Valongo Saúde - N.º 8 - outubro 2024

Page 1


N. 8 — EDIÇÃO ESPECIAL OUTUBRO 2024

+ cidadania melhor saúde Valongo

Democracia participativa e saúde

A SAÚDE, NOMEADAMENTE A PROTEÇÃO NA DOENÇA, É TALVEZ O MAIS BÁSICO DOS DIREITOS DEMOCRÁTICOS, UMA VEZ QUE É NESSA CIRCUNSTÂNCIA QUE O INDIVÍDUO MAIS NECESSITA DO APOIO COLETIVO. TALVEZ POR ISSO, EM PORTUGAL, UMA BOA PARTE DAS PESSOAS ASSOCIA O REGIME DEMOCRÁTICO AO NASCIMENTO DO SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE.

SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE: O DIREITO À PROTEÇÃO DA SAÚDE, O DEVER DA SUA DEFESA E PROMOÇÃO

ARQUITETOS DE FAMÍLIA: UM LUGAR NA CRIAÇÃO E VIABILIZAÇÃO DA ENCOMENDA, E NÃO SOMENTE A SUA CONCRETIZAÇÃO.

CIDADES SAUDÁVEIS: A VISÃO, OS VALORES E OS OBJETIVOS DE UM PROJETO QUE SE TORNOU UM MOVIMENTO GLOBAL

melhor saúde Valongo

+ cidadania

FICHA TÉCNICA / N. 8 — EDIÇÃO ESPECIAL / OUTUBRO 2024

Publicação da Câmara Municipal de Valongo

Edição

Divisão de Saúde

Colaboração

Alcindo Maciel Barbosa | Maria de Belém Roseira | Aitor Varea Oro, Marta Sousa, Bruna Lee Azado (FAUP - Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto) | António Almeida Dias (CESPU - Cooperativa de Ensino Superior Politécnico e Universitário) | Miguel Telo de Arriaga e Leonor Quelhas Pinto (Direção Geral de Saúde) | Cecília Shimm

Projeto gráfico e paginação

Gabinete de Comunicação da CMV

Edição Digital

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

Democracia participativa e saúde

Portugal é um país em que boa parte dos cidadãos associa o regime democrático em que vive desde o 25 de Abril – que celebra este ano o seu cinquentenário – ao nascimento do Serviço Nacional de Saúde (SNS). A memória coletiva associa a democracia ao Estado Social, no qual os cuidados de saúde ombreiam com a Educação e a Segurança Social. É bom que assim seja: significa que os últimos 50 anos de vida pública no país se distinguiram pela realização dos princípios cívicos republicanos da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, pela justiça social, pela igualdade de oportunidades e pelo funcionamento do elevador social.

A saúde, a proteção na doença, é talvez o mais básico dos direitos democráticos, uma vez que é nessa circunstância que o indivíduo mais necessita do apoio do coletivo. Por essa razão é muito importante investir, quer na literacia política da população, quer na sua literacia em saúde.

No Município de Valongo tentamos responder da melhor forma a este duplo desafio. Como esta revista bem demonstra, consideramos fundamental integrar a população na formulação da estratégia municipal de saúde de Valongo, iniciada em 2020. Pedimos-lhe, ao longo dos anos, que acompanhe a estratégia municipal e que faça propostas para a melhorar e a ajustar às exigências de saúde pública de cada momento.

Também na saúde, Valongo é uma autarquia participativa! Aliás, Valongo preside atualmente à Rede de Autarquias Participativas em Portugal, sendo uma referência nacional do envolvimento das cidadãs e dos cidadãos – de

todas as idades, gerações e géneros – nas tomadas de decisão dos órgãos políticos autárquicos. Ora, sendo a saúde um tema central do contrato social das democracias, faz parte do nosso processo participativo criar dinâmicas de apresentação e de partilha de conhecimento nesta área.

Este estímulo que fazemos à participação dos cidadãos e ao seu diálogo com os eleitos municipais para influenciarem as decisões políticas locais, é a forma como, neste município, respondemos ao desafio de envolver os cidadãos na política e de aumentar a sua literacia na matéria. Fazemo-lo porque constatamos que os mecanismos de democracia participativa melhoram as escolhas políticas e qualificam todos os elementos da comunidade. Beneficiam, de facto, a qualidade das políticas públicas.

Este tema esteve no centro da 23ª conferência do Observatório Internacional da Democracia Participativa – OIDP, realizada em Valongo em 17, 18 e 19 de outubro de 2024, dando seguimento à conferência realizada no Rio de Janeiro em 2023 e em Grenoble em 2022. Este ano dedicada ao tema “Ameaças populistas: Construir a Resiliência Democrática com Comunidades Participativas”, a conferência em Valongo centrou-se no potencial dos mecanismos da democracia participativa para combater a desinformação que invade as sociedades contemporâneas, seja “online”, pelas redes sociais, seja através dos média tradicionais, como a televisão.

Os processos participativos contêm em si próprios as virtudes dos sistemas democráticos

e das suas regras e processos, constituindo-se como escolas de práticas democráticas e verdadeiras incubadoras de resiliência às “fake news”.

É por os mecanismos de participação democrática trazerem para o centro dos debates a ciência, o conhecimento baseado em evidências, os métodos académicos, a reflexão e os estudos que são verificados, auditados e escrutinados pelos pares, que neles reside o futuro dos regimes democráticos e do Estado Social!

Se isto é válido em todos os domínios da vida coletiva, é particularmente relevante no que à saúde diz respeito. Isso fez-nos avançar em 2024 para a I Bienal da Saúde de Valongo, realizada em abril em Ermesinde e subordinada ao tema “Saúde e a Economia de Bem-Estar”. Esta é uma Bienal da Saúde desenhada não só para divulgar no concelho de Valongo as mais avançadas tendências das políticas de saúde, mas também para fomentar dinâmicas de auscultação das questões que os cidadãos e os seus representantes comunitários tenham a colocar aos especialistas que nela são oradores. Foi assim na primeira edição em 2024, será assim nas próximas edições.

A qualidade do sistema de saúde de um país, de uma região ou de um concelho é, seguramente, um dos principais preditores do seu nível de desenvolvimento humano e da qualidade de vida dos seus cidadãos. E é, também, um caminho incontornável para construir uma sociedade equilibrada, saudável, inovadora e de bem-estar. Uma sociedade democrática e participativa.

03 / 05 / 06 / 08 / 10 / 13 / 14 / 15 /

Democracia participativa e saúde

O Serviço Médico à periferia

Serviço Nacional de Saúde: O direito à proteção da saúde, o dever da sua defesa e promoção

Aprender sendo útil: o Workshop Arquitetos de Família e a Promoção de Saúde pela intervenção no Espaço Construído.

Cidades Saudáveis: a visão, os valores e os objetivos de um projeto que se tornou um movimento global

Democracia e saúde

Comunicação em Saúde: 50 Anos de transformações

Serviço Médico às “Periferias”

SOS — 112

Gratuito

SNS 24

808 24 24 24

Qualquer emergência que necessite de ambulância, bombeiros ou polícia.

Atendimento disponível 24 horas por dia, 7 dias por semana.

FARMÁCIAS 1440

Linha telefónica gratuita da Associação Nacional de Farmácias através da qual pode encomendar e receber medicamentos em casa, 24 horas por dia, no continente e nas ilhas.

Proteção Civil de Valongo

220 179 216 939 030 398

800 20 20 99 - Gratuito proteccaocivil@cm-valongo.pt

Bombeiros Voluntários de Ermesinde

229 783 040

Bombeiros Voluntários de Valongo

224 219 800

ULS S. João - Cuidados de Saúde Primários

Unidade de Saúde Pública Maia/Valongo

Av. Visc. de Barreiros 62, 4470-136 Maia

229 490 589

UCC Ermesinde

Rua Professor Egas Moniz, s/n 4445-401 Ermesinde 229 735 788 ucc.ermesinde@arsnorte.min-saude.pt

UCC Vallis Longus

Rua da Misericórdia, s/n 4440-563 Valongo 224 220 363 ucc.vallislongus@arsnorte.min-saude.pt

Serviço de Informação às Vítimas de Violência Doméstica da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género

800 202 148 – Gratuito

Atendimento disponível 24 horas por dia, 7 dias por semana.

Se não conseguir falar envie um SMS para o número 3060 ou um email para violencia.covid@cig.gov.pt

Câmara Municipal de Valongo Avenida 5 de Outubro, n.º 160 4440-503 Valongo 224 227 900 gabmunicipe@cm-valongo.pt

Divisão de Saúde da Câmara Municipal Valongo

Rua Conde Ferreira, 220 4440-452 Valongo 967 100 565 saude@cm-valongo.pt

visite o portal da saúde em

http://saude.cm-valongo.pt

O Serviço Médico à periferia

O Serviço Médico à Periferia (SMP) foi criado por Despacho do Secretário de Estado de Saúde de 23 de junho de 1975, e concretizado pela primeira vez no ano seguinte.

Constituía um passo obrigatório para os jovens médicos poderem ingressar nos internatos das especialidades e, simultaneamente, permitiu assegurar uma rápida cobertura em saúde da população que residia afastada dos grandes centros.

Para os jovens médicos constituiu uma oportunidade para uma real aprendizagem sobre a realidade da saúde fora do ambiente hospitalar, o que não era uma preocupação das faculdades de medicina à época.

A minha experiência de SMP vivi-a no concelho de Bragança, no ano de 1978, tendo trabalhado no Centro de

Saúde, na Caixa e no Hospital. Senti as dificuldades no acesso à saúde, ao dar consultas a 50 km de Bragança ou ao ver que uma ambulância demorava 6-7 horas até ao Porto. Enfim, foi uma experiência ganhadora: ganhou a população, ganharam os jovens médicos, ganhou o país, porque evidenciou a necessidade de um Serviço Nacional de Saúde (SNS) que cobrisse toda a população e que integrasse todos os serviços de saúde que, até ali, eram estruturas separadas, paralelas, com comandos centralizados.

Era necessário um outro modo de trabalhar focado nas necessidades em saúde das pessoas, que melhorasse o acesso aos serviços, que fomentasse a complementaridade de intervenção dos: serviços da promoção da saúde, da prevenção da doença e da vacinação – os Centros de Saúde; os “postos” da Caixa de Previdência que prestavam cuidados de tratamento de ambulatório aos seus sócios (contudo, muitas profissões e atividades não tinham acesso a estes serviços) e os diferentes hospitais.

Foi uma fase profissional que a revejo como extremamente positiva: aprendi imenso, clínica, profissional e

civicamente falando; fomos recebidos muito bem pela população, de uma forma carinhosa e respeitosa, apesar de forças locais retrogradas nos rotularem de “perigosos comunistas que tínhamos chegado do Porto”, mas que rapidamente as pessoas perceberam que, afinal, só queríamos trabalhar bem e nos aceitaram como tal; permitiu-nos ter uma noção de como era possível descentralizar decisões e ver como os médicos locais responsáveis pela gestão dos diferentes serviços se preocupavam por se articularem e trabalhar em conjunto, colocando sempre o interesse dos doentes em primeiro lugar e potenciando os poucos recursos existentes; e foi uma excelente escola do como devem ser vividos os princípios éticos e deontológicos, como estes devem nortear a vida, o desempenho dos profissionais de saúde.

