Jornal da ABI - 100 anos Barbosa Lima Sobrinho

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ABI A Associação Brasileira de Imprensa, fundada em 7 de abril de 1908, é considerada organização de utilidade pública, nos termos dos decretos 3297, de 11/07/1917, da União, e 1897, de 10/11/1917, do Distrito Federal. Funciona em sede própria, no Edifício Herbert Moses, prédio tombado em 29/05/ 1984 pelo Instituto do Patrimônio Histórico Nacional, na Rua Araújo Porto Alegre, 71(Castelo), Rio de Janeiro (RJ) - CEP 20030010, telefone (021) 282-1292 e fax (021) 2623893. Inscrição no CGC 34.058.917/0001-69. Mesa do Conselho Administrativo: presidente, Fernando Segismundo; 1º secretário, Mário Barata; 2ª secretária, Maria Lúcia Amaral. Diretoria: presidente, Barbosa Lima Sobrinho, 1º vice-presidente, José Chamilete; 2º vice-presidente, Joé Gomes Talarico; secretário José Augusto Ribeiro; 1º subsecretário, Paulo Motta Lima; 2º subsecretário, Domar Campos; tesoureiro, José Teixeira Peroba; subtesoureiro, Augusto Villas-Bôas; diretor da biblioteca, Alcino Soeiro; diretor da sede, Henrique Miranda; diretor de atividades culturais, Ary Vasconcelos. Representante em São Paulo: José Marques de Melo - tel: (011) 883-6591. Representante em Brasília: Carlos Chagas - tel: (061)248-0604.

JORNAL DA ABI EDIÇÃO ESPECIAL 1997 Concepção e coordenação geral de projeto, André Motta Lima; diretor responsável, Barbosa Lima Sobrinho; editor, André Motta Lima (Departamento de Intecâmbio e Divulgação da ABI); subeditora e revisora, Glória Esperança; programação visual e editoração, Cecília Castro; auxiliar de digitação,Queli Cristina; apoio administrativo, Tharcisio Pires e Igor I. Paixão; estagiários (Convênio ABI-Universidade), Cláudio Vianna da Silva (relações públicasUERJ), Juliana Barreto Farias (jornalismoUERJ), Fábio Oliveira Nery (jornalismoUERJ);suporte de informação, Biblioteca Bastos Tigre (ABI-12º andar); comercialização, Vilarde Comunicações - tel: (021) 493-3903 e Casa do Vídeo - tel: (021) 2623011. Esta edição especial anual foi enviada gratuitamente, em mala direta, a todos os sócios da ABI e a deputados, senadores, ministro de estado e à Presidência da República. A título de cortesia, por critério da direção da entidade, foi enviado também a escolas e professores de Comunicação Social, a bibliotecas, a sindicatos e associações de jornalistas, a assessorias de imprensa, a embaixadas brasileiras e a orgãos de imprensa em geral. É, ainda, expedido a sindicatos e associações de jornalistas no exterior. Tiragem desta edição especial: 10.000 exemplares. Fotolitos e impressão: Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro - Rua Marquês de Olinda, 29 -Niterói.CEP24.030-170.Tel:(021)620-1122.

OPÇÃO POR ESCRITO Nem sempre a imagem vale mais que mil palavras. Por mais difícil que seja admitir isso ao viver-se - profissionalmente, inclusive - no mundo das imagens criadas e elaboradas, em todos os sentidos. Optamos por um. Aquele da imagem síntese que fica a partir do amplo conhecimento, da incorporação de fatos e argumentos. Seguimos a prática do homenageado desta edição especial. Juntamos versões e relatos para ajudar a entender um pouco do formato do Brasil, da imprensa e do próprio Barbosa Lima Sobrinho neste último século. Rever tão longo período conduz para reflexões críticas pessoais capazes de inserir um novo valor histórico no balanço que se faz inevitável. O que fizemos cada um de nós naqueles momentos agora lembrados e registrados? A quantidade de acontecimentos no período de vida de um só homem, tão ativo e participante, no mínimo impressiona. Discutir tempo e tamanhos de vida sempre instigou o ser humano. Desvendar suas razões de ser, mais ainda. Lutar, defender idéias e princípios, descobrir argumentos; essa parece ser a essência que conduz uma coerência em Barbosa Lima Sobrinho. Talvez a mais significativa de suas frases seja “a luta dá razão à vida”. Justifica e explica muitos dos gestos, ações e atitudes. Marca e ajuda a criar uma imagem grandiosa neste mundo atual, onde os valores materiais e o

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pragmatismo de cada dia substituem princípios rotulados de ultrapassados pelos que se dizem pós ou neo qualquer coisa. Quem convive com Barbosa Lima Sobrinho pode ver e reconhecer o ser humano. Especial, é claro, não fosse pelos cem anos de luta, pela continuidade centenária de um dia-a-dia de lutas. Defeitos e equívocos, tomara que os tenha, para ajudar a provar que não é um ícone, apenas um grande exemplo. A preferência pelas causas nacionais, acima de tudo, e a busca constante de participação desinteressada na história do nosso país ajudam a moldar o homem de bem. De bem com a vida, por sempre acreditar que vale a pena participar, interferir. Tanto, que ela lhe dá mais a cada dia. Para tratar desta imagem, optamos pela palavra. Pelo conteúdo preciso que ela ajuda criar. Em cada um dos artigos, se não diretamente dita, há uma homenagem implícita a Barbosa Lima Sobrinho, artesão das palavras que informam e formam. Certamente o homenageado ficará agradecido também aos leitores que aceitarem esse jornal-documento como elemento de ajuda para formarem sua própria opinião a respeito das histórias de imprensa e de Brasil. E que, como ele, acreditem que ainda, e sempre, é tempo de dar razão à vida. André Motta Lima Departamento de Intercâmbio e Divulgação Associação Brasileira de Imprensa

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Barbosa Lima Sobrinho POR UMA IMPRENSA NACIONALISTA De certa maneira é reconfortante essas homenagens que me fizeram pelo trabalho que tenho tido durante todo esse período de cem anos de vida. Embora me coloque na posição de que prefiro que cuidem mais do Brasil do que dos jornalistas que defendem as causas do Brasil. Gosto mais quando se preocupam mais com o Brasil do que com Barbosa Lima Sobrinho. E todas essas homenagens baseadas nas lutas que venho travando não chegaram a ser animador. Porque, afinal de contas, nós assistimos o quê? Assistimos à liquidação de uma estatal brasileira de importância como foi a Vale do Rio Doce. A venda da Vale do Rio Doce é um verdadeiro crime contra a nacionalidade. Os interesses fundamentais do Brasil estão passando do domínio público ao domínio particular. E agora mesmo tenho informação que a Vale do Rio Doce possuía em caixa uma quantidade fabulosa de dinheiro. Deste modo ficamos diante de um novo problema: será que esse dinheiro vai para os compradores ou fica com o Governo? E as perspectivas são as mais assustadoras possíveis. Porque esse governo de Fernando Henrique Cardoso que nós poderíamos pensar que, pelos antecedentes dele, pelo pai dele, pelo tio dele, poderia ter sido útil às causas nacionais, ao contrário, está exatamente defendendo os interesses estrangeiros no Brasil. Não sabemos ainda como o capital estrangeiro vai interferir nas nossas empresas brasileiras. Sobretudo não sabemos como o interesse particular se comportará. Porque quando me bato pela presença do Estado é porque o Estado resiste, o Estado não transige, enquanto que o particular vai sempre atrás da valorização das ações que possui dessas empresas. E se a perspectiva for para uma valorização maior da ações, não tenho dúvida de que o capital fará o jogo do estrangeiro e não o jogo do Brasil. De certo modo esses cem anos me levam a fazer algumas revisões. Não fui partidário de Arthur Bernardes,

Especial - Barbosa Lima Sobrinho

mas reconheço hoje que ele, com o Clodomiro de Oliveira, que era um dos seus auxiliares, fez um governo profundamente nacionalista. De começo também não fui favorável à candidatura do Getúlio Vargas, mas quando Getúlio Vargas começou com o seu programa nacionalista, teve em mim um defensor permanente da atuação do governo. Isso desde a criação do Instituto de Resseguros, de que fui relator na Câmara dos Deputados. Num parecer na Câmara do Deputados, examinando o setor de seguros, fiz um longo estudo, abrangendo um período de cinqüenta ou sessenta anos, para mostrar como o Brasil tinha sido sempre escravizado aos interesses das companhias estrangeiras de seguros. Essa é a realidade que nós temos diante de nós.

considero o nacionalismo uma tese a ser reprovada ou superada como outros consideram, não sei porque. Fico a perguntar qual é a nação do mundo que não é nacionalista. Tive a oportunidade num livro de mostrar que a Inglaterra sempre foi nacionalista, assim como a França, mostrando que os países da Europa sempre defenderam seus interesses. Os Estados Unidos, mais do que qualquer outro país, sempre foi uma nação profundamente nacionalista, até pelo fato de não aceitar o programa de Adam Smith quando Adam Smith defendeu o liberalismo econômico. O liberalismo econômico, naquele momento, era nocivo aos Estados Unidos. Por isso surgiu neles, como ministro do fazenda do governo de George Washington, Alexander Hamilton que defendeu intransigentemente os interesses dos Estados Unidos contra o liberalismo econômico que a Inglaterra defendia.

Alguns generais de certa significação já vinham defendendo a soberania do Brasil na questão do petróleo, mas essa presença se intensificou exatamente na campanha do “Petróleo é nosso”, de 47 a 53, quando se criou a Petrobrás. Foi aí que, de fato, se definiu a posição do Brasil na defesa do petróleo. E a Petrobrás tem sido um motivo de orgulho para o povo brasileiro, porque sempre defendeu os interesses brasileiros. E de certo modo é um exemplo que o Brasil devia seguir. Como é um exemplo aVale do Rio Doce. A Vale do Rio Doce era uma empresa insignificante, dominada pelos estrangeiros. Nunca teve maior importância nos problemas do Brasil. Em 1942, no tempo do Getúlio Vargas, o Brasil a adquiriu comprando as empresas estrangeiras que exploravam um regime de concessões. Foi aí que a Vale do Rio Doce tomou uma proporção cada vez maior, até ao ponto de ser uma empresa fundamental para o progresso e desenvolvimento do país.

De modo que sempre foi essa, a defesa dos interesses nacionais, do nacionalismo, a minha linha de atuação jornalística. Eu acho que é impossível que o jornalista não tenha também uma ação política. A função do jornalista brasileiro é defender os interesses do Brasil. Como defendem os interesses de seus países os jornalistas da Inglaterra, da França , de todos os países. É só verificar qual foi a atitude do jornais franceses quando o Estado francês comprou a Light, uma estatal brasileira. A imprensa francesa deve ter aplaudido, como a imprensa inglesa se admirou sempre com as conquistas que a Inglaterra fazia em todos os países do mundo. E hoje também os Estados Unidos. Não há como se encontrar qualquer restrição da imprensa americana em relação aos avanços da economia de seu país.

Sempre defendi, nunca deixei de defender, os interesses fundamentais do Brasil. Quem quiser pode pesquisar os meus três mil e tantos artigos assinados no Jornal do Brasil para verificar que em todas as causas, em todos os momentos, estive sempre ao lado da defesa do interesse nacional. Não

Acho estranho quando vejo essa teoria de imprensa neutra. Imprensa tem que ter opinião. E advogo para a imprensa a defesa dos interesses brasileiros. O modelo do jornalismo brasileiro está refletido no quadro que decora a sala da presidência da

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Associação Brasileira de Imprensa, com a imagem de Hipólito da Costa. Porque Hipólito da Costa foi para a Inglaterra e só lançou Correio Braziliense quando D.João VI veio para o Brasil. Porque ele achava, já naquela ocasião, que o Brasil era mais importante que Portugal e, principalmente, defendia intransigentemente a presença do rei de Portugal no Brasil. E enquanto D.João VI esteve no Brasil Hipólito defendeu sempre D.João VI e a presença dele no Brasil. Porque esse era o interesse brasileiro naquela ocasião. D.João VI foi obrigado, pelos portugueses, a voltar para Portugal. Hipólito, nessa ocasião, passou a ser partidário de D.Pedro I, porque D.Pedro tinha tido a mesm atitude de D.João VI de defender sempre os interesses do Brasil. E só terminou o ciclo do Correio Braziliense quando o Brasil se tornou independente de Portugal. Acredito que as forças nacionais vão afinal assegurar ao Brasil o destino que o nosso país espera. Mas acredito também que a imprensa secundará esse esforço do povo brasileiro, porque o povo brasileiro se inspira na noção precisa de seus interesses e sairá a postos, como sempre esteve em todos os momentos trágicos da vida brasileira. Não posso deixar de ser otimista quanto ao futuro do Brasil, porque acho que é tudo o que nós podemos deixar aos nossos descendentes para que eles se lembrem de nós e tenham a oportunidade de agradecer os serviços que a geração atual possa ter prestado em defesa dos interesses do Brasil. Portanto, tenho que agradecer profundamente essas homenagens ao meu centenário, porque não são homenagens que visam a minha pessoa. São homenagens que visam o meu trabalho, o meu esforço em defesa do Brasil. Entendo que todas essas manifestações são, no fundo, manifestações de homenagem à defesa dos interesses do Brasil.


JORNALISMO, PRIMO IRMÃO DA HISTÓRIA Costuma-se dizer que o jornal de hoje já é história amanhã. Além disso, não são poucos os jornalistas que usam argumentos históricos em interpretações de fatos atuais. Em Barbosa Lima Sobrinho esse costume se soma à prática específica de historiador. Fernando Segismundo Nem só os especialistas saídos da Universidade são capazes de praticar a história. Até há pouco tempo os historiadores eram auto-suficientes, por falta de escolas apropriadas. E os houve de grande mérito, a exemplo de Varnhagen, Capistrano, Garcia, Calmon e José Honório Rodrigues que, de propósito, se voltaram para a reconstrução do passado. Quem, hoje, com o aparato acadêmico, está pesquisando com os bons resultados de Capistrano e escreveria novos Capítulos? Não se quer dizer que ontem seja melhor que hoje; apenas pedir um pouco de modéstia aos mestres e doutores na matéria. Eles não estão a descobrir a pólvora... História programada ou acidental fizeram-na advogados, políticos, publicistas e trabalhadores de imprensa. Seria fastidioso arrolar a todos eles, o tempo e o lugar onde atuaram, suas produções e o alcance que tiveram. Vamos ater-nos a uns poucos jornalistas e, em particular, ao centenário Barbosa Lima Sobrinho, ainda em atividade. Sem preocupação cronológica ou de valores - todos têm importância - recordar-se - à João Francisco Lisboa, jornalista, deputado provincial e, por último, pesquisador de documentos para a história do Brasil, sem preparo especializado. Mandou-o D. Pedro II à Europa, onde também tratou da saúde e lá morreu. No Maranhão e em Portugal redigiu, por anos a fio, notável publicação - o Jornal de Tímon, indispensável ao conhecimento dos costumes políticos do II Reinado. De sua autoria é, ainda, uma das melhores biografias do Padre Antônio Vieira. Jornalista de exceção, a serviço do conservadorismo, foi Justiniano José da Rocha, também professor de várias disciplinas e autor de compêndios. Impossível é alguém assenhorear-se do meio político-social da primeira metade do século XIX sem conhecer a obra Ação; Reação; Transação, de sua lavra. Por intermédio desse levantamento histórico, Justiniano contribuiu de modo decisivo

notoriedade pelo que acrescentaram aos estudos do passado e à melhor percepção dos últimos 60 anos. Dunshee de Abranches é um deles. Estima-se que artigos por ele publicados em jornais dariam cem volumes de história republicana. Elmano Cardim, à frente do Jornal do Comércio e autor da biografia de Justiniano José da Rocha, é outro profissional da pena dos mais assinalados. Hélio Silva reconstruiu a história da República, em especial o período de Vargas. Foi jornalista a vida toda, embora médico e oblato. Jornalista e publicitário, Orígenes Lessa redigiu A revolução constitucionalista de 1932. Joel Silveira delineou o papel da Força Expedicionária Brasileira, FEB, na Guerra Mundial, à maneira de história imediata. Raimundo Magalhães Júnior biografou as grandes figuras da literatura nacional. Ricardo Kotscho contou O massacre dos posseiros e Belisa Ribeiro A bomba no Riocentro. São esses alguns exemplos das relações da imprensa com a história. Figura representativa de tão estreita ligação é Barbosa Lima Sobrinho, ora no topo dos cem anos. Exercendo o jornalismo há oito décadas, tem editados diversos livros sobre a matéria. Deputado, governador e procurador de Estado, acadêmico e professor, o restante da obra de Barbosa Lima é o desdobramento de sua condição de publicista. Ele representa com suficiência tanto o jornalismo como a historiografia. Quanto a esta, de modo específico, tenha-se presente sua contribuição aos fatos pernambucanos. Livro de sua autoria, editado em 1923 - completara o autor 26 anos de idade - continua a ser de leitura atual: O problema da imprensa, bem elaborada história da imprensa brasileira e universal, com ênfase nas questões da liberdade de expressão, da censura e da corrupção dos veículos pelo governo. A verdade sobre a revolução de outubro (1930) resultou da observação direta dos acontecimentos pela freqüência do jornalista ao Congresso Nacional, na condição de repórter político do Jornal do Brasil. A Presença de Alberto Torres é obra de protesto contra a doutrina entreguista do primeiro governo militar de 1964. Na Antologia do Correio Brasiliense, Barbosa Lima seleciona artigos de Hipólito sobre sua pátria. O que de mais

para o triunfo da “conciliação” empreendida por Honório Hermeto Carneiro Leão, Marquês de Paraná. Precedendo a Francisco Lisboa e Justiniano da Rocha há de referir-se Hipólito da Costa, fundador da imprensa brasileira. Embora reino unido a Portugal, em conseqüência da vinda do príncipe D. João para o Brasil, não circulavam entre nós folhas dignas do nome imprensa e muito menos jornais oposicionistas. A gazeta oficial da corte e outras provinciais constituiam-se em orgãos medíocres, voltados para fatos irrelevantes e cortesãos. Editado em Londres, foi o Correio Brasiliense, durante anos, a revista que instruiu a alta intelectualidade nacional, fornecendo-lhe notícias do mundo e de sucessos ocorridos no país, ocultados aos cidadãos pela censura real. Joaquim Manuel de Macedo inserese na extensa galeria dos jornalistas-historiadores. Romancista e teatrólogo, ainda exerceu o magistério e a deputação. No presente seria apontado como repórter de suma importância; tinha a inclinação da especialidade. Costumava arruar nos fins de semana, interessado em pessoas e instituições. Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro e Memórias da rua do Ouvidor são obras imprescindíveis ao conhecimento da urbe que agasalhou a Corte e já foi capital da República. Fenomenal é Euclides da Cunha. Militar e engenheiro, foi pelo jornalismo que ascendeu à glória. Enviado pelo Estado de S.Paulo ao arraial de Canudos, acabou por juntar no “Diário de uma expedição” os comunicados e notas transmitidos àquela folha e colhidos no ardor da refrega. Do rascunho resultariam Os sertões, reveladores do escritor e do patriota consumado. Euclides exerceria o magistério em educandário oficial. Mas o livro proveniente de sua atuação jornalística projetouo como intelectual singular e insigne cidadão. Seguir-se-iam a essas figuras jornalistas de menor porte, porém de justa

“A elaboração da história independe de rigoroso preparo em escola superior.”

"Recorrendo-se a entrevistas, cinedocumentários, transmissões ao vivo, fontes orais, fotografias e cartas compõe-se história da melhor. Bob Woodward e Carl Bernstein (Todos os homens do presidente) e Peter Arnett (A guerra do Golfo) operaram excelente história."

“Barbosa Lima Sobrinho representa com suficiência tanto o jornalismo como a historiografia.”

Especial - Barbosa Lima Sobrinho

substancial vai pela Europa, nos primeiros anos do século XIX, é passado ao Brasil por Hipólito, na esperança de contribuir para a melhoria dos indivíduos e em favor do Estado nascente. Discursos, opúsculos, manifestos e artigos de Silva Jardim, talvez o maior vulto civil da propaganda republicana, acham-se reunidos e explicados por Barbosa desde 1978, em livro de difícil transposição, tal a quantidade de documentos e a luz que sobre eles incide. A obra avulsa de Barbosa Lima excede de três mil artigos assinados e reproduzidos na imprensa dos estados. Há duas décadas escreve para o Jornal da ABI, entidade que preside pela décima vez, a partir de 1978. Num e noutro caso sua temática versa a defesa dos recursos naturais e humanos, a economia e a política interna. Como jornalista e historiador Barbosa Lima Sobrinho caracteriza-se pelo emprego das melhores fontes, pela seriedade dos juizes e pelo didatismo da escrita. É com elevação que se pronuncia sempre. Sabedoria e prudência poderiam resumirlhe a dupla vocação. Pode concluir-se: a elaboração da história - pesquisa, avaliação crítica e redação - independe de rigoroso preparo em escola superior. Capistrano de Abreu não possuia nenhum curso de alto nível. João Ribeiro submeteu-se a concurso para lecionar Português e Aritmética e sobressaiu no Colégio Pedro II como professor de História do Brasil. Seu compêndio foi até louvado por Capistra-no que, titular da cátedra, jamais se aventurou a elaborar um para uso do estabelecimento e dos institutos que lhe seguiam a orientação. Sem irreverência, pode-se proclamar que a história do presente não está sujeita à Universidade. Recorrendo a entrevistas, cinedocumentários, transmissões ao vivo, fontes orais, fotografias e cartas compõe-se história da melhor. Bob Woodward e Carl Bernstein (Todos os homens do presidente) e Peter Arnett (A guerra do Golfo) não precisaram de exibir diploma para operarem excelente história.

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Fernando Segismundo, presidente do Conselho Administrativo da ABI.


RECIFE, 22 DE JANEIRO DE 1897 Está nascendo um brasileiro que vai fazer e escrever a história de um século de imprensa e Brasil Barbosa Lima Sobrinho nasceu numa sexta-feira, 22 de janeiro de 1897. Nesse dia, o Diário de Pernambuco publicou anúncios de remédios, actos e officios do governo estadual, pequenas notas redacionais e programas do Teatro Santa Isabel. Na primeira página está a publicação do resultado de uma concorrência pública, assinada pelo exmo. sr. conselheiro governador de Pernambuco, Joaquim Correia de Araújo, permitindo ao bacharel Miguel Figueiroa de Faria “assentar carris de ferro para tráfego de passageiros, por

meio de tracção animal, da Rua de São Miguel, em Afogados, até a entrada da ponte da Povoação de Tigipió”. Na parte política, o Partido Republicano Federal ganha de um grupo de militantes nota de felicitações pela “esplêndida e bem significativa vitória alcançada por nosso partido em todas as circunmscripções eleitoraes do estado, no pleito livre de 30 de dezembro último”. Na mesma nota, os signatários - entre eles Alexandre José Barbosa de Lima (tio do centenário jornalista), Francisco de Assis

Rosa e Silva e Herculano Bandeira de Mello - alertam o partido para a necessidade do “preenchimento das três vagas abertas no Senado pernambucano”. O documento lança as candidaturas do dr. Henrique Marques de Hollanda Cavalcanti (Barão de Suassuna), na vaga do dr. Teixeira de Sá; dr. Francisco de Paula Corrêa de Araújo, na vaga de dr. Constâncio Pontual; e dr. Joaquim Tavares de Mello Barreto, na vaga do dr. Ermírio Coutinho, como “aptos para mais elevadas posições”. No Teatro Santa Isabel, a sociedade

pernambucana é convidada a assistir nessa mesma sexta-feira a duas grandes óperas num só espetáculo: Os Palhaços, do maestro Leoncavallo, em dois atos, e Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascasini. Num anúncio destacado, a Agua de São Benedicto é mostrada como “única preparação infallivel para extinguir caspas e promover o crescimento do cabello”. Cada frasco era vendido por 4$000 na Livraria Contemporânea de Ramiro Costa & C. (transcrito do jornal Diario de Pernambuco, publicado no dia 22/01/97.)

PERNAMBUCO, CAPITAL BRASIL A região tem uma tradição de lutas que preservaram a integridade e a nacionalidade da pátria Glória Esperança Maio de 1997. Brasil e Pernambuco não partilham mais da inteligência viva de Paulo Freire, incansável lutador pela cidania, pela pedagogia para a libertação. Suas ações e idéias, vítimas de feroz perseguição na ditadura militar, pertencem à história do Brasil (e são elogiadas até por ex-líderes civis do golpe de 64, como Marco Maciel e Roberto Magalhães). É mais um pernambucano que traduz o Brasil e ultrapassa o seu próprio tempo. Pernambucano como Nunes Machado, líder da Revolução Praieira de 1848. Ou como o jornalista Antônio Pedro de Figueiredo, proprietário do jornal Diário Novo (que ficava na rua da praia, onde os revolucionários se reuniam, daí o nome Praieira); considerado por muitos como o primeiro socialista utópico do Brasil, defensor da liberdade de imprensa e da nacionalização do comércio. Como Antônio Borges da Fonseca, o Repúblico. Ou Bernardo Vieira de Mello, da Guerra dos Mascates, ‘do qual afirmam ter proclamado a República pela primeira vez no país, em 1710. Ou ainda Frei Caneca, Oliveira Lima, Joaquim Nabuco, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Barbosa Lima Sobrinho e tantos outros que formam a a história de Pernambuco do Brasil. Uma história e tanto. De brancos, índios e negros construindo uma sociedade dividida pela propriedade de terra, gado e gente. Marcada pelos extremos - riqueza e miséria, opulência e opressão -, mas também crivada de sangue e lutas. Pela autonomia. Independência. República. Democracia. Libertação. Alguns historiadores destacam o caráter “nacionalista” dos brasileiros de Pernambuco. Certo é que a força do nome tupi venceu os portugueses já de começo: batizada de Nova Lusitânia em 1535, logo foi chamada de para’nã (rio caudaloso) e pu’ka (gerúndio de pug, rebentar). Segundo Teodoro Sampaio “furo ou entrada do lagamar formado na junção dos rios Capibaribe e Beberibe. O furo é a brecha natural do recife, pela qual o lagamar se comunica com o mar. Portanto, mar furado é o significado”.

Mas Pernambuco foi, de fato, palco de muitas rebeliões, sempre com a presença dos senhores de terra em disputa por mais poder ou privilégios. Já em 1630 resiste com guerrilhas à invasão dos holandeses. Milícias de negros e índios são formadas pelos proprietários para combater o inimigo holandês, numa luta que durou 24 anos. 1709-1711. Pernambuco vive a Guerra dos Mascates, confronto entre a aristocracia rural de Olinda e os comerciantes portugueses (“mascates”) de Recife. Com a nova política colonial portuguesa e a crise açucareira, os rendimentos dos senhores de engenho caem e suas dívidas aumentam quando a coroa cria a arrematação: comerciantes de Recife arrendam o direito de cobrar impostos, pagando uma taxa às autoridades e ficando com a diferença como lucro. Recife conquista a emancipação, mas os aristocratas não aceitam, invadem, vencem e Recife é mantida como distrito dependente de Olinda. Princípio do século XIX. Recessão européia. Chegada da corte ao Brasil. Com a abertura dos portos a frágil economia do Brasil se integra ao mercado internacional. Em 1817, sob a influência do iluminismo, rebenta a Insurreição Pernambucana. Os rebeldes ocupam Recife e decretam a instalação de um governo revolucionário com representantes de várias classes. O movimento é reprimido e vários pernambucanos executados e esquartejados. A questão do estado centralizado versus estado federal está presente na América Latina. A oligarquia agrária é contra a submissão ao centralismo do Rio de Janeiro e à nomeação de um interventor. E vai à luta: organiza, em 1824, uma República e envia emissários a outras províncias para formar a Confederação do Equador. A resposta imperial é violenta. Frei Joaquim do Amor Divino Caneco é um dos condenados à morte. 1848. Os movimentos socialistas despontam.Os ideais do liberalismo e nacionalismo alimentam revoluções. O capitalismo, em desordenada expansão, transfere os prejuízos de suas crises à economia brasileira dependente. Aqui os prejuízos são transferidos da classe

senhorial às outras classes. Em Recife, deputados do partido liberal lideram o movimento (como Nunes Machado), que reúne jornalistas e militares. Pela República e pelo voto. Mas no interior, como já dizia Barbosa Lima Sobrinho (em 1948, contrariando concepções diferentes à época), a Praieira foi, basicamente, uma briga de senhores de engenho em disputa pelo poder local. Com tradição de luta, os pernambu-

canos atuaram com vigor também no período negro da ditadura militar. (A militância de esquerda era tão presente que a cidade de Jaboatão foi chamada de “Moscouzinho do Brasil”.) E ainda hoje, de suas terras marcadas pela riqueza e servidão, projetamse líderes nacionais que lutam por transformar Pernambuco, Brasil, em pátria de justiça e independência. Glória Esperança, jornalista carioca.

PREFEITURA

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UM NOVO SÉCULO, VELHA REPÚBLICA? Tradição oligárquica influencia e dá rumos na política, deixando no povo a ilusão de um novo país Chico Alencar e Marcus Venício Ribeiro República quer dizer coisa pública, ou seja, governo do povo. Se a República é presidencialista, o dirigente principal é o presidente, eleito pelo povo para governar por um tempo determinado: quatro, cinco, sete anos, dependendo das leis do país. Na República a vontade do povo deve ser respeitada. Em geral, não é. A única consulta ao povo é feita no momento da eleição. A República velha foi chamada também de República dos fazendeiros e de República dos coronéis. Ou ainda, de República do café-com-leite: café dos fazendeiros paulistas; leite dos fazendeiros de Minas Gerais. E assim seria até 1930. Por que foi assim? No início da fase republicana, muita gente pensou que as coisas iam mudar no Brasil. Houve quem acreditasse que já não íamos depender tanto do estrangeiro e que o país se tornaria uma democracia, onde todos tivessem as mesmas oportunidades, onde todos fossem iguais perante a lei. Doce ilusão? ESTADOS UNIDOS... DO BRASIL Nossa primeira Constituição republicana teve como modelo a Constituição dos Estados Unidos da América do Norte. Na Assembléia Constituinte eleita para fazê-la havia, como era natural, senadores e deputados com diferentes idéias políticas: liberais, conservadores, republicanos radicais, positivistas... Cada grupo tinha já a sua proposta para organizar a República. Os positivistas, que tanto haviam lutado contra a monarquia, preocupavamse muito em estabelecer os direitos civis (ou sociais) dos trabalhadores e do povo em geral - como a educação primária para todos e a proteção do Estado à família. Mas eles não achavam necessário defender os direitos políticos, como o direito de cada indivíduo participar da vida política e se organizar livremente em partidos: “o governo representa a pátria. Ele sozinho protegerá as famílias. Como se fosse o pai de todos os brasileiros”, pensavam os positivistas. Os republicanos radicais, como Lopes Trovão e Silva Jardim, sonhavam com uma República em que fossem assegurados tanto os direitos civis quanto os direitos políticos do povo: - Se República quer dizer “coisa do povo”, ela tem que ir à raiz dos problemas, ser radical. Os republicanos conservadores, porém, preferiam dar à palavra radical outro sentido: para eles, os radicais eram os “exaltados”, os “impacientes”, os “inimigos da ordem”. Quando muito, os consideravam “idealistas”: queriam “demais”, não passavam de “sonhadores”... Os republicanos conservadores formavam a maioria da Assembléia Constituinte. Uns preferiam se considerar liberais, outros conservadores mesmo. Quase todos, no fundo, tal como no período imperial, liberais-conservadores ou Especial - Barbosa Lima Sobrinho

diziam acreditar. CIVILISMO, A CIDADANIA POSSÍVEL? Rui Barbosa, por exemplo, era um desses constituintes de belas idéias. Para ele, assim como para seus colegas liberais, bastava afirmar que o povo era soberano para que essa soberania passasse a existir. Seus discursos comoveram a população urbana durante anos e entusiasmaram os que nele votaram para presidente da República por duas vezes, sem vê-lo eleito. Mas o povo continuou oprimido e sem poder participar - como soberano de fato - das decisões políticas. O escritor Pedro Nava recordou, em sua memórias, a impressão que Rui

conservadores-liberais, o que dá no mesmo. Tal como agora... Esses constituintes liberaisconservadores foram os que mais influíram na elaboração da Constituição. Eles tiveram duas grandes preocupações: uma era imitar povos como o americano e o inglês, que eles, gente da elite, admiravam. Outra era defender interesses e privilégios dos donos de terras e dos negociantes e banqueiros. Tal como agora, embora a história só se repita como farsa... A imitação começava pelo nome oficial escolhido para o país: República dos Estados Unidos do Brasil. Promulgada em 1891, a Constituição era presidencialista -o chefe da federação era

Antonio Carlos, presidente de Minas, às vésperas da Revolução de 30: "Façamos a revolução antes que o povo a faça." As elites começaram a perceber que o Brasil mudava. Barbosa lhe causava: “Outra marcha miúda e rápida a do homenzinho escuro, bigodes muito brancos, óculos fosforescentes, gravata de fustão, chapéu, fraque, colete, calça - tudo cinza claro e a queixada imensa. (...) Tive de me apoiar no gradil de uma árvore para não desabar de terror, de emoção, de pasmo, de admiração. Então eu vira mesmo? Vira. Era ele, Rui Barbosa (...) Falou das sacadas, durante horas, depois de ter sido saudado por uma donzela que por sua vez discursara oitenta minutos bem contados. Escureceu, chuviscou, o sol voltou e ninguém se movia. Não havia microfone nessa época, mas o vozeirão reboava audível. (...) Rui desvendou a pátria em derrocada. Tudo podre. Corria pus nas veias do país. Só ele, mago, conhecia a salvação. Quando desceu e tornou ao carro aberto foi tal a gritaria de entusiasmo que os prédios estremeceram. O céu desapareceu um instante sob a revoada dos chapéus de palha cortando o ar civilista. Rui”. Mas quem mandava no país eram as oligarquias dos estados mais fortes. Uma dominação silenciosa como os campos do grande latifúndio. Como os cafeicultores de São Paulo, que se organizavam no Partido Republicano Paulista (PRP). A força pública de São Paulo era mais poderosa que as tropas federais do Exército lá existentes! A elite paulista dizia que seu rico estado era uma locomotiva puxando “vagões vazios”, isto é, os outros estados. Seria assim mesmo? Pelo menos um vagão não estava tão vazio assim. O de Minas Gerais. Minas tinha a maior populacão, logo, o maior número de votos, prontos para serem encabrestados. Sem o apoio dos currais eleitorais mineiros dificilmente uma oligarquia de outro estado teria liderança nacional. O Partido Republicano Mineiro (PRM) chegava a ser maior que o PRP, e

o presidente- e federalista- os 20 estados teriam autonomia para elaborar sua própria Constituição, eleger seus presidentes, realizar empréstimos no exterior, decretar impostos e organizar suas próprias forças militares. A Constituição adotou também o regime representativo: os presidentes da República e dos Estados, assim como os senadores, deputados, prefeitos e vereadores, seriam eleitos diretamente pelo voto. Democracia? Nem tanto. Os analfabetos, as mulheres, os membros de ordens religiosas, e os menores de 21 anos não podiam votar. Só a exclusão dos analfabetos já impedia que cerca de 80% dos brasileiros participassem da vida política legal do país! Motivo alegado: não tinham capacidade para escolher seus representantes. Representantes? Os estudiosos da República velha põem em dúvida a aplicação desta palavra neste período. Nos Estados Unidos e na maioria dos países da Europa Ocidental já havia uma economia industrializada e uma sociedade bem mais organizada e habituada a participar da vida política. Com liberdade, portanto, para escolher os seus representantes e fiscalizar a sua conduta. No Brasil não era assim. Além de o povo, em sua maioria, ser analfabeto, a sociedade brasileira não tinha partidos políticos democráticos representando esse mesmo povo. O voto dos eleitores seria, por isso, manipulado, controlado pelos poderosos dos estados e municípios. Logo, das duas uma: ou os constituintes liberais-conservadores pareciam viver nas nuvens, achando que era suficiente ter uma Constituição falando de liberdade e igualdade de oportunidades para que os brasileiros se tornassem livres e houvesse mais igualdade entre eles; ou os puros interesses desses constituintes eram mais fortes que as idéias em que

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seus deputados cumpriam à risca as ordens dos grandes chefes políticos mineiros. O apelido que ganharam -carneiradaajustava-se como uma luva. João Pinheiro, que foi presidente do estado de Minas, explicou os métodos do seu partido a um senador recém-eleito: -Não há nenhuma dificuldade, diga sempre que é solidário com o governo. Tudo se reduz a obedecer. Obedeça e terá politicamente acertado. Do contrário, o senhor sabe, estou aqui com o facão na mão, para chamar à ordem aqueles que se insurgirem. Portanto, olho no facão, não esqueça... O governador (à época a denominação era “presidente de Estado”) de Minas dizia coisas que ainda são ditas e fazia política com métodos vitoriosos hoje em dia... Campos Sales, eleito presidente da República em 1898, foi que organizou as relações entre as oligarquias que mandavam nos estados e o poder federal, do qual ele era o chefe máximo. Foi a política dos governadores. Em sintonia com o presidente da República, a comissão de verificação dos poderes, que existia dentro do Congresso, impedia a posse dos candidatos que não fossem ligados aos grupos que dominavam no seu estado. Como retribuição, as oligarquias que mandavam em cada estado apoiavam sempre a política presidencial, que se orientava de acordo com os interesses de São Paulo e Minas, ou seja, do café com leite. Montava-se um esquema de tantos favores que, para um político estadual ou municipal, estar fora do governo era uma desgraça. Tal como hoje. CAFÉ FORTE, CAFÉ FRACO O Brasil republicano continuava, no final do século passado e início deste, sendo o império do café. Até se dizia, na época, que “o café dará para tudo!”. Sem dúvida, os cafezais faziam a riqueza dos grandes fazendeiros, dos comerciantes e dos banqueiros ligados à exportação. O café representava 70% do valor de tudo que o nosso país vendia para o exterior. Geopolítica: o centro de decisões estava no Sudeste. Prestígio, poder e visibilidade também! O poder político dos grandes cafeicultores era tanto que os presidentes de São Paulo, Minas e Rio de Janeiro decidiram fazer uma política de valorização do café, contra a vontade do presidente da República, Rodrigues Alves. Eles assinaram em 1906 o Convênio de Taubaté: para manter bom preço, os governos estaduais comprariam e estocariam café, quando houvesse super produção. Até os banqueiros Rotshchild, da Inglaterra, que de início não gostavam do convênio, aderiram depois à política de valorização do rei café... Isso criava uma espécie de círculo vicioso: quando os preços do café estavam altos, plantava-se mais. Mais plantio, mais café para exportar, superando, às vezes, as necessidades do consumo mundial. Resultado: queda nos preços. Daí a necessidade da intervenção dos governos, para garantir os interesses dos


cafeicultores. O resto da sociedade, inclusive os produtores de açúcar e os industriais, que se virasse. Afinal, “o café dará para tudo”. O Nordeste, o Norte, o Sul e o Centro-Oeste arcavam. Quem não era valorizado, nunca, era o trabalhador da lavoura cafeeira. Imigrantes ou descendentes de imigrantes - que eram mal remunerados ou nem tinham emprego fixo, sendo contratados apenas na época da colheita como os bóias-frias de hoje -, esses produtores da nossa principal riqueza viviam sempre na pobreza (imagine se os outros setores, menos pujantes...). Quando reivindicavam melhorias e faziam greves, eram duramente reprimidos. MUDANÇAS NA “IMUTABILIDADE” A República oligárquica aparentava grande solidez política e enorme estabilidade. Aparentava. Afinal, crescia no Brasil um setor urbano-industrial. Pouco a pouco, a burguesia das cidades se diferenciava da rural. E um operariado atento às lutas dos oprimidos no mundo começava a se organizar. Tempos de anarco-sindicalismo. Tempos da revolução mexicana dos camponeses, de Pancho Vila e Emiliano Zapata. Tempos da revolução bolchevista de operários e soldados. O muro da ignorância construído pelas oligarquias não barrava essas idéias... A primeira guerra mundial capitalista (1914-1918) as reforçou. As idéias novas começaram a se espalhar no Brasil que, lentamente, se urbanizava. A década de 20 é a da crise da dominação coronelista no Brasil. Uma década de mudanças. Os artistas se revelam em 22, na Semana de Arte Moderna: “Tupi or not Tupi”. Os tenentes se rebelam contra o “servilismo contumaz” da alta oficialidade. A Coluna Prestes percorre, invicta, o país das desigualdades. Pregando o fim da palmatória - como, 15 anos antes, o “almirante negro” João Cândido lutara contra a chibata - e do voto de cabresto. Os operários fundam sindicatos, constroem o Partido Comunista, realizam greves, exigem respeito. O Brasil mudava! E quem o agitava agora era uma vanguarda esclarecida, polêmica, indignada. Os donos do poder não podiam mais acusar “os fanáticos” de Canudos, do Caldeirão ou do Contestado... Nem a rebeldia justiceira do cangaço. A oposição era política e nítida. Daí o presidente de Minas, Antonio Carlos, ter recomendado, às vésperas de 1930: “Façamos a revolução antes que o povo a faça”. Afinal, as elites perceberam que o Brasil mudava. E trataram de recompor seus esquemas de poder, soltar os anéis para não perder os dedos. Chico Alencar e Marcus Venício Ribeiro, professores de história. PARA SABER MAIS NUNES LEAL, VITOR - Coronelismo, Enxada e Voto. 1975, SP, Ed. Alfa Omega CARVALHO, José Murilo de - Os Bestializados. 1989, SP, Cia. das Letras. FACÓ, Rui - Cangaceiros e Fanáticos. 1966, Ed. Civilização Brasileira. ALENCAR, Chico; RIBEIRO, Marcus Venício e CARPI, Lucia - História da Sociedade Brasileira - PARTE III, unidades I e II . 1997, RJ, Ed. Ao Livro Técnico.

A IMPRENSA POLÊMICA QUE DEU RUMO AO JOVEM BARBOSA

Um jornalismo com qualidade literária e sem o temor de emitir opiniões confundiu veemência com virulência. Politicamente liberal e tocado pelo ceticismo irônico de Voltaire, elegante com a pena, Barbosa Lima Sobrinho não partilha do ufanismo nem das grosserias que tantas vezes marcaram a história da imprensa no Brasil. Mas também não se esconde atrás de um profissionalismo que se pretende neutro, nem abre mão de opinar, de pugnar, de esclarecer, colocando sua voz a serviço de sua pátria e da sociedade. Neste sentido, Barbosa Lima Sobrinho pode ser considerado um dos herdeiros da imprensa panfletária, ainda que a época em que ele começou sua atividade na imprensa foi justamente marcada pelo declínio irreversível deste gênero de jornalismo. IMPRENSA INDUSTRIAL, CIVISMO E LITERATURA A imprensa transformara-se em indústria no Brasil, sobretudo nas capitais, mas não num nível de complexidade semelhante ao atual. Eram empresas que visavam o lucro, mas que lidavam com um público ainda afeito a grandes embates. A importância da informação, do noticiário e da reportagem cresciam, as técnicas de impressão alteravam-se, mas a tomada de opinião continuava a ter peso. Esta foi a influência marcante no jovem Barbosa Lima Sobrinho, onde se destacam órgãos como o Estado de São Paulo e o Jornal do Brasil entre suas primeiras leituras. Paira sobre esta época a figura de Rui Barbosa, cujas três campanhas derrotadas à presidência da República 1909, 1914 e 1919- conferiram-lhe uma aura profética de líder oposicionista que mobilizou parcelas consideráveis das forças políticas do Brasil. Entre suas atividades, Rui fora redator-chefe do Jornal do Brasil entre 1893 e 1894, cargo que seria ocupado 30 anos depois por Barbosa Lima Sobrinho. A campanha civilista contra o militarismo do marechal Hermes da Fonseca, embora sem força para derrotar o candidato da República oligárquica, serviu como elemento aglutinador e formador de consciências. (Pode-se ver nas “anticandidaturas” de Ulysses Guimarães e do próprio Barbosa Lima Sobrinho contra o regime militar, em 1973, uma inspiração no civilismo oposicionista.) O Estado de São Paulo, que tornara-se porta-voz da campanha de Rui Barbosa, era lido avidamente pelo jovem pernambucano. O Rui Barbosa que mais marcou a mocidade de Barbosa Lima foi não somente o da epopéia civilista, mas também aquele republicano de primeira hora que passara a fazer áspera autocrítica aos rumos autoritários e oligárquicos que o novo regime havia tomado. Ao lado do panfletarismo, do republicanismo e do civismo, o jornalismo literário estava ainda em voga entre fins do século passado e começo do atual. Era

Marco Morel A cultura política que marcou os últimos anos do século XIX e os primeiros do século XX no Brasil, sobretudo no que se refere ao jornalismo, pode ser definida como parte da longa passagem entre o estilo panfletário e a modernização empresarial. Talvez o período mais agudo deste processo de mudança, onde estas duas características permaneciam marcantes, híbridas, ao mesmo tempo se opondo e misturadas. É neste contexto - onde o republicanismo, o jacobinismo florianista e as campanhas civilistas mobilizavam opiniões e facções, provocando disputas dilacerantes - que ocorreu a formação escolar e universitária de Barbosa Lima Sobrinho, que dava seus primeiros passos na imprensa. A ERA DOS PANFLETOS O chamado estilo panfletário nem sempre teve o sentido pejorativo com que hoje é predominantemente compreendido. Desde o surgimento dos jornais periódicos no Brasil (89 anos antes do nascimento de Barbosa Lima Sobrinho), o jornalismo panfletário foi um dos principais motores de desenvolvimento da imprensa, tendo seu apogeu nos anos 1820-1840. Os jornais eram impressos em tipografias e caracterizavam-se pela polêmica ou sátira e pela linguagem veemente ou agressiva. Eram sobretudo publicações opinativas que, independente da posição política, tomavam partido e se revestiam de uma missão pedagógica em relação à sociedade, buscando esclarecer, orientar ou mesmo libertar seus leitores, resvalando com freqüência para insultos e ataques pessoais. Era o que se convencionou chamar de imprensa artesanal, do ponto de vista da atividade econômica. O jornalista panfletário, patriota, militante, nasceu a partir da Revolução Francesa: ele era a marca da modernidade política em seu tempo, opondo-se às gazetas monarquistas dos Antigos Regimes e buscando a ampliação do público leitor fora do círculo estreito da “República das Letras”, pregando liberdade de expressão e direito à crítica, fazendo do jornalismo uma espécie de sacerdócio onde, no lugar do lucro, podia haver privações financeiras e perseguições violentas. “Encontrei ainda especimens desse jornalismo romantico resultado muitas vezes da exaltação das doutrinas e da fascinação das idéas, mas algumas vezes surgido de pruridos vaidosos, creadores da ambição de renome e de evidencia”, escreveria prudente Barbosa Lima Sobrinho em 1923, no seu clássico livro O Problema da Imprensa. Barbosa Lima nunca negligenciou a importância destes pioneiros, bastando destacar seus estudos sobre Hipólito da Costa e Evaristo da Veiga. Vivendo numa época ainda marcada pelos panfletários, Barbosa Lima Sobrinho faria sua interpretação própria deste fenômeno. Até por uma questão de temperamento, nunca

a época das grandes polêmicas literárias pela imprensa, onde os redatores não raro ingressavam na Academia Brasileira de Letras ou escreviam obras significativas. No mesmo trabalho de 1923 Barbosa Lima Sobrinho avaliava o impacto do processo de modernização sobre o perfil dos jornalistas: “Com o desenvolvimento industrial da imprensa se transforma o próprio jornalista. Em phases iniciaes, conserva se no articulista a cultura de sciencias politicas, philosophicas e litterarias. Elle deveria dizer periodos cheios de pompa e anhelos democraticos. Mais adiante admitte-se o escriptor ligeiro, dotado de um estilo ágil e de escassa cultura geral.” Do primeiro tipo, Barbosa Lima guarda o porte dos grandes articulistas que dominam com fluência importantes áreas do conhecimento. Do segundo, ele mantém o estilo sem pompas verborrágicas. E como síntese entre os dois pregava, em 1923, que “o jornal é orientador, porque ensina e esclarece, exercendo uma actuação cuja efficiencia dependerá do merecimento de seus especialistas”. Assim, vemos a ligação entre a imprensa já de porte empresarial, modernizada, com campanhas cívicas de oposição e com o jornalismo de qualidade literária elementos marcantes na vida de Barbosa Lima Sobrinho, que se adapta às diversas fases da imprensa ao longo do século XX sem por isso abrir mão de seus princípios e sem negligenciar sua formação. JACOBINISMO E NACIONALISMO O jacobinismo florianista era outra manifestação importante na época da mocidade de Barbosa Lima Sobrinho. Ainda aqui vemos a referência à Revolução Francesa servir de fator de divisão das lutas políticas, fenômeno freqüente ao longo do século XIX em muitos países. O próprio Alexandre José Barbosa Lima (tio materno de Barbosa Lima Sobrinho, que herdou seu nome) era um dos expoentes de tal tendência. Mesmo após a morte do marechal Floriano Peixoto, em 1895, o ideário que ele encarnou, do jacobinismo florianista, permaneceria como uma bandeira até a década de 1920. Como Barbosa Lima Sobrinho assimilaria estes exemplos? Décadas mais tarde, ele afirmaria (em Desde quando somos nacionalistas?, de 1963): “O jacobinismo passou a indicar um amor ardente ao País, o combate aos estrangeiros em geral, em tudo que pudesse concorrer para a preservação e a garantia da independência nacional. Chegava-se a aconselhar a expropriação dos bens portuguêses. Floriano, do seu lado, oferecia cobertura a essas tendências (...)”. No mesmo livro Barbosa Lima Sobrinho faria observação importante, que situa sua posição sobre o tema. Ele mostraria a diferença, no contexto do

“O jornalista patriota, militante, era a marca da modernidade política.”

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Jornal da ABI


jacobinismo florianista, entre a linguagem do jornal O Jacobino (considerando-a “de extermínio, com uma violência brutal, anedotas e episódios aviltantes”) e a de O Nacional, que, na sua visão, “não era jacobino, nem exclusivista. Mas era solidário com o nacionalismo onde quer que ele se apresentasse”, além de pregar “o combate ao monopólio de fato que os portugueses exerciam no comércio do País”. Hoje em dia sabe-se que a efêmera Constituição francesa de 1793, chamada de Jacobina ou de inaplicável, acabou servindo como referência para diversos movimentos políticos e sociais até os dias atuais. Mesmo a Constituição brasileira de 1988, ao adotar mecanismos de participação da sociedade na elaboração das leis (como a emenda popular, por exemplo), inspirou-se diretamente em inovações apresentadas pela Carta elaborada na França ao tempo dos “Montagnards”. E Barbosa Lima Sobrinho faz questão de separar o “jacobinismo” do “nacionalismo”, os quais podem ter pontos em comum, mas que expressam práticas e mesmo concepções diferentes. ALÉM DOS MODISMOS Republicanismo, civilismo, jacobinismo e panfletário são palavras que pertenceram a determinado contexto. Fora dele podem não soar bem e hoje em dia são francamente fora de moda. Entretanto, se conseguimos recuperar o significado de expressões a seu tempo, elas deixam de ser vazias ou alvo de ironia fácil, na medida em que compreendemos o vigor que um dia tiveram. O exemplo de Barbosa Lima Sobrinho neste ponto é edificante, pois sabe não só adaptar-se mas transformar-se com os tempos ao longo deste século XX. Sem ser afeito a modismos, mas possuindo a sabedoria de distinguir, dentro de suas convicções, o atual e o inatual. Na época da mocidade de Barbosa Lima era não só moda, mas quase obrigação, citar Rui Barbosa para embelezar ou mesmo legitimar um discurso. Dirigindo-se em 1903 aos formandos da turma de colégio de seu filho (chamando-os de “meus caros amiguinhos”), a “Águia de Haia” vibrou estas palavras que tocaram a tantos jovens: “A pátria não é ninguém, são todos; e cada qual tem no seio dela o mesmo direito à idéia, à palavra, à associação. A pátria não é um sistema, nem um monopólio, nem uma forma de governo: é o céu, o solo, o povo, a tradição, a consciência, o lar, o berço dos filhos e o túmulo dos antepassados, a comunhão da lei, da língua e da liberdade.” O que para uns pode parecer mero efeito oratório para outros pode sinalizar um princípio de esperança, desses que mobilizam a vida e as gerações. Marco Morel, jornalista, doutor em História pela Universidade de Paris e professor do departamento de História da UERJ. PARA SABER MAIS VIANA FILHO, Luís - “Três Estadistas: Rui - Nabuco - Rio Branco”. 1981, Rio de Janeiro, Ed. José Olympio. ABREU PENNA, Lincoln de - “Uma História da República”. 1989, Rio de Janeiro, Nova Fronteira. WERNECK SODRÉ, Nélson - “História da Imprensa no Brasil”. 1978, Rio de Janeiro, Ed. Graal (2ª edição). Especial - Barbosa Lima Sobrinho

TODA VERDADE DITA A SORRIR O lema da revista D. Quixote, de Bastos Tigre, diretor da ABI, dá o tom de um tipo de jornalismo que fez sucesso de público na virada do século colaboradores dos jornais e revistas vão adquirir grande prestígio. Eles são vistos não apenas como formadores da opinião pública; papel que de fato desempenharam. Há todo um imaginário que se constrói em torno de suas figuras como agentes da modernidade. Assim, eles aparecem

Mônica Velloso “Poder mais forte não há decerto que o do jornal...” Numa coreografia esfuziante, as folhas dos jornais rodopiam, cantando em coro a magia da imprensa nos tempos modernos. Essa cena faz parte da peça O carioca de Artur Azevedo, levada aos palcos em 1886. Desde essa época, a imprensa já figura como personagem obrigatória no teatro de revista e no cotidiano carioca. De fato. Na virada do século, a imprensa assume papel marcante como um dos veículos identificadores da modernidade. O país estava atravessando uma fase de mudanças decisivas. A urbanização, a emergência de uma classe média com interesses culturais mais definidos, o anseio generalizado de informações, enfim, o que estava em questão era a própria formação da opinião pública. No Rio de Janeiro, cidade capital, essas inovações se fazem presentes de maneira particularmente sensível. Era necessário agilizar a informação, fazendoa chegar ao grande público de maneira criativa e impactante. Função essa que será cumprida, em grande parte, pelas revistas humorísticas ilustradas. A Revista Ilustrada (1876 a 1898) e a revista D. Quixote (1865 a 1902, na primeira fase), ambas sob a direção do caricaturista Angelo Agostini, inauguram o chamado jornalismo gráfico, com forte ênfase nas caricaturas. Esse tipo de publicação vai acabar se transformando numa espécie de tradição na vida cultural carioca. Nessa época, a transmissão da informação ainda era algo complexo. Parte expressiva da população era analfabeta ou semi-escolarizada. Tendo pouca familiaridade com o universo letrado, esse contingente de leitores encontra nas imagens o seu veículo de comunicação e atualização. Além de pôr o leitor a par dos acontecimentos cotidianos da cidade, essas revistas desempenham importante papel na campanha abolicionista e republicana. Elas mobilizam a população a participar mais vivamente dos acontecimentos. Joaquim Nabuco, um dos líderes da campanha abolicionista, declara que a Revista Ilustrada funcionou como verdadeira “bíblia da abolição” para aqueles que não dispunham do poder de leitura. As caricaturas faziam rir e pensar. Tinham forte poder persuasivo porque falavam dos problemas vivenciados p e l a s camadas populares. Os tipos representados nas caricaturas eram os tipos que andavam nas ruas: vendedores ambulantes, capoeiras, donas de casa, negros, imigrantes pobres e também os políticos engravatados e cheios de retórica. Era fácil a identificação e a decodificação dessas mensagens e tipos. Na época, os jornalistas e os

“O grupo de humoristas achava que a imprensa tinha uma missão a cumprir: o exercício da justiça.” como verdadeiros atores capazes de dramatizar os acontecimentos, invenções e idéias dos tempos modernos. No Rio de Janeiro, há um grupo de intelectuais humoristas particularmente envolvido nessa trama entre imprensamodernidade. Ele é composto por escritores, alguns já bem conhecidos, como é o caso de Lima Barreto, Bastos Tigre, passando por Emílio de Menezes e José do Patrocínio Filho. O grupo inclui ainda nomes de caricaturistas famosos como Raul Pederneiras, Kalixto, J. Carlos e Storn. O que chama a atenção é a sua participação intensa na imprensa carioca, seja através de escritos satíricos ou de caricaturas. Diariamente eles estão nas revistas comentando os últimos acontecimentos, fazendo a crítica dos costumes e da nossa vida política. Na charge a Imperial República Brasileira, Kalixto critica o pacto continuista entre as elites imperiais e republicanas. A nossa República aparece com uma coroa, cetro e manto. Cheia de pompa, ela estica a sua mão para ser beijada pelos súditos que a reverenciam.

No palco dos teatros, os humoristas transformavam a notícia em show. Já nas charges de J. Carlos Máquina de pentear macacos e Máquina de lamber sabão, publicadas na Careta, critica-se a mecanização e o automatismo modernos. Também a padronização do tempo vai inspirar a quadrinha satírica de Emílio de Menezes. Em 1913 quando é estabelecida a obrigatoriedade da Hora Nacional, Emílio

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brinca com a idéia. Diz que a proposta é simpática mas inviável para ele que tem o seu relógio freqüentemente pendurado no prego. Logo, conclui ele, quem me adianta ou atrasa é o agiota. Era uma maneira de criticar o tempo qualitativo, agora cronometrado pelo ponteiro dos relógios. Enfim, essas eram maneiras de banalizar e tornar risíveis situações que ainda eram vivenciadas pelo público com certo temor. É bom lembrar o quanto na cidade moderna foi particularmente acentuada a perda dessas referências espaço-temporais. O grupo dos humoristas funciona neste quadro um pouco como clown: faz rir, diz “verdades”, encena performances, dá alfinetada nos poderes, enfim, mostra as suas perplexidades frente a uma realidade ainda em movimento. Daí a importância dessa reflexão - escrita e visual - que acompanha cuidadosamente o desenho do cotidiano urbano carioca. O grupo dos humoristas começa a se formar em torno da revista Mercúrio (1898). Depois vai criando as suas próprias publicações como é o caso da Tagarela (1902), O Malho (1902), A Garra (1903), e Avança (1904). A coisa não pára aí. Ao longo da década de 1910 colabora diariamente em publicações como Careta, Filhote do Careta, FonFon, Revista da Semana, sem contar a participação na grande imprensa como o Jornal do Brasil. Mas é em 1917 que vai ser retomada a revista D. Quixote, agora sob a direção de Bastos Tigre. Essa revista, de periodicidade semanal, funciona como uma espécie de lugar de memória para o grupo. Dura 10 anos, sem interrupções. Seu lema sintetiza bem a proposta: “Muito riso, muito siso” ou “Toda verdade dita a sorrir”. Era uma tentativa de unir humor e reflexão. O grupo achava que a imprensa tinha uma missão a cumprir na sociedade moderna: o exercício da justiça. Por isso vestiam a roupagem do quixote. Se identificavam como heróis das boas causas mas ao mesmo tempo sentiam-se impedidos de praticá-las. Daí propunham o riso e a sátira como forma de comunicação social. Argumentavam que o humor era a única linguagem capaz de sensibilizar a opinião pública, levando-a a participar dos acontecimentos. No início do século, as revistas ilustradas são extremamente populares. Geralmente vendidas em bancas de jornal ou pelas ruas da cidade através de pregões que faziam a delícia da população. FonFon e Careta eram encontradas em consultórios, salas de espera, estações de trem. Era nítida nessas publicações a idéia de agilidade, condensação e brevidade na comunicação. O tempo é vivenciado como algo fugaz, efêmero. As revistas se transformam em passatempo...


No seu editorial de lançamento, a Mercúrio (1898) propõe ser lida nos bondes ou nos automóveis, enquanto o passageiro se desloca da casa para o escritório ou mesmo a passeio. A leitura se mistura aos ruídos do trânsito e das ruas. É sintomático o nome Fon-Fon, onomatopéia da buzina de um automóvel. Linguagem da modernidade: a revista e os seus colaboradores fazem parte deste cenário em mutação. A trajetória dos intelectuais humoristas mostra bem essa sintonia com a modernidade. Eles participam de eventos pioneiros em relação à imprensa, como é o caso das Conferências Hum o rísticas Ilustradas (1907) e dos Jornais Falados (1914). Por essa época há uma polêmica em torno do papel da imprensa na sociedade. Alguns intelectuais defendem a idéia de que ela deve ser mais ágil, mostrando-se capaz de acompanhar o caráter vertiginoso do tempo. Neste sentido, não deixa de ser impressionante o depoimento de Olavo Bilac: “Talvez o jornal futuro - para atender à pressa, à ansiedade, à exigência furiosa de informações completas, instantâneas e multiplicadas - seja um jornal falado e ilustrado com projeções, dando a um só tempo a impressão auditiva e visual dos acontecimentos”. O texto foi escrito em 1904. Pouco tempo depois, estreava no Rio de Janeiro A Conferência Humorística, patrocinada pela revista Fon-Fon. O espetáculo foi encenado no Teatro Palace, em agosto de 1907. Em que consistia esse espetáculo? A idéia era a de falar sobre os tipos cariocas. O apresentador era o chofer da FonFon, personagem símbolo da revista. De óculos, luvas e casaca, ele conduz os espectadores ao show. Enquanto alguém descreve os tipos cariocas, os caricaturistas Kalixto e Raul Pederneiras os desenham. Estão em jogo duas modalidades de linguagem: a falada e a visual. Este espetáculo volta a se repetir com sucesso em novembro de 1911, no mesmo Teatro Palace. Só que agora são retratados os tipos cariocas e os lisboetas. Além dos nossos caricaturistas, também está presente o caricaturista português André Brum. As Conferências

O grupo impressionou Olavo Bilac: “Talvez o jornal do futuro seja a um só tempo a impressão auditiva e visual dos acontecimentos.”

Humorísticas fizeram tamanho sucesso que a imprensa resolveu dar continuidade ao projeto. Em julho de 1914, a Revista Ilustrada patrocina o Jornal Falado no Teatro Fênix. A imprensa se transforma em espetáculo a ser encenado pelos jornalistas-atores. Eles são expressivamente denominados de “ases da imprensa”. Velocidade, arrojo, malabarismos, impacto. Essa é a forma de transmitir as notícias ao público espectador. Neste espetáculo, as várias seções do jornal se fazem presentes. O noticiário policial representado por

CORREIO BRASILIENSE

Viriato Corrêa, a crônica teatral por Oscar Guanabarino, a seção literária por João do Rio, a política por Costa Rego e o humor por Bastos Tigre. A apresentação de Bastos Tigre causa certo frisson na platéia. Ele passa alguns minutos lendo e relendo enormes tiras de jornal. A platéia aguarda em suspense. Nada acontece. Até que ele finalmente explica que as coisas lidas em silêncio tinham sido cortadas pela censura. O mal estar da platéia se transforma, então, em sonoras gargalhadas. Tanto as Conferências Humorísticas como o Jornal Falado foram verdadeiros happenings na cidade, sendo matéria de inúmeras reportagens na imprensa. O fato mostra o prestígio das revistas ilustradas (que financiam os espetáculos), dos jornais e, particularmente, dos caricaturistas. Falar de uma “cultura da modernidade” é falar sobre o papel da imprensa enquanto formadora da opinião pública. O impacto visual, a sedução das imagens e da linguagem humorística prefiguram as linhas de uma moderna comunicação de massa, já na virada do século. Raul Pederneiras e Bastos Tigre, que ocuparam cargos na direção da ABI, foram precursores dessa modalidade comunicativa. Hoje, quando vivemos outra virada do século, novamente os meios de comunicação passam por um processo de radicais transformações. Se no início do século o desafio ocorria na esfera pública, hoje a comunicação passa vertiginosa, a cada segundo, pelas telas do privado. O filme Denise está chamando pode ser um exemplo nesta reflexão... Mônica Velloso, historiadora e pesquisadora do CPDOC da FGV-RJ. PARA SABER MAIS LIMA, Herman História da caricatura no Brasil. 1963, Rio de Janeiro, Ed. José Olympio. VELLOSO, Mônica Modernismo no Rio de Janeiro. 1996, Rio de Janeiro, Ed. Fundação Getúlio Vargas. WOLGENSINGER, Jacques -L’histoire a L’une - La grande aventure de la presse. 1992, Paris, Decouvertes Gallimard.

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Jornal da ABI


ABI E A IMPRENSA OPERÁRIA

Fundador da Casa do Jornalista era militante de uma imprensa engajada José Nilo Tavares Estamos superando, com dificuldades, muitas incompreensões acerca do papel que os intelectuais, incluindo os jornalistas, devem desempenhar numa sociedade em busca de transformações para o progresso. Se há, e houve, quem subestimasse o papel da imprensa operária neste processo, existe, igualmente, os que o superestimam, negando, liminarmente, valor a qualquer órgão de comunicação que não defenda as causas dos trabalhadores. O filósofo francês, Louis Althusser, em livro póstumo, editado em 1992 (L’avenir dure longtemps), refere-se às distorções ocorridas no comportamento de vários dirigentes do Partido Comunista Francês, do qual era militante, nas décadas de 1940 - 1950. Uma delas foi a pretensão de impor aos intelectuais filiados em suas carreiras, da estatura do próprio Althusser, professor da Escola Normal Superior, tarefas incompatíveis com as suas aptidões, como a de pichação de muros pelas ruas de Paris. Os fundadores e os teóricos do movimento socialista internacional, certamente, desaprovariam tal atitude. Embora admitindo que, em certas circunstâncias, tudo se poderia exigir dos quadros do partido, em matéria de trabalho, desde que não se estabelecessem diferenciações de cunho valorativo, social, entre os militantes, subordinavam tais possibilidades a situações históricas concretas, não as aceitando como princípios. Alimentavam, é certo, a idéia de que numa sociedade comunista existiria uma tendência para a extinção das diferenças entre trabalhadores manuais e intelectuais, fundindo-se , ambos, no homem socialista universal. Mas insistiam sempre na tese de que não se formam generais com a mesma facilidade com que se formam soldados, e numa guerra, soldados e generais tornam-se indispensáveis. Essas reflexões ocorrem no momento em que sou convocado para escrever artigo sobre a imprensa operária, a integrar publicação em homenagem ao centenário do amigo Barbosa Lima Sobrinho, presidente da nossa casa. Aceito o convite desvanecido, pois considero o Dr. Barbosa um dos valores mais altos, que honra preservar. Não consta que Barbosa Lima Sobrinho haja militado na imprensa operária, embora, desde a juventude, no Recife, convivesse com muitos companheiros que o faziam, como Cristiano Cordeiro ou Rodolfo Coutinho. Estes, inclusive, nos anos 1919-1920, criaram um Círculo de Estudos Marxistas e fundaram vários periódicos, de curta

duração, destinados à classe operária. Também Joaquim Pimenta, jurisconsulto de direito do trabalho, por essa época, vinculado aos pernambucanos, participou do grupo Clarté, inspirado nas idéias revolucionárias e marxistas de Henri Barbusse. Indiretamente, contudo, Barbosa Lima estava presente na vida dos jornais operários e no movimento dos trabalhadores, como dirigente que era de associações como a ABI, de que foi presidente, de 1926 a 1927 e de 1930 a 1931, somente retornando ao posto, em que até hoje permanece, em 1978. Contribuiu, naquela conjuntura, decisivamente, para a aglutinação dos trabalhadores da imprensa e para a unidade e o fortalecimento das suas agremiações, cônscio das limitações existentes. Fundador da ABI, o catarinense Gustavo de Lacerda (18541909) foi constante militante da imprensa operária, sobrevivendo precariamente, no entanto, dos trabalhos que prestava aos jornais liberais e conservadores de sua época, todos republicanos, como a Imprensa, de Rui Barbosa, o Jornal do Brasil e o Paiz. Vale observar que, antes da ABI, Gustavo fundara, com o professor Vicente Ferreira de Souza, do colégio Pedro II, em 1902, o Partido Socialista Coletivista, no Rio de Janeiro. Não resta dúvida de que Lacerda foi jornalista da imprensa operária, mas o que significa, precisamente, este conceito, imprensa operária? Para explicitá-los, pode-se adotar diversos critérios. Conjunto de matérias escritas e ilustradas, versando sobre temas do interesse dos trabalhadores e destinados, particularmente, à sua leitura. Ou pode tratar-se de jornais elaborados por operários, destinados a amplos setores da sociedade e mantendo conteúdo informativo e assistencialista. Um caso extremo seria aquele tipificado pelo periódico Classe Operária, do Partido Comunista do Brasil, lançado no Rio de Janeiro a primeiro de maio de 1925, com o subtítulo: Jornal de trabalhadores, feito por trabalhadores, para trabalhadores. Sabe-se que os homens que trabalham nos jornais, desde o evento do capitalismo, pelas suas condições de existência, nível de alfabetização e conscientização política, manifestam tendências socialistas acentuadas e Proudhon é exemplo típico. Existe um trabalho clássico para a compreensão do jornalismo, entendido como forma de luta política: o Que Fazer?, de Lenin. No Brasil, encontraremos exemplo de transição de um jornal liberal, em operário, em A Nação (1923). Era jornal diário dirigido por Maurício de Lacerda e Leônidas

Antes da ABI, Gustavo fundou, em 1902, o Partido Socialista Coletivista.

Especial - Barbosa Lima Sobrinho

Rezende. O primeiro, tribuno consagrado, descendente de tradicional família de liberais e radicais, vassourense, e o segundo, mineiro da Zona da Mata, advogado, que, de positivista na juventude transformou-se em comunista, como Luiz Carlos Prestes. Leônidas, em 1932, já afastado do partido, ainda que preservando a sua condição de marxista até o final da vida, tornou-se professor catedrático de Economia Política na Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, em 1932, derrotando, em concurso público, com a tese Formação do capital, Alceu de Amoroso Lima, então líder católico direitista. A Nação, em sua primeira fase, manteve intransigente oposição ao governo de Arthur Bernardes, notabilizouse pela defesa do liberalismo e manifestava clara simpatia pelas reivindicações populares e do funcionalismo público, bem como abria as suas colunas à causa feminista. Fechado, sob as ordens de Bernardes, e rompidas as relações entre Maurício e Leônidas, o jornal voltaria a circular a 3 de janeiro de 1927, sob a direção dos comunistas Leônidas Rezende, Otávio Brandão e Paulo Lacerda, irmão de Maurício. No editorial de apresentação, escrevia Leônidas de Rezende: “Éramos um jornal liberal. Estávamos dentro dos princípios da Revolução Francesa...Hoje somos a Nação comunista”. As limitações da imprensa dos trabalhadores em nosso país, nas décadas de 1920 a 1940, marginalizando intelectuais simpatizantes de suas causas, como Carlos Drummond de Andrade e o próprio Astrogildo Pereira, um dos fundadores do Partido Comunista do Brasil, evocam o contraste com certos periódicos europeus, como o Ordine Nuovo, de Turim, que chega a interessar intelectuais do porte do filósofo Benedetto Croce. Para compreender o aparecimento deste intelectual orgânico que é Barbosa Lima, figura da atualidade brasileira, sugerimos algumas hipóteses, a saber : a) As tradições familiares herdadas; b) A sólida formação intelectual e moral; c) A efervescência cultural que lhe marcou a juventude, bem como o apego ao estudo, à pesquisa e à literatura; d) A capacidade de liderança, aliada a um temperamento cordato e a um caráter enérgico; e) As condições materiais de que dispôs, ou soube criar, permitindo-lhe usufruir bens culturais e frutificante convívio social, indispensável ao florescimento de suas potencialidades; f) O acúmulo, dir-se-ia quase computadorizado, de experiências; g) A ambição política, visando a utilização do poder em benefício do público e do país e, finalmente, a sua longevidade, alcançada em meio a perfeita saúde física e mental. Em síntese, diríamos que Barbosa Lima produziu obras marcantes nos campos da literatura (ingressou na Academia Brasileira de Letras, em 1938), da história (destaquem-se A verdade sobre a Revolução de 30 e a Presença de Alberto Torres), do direito (os célebres pareceres sobre a venda da Light, do Rio

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de Janeiro, a autonomia do município do Recife, os direitos eleitorais) e da política nacional ou internacional (No Japão, o capital se faz em casa e os Ensaios nacionalistas). Gustavo de Lacerda e Barbosa Lima, guardadas as distâncias que os separam, sugeridas nas linhas anteriores, igualamse na grandeza e no despreendimento, na coerência e na defesa de causas dignas e nos serviços que prestaram ao seu povo, à sua pátria e aos seus correligionários. Há momentos em que imprensa operária e imprensa liberal sintonizam-se e contribuem para manter o que de melhor subsiste na história da humanidade e das civilizações. Assim ocorreu, na idade contemporânea, em 1848, na França, na Alemanha, na Itália, na Polônia, na Espanha, por ocasião da queda do fascismo, e em Portugal, quando o salazarismo esfarelou-se; nos Estados Unidos, quando se deram as lutas contra o racismo, no Brasil, por ocasião dos movimentos de independência nacional, do abolicionismo e da derrota da ditadura militar, implantada em 1964. Assim ocorreu, em todo o mundo, nas agitações contra as guerras e pela paz. Além das limitações de natureza cultural e do usufruto, ou não, de bens, materiais e espirituais, dos estilos e padrões de vida, da predileção por tipos de ócio e de prazeres, sobrelevam-se, na vida dos homens, ideais imperecíveis, como a honra, a justiça, os direitos humanos, a liberdade, a coerência. As chaves que procuramos, para acesso aos subterrâneos em que se cruzam as linhas paralelas que aproximam Gustavo de Lacerda de Barbosa Lima Sobrinho, aparecem, iluminadas, no momento em que, presenciando o comportamento dos atuais dirigentes do Brasil, testemunhamos o drama e a tragédia da renegação de princípios e do oportunismo das ações. Joaquim Nabuco afirmou, com aquela grandeza que sempre o caracterizou, que o primeiro dever do intelectual, em país de escravos, é combater a escravidão. E o poeta Heine conclamava-nos a não permitir que, na idade madura, o bom senso e a acomodação nos roubassem os sonhos da juventude. Gustavo de Lacerda e Barbosa Lima Sobrinho mantiveram-se fiéis às advertências do escritor e do poeta. José Nilo Tavares, professor universitário, escritor, jornalista e ex-diretor da ABI. PARA SABER MAIS ALVES, Ivan e TAVARES, J. N. - A Imprensa na década de 1920 -.ABI (Centro de Memória do Jornalismo Brasileiro/FINEP - RJ - 1981 FERREIRA, Maria Nazareth - A Imprensa operária no Brasil. 1978, Petrópolis, Editora Vozes. GARCIA, Evaldo S. - A Imprensa operária e socialista brasileira no século XIX. Estudos Sociais (revista, n.18. RJ. 1964). LEUENROTH, Edgard - A Organização dos Jornalistas brasileiros - 1908/ 1951. 1987, SP, COM/ART. TAVARES, J.N. - Marx, o socialismo e o Brasil. 1983, RJ, Editora Civilização Brasileira.


marca 100 anos

Foram muitas as comemoracões jornalísticas no centenário de Barbosa Lima Sobrinho. Um documentário na TV Educativa, cadernos especiais nos jornais do Rio e de Recife, além de três livros. O de Fernando Segismundo (Barbosa Lima Sobrinho, o dever de utilidade), seu colega de ABI, resgata momentos de atuação da militância profissional. Arthur Carvalho, da Associação de Imprensa de Pernambuco, junta depoimentos e artigos de amigos. Coube a José Augusto Ribeiro, secretário da ABI, o mais complexo, juntando história de vida, depoimentos do próprio Barbosa e a análise do pensamento através dos artigos de jornais e livros publicados.

HOMENAGEM DOS PERNAMBUCANOS Arthur Carvalho Ao se aproximar o aniversário de cem anos do jornalista Barbosa Lima Sobrinho, a diretoria da Associação de Imprensa de Pernambuco - AIP - se reuniu e, tendo à frente o presidente Carlos Cavalcante, resolveu prestar várias homenagens ao ilustre aniversariante, que, além de grande brasileiro, é pernambucano do Recife, embora seus irmãos sejam de Olinda. Entre essas homenagens, deliberouse que eu faria um ensaio biográfico do dr. Barbosa - como é respeitosa e carinhosamente chamado pelos companheiros. Tremi na base. E tremi porque, sendo seu leitor assíduo, acompanho com atenção sua vida particular e profissional e sei que essa vida tão intensamente vivida e essa profissão tão fecundamente exercida merecem anos de estudo e pesquisa de quem pretender escrever sobre ele, e eu não dispunha de tempo necessário para isto. Embora contente e honrado de ter sido escolhido para tão nobre missão, fiz ver aos colegas da AIP as dificuldades que iria enfrentar para cumprir a tarefa (a reunião foi em novembro de 96), mas a

AIP entendeu que não poderíamos deixar passar em branco data tão significativa para a imprensa nacional. Minha primeira preocupação foi reunir depoimentos de pessoas de ideologias diversas, para tornar o livro o mais equilibrado e isento possível. Achei conveniente ouvir governadores que sucederam dr. Barbosa no governo de Pernambuco, entre eles, Marco Maciel, Miguel Arraes e Joaquim Francisco Cavalcanti. Colhi a opinião de alguns de seus amigos mais chegados como Jarbas Maranhão, Pelópidas Silveira e Pinto Ferreira. Pelópidas Silveira, ex-prefeito do Recife, figura emblemática da política nordestina, conheceu dr. Barbosa em 1946 “quando se articulavam as candidaturas ao governo de Pernambuco, após a queda do Estado Novo”. Os partidos de esquerda lançaram o nome de Pelópidas para disputar a eleição. Após demorada batalha judicial, entre PSD e UDN, dr. Barbosa foi vitorioso. Cooperaram ainda com nosso trabalho, jornalistas de renome, como Abdias Moura, editorialista do Jornal do Commercio, Aldo Paes Barreto, que contou um caso saboroso acontecido numa viagem de avião do Recife para o Rio, quando encontrou casualmente o dr.

Barbosa, o escritor Antonio Brasil, definindo, com propriedade, o democrata Barbosa Lima Sobrinho, o dramaturgo Ariano Suassuna, seu dileto admirador, o historiador alagoano Douglas Apratto Tenório, o desembargador Etéreo Galvão, traçando seu perfil de jurista. O ministro Marcos Vinícius Vilaça, torcedor do Clube Náutico Capibaribe, como dr. Barbosa, fala de seu confrade na Academia Brasileira de Letras. Tentei levar ao leitor a figura humana de dr. Barbosa. Todos sabemos de seu caráter ilibado, magnetismo pessoal de líder incontestável. Ivanildo Sampaio, editor geral do Jornal do Commercio, relata episódio marcante de sua personalidade carismática nas páginas 71 a 73. O artista plástico ítalo-brasileiro, radicado em Olinda, Giuseppe Baccaro, vê em dr. Barbosa “um gigante da resistência física, mental e moral.” O cardiologista Maurílio Rodrigues diagnostica sua longevidade e Paulo Fernando Craveiro nos presenteia com um palmo de jóia literária nas páginas 127 e 128. Esta breve e modesta coletânea não seria possível sem o apoio cultural da Assembléia Legislativa de Pernambuco, o empenho de seu presidente, deputado

Pedro Eurico, dos advogados Carlos Koch de Carvalho Neto e Jorge Tasso. Este, nos possibilitou entrevistar Maria Lúcia Amaral, sobrinha e afilhada de dr. Barbosa, que narrou passagens interessantes da existência do homenageado, suprindo, em parte, a lacuna de não termos podido entrevistá-lo. Cumpre-me agradecer, finalmente, em meu nome e da AIP, a Djalma Costa, presidente da Academia Olindense de Letras, ao ilustrador José Paulo, a Diógenes da Cunha Lima, presidente da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, ao romancista Hugo Vaz, ao educador José Rafael de Menezes, a Luiz Magalhães Melo, presidente da Academia Pernambucana de Letras, ao contista Olímpio Bonald Neto, ao engenheiro Antônio Carlos Cintra do Amaral, aos jornalistas Joezil Barros, José Hipólito, Laíse Rezende, Paschoal Savastano, Leila Pinagé, Waldimir Maia Leite e Sócrates Times de Carvalho, suas excelentes colaborações. Arthur Carvalho, vice-presidente da Associação de Imprensa de Pernambuco AIP- e coordenador do livro “Barbosa Lima Sobrinho - Monumento Vivo”.

A VIDA DE BARBOSA POR SEU BIÓGRAFO José Augusto Ribeiro tem muito a contar sobre Barbosa Lima Sobrinho. Duas sessões de entrevista, a André Motta Lima e Ana Arruda Callado, propiciaram bem mais que um resumo do livro que vai se chamar Barbosa Lima Sobrinho, com B de Brasil. Revelaram um biógrafo apaixonado.

Especial - Barbosa Lima Sobrinho

André Motta Lima: Explique qual é o projeto do livro. José Augusto Ribeiro: Em fins de 95, o Augusto Villas-Bôas sugeriu à filha dele, Luciana, jornalista, diretora editorial da Record - a maior editora brasileira - que encomendasse a alguém uma biografia do dr. Barbosa, que já estava chegando aos 99 anos, com toda a expectativa de chegar aos 100 e bem além disso. Não sei se a idéia partiu de Luciana ou de Augusto, mas dias depois ele me disse que a Luciana achara boa a idéia e gostaria que eu fizesse esse livro. Nós estávamos conversando na sala da diretoria, antes de uma reunião, e ele então contou isso ao dr. Barbosa e disse: “A Luciana sugere que o Zé Augusto faça o livro”. Aí o dr. Barbosa disse: “Ah, muito bem...ele pensa como eu.” Eu acho que, como eu, ele deve sentir-se um pouco solitário nessa era de globalização, com a redução gradativa do número de nacionalistas no Brasil, ou

talvez com o aumento do número de nacionalistas envergonhados que, para ficarem em dia com a modernidade, são obrigados a renegar as suas idéias e a achar que essa coisa de nacionalismo, patriotismo, defesa do interesse nacional é uma grande tolice. A minha origem política é bem diferente da origem política do dr. Barbosa. Ele vem do PSD - Partido Social Democrático (um partido que acho muito caluniado no Brasil, porque a inspiração original foi a social-democracia alemã, o reformismo socialista que se tornou governo na Alemanha no fim da Primeira Guerra Mundial). E eu sou filho de um dos fundadores, de um dos mais anônimos e humildes fundadores do PTB - Partido Trabalhista Brasileiro - do presidente Getúlio Vargas. Meu pai era funcionário público concursado e foi, em 45, um dos fundadores do diretório regional do PTB no Paraná. Eu cresci numa casa getulista. Me lembro da emoção de meu pai quando, na campanha eleitoral, em 1950, o Getúlio

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foi fazer um comício lá em Curitiba. Embora as origens sejam diferentes, o presidente Getúlio Vargas é um denominador comum na minha formação e na formação do dr. Barbosa. Inicialmente, em 30, ele foi contra o Getúlio. Mas depois viu que o Getúlio começou a tomar medidas nacionalistas, inclusive criando a Vale do Rio Doce (que agora está sendo vendida para o capital estrangeiro). Depois o dr. Barbosa foi presidente do Instituto do Açúcar e do Álcool no governo do Getúlio... Não nomeado pelo Getúlio, mas eleito pela comissão executiva do Instituto, em que os representantes da iniciativa privada eram mais numerosos do que os representantes do governo. E acabou que ele se identificou muito com o Getúlio e continua sendo o maior defensor hoje das idéias nacionalistas no Brasil. Então, eu acho que causaria constrangimento para ele essa biografia ser escrita, digamos, por algum escritor de esquerda, algum intelectual de esquerda, mas desta


outra vertente que considera a questão nacional secundária ou inexistente. Por haver essa identificação e talvez porque, como é uma pessoa de uma extrema gentileza, de uma extrema generosidade, também tenha se sentido constrangido a dizer não para não me magoar, para não magoar o Villas-Bôas ou para não magoar a Luciana. De modo que eu recebi esse grande prêmio na loteria sem fazer força nenhuma, senão a de me conservar prisioneiro do meu passado e não ter tido a coragem de aderir a essa modernidade. A.M.L.: E qual é a idéia do livro? Não é propriamente de entrevistas com ele, mas de levantamento da vida... J.A.R.: Não, não houve nenhuma entrevista com ele... Ele tem um constrangimento natural de falar dele mesmo, o que eu respeito. Respeito, compreendo e compartilho. Mas quando fui conversar com a Luciana Villas-Bôas, disse: “Ó, Luciana, é a biografia de um homem que teve uma vida de muita regularidade, de um homem que a vida inteira escreveu, que escreve regularmente há mais de oitenta anos. Eu acho que tem que ser uma biografia muito mais baseada nas idéias dele, nas causas que ele vem defendendo, do que em acidentes da vida pessoal”. Aliás, eu não faria um livro que me obrigasse a mergulhar em certas intimidades. Como disse uma vez o Clóvis Rossi, a propósito de um livro sobre o presidente Juscelino Kubitschek, "não me fiz jornalista para enfiar o nariz nos lençóis da República". E não tenho o menor interesse em saber de certas particularidades. Mas é preciso pegar a vida afetiva, que explica muito a vida política e a vida intelectual dele. Casou uma vez só, o que hoje é um caso raro, quase de laboratório, e dona Maria José é a paixão da vida dele. Então, achei importante “reconstituir” o encontro dos dois na biografia. Houve essa conversa toda com a Luciana e ela disse: “Tem que ser uma biografia intelectual, porque é a biografia de um homem de idéias”. E eu me preparei para escrever uma biografia intelectual, que ocuparia uma faixa de tempo de cem anos. Mas logo tive a surpresa: eu não teria que pesquisar apenas cem anos, eu teria que pesquisar quinhentos anos! Ele tem uma obra histórica fantástica e pouquíssimo conhecida, que abarca toda a história do Brasil. Pelo que ele escreveu, é possível reconstituir a história do Brasil do ponto de vista da luta nacionalista, da formação de uma consciência nacional, e da luta pela emancipação nacional. Então, o que eu não tinha lido fui ler. E a verdade é que a obra dele é muito maior do que a gente imagina. Numa primeira etapa, peguei apenas os primeiros artigos de jornal, partindo do pressuposto de que num escritor o melhor da sua produção intelectual está nos livros, não na colaboração jornalística. Mas descobri, meio por acaso, que ele sempre colocou livro e jornal em compartimentos; não estanques, mas separados. Ele nunca fez livros que fossem apenas a republicação daquilo que já tinha saído em jornal. Há

uma coisa ou outra que ele aproveitou em livro, até para não prejudicar o livro, mas a produção dele em livro é uma coisa e em jornal é outra. Eu desisti da idéia inicial e isso retardou muito o trabalho do livro. A.M.L.: Porque a idéia era lançar o livro na época do centenário...

jurídicos do projeto do que o próprio parecer da Comissão de Constituição e Justiça. Ele ofereceu emendas a um substitutivo da Comissão de Justiça que era um substitutivo condescendente demais com os interesses estrangeiros, era um substitutivo desnacionalizador. O dr. Barbosa não teve a vaidade de apresentar

Se nascesse antes do dia 20, ia chamar Sebastião. Foi registrado como Alexandre José Cintra Lima. Quando começou a se destacar no ginásio, o pai mudou o registro civil para Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho. J.A.R.: Na época. Mas quando eu vi essas coisas... Conversando com a Luciana, ela disse: “Sacrifique o prazo, mas não a qualidade”. Eu sei que já sacrifiquei demais o prazo - e não sei se estou acrescentando grande coisa em benefício da qualidade - mas aproveitei este acordo com a editora que me contratou. Fui ler, então, os artigos do dr. Barbosa. Ele calcula que sejam mais de três mil e eu teimosamente vivo dizendo que devem ser mais de quatro mil. Ele conta a partir de 1927, quando passaram a sair os artigos dele no Jornal do Brasil de domingo; mas eu li muitos outros artigos dele, anteriores a 1927. Os primeiros são de 1915. Não se lê uma quantidade dessas de artigos, quatro mil, às carreiras, de qualquer maneira.

um substitutivo, que seria um projeto completo, mas apresentou quatro ou cinco emendas que iam aos pontos nevrálgicos e restauravam o caráter nacionalista da mensagem do governo. Então ele diz que se tornou nacionalista nesse momento. Aí de novo eu teimosamente discuto com ele e digo que já encontrei pronunciamentos dele claramente nacionalistas em 1918, em artigos; e em 1922, quando ele publicou seu primeiro livro, sobre direito internacional, chamado “A ilusão do direito de guerra”, em que claramente defende a teoria do nacionalismo. Mas a opinião dele é a de que se tornou definitivamente nacionalista só em 37 e eu não vou brigar com essa convicção dele.

Ana Arruda: Ele guardou tudo que escreveu? É um caso fantástico. J.A.R.: Praticamente tudo. E não por vaidade; é por uma preocupação de coerência. Quando fosse voltar a um assunto, ele queria ter em mãos o que já havia escrito antes, para não ser dominado por um impulso, por uma irreflexão de momento. Uma ou outra coisa podem ter escapado, mas eu acredito que ele tenha tudo em álbum - são uns vinte e cinco álbuns mais ou menos, enormes, de quatrocentas, quinhentas páginas... Então eu começo o livro contando a vida dele, o nascimento dele em 1897. Para nós termos uma idéia da distância desse momento, em 1897 foi que se travaram as grandes batalhas da guerra de Canudos, que para nós parece que está lá na Idade Média. Em 1896 tinha havido a primeira Olimpíada da era moderna. E eu me perguntava onde colocaria essa reconstituição da história do Brasil que ele faz. Optei por colocar no momento em que ele diz que tomou a sua definitiva posição nacionalista, em 1937. Ele era deputado e foi indicado relator de um projeto do governo do presidente Getúlio Vargas que nacionalizava a indústria de seguros. E ele, com a disciplina intelectual, com a aplicação que põe em todos os seus trabalhos, estudou profundamente essa questão dos seguros. Tanto que o parecer dele na Comissão de Finanças vai mais fundo nos aspectos

Herdou do tio as primeiras edições de Augusto Comte,publicadas na França, e todos os autores positivistas. “Vai ser uma biografia mais baseada nas idéias dele, nas causas que defende, do que em acidentes da vida pessoal.” Eu interrompo essa narrativa cronológica linear para fazer uma série de capítulos com base em artigos e livros dele, reconstituindo a história do Brasil, do ponto de vista nacionalista, desde 1500. Aí, quando termina isso, eu volto a 37 e venho contando a história até agora. Eu tive a ilusão de que ia fazer uma pesquisa sobre cem anos, e estou fazendo uma pesquisa sobre quinhentos anos. Na verdade o dr.

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Barbosa Lima não tem cem anos, ele tem quinhentos anos. Porque ele escreve com tal vitalidade, mas com tal convicção e com tal amor, com tal paixão sobre a história do Brasil...Parece que ele estava lá, em cada um desses momentos que ele reconstitui. A.M.L.: O que você está sentindo ao fazer, agora, este papel tanto de historiador quanto de jornalista? J.A.R.: Uma historiadora me disse que o conceito que os historiadores modernos, ou que a história ou a historiografia contemporânea, têm do jornalismo é o de que o jornalismo é a história ou a historiografia do momento presente. E no dr. Barbosa não dá para distinguir o jornalista e o historiador, porque quando ele é historiador ele é jornalista, porque ele escreve jornalisticamente, porque ele escreve com clareza, com convicção. E tem muito da preocupação jornalística, da investigação dos fatos, da história documental. A obra dele de historiador - o futuro ainda vai dizer isso - é notável. Eu não conheço visão do Brasil mais avançada do que a dele. Acho até que nós podemos ter regredido. Então, a minha experiência interior, a minha aventura subjetiva, é sempre a do jornalista porque, enfim, foi a minha vida toda, eu não podia ter a pretensão de ser um historiador. Não estudei, não tive formação intelectual nem acadêmica para isso. Se bem que eu acho que a formação acadêmica, no caso de um jornalista, é irrelevante. Eu estou fazendo um trabalho jornalístico. A.M.L.: O Alexandre José Barbosa Lima, na tradição dos estadistas que eram historiadores, também era um historiador reconhecido por alguns historiadores. O tio, o que deu nome a ele... Eu acho muito simbólico, muito interessante que ele tenha o nome desse tio, que é uma grande figura na história de Pernambuco. Então você vê que ele se liga a isso de uma maneira muito forte. J.A.R.: Uma maneira cheia de identidades, mas cheia ainda mais de divergências, que até hoje ele acentua. O tio aparece muito na primeira parte do livro, porque deu para perceber, já no início da pesquisa, que há uma certa continuidade entre tio e sobrinho. Quando Barbosa Lima Sobrinho estava para nascer, o pai dele, que se chamava Francisco Cintra Lima, era tabelião em Recife. Tabelião, na época, era pobre. Quando se fala a palavra tabelião... “O sujeito ganhou um cartório! Fica rico em seis meses”. Na época, não... O pai dele sempre foi pobre e lutou com as maiores dificuldades. Tinha sido oficial de gabinete do velho Barbosa Lima, de quem ele era cunhado. A mãe do “nosso dr. Barbosa”, era irmã do velho Barbosa Lima. Quem era o velho Barbosa Lima? Era o filho de um professor chamado Joaquim Barbosa Lima, que era dono de um colégio no Recife. Era muito mais educador do que empresário do ensino... Então, ele não ficou rico como dono de colégio. Teve que vender o colégio, fez um concurso e foi nomeado juiz. Naquela época, no Império, não se podia Jornal da ABI


falar em justiça federal e justiça estadual, a justiça era uma só, controlada pelo governo central, porque o Império, a monarquia era unitária. Então ele foi nomeado juiz e como juiz percorreu várias regiões do Brasil. Ele não foi nomeado para servir no Rio de Janeiro, podendo levar os filhos à praia de Copacabana. Ele foi para onde hoje é o Estado de Tocantins, acho que ele esteve em Mato Grosso, em Minas também. E viveu episódios muito curiosos. Ele chegou como juiz num lugar que devia ser Goiás, hoje talvez seja Tocantins. Chegou na cidade, os índios estavam andando pelados pelas ruas. Parece que as famílias reclamaram e ele como juiz fez lá uma subscrição, ou coisa assim, para doarem roupas para os índios. O juiz era a única presença governamental na cidade. Ele não se limitava a ser a autoridade judicante - aquela que no caso de controvérsias, conflitos, processos, dava a sentença. O juiz era um pouco prefeito, um pouco o que seria o diretor da Santa Casa e, no caso, foi até um pouco o alfaiate dos índios. O futuro general Barbosa Lima cresceu nessa vida de aventura. Teve sorte que o pai foi transferido para o interior de Minas, para uma cidade onde havia um ótimo colégio de ensino fundamental e secundário. Então ele começou a estudar lá, muito inteligente... E na adolescência veio para o Rio, fez exame para a Escola Politécnica (que deve ser hoje a Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro), passou, passou bem, mas não tinha dinheiro para se sustentar na Escola Politécnica. Então ele fez um outro concurso, para a Escola Militar, que funcionava na Praia Vermelha. Passou. Na Escola Militar ele tinha a vantagem de entrar como aluno recruta, uma coisa assim, com um soldo igual ao de soldado, além de hospedagem e comida. Acho que o fardamento era dado também pelo colégio. Na Escola Militar ele se tornou aluno, logo de quem? De Benjamin Constant, que foi a grande presença intelectual em sua vida. Tornou-se positivista, conhecia profundamente a obra de Augusto Comte. Depois, quando ele está no fim da vida, quando está para morrer, legou ao nosso dr. Barbