagem Oliveira (2011) do/a negro/a. Presença de personagens negros/as em contextos famiSantos (2012) liares e em atributos de valorização. Silva (2008)

FONTE: A autora e o autor.

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Como é possível observar, as pesquisas aqui elencadas apontam limitações e avanços no que se refere à discussão sobre políticas educacionais e relações raciais, demonstrando, em diversos contextos como a ideologia opera por meio de estratégias e modos típicos.

Referências

ARAUJO, Débora Cristina de. Relações raciais, discurso e literatura infantojuvenil. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2010. ARAUJO, Débora Cristina de. Literatura infanto-juvenil e política educacional: estratégias de racialização no Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2015. FALAVINHA, Karina. Livros didáticos de língua portuguesa: escolha, distribuição, uso e discussão sobre os direitos das crianças e adolescentes. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2013. NASCIMENTO, Sergio Luis do. Relações raciais em livros didáticos de Ensino Religioso do Ensino Fundamental. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2009. NASCIMENTO, Sergio Luis do. Políticas de ensino religioso e educação das relações étnico-raciais no BraRacismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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sil. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2015. OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes de. Arte e silêncio: a arte africana e afro-brasileira nas Diretrizes Curriculares Estaduais e no Livro Didático Público de Arte do Paraná. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2012. OLIVEIRA, Veridiane Cintia de Souza. Educação das relações étnico-raciais e estratégias ideológicas no acervo do PNBE 2008 para educação infantil. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2011. PACIFICO, Tânia Mara. Relações raciais no livro didático público do Paraná. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2011. SANTOS, Wellington Oliveira dos. Relações raciais, Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e livros didáticos de Geografia. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2012. SILVA, Paulo Vinicius Baptista da. Relações raciais em livros didáticos: estudo sobre negros e brancos em livros de Língua Portuguesa. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. (Coleção Cultura Negra e Identidade)

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NEAB SOBRE OS AUTORES


Sobre os autores Paulo Vinicius Baptista da Silva Minhas escolhas em pesquisar relações raciais no Brasil têm focos bastante precisos em minha trajetória. Da infância em Belo Horizonte, cidade onde nasci e cresci, trago duas vozes que considero vitais para constituir meu discurso. Minha avó, Dona Quininha, transmitia pela fala e pelas ações o orgulho de ser negra/o, a altivez e a crença em nossa inteligência como forma de suplantar barreiras. Minha mãe, Dona Eugênia, exemplo de persistência e superação regada com doçura e humanidade, que me transmitiu também o amor intenso pela leitura e pelos livros. Na escola e no bairro, cresci em um ambiente com muitas hostilidades, especialmente raciais. Cotidianamente me lembravam, conhecidos, “amigos”, de minha condição de “preto” e que por isso seria menor. Notadamente durante o período da pré-adolescência convivi com um conhecido, dois anos mais velho, que era pródigo nas ofensas raciais. Anos mais tarde, por conta do trabalho, mudei para Curitiba e em 1987 ingressei no curso de psicologia da UFPR. O primeiro trabalho de pesquisa que realizei foi sobre “efeitos do discurso da negritude”, tema que posteriormente ficou latente por não encontrar nem na psicologia, nem no mestrado em educação, interlocução ou possibilidade de orientação. Em 1996, terminado o mestrado, ingressei como docente na UFPR. Foi somente no doutorado, iniciado em 2001, que o racismo se tornou foco de minhas pesquisas. Desde então o racismo e a educação antirracista passaram a ser os temas principais a que me dedico no trabalho em ensino-pesquisa-extensão e, como expresso neste livro, na orientação.

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Débora Oyayomi Araujo Nasci como Débora Cristina de Araujo e renasci como Oyayomi. E nas duas vezes renasci em Curitiba. Com quase cinco anos de idade do primeiro nascimento, eu, meu pai, minha mãe e meu irmão Fábio, na época um bebê de quinze dias de vida, nos mudamos para o noroeste do Paraná, em Santa Isabel do Ivaí. Lá vivi toda a minha infância, adolescência e parte da vida adulta. Por isso me considero, e meu sotaque me entrega, mais isabelense do que curitibana. As minhas experiências escolares foram determinantes para as minhas escolhas profissionais, já que eu me inspirei em professoras que transgrediam os modelos tradicionais de relação professora-aluna/o. Mas foram também as experiências escolares que definiram meu modo de ser e de agir no mundo diante do racismo. À parte a violência simbólica e física do ambiente escolar, lá descobri algo que gostava desde muito pequena: estudar. Foi nessa pista que segui meu objetivo/sonho de infância: ser professora. Atuando inicialmente com crianças pequenas, depois adolescentes e agora adultas/os, vejo que não errei na escolha. E com o contato com os estudos sobre relações raciais, meu olhar sobre a educação foi se ampliando. Já de volta a Curitiba em 2006, ao participar do III Encontro de Educadores/as Negros/as do Paraná, tive acesso a nomes referenciais do Movimento Negro paranaense. E a partir desses nomes fui conhecendo outros tantos no âmbito da militância social e sindical até chegar à UFPR. Primeiro como aluna de disciplina isolada e depois ingressante no mestrado, foi no NEAB-UFPR que cresci como pesquisadora e militante. A atuação nos cursos de formação docente, no desenvolvimento de pesquisas e no contato direto e indireto com autores/as que antes só conhecia pelos textos, foram preponderantes para o fortalecimento da autoestima intelectual. Unido a isso, o processo iniciático no Candomblé me ajudou a lidar com todos os conflitos de uma trajetória marcada pelo racismo. E a literatura infantil e juvenil foi o grande motor de todo o processo que me trouxe até aqui. Hoje atuo como professora da Universidade Federal do Espírito Santo na área da Educação das Relações Étnico-Raciais, mas gosto mesmo é de me apresentar como professora da educação básica pois, já sabem o ditado: a gente sai da escola mas a escola não sai da gente! Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Wellington Oliveira dos Santos Linguagem é uma manifestação de poder. Na minha família aprendemos isso antes de aprender a falar. A palavra falada para nós tem carga especial, capaz de determinar destinos; como outros negros da diáspora, esse é um traço cultural africano que mantemos. As crianças crescem ouvindo que terão melhor oportunidade que seus pais, e para isso precisam estudar. Mas também aprendem em casa que o mundo lá fora (incluindo a escola) usa a linguagem falada, escrita, impressa, televisionada, downloadeada, etc., para impor padrões estéticos diferentes dos que enxergam no espelho. É por isso que cada vez que um de nós vence um desafio nesse mundo, todos vencem. Quando um dos filhos da empregada saiu do barraco de madeira no território conhecido como favela para ingressar no espaço universidade, nós vencemos. Quando foi cotista racial graduado, nós vencemos. Quando entrou no mestrado (fez a pesquisa que deu origem ao capítulo aqui apresentado) e no doutorado, nós vencemos. Seu corpo negro, assim como os corpos de outras negras e negros que tiveram a mesma oportunidade, foi símbolo, foi linguagem. Linguagem que será contada por gerações.

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Verediane Cíntia de Souza de Oliveira Chamo-me Verediane Cintia de Souza Oliveira, nasci no dia 11/03/1984 em Curitiba. Aos sete anos de idade enfrentei juntamente com meus irmãos a morte de nosso pai, sendo cuidados apenas por nossa mãe (diarista) que nos colocou na creche para poder trabalhar. Passávamos o dia todo nessa creche (A Mão Cooperadora), na qual fiquei dos cinco aos quatorze anos em regime de contra turno. Aos dezessete anos voltei para essa creche para trabalhar como professora, já havia concluído o ensino médio. Um ano depois comecei a fazer o magistério a distância e no ano posterior estava trabalhando em período integral, fazendo cursinho à noite e magistério aos sábados. No ano de 2004 ia tentar pela terceira vez o vestibular da Universidade Federal do Paraná, mas tinha desistido por falta de condições de pagar a taxa de inscrição. Então, o Pastor da minha igreja (Sérgio) pagou minha inscrição e eu pude tentar o vestibular. Entrei por cotas na UFPR no curso de Pedagogia e durante a graduação morei com uma família da igreja (Magda e Cornélio), pois no horário que acabavam as aulas já não tinha mais ônibus para voltar para minha casa em São José dos Pinhais. No dia da matrícula passei por uma banca e fiquei muito feliz ao ver mestres e doutores negros me olhando com olhar de satisfação, como se comemorassem comigo minha conquista. Durante a faculdade fui convidada pelo professor Paulo Vinicius para fazer pesquisa e trabalhei com o professor Hilton Costa com bolsa pela Fundação Araucária. A partir desse momento me integrei ao NEAB, e durante o mestrado participei da banca de avaliação dos cotistas e também os encaminhei aos cursos de língua estrangeira numa parceria Neab-Celin. Pela empresa A Mão Cooperadora na qual estava trabalhando, tive a oportunidade de ir para a Alemanha por três vezes para fazer uma tournée de música. Na última viagem no ano de 2008 eu estava me preparando para realizar a prova do mestrado, estudei durante a viagem, voltei, fiz a prova e fui aprovada no mestrado. Em março de 2009 eu me formei e dei sequencia às aulas do mestrado, defendi minha dissertação em março de 2011. Em 2009 também me tornei pedagoga na Mão Cooperadora, me afastei para a conclusão do mestrado e hoje atuo como diretora nessa mesma entidade na unidade do Campo Comprido e atuo também como formadora pelo projeto “A Cor da cultura”. Casada com Alexandre Oliveira, mãe da Luanna (5) e da Lorenna(1).

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Megg Rayara Gomes de Oliveira Meu nome é Megg Rayara Gomes de Oliveira. Tenho quatro irmãos e duas irmãs. Meu nome é uma homenagem e um pedido desculpas a outra travesti preta, que como eu nasceu e cresceu em Cianorte, noroeste do Paraná. Nunca trocamos palavra, mas em muitos momentos ela foi a coragem materializada. A coragem que me fez acreditar em possibilidades de existir, apesar do racismo e da transfobia. Minha existência também é acadêmica e me fez migrar para Curitiba em busca de formação e TRANS-formação. Na cidade fria de tons acinzentados consegui me reinventar. Transformei meu corpo. Realizei sonhos. Essa TRANS-formação inclui uma graduação em Licenciatura em Desenho e uma especialização em História da Arte na Escola de Música e Belas Artes do Paraná; uma especialização em História e Cultura Africana e Afro-Brasileira na Universidade Tuiuti do Paraná; um mestrado e um doutorado em educação na Universidade Federal do Paraná. Esse trajeto acadêmico me colocou em contato com pessoas que eram referências bibliográficas. Uma dessas referências, o Dr. Paulo Vinícius Baptista da Silva me abriu as portas da Universidade Federal do Paraná e me aceitou como orientanda de mestrado, e me ajudou a entender o silêncio em torno da estética e da cultura africana e afro-brasileira no ensino da arte no Paraná. No doutorado me propus a discutir racismo e homofobia na educação de maneira interseccional e outra referência bibliográfica me acolheu. Dessa vez a Dra. Maria Rita de Assis César que além de me colocar em contato com os estudos de gênero de maneira mais aprofundada, me convenceu a tentar uma vaga como professora substituta de didática na UFPR. A tentativa deu certo e me tornei a primeira travesti professora na Universidade Federal do Paraná. Dedico esse texto a Megg, uma travesti preta como eu que ousou sonhar, ousou existir. Ousou resistir.

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Tânia Mara Pacifico Nasci em Curitiba (1965) em uma família de origem mineira e carioca. Desde muito cedo ouvia com meu pai o disco de vinil – Aquarela do Brasil. Também com ele, Almir Pacifico, chorava ao ver os filmes norte-americanos que tinham como enredo a temática racial. Ao ir para uma escola particular de freiras, uma amiga “revelou-me” que minha pele preta era fruto de um pecado; pois Deus havia dado três talentos para três homens e o único que não conseguiu multiplica-lo foi condenado a ter a pele preta e morar nos países africanos, condenando assim toda a sua descendência. Minha resposta desde então foi sempre estudar muito, para superar a discriminação com competência intelectual. Sou formada em pedagogia pela Universidade Estadual de Maringá (1989). Em 1999 ingressei no mestrado na UFPR e não consegui concluir. Hoje, olhando para trás, acredito que o racismo institucional esteve presente. Tenho uma filha - Audrey - e um filho - José Carlos- que são a razão da minha vida e, juntamente com dois novos amores, Fábio e André, tornam meus dias mais felizes. Trabalhei no Grupo de Trabalho Clóvis Moura com Glauco Souza Lobo e equipe maravilhosa (Dudu, Carlinhos, Nará, Tosca, Claudemira, Agnaldo e Eunice), GT que mapeou as comunidades quilombolas do Paraná; na Secretaria de Educação do Paraná num período na CERDE com Adir Simão de Souza e em outro momento sob a coordenação de Edna Coqueiro, amigo e amiga que me acompanham na defesa da educação das relações étnico-raciais e na vida. Atualmente integro a diretoria do Núcleo Sindical da Área Sul, como secretaria de combate ao racismo e promoção da igualdade racial. Sou do Candomblé e reverencio minha Iyá Gunan (Dalzira Aparecida) e a proteção de minha mãe Oxúm. Com elas sou mais forte. Fiz duas especializações e conclui o mestrado na UFPR em 2011 na Linha de Políticas Públicas Educacionais, sob a orientação do Professor Dr. Paulo Vinícius Baptista da Silva, que junto com minha mãe (in memorian) Vilma da Silva Pacifico, minha irmã Telma, meus irmãos Tony e Tedy, minha sobrinha Laís, meu primo Flávio Pacifico e minha amiga Rozana Teixeira, me fazem acreditar em mim! Racismo, discurso e Educação: estratégias ideológicas

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Sergio Luis do Nascimento Toda a minha ancestralidade localiza-se no estado de Minas Gerais, mais especificamente na cidade de Belo Horizonte; cidade que nasci na década de 1970 aos sons do Clube da Esquina de Milton Nascimento, Lô Borges e dos contos de Guimarães Rosa narrados no radio que marcaram a minha tenra idade. Boa parte da minha adolescência foi na cidade histórica de Santa Luzia, região metropolitana de Belo Horizonte onde minha mãe Irene e meu irmão Sidney ajudaram moldar o meu caráter e a minha personalidade nos anos difíceis da década de 1980, no bairro São Benedito. Cursei nesse bairro o ensino básico e participei das primeiras Comunidades eclesiais de Base conhecendo a Teologia da Libertação e a vocação missionária, ingressando no seminário católico e atuando junto as essas comunidades no interior do estado de São Paulo e depois na cidade de Pinhais; cidade que fica na região metropolitana de Curitiba, no estado do Paraná. Neste estado conheci uma outra vocação a da docência; como professor fui despertado à pesquisa realizando o mestrado, concluído em 2009 e o doutorado em 2015 na Universidade Federal do Paraná. Pesquisas que fortaleceram a minha ancestralidade e confirmaram o que Neusa Souza Santos descreveu com maestria “Não se nasce negro, tornar-se negro”. Desde então atuo como professor na Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC-PR como professor de Filosofia e ensinando e aprendendo que os legados do racismo epistemológico podem ser rompidos sempre que recordarmos que a memória dos ancestrais é crucial na epistemologia.

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Karina Falavinha Nasci em um verão, na Cidade de Curitiba. Capricorniana com ascendente em Capricórnio. Às vezes, teimosa, irreverente, paciente e rude. Sou uma pessoa que age em prol das justiças sociais. Por isso, a vida torna-se uma luta constante em que se briga de várias formas e em muitos lugares. Dentre alguns, a educação é um lugar no qual transito e pelo qual, brigo muito, pois é um dos espaços acometidos pelas injustiças. Lembro de minha vida escolar, em que eu e outras crianças não podíamos muito falar, tínhamos que abaixar a cabeça e ficar em silêncio quando nos fitavam. Também fiquei em silêncio na infância, ao presenciar situações de violência contra a mulher. Com vontade de falar, eu cresci. Escolhi estudar o Magistério, e aos 16 anos me tornei professora da educação infantil. Aos 20, professora de Ciências dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Mais tarde, cursei Pedagogia e me deparei com algumas feministas especiais que alavancaram minha luta e minha vida acadêmica. Tive a oportunidade de estudar sobre Gênero e Sexualidade, Raça, Infância e Classe. Entrei no Mestrado em 2011, e tive o interesse em estudar sobre os direitos de crianças e adolescentes vinculados nos livros didáticos em uso na sala de aula. De lá para cá, aumenta meu interesse em estudar os direitos de participação social e política, mas, visibilizando também, os jovens. É este o tema que venho me debruçando no doutorado. É, em especial, na escola, na universidade e em casa, que venho construindo espaços de resistência na defesa dos direitos sociais e da justiça, sobretudo com estudantes, com colegas e com minha filha.

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Thaís Regina de Carvalho Sou Thaís Carvalho, nascida em Floripa/ SC, filha de Sônia Carvalho e João Donato de Carvalho, irmã da Laís e da Carol, neta da Geninha, Ada, Zena e Iris. Destaco a minha família, pois essas pessoas fazem toda a diferença na minha trajetória, ensinando-me que “meus passos vêm de longe”. O papel fundamental dos estudos, bem como da construção de uma autoestima e identidade negra valorizada sempre foram muito enfatizadas em âmbito familiar. Tal fato, impulsionou-me a constantemente buscar a ampliação dos conhecimentos a partir de múltiplas experiências. Cursei a maior parte da educação básica em escolas de porte pequeno e no último ano do ensino médio prestei vestibular para o curso de Pedagogia na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Fui aprovada e iniciei os estudos no ano de 2007. Logo, ingressei como bolsista no Núcleo de Estudos Afro Brasileiros (NEAB/UDESC), no qual tive a oportunidade de conhecer e vivenciar os espaços acadêmicos através de ações de pesquisa, ensino e extensão. No final do ano de 2010 participei do processo de seleção de mestrado na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Fui aprovada e junto a isso emergiram desafios, como por exemplo, a mudança de cidade, adaptação a universidade, novas pesquisas e leituras. Iniciei os estudos no ano de 2011 e finalizei no ano de 2013 tendo como tema de pesquisa as políticas de promoção da igualdade racial na educação infantil. No mesmo ano comecei a atuar como professora da educação básica na rede municipal de Curitiba/PR e participei da seleção para o doutorado na UFPR. Em março de 2014 ingressei no doutorado e dei continuidade aos estudos sobre a referida temática. Em 2018 conclui o doutorado e sigo como pesquisadora e professora da educação básica realizando estudos na área de políticas para a educação infantil, diversidade étnico-racial e relações raciais no Brasil.

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