Os médicos de Bragança eram bem poucos, mas eram experientes, sabedores e tinham uma disponibilidade total para dar o seu contributo na prestação de cuidados à população, privilegiando sempre a função pública face aos seus legítimos interesses nos consultórios privados.

Para se perceber que trabalhar bem só depende das pessoas, vejamos este exemplo que se vivia em Bragança: um doente para ser internado em cirurgia, ia a uma consulta externa na terça à tarde, depois de observado pelo cirurgião fazia de imediato um Rx pulmonar, o ECG e as análises clínicas e, estando tudo normal, poderia ser operado na manhã seguinte. Nessa mesma altura, no Hospital de S. João no Porto, os resultados de um pedido de análises a um doente internado só chegavam à mão do médico decorridos quase oito dias…

O SMP foi uma excelente fase de formação para os jovens médicos, e muito contribuiu para conceber o SNS.

Alcindo Maciel Barbosa
Médico, Especialista em Saúde Pública

Serviço Nacional de Saúde: O direito da saúde, o dever da sua defesa e promoção

Maria de Belém Roseira

Jurista, Política e Ex-Ministra da Saúde

Comemoram-se, este ano, os 45 anos da criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Em boa verdade, a sua fundação conceptual foi consagrada na Constituição da República Portuguesa de 1976, a Constituição saída do 25 de Abril do qual celebramos, também este ano, o cin -

quentenário.

Foi, na altura, considerado pelos Deputados Constituintes o modelo que melhor permitiria o exercício do direito à protecção da saúde, bem como o dever de a defender e promover.

Tal modelo conceptual, contudo, só teria relevância prática se existisse disponibilidade de serviços, acessibilidade aos mesmos, a sua aceitabilidade e a qualidade requerida para a sua prestação.

Ora, são estes atributos que lhe conferem conteúdo e que a Lei nº 56/79, de 15 de Setembro vem disponibilizar, Lei que só foi aprovada porque por ela se bateu denodadamente António Arnaut, por essa razão considerado o “Pai” do SNS.

Grande humanista e Homem de

Causas, reuniu a equipa que preparou a sua elaboração enquanto Ministro dos Assuntos Sociais, mas não conseguiu a sua aprovação pelo Governo. Teve que se ficar por um despacho que reconheceu a universalidade do acesso aos cuidados de saúde, com eficácia apenas para os serviços por si tutelados, mas a cruzada que empreendeu pela sua consagração em Lei determinou até a queda do Governo de coligação entre PS e CDS, partido este que defendia um outro modelo de protecção universal do direito à protecção da saúde assente em medicina convencionada e não assegurado por um serviço público. O Governo acabou por cair antes de conseguir a concretização do seu sonho de garantir que todos tivessem acesso aos

direito à proteção promoção

cuidados de saúde de que necessitavam, fossem ricos, pobres ou remediados, não ficando ninguém em risco de empobrecer para o conseguir, como sucedia até aí. É só na legislatura seguinte, e já como Deputado, que propõe a lei que acaba por ser aprovada na sequência de toda a metodologia de produção legislativa da Assembleia da República. Recomendo vivamente a leitura das actas do respectivo debate na generalidade em Plenário, cuja acessibilidade está facilitada através da sua digitalização, pelo seu elevado carácter pedagógico em vários sentidos. Em termos da elegância argumentativa, do respeito por visões diferentes, da observância de regras formais que favoreciam o vigor da oratória que não usava da boça-

lidade para esgrimir argumentos que a mais simples evidência contrariaria.

E assim nasceu e foi sendo construída a instituição que considero obreira permanente “Direitos Humanos em acção” e que é a única instituição de direito público que nos alcandora a um lugar prestigiado nas comparações internacionais. Nenhuma outra o conseguiu, lamentavelmente.

É conhecido e reconhecido internacionalmente, o sucesso na diminuição da mortalidade infantil e materna bem como o extraordinário progresso que conseguimos na maioria dos indicadores de saúde.

Há um, e apenas um, que não acompanha este nível, mas cuja construção não depende directamente do SNS mas antes das nossas condições de vida e das nossas capacidades para a tomada das decisões correctas.

Refiro-me ao indicador dos anos de vida com saúde depois dos 65 anos de idade que, entre nós, não chegam aos 10, enquanto nos países nórdicos - o nosso comparador em todos os outros- estão praticamente no dobro. E não esqueçamos as desigualdades que as expressões estatísticas genéricas encerram e cujo esbatimento é obrigação básica de uma política pública competente.

É, portanto, indispensável a realização de um esforço colectivo para resolver este problema que se traduz em anos de vida com qualidade perdidos, em doença, incapacidade e morte evitáveis, em disfunções sociais várias e em pressão financeira brutal sobre o SNS.

A nível da governação central os esforços que têm sido feitos para actuar em termos intersectoriais têm-se revelado infrutíferos. A cultura dominante impede-o e as tentativas várias realizadas não resistem à irresistível obstaculização à mudança de políticas o que conduz à ineficiência de todos os investimentos feitos nesse sentido.

Por isso, já há muitos anos, alguns de nós consideram que estas questões multifactoriais devem ser trabalhadas junto das comunida-

des, onde as pessoas estão e onde os problemas colectivos específicos podem ser equacionados e resolvidos de uma maneira muito mais eficaz e efectiva. Eu própria o deixei inscrito, experimentado com resultados positivos e programado quando já há mais de 25 anos tive responsabilidades governativas nesta área e tive o gosto de liderar uma equipa altamente competente, criativa e empenhada.

Aí nasceram, a par de outras experiências inovadoras, os Sistemas Locais de Saúde, com uma geometria variável- o país não é todo igual- e que devem envolver os prestadores e parceiros sociais e económicos que no terreno concorram para a saúde dos indivíduos, das famílias e dos grupos sociais.

Neste contexto, as autarquias, cuja autonomia e acção de desenvolvimento do país é também uma conquista do Portugal de Abril, podem e devem desempenhar um papel central, não só através da sua acção directa como no chamamento de todos os parceiros para esta luta por uma vida longa, produtiva e saudável que valha a pena ser vivida.

Não só através da dinamização dos Planos Locais de Saúde que elenquem as forças e vulnerabilidades da sua área como, na sequência da identificação feita, fazer intervir e articular todos os actores nas actividades de promoção da saúde e prevenção a doença, na resolução dos problemas de acesso e na redução das desigualdades.

Considero que Valongo já iniciou esse caminho através do diagnóstico que o seu Plano Local de Saúde lhe permitiu realizar e, a partir de agora, urge a tarefa de envolvimento de todos os actores locais na construção programada e responsabilizante do nível de saúde que cada um dos valonguenses, de origem ou por escolha de vida, tenha potencial para alcançar.

Que ninguém fique para trás neste desígnio!

Nota: A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Aprender sendo útil: o Workshop Arquitetos de Família e a Promoção de Saúde pela intervenção no Espaço Construído.

Faculdade

Apesar da grande importância de tratar a doença quando ela surge, é na promoção de saúde que apostamos com cada vez mais força para assegurar o bem-estar da população. Não se trata tanto de construir hospitais, como de criar as condições para que aqueles sejam menos necessários. Para esta estratégia surtir efeito, é mais eficaz passar do simples desenho de uma política de saúde para a inclusão da saúde em todas as políticas. Existem evidências sólidas para isto. Segundo a OMS, são cinco as dimensões a que é preciso aceder para assegurar esta convergência: os cuidados de saúde; o emprego e as condições de trabalho; a segurança

dos rendimentos e a proteção social; as condições de vida; o capital social e humano.

Estas dimensões espelham as desigualdades sociais, e traduzem-se em iniquidades em saúde, mas as três últimas apresentam caraterísticas singulares: são responsáveis por 2/3 das desigualdades observadas, o que as torna pontos-chave para a promoção da equidade na saúde e fazem da intervenção sobre o espaço habitado e construído uma forte alavanca para atingir este objetivo. Assim, fomentar uma política de habitação que facilite, a preços compatíveis com os rendimentos, o acesso a alojamentos com boas condições de segurança e conforto, em localizações próximas de zonas verdes, equipamentos e transportes e evitando a segregação social podem ajudar a mitigar o apa-

recimento de doenças crónicas como AVC, doença pulmonar obstrutiva crónica, diabetes, hipertensão com complicações ou obesidade.

Deste ponto de vista, o arquiteto pode ser também um agente promotor da saúde, o que entra em conflito com a visão que habitualmente a sociedade tem destes profissionais e que poderíamos resumir facilmente em dois grandes chavões: “o arquiteto só complica” e “o arquiteto é só para quem pode”. Para contradizer esta imagem é preciso viajar 50 anos no tempo até ao mítico Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), onde arquitetos, associações de moradores e poder público trabalharam de mãos dadas para assegurar casas baratas com condições de habitabilidade em localizações centrais a quem já lá vivia. Este processo aca-

Aitor Varea Oro, Marta Sousa,
Bruna Lee Azado
de Arquitetura da Universidade do Porto

bou por estar associado, de forma literal, com um ato revolucionário. Mas será assim tão difícil reconquistar este espaço para a arquitetura?

O workshop

‘Arquitetos de família’ (WAF) Em funcionamento desde 2017, e sob o mote “aprender sendo útil”, esta iniciativa vem colmatar duas lacunas facilmente identificáveis nas políticas públicas: por um lado, a dificuldade que as populações mais carenciadas têm em aceder aos recursos financeiros do Estado para a promoção de habitação condigna, o que, em grande medida, se deve à ausência de estruturas de mediação especializadas; por outro, a falta de espaços, nos planos curriculares das Faculdades de Arquitetura, onde os estudantes possam aprender as ferramentas necessárias para mobilizar a política de habitação na direção onde ela é mais necessária. Criando uma ponte entre estas duas necessidades, o workshop pretende colocar o arquiteto num lugar diferente da linha de montagem: na criação e viabilização da encomenda, em vez de na sua concretização.

Ao longo das suas seis edições, o WAF teve três objetivos formativos diferentes. Primeiro, que os estudantes se familiarizassem com os instrumentos de política de habitação e de gestão territorial necessários para a operacionalização das políticas públicas. Segundo, que as propostas de

intervenção sobre o espaço físico estivessem construídas a partir de outras coordenadas: não tanto focadas nas questões ligadas à linguagem arquitetónica, mas sim vocacionadas para a remoção de todos os fatores de risco (áreas desadequadas, barreiras arquitetónicas, envolvente térmica, etc.). Terceiro, que tivessem consciência sobre o espaço social que é necessário criar para que as propostas possam sair do papel: de nada serve ter o projeto perfeito se não contamos, por exemplo, com a aprovação e envolvimento das principais entidades financiadoras e licenciadoras.

Até à data, o trabalho do WAF permitiu alavancar cerca de um milhão de euros para reabilitação de edifícios em benefício de populações que não podem custear apoio técnico, 70% dos quais na quinta edição, provando a importância que têm a acumulação de conhecimento e a consolidação duma rede de parceiros do setor público. Além da qualificação do espaço físico em benefício de agregados sem recursos, é importante referir outras duas dimensões em que a iniciativa tem impacto: a qualificação dos futuros técnicos (são já 52 os estudantes que tiveram a oportunidade de iniciar um perfil profissional diferenciado); a normalização de outro tipo de arquitetura (o worskhop permitiu a presença destes temas, normalmente ausentes do debate profissional, na Bienal de Veneza de 2021).

Balanço e perspetivas futuras

O espaço construído pode passar de elemento em disputa a ferramenta para a promoção da saúde, mas para isso será necessário assegurar recursos que hoje não existem ou não dialogam entre si. O apoio financeiro para materializar os projetos, a definição de princípios que permitam agir sobre as dimensões que moldam a saúde das populações e a formação de técnicos que façam a ponte entre estas dimensões são essenciais para este processo. O WAF veio colmatar as lacunas existentes na política pública, permitindo orientar outras iniciativas formativas, como a organizada em 2021 na Ordem dos Arquitetos – Secção Regional Norte, dirigida a profissionais de arquitetura, com um enfoque maior na alavancagem de financiamento do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).

O desafio, contudo, continua a ser o de ancorar estas iniciativas no ADN das instituições públicas, o que se traduz em duas vias de intervenção: por um lado, agir sobre as políticas, e não dentro dos moldes já existentes, para que estas correspondam de forma mais linear aos objetivos de promoção de saúde aqui descritos; por outro, agir sobre as estruturas sociais necessárias para a promoção destas políticas, ultrapassando a segmentação que carateriza a administração pública. Só assim poderemos passar do objeto casa ao objetivo acesso à habitação, como propunha a Nova Geração de Políticas de Habitação (2018), e qualificar o habitat, não só o alojamento, como reclama a Lei de Bases da Habitação (2019).

Bibliografia:

OMS – Organização Mundial da Saúde (2019). Healthy, prosperous lives for all:the European Health Equity Status Report. Copenhaga: OMS. Magalhães, J. P., Oro, A. V., Almeida, M., Oliveira, S. (2019). Habitação como fonte de desigualdades. 11º Encontro nacional de médicos internos de saúde pública, Aveiro. Oliveira, S. (2021). Do Tratamento à Prevenção. A Arquitetura como Determinante Social da Saúde no caso das Ilhas do Porto. Dissertação de mestrado em Arquitetura. Porto: Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto.

República Portuguesa (2018). Resolução do Conselho de Ministros n.º 50-A/2018, de 02/05/2018 – Aprova o sentido estratégico, objetivos e instrumentos de atuação para uma Nova Geração de Políticas de Habitação. República Portuguesa.

República Portuguesa (2019). Lei n.º 83/2019, de 03/09/2019 – Lei de bases da habitação. República Portuguesa.

Cidades Saudáveis: a visão, os valores e os objetivos de um projeto que se tornou um movimento global

A iniciativa Cidades Saudáveis foi lançada tendo em vista a priorização da saúde no âmbito da agenda social e política das cidades (1) através da promoção da saúde, da equidade e do desenvolvimento sustentável por meio da inovação e da mudança. A sua criação teve como base o reconhecimento da importância da tomada de ação a nível urbano local e o papel central das administrações locais.

O presidente da câmara municipal tem muito mais poder sobre a sua zona do que o primeiro-ministro tem sobre o país; a administração municipal pode, com muito mais facilidade,

instruir os diferentes setores no sentido de cooperarem a favor da saúde; e a participação da comunidade não é uma questão teórica; está diariamente nas mãos de toda a administração municipal.

(Jo Asvall, Diretor Regional da OMS para a Europa e criador da Rede Europeia de Cidades Saudáveis da OMS em 1988 (2))

Após uma década de debates sobre a saúde e a medicina e a definição de valores e princípios de uma nova era de saúde pública, o final da década de 70 e a década de 80 constituíram uma oportunidade para alcançar a legitimidade política e

os meios estratégicos para promover a agenda de Saúde para Todos, com base em poderosos conceitos e ideias, incluindo o envolvimento de uma ampla gama de novos intervenientes. É possível destacar a Declaração de Alma-Ata (3), a estratégia de Saúde para Todos (4) e a Carta de Ottawa sobre a Promoção da Saúde (5), que inspiraram novos tipos de liderança e parcerias para a saúde que ultrapassam as tradicionais fronteiras setoriais e profissionais.

A Rede Europeia de Cidades Saudáveis da OMS foi criada em 1988 como veículo estratégico do Gabinete Regional da OMS para a Euro-

pa para aplicar a Saúde para Todos ao nível local, e foi o resultado de diversas iniciativas e desenvolvimentos do início da década de 80, tanto a nível local como na OMS (1,5). A iniciativa Cidades Saudáveis suscitou rapidamente o interesse dos políticos europeus e, em pouco tempo, as regiões da OMS lançaram sucessivamente as suas próprias redes de cidades da OMS. Desde a década de 70, várias resoluções da OMS têm refletido a importância da tomada de ação a nível local e comunitário. No entanto, de maneira geral, não se considerava que esta noção garantisse à OMS o direito de comunicar com líderes políticos locais. Hoje, três décadas depois, a comunicação com as administrações locais é tida como um elemento fundamental da implementação bemsucedida da maioria das estratégias de saúde pública em termos globais e regionais, e a iniciativa Cidades Saudáveis é reconhecida pelo seu papel importante de mobilização da ação e compromisso locais (6) .

Uma cidade saudável não é aquela que alcançou um determinado estado de saúde. Na verdade, uma cidade saudável é a que está consciente da importância da saúde e envida esforços para melhorá-la. É a que cria e aperfeiçoa constantemente o seu ambiente físico e social e expande os recursos comunitários que permitem à população apoiar-se mutuamente em todas as funções da vida e alcançar o seu potencial.

A iniciativa Cidades Saudáveis foi inicialmente lançada como um projeto político e transversal com vista à comunicação com administrações locais e à cooperação direta com líderes locais e diversas partes interessadas.

Desde a sua criação, a iniciativa Cidades Saudáveis está assente num conjunto firme de valores: o direito à saúde e ao bem-estar; equidade e justiça social; igualdade de género; solidariedade; inclusão social;

e desenvolvimento sustentável. A abordagem da iniciativa Cidades Saudáveis tem como base os princípios da colaboração intersetorial, participação da comunidade e empoderamento.

O bem-estar é uma escolha política. É o resultado das políticas, instituições, economias e ecossistemas nos quais vivemos. Requer uma abordagem global da sociedade através de um plano de ação que abranja todos os níveis, partes interessadas e setores, desde comunidades e organizações até à administração regional e nacional (7) .

Estes valores e princípios são mais relevantes do que nunca (8), ainda que, ao longo dos anos, o seu significado, conteúdo e base de evidências tenham evoluído significativamente. Por exemplo, o número de evidências das causas subjacentes às desigualdades na saúde aumentou significativamente nos últimos 30 anos. Da mesma forma, termos como “ação intersetorial para a saúde” e “empoderamento comunitário” evoluíram concetualmente a nível de âmbito e intensidade, embora o objetivo de envolver outros setores e mobilizar a sociedade continue a representar um grande desafio.

Os principais objetivos da iniciativa Cidades Saudáveis (9) podem ser descritos da seguinte forma:

1. promoção da saúde e da equidade em todas as políticas locais e em harmonia com a agenda dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável;

2. criação de ambientes que promovam a saúde, o bem-estar, escolhas saudáveis e estilos de vida saudáveis;

3. fornecimento de uma cobertura universal da saúde e de serviços sociais acessíveis e preparados para atender às necessidades de todos os cidadãos;

4. investimento na promoção da saúde e na literacia em saúde;

5. investimento num início de vida saudável para as crianças e prestação de apoio a grupos desfavorecidos, tais como migrantes, desempregados e pessoas em situação de pobreza;

6. fortalecer os programas de prevenção de doenças, particularmente os que respeitam à obesidade, ao uso do tabaco, à alimentação pouco saudável e ao conceito de vida ativa;

7. promoção do planeamento e arquitetura urbanos saudáveis (10);

8. investimento em políticas ecológicas, ar e água limpos, assim como ambientes citadinos adaptados às crianças e aos mais velhos, e combate aos desafios resultantes das alterações climáticas, assim como a redução das emissões e a identificação de vias de resistência às alterações climáticas;

9. apoio ao empoderamento, participação e resiliência da comunidade e promoção da inclusão social e de iniciativas baseadas na comunidade;

10. reforço dos serviços de saúde

Reunião Rede Europeia Cidades Saudáveis Utrecht – Países Baixos 2023

pública da cidade e da sua capacidade de dar resposta às emergências de saúde da população.

Estes objetivos centram-se na atual base de conhecimentos em matéria da saúde e bem-estar e são desenvolvidos para fazer face aos desafios urbanos que mais afetam a saúde, o bem-estar e as condições de vida dos residentes das cidades. A fig. 1 apresenta estes objetivos dispostos em nove domínios de ação principais da Cidades Saudáveis.

• Reforçar os serviços de saúde pública locais e a sua capacidade de dar resposta a emergências relacionadas com a saúde

• Garantir a preparação, prontidão e capacidade de resposta urbanas em emergências de saúde pública

• Melhorar a governação urbana a nível da saúde e do bem-estar

• Reduzir e minimizar as desigualdades na saúde

• Promover a saúde em todas as políticas

• Promover o desenvolvimento e empoderamento comunitário e criar ambientes sociais benéficos para a saúde

• Criar ambientes físicos e edificados que promovam a saúde e as escolhas saudáveis

• Melhorar a qualidade e o acesso a serviços sociais e de saúde locais

• Atender às necessidades de toda a população da cidade e dar prioridade a quem mais necessita

Domínios de ação da ‘Cidades saudáveis’

A iniciativa Cidades Saudáveis tem a capacidade de influenciar a saúde e a equidade através de diversos mecanismos e processos, incluindo os seguintes.

Regulamentação. A posição das cidades permite-lhes influenciar e adotar políticas, leis e regulamentos e aplicá-los (tais como regulamentos em matéria de utilização dos solos, normas de construção, sistemas de água e saneamento, saúde e segurança no trabalho e restrições ao uso do tabaco).

Integração. As administrações locais podem desenvolver e implementar políticas e estratégias integradas para a promoção da saúde e o desenvolvimento social e sustentável (como a integração da saúde na sua estratégia global de desenvolvimento da cidade).

Governação intersetorial. Os mandatos democráticos das cidades transmitem autoridade e o poder de convocar parcerias e encorajar a contribuição de diversos setores e partes interessadas dos domínios privado e voluntário (tais como a representação de vários setores num comité de planeamento urbano de uma cidade).

Mobilização da comunidade. As administrações locais têm contacto com os cidadãos diariamente e estão mais familiarizadas com as suas preocupações e prioridades. Oferecem oportunidades únicas de colaboração com a sociedade civil e grupos de cidadãos (por exemplo, conselhos de juventude, para que a próxima geração tenha voz na tomada de decisões a nível local).

Foco na equidade. As administrações locais podem mobilizar recursos locais e empregá-los em prol da criação de oportunidades para os grupos populacionais vulneráveis e afetados pela pobreza e da proteção e promoção dos direitos de todos os residentes urbanos através, por exemplo, da utilização dos resultados dos perfis de saúde das cidades para o planeamento de intervenções direcionadas) (9) .

A resolução eficaz dos atuais desafios de saúde pública requer a plena mobilização das administrações locais. A fim de manter a sua relevância, a iniciativa Cidades Saudáveis foi concebida como um quadro dinâmico e aberto que evolui e se reinventa constantemente, integrando conhecimentos adquiridos através da prática e novas evidências, para além de se basear em preocupações e perspetivas locais. Para além disso, a Cidades Saudáveis foi criada para gerar conhecimentos que sirvam de ensinamento a todas as comunidades urbanas, não se tratando de um movimento esotérico que beneficie

apenas as suas cidades-membros. Assim sendo, a avaliação das atividades da Cidades Saudáveis sempre foi uma parte integrante da abordagem e está disponível.(11)

Rede Europeia das Cidades Saudáveis

In “City leadership for health and sustainable development: critical issues for successful Healthy Cities initiatives in the WHO European Region.

Nota: Esta tradução não foi criada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). A OMS não é responsável pelo conteúdo ou precisão da mesma. A edição original em inglês é a edição vinculativa e autêntica. “City leadership for health and sustainable development: critical issues for successful Healthy Cities initiatives in the WHO European Region. Copenhagen: WHO Regional Office for Europe; 2024.

Referências

1. Tsouros AD. Twenty-seven years of the WHO European Healthy Cities movement: a sustainable movement for change and innovation at the local level. Health Promot Int. 2015;30(Suppl. 1):i3–7. doi: 10.1093/heapro/dav046.

2. Declaration of Alma-Ata. Copenhagen: WHO Regional Office for Europe; 1978 (https://apps.who.int/iris/ handle/10665/347879, accessed 23 July 2024).

3. Health for All targets: the health policy for Europe. Copenhagen: WHO Regional Office for Europe; 1993 (https://apps.who.int/iris/handle/10665/341920, accessed 23 July 2024).

4. Ottawa Charter for Health Promotion, 1986. Copenhagen: WHO Regional Office for Europe; 1986 (https://apps.who.int/iris/handle/10665/349652, accessed 23 July 2024).

5. WHO Healthy Cities project: a project becomes a movement: a review of progress 1987 to 1990. Copenhagen: WHO Regional Office for Europe; 1992 (https://apps.who.int/iris/handle/10665/345408, accessed 23 July 2024).

6. Health 2020: a European policy and framework and strategy for the 21st century. Copenhagen: WHO Regional Office for Europe; 2013 (https://iris.who. int/handle/10665/326386, accessed 23 July 2024).

7. Geneva Charter for Well-being. Geneva: World Health Organization; 2021 (https://www.who.int/ publications/m/item/the-geneva-charter-for-well-being, accessed 23 July 2024).

8. Wilkinson RG, Pickett K. The spirit level: why more equal societies almost always do better. London: Penguin Books; 2010.

9. Healthy Cities – effective approach to a rapidly changing world. Geneva: World Health Organization; 2020 (https://apps.who.int/iris/handle/10665/331946, accessed 23 July 2024).

10. Barton H, Thompson S, Burgess S, Grant M, editors. Routledge handbook of planning for health and well-being. London: Routledge; 2017.

11. Green G, Tsouros A, eds. City leadership for health. Summary evaluation of Phase IV of the WHO European Healthy Cities Network. Copenhagen: WHO Regional Office for Europe,

Democracia e Saúde

Quando me desafiaram para escrever um texto sobre a Saúde e a Democracia tive de imediato a sensação de que estaríamos a falar de algo naturalmente indissociável. Apesar de o direito à saúde, assim como à educação, não serem um exclusivo dos regimes democráticos, sabemos que existe uma forte relação, já demonstrada através de alguns trabalhos científicos.

O conceito de democracia e o conceito de moderno de saúde, em particular, no que respeita ao exercício da medicina,

surgem na mesma época e no mesmo contexto sociopolítico. O nascimento da democracia, enquanto sistema que amplia a participação popular dentro da política, surge em 514 a.C. na sequência das reformas levadas a cabo por Clístenes, como legislador em Atenas. Mais tarde, em 460 a.C., nasce em Cós aquele que iria revolucionar a saúde, conferindo à medicina um estatuto autónomo, separando da Filosofia. Aristóteles é, por isso, considerado o pai da profissão médica, exercida com bases científicas e éticas. São dois importantes conceitos nascidos na Grécia antiga, frutos de um ambiente de mudança, e que influenciaram humanidade até aos dias de hoje. Com a chegada da democracia a Portugal, em abril de 1974, rapidamente surgiu a necessidade de garantir à população o acesso a cuidados de saúde fundamentais, o que levou à criação do serviço nacional de saúde (SNS), em 1979. Entretanto, na sequência dos avanços da ciência e das tecnologias, o

SNS promoveu cuidados cada vez mais diferenciados que, em associação com a melhoria das condições socioeconómicas, contribuíram para o aumento significativo da esperança de vida e para a redução igualmente importante na mortalidade materna e infantil.

Passados 50 anos de vida democrática, a saúde do país atravessa um novo processo de mudança, que é a implementação de vários sistemas de saúde não estatais, permitindo ao cidadão ter outras opções que não o SNS. No entanto, não se trata de serviços de saúde alternativos, pois os utentes, enquanto contribuintes, continuam a financiar SNS. Assim sendo, seria de toda a justiça as despesas de saúde efetuadas fora do SNS fossem totalmente subtraídas à matéria coletável. O Estado não pode ignorar que o recurso a sistemas de saúde privados é a única alternativa para contornar as listas de espera ou a colmatar a ausência de alguns serviços especializados no SNS.

Comunicação em Saúde: 50 Anos de transformações

Miguel Telo de Arriaga e Leonor Quelhas Pinto Serviços de Prevenção da Doença e Promoção da Saúde – Direção Geral de Saúde

Nos últimos 50 anos, Portugal testemunhou uma notável evolução dos seus indicadores de saúde. A criação do Serviço Nacional de Saúde e a evolução do Sistema de Saúde, permite hoje alcançar resultados de referência no Programa Nacional de Vacinação, na mortalidade infantil ou na esperança de vida à nascença, o que reflete a eficácia das políticas de saúde pública e do acesso generalizado aos cuidados de saúde. A evolução demográfica, a transição epidemiológica e as mudanças nos comportamentos, nos ambientes e no acesso a informação, redefiniram as necessidades e prioridades em saúde da população. Em resposta a este contexto, a Comunicação em Saúde assumiu-se como uma peça central.

Ao longo das últimas décadas, a forma de comunicar sobre saúde evoluiu substancialmente. Se, anteriormente, a abordagem era essencialmente informativa e unilateral, hoje é muito mais interativa, inclusiva e participativa. Até há pouco tempo a transmissão de mensagens era feita de forma linear, com pouca ou nenhuma interação ou feedback com a população, tratando-se de uma comunicação predominantemente estática e unidirecional, através de cartazes, panfletos e campanhas, cujo foco se centrava na disseminação de informação básica sobre doenças ou cuidados de saúde.

Atualmente, a comunicação não se limita à transmissão de informação, mas visa garantir que a mesma seja compreensível e utilizada de forma prática pelos cidadãos. Dito de outra forma, mais do que disseminar dados, procura-se capacitar as pessoas para navegar entre fontes de confiança, aplicar informação

criticamente e tomar decisões fundamentadas.

Na era da tecnologia digital, este processo de comunicação foi amplamente facilitado, mas também exposto a novos desafios. As redes sociais e plataformas digitais, apesar de amplificarem o alcance da comunicação em saúde, tornaram-se igualmente vetores de desinformação. Esta proliferação de informação incorreta pode comprometer a capacidade dos cidadãos de distinguir entre fontes fidedignas e não confiáveis. Assim, tornou-se imperativo desenvolver estratégias eficazes para combater a desinformação e garantir o acesso a conteúdos credíveis e baseados em evidência, essenciais para a promoção de comportamentos de saúde adequados. O surgimento da Inteligência Artificial (IA) revoluciona hoje, ainda mais, o campo da comunicação em saúde. Para além do desenvolvimento de sistemas que permitem personalizar recomendações, chatbots ou o uso de algoritmos para análise de dados e apoio na previsão e pesquisa de comportamentos, estas tecnologias permitem uma comunicação precisa e segmentada, ajustada às necessidades individuais, promovendo a saúde de forma mais proativa e personalizada.

Paralelamente, a descentralização de competências no setor da saúde tem promovido um reforço da proximidade entre as autoridades locais e os cidadãos, facilitando a criação de políticas de saúde mais adaptadas às particularidades de cada comunidade. A participação ativa da população na construção destas políticas garante a sua relevância e eficácia, uma vez que são moldadas com base nas especificidades de cada região e nas características socioeconómicas e culturais dos seus habitantes.

Os municípios em Portugal têm um papel cada vez mais ativo na comunicação e promoção da saúde através de planos estratégicos e múltiplas ações daí decorrentes (planos locais e municipais de saúde; conselhos municipais de saúde). A descentralização de competências permitiu que as autarquias pudessem ter novos instrumentos estratégicos para desenvolver e implementar políticas de saúde pública, adaptadas às necessidades específicas das suas comunidades. Por seu turno, a abordagem colaborativa é particularmente visível em iniciativas promovidas pelos municípios, que desempenham um papel crucial na implementação de programas de promoção da saúde e prevenção de doenças. O envolvimento das comunidades e a cocriação de soluções tem permitido desenvolver respostas mais ajustadas aos problemas locais. Iniciativas inovadoras como a utilização de microinfluenciadores (agentes de saúde da comunidade) para disseminar informações de saúde de forma mais próxima e eficaz, e projetos nos diferentes estadios do ciclo de vida, que permitam capacitar, envolver e utilizar o conhecimento, têm sido boas praticas implementadas através de uma estreita articulação entre os níveis nacional, regional e local.

Os desenvolvimentos na promoção da saúde em Portugal têm procurado acompanhar os novos desafios. O novo Plano Nacional de Saúde e o Plano de Ação de Literacia em Saúde e Ciências do Comportamento 2023-2030, pretendem responder às novas exigências dos cidadãos, e envolvê-los de forma ativa na sua saúde. Parcerias entre autarquias, organizações da sociedade civil e profissionais de saúde são, por isso, determinantes para garantir uma atuação coordenada e eficiente, de acordo com as necessidades reais da população, fortalecendo a coesão social e fomentando a adoção de comportamentos saudáveis, pela criação de ecossistemas promotores de saúde.

Serviço Médico às “periferias” Testemunho do quotidiano

A viagem às “periferias” é um caminho que percorro todos os dias, e apesar da diferença poder ser considerada “um constrangimento” , por outra perspetiva é um privilégio poder trabalhar num meio com diferentes expectativas culturais, crenças não habituais sobre a parentalidade, saúde, doença, família, profissão e sociedade; diferentes

línguas e vestuário, formas diferentes de expressar as emoções e interpretar sintomas, necessidade diferentes em termos de segurança psicológica num ambiente de cuidados de saúde, etc.

Os recursos que encontramos e ativamos mantêm-nos atentos às necessidades das pessoas “não-diferentes”, o trabalho em equipa para oferecer cuidados culturalmente adequados obriga-nos a trabalhar numa rede de proximidade com a nossa equipa e com o nosso envolvente, e as diferenças que confrontamos todos os dias fazem-nos aprender, crescer e perceber que a vivência humana tem múltiplas facetas, e que pensar apenas na nossa “normalidade” é um conceito fechado e limitador para nós próprios.

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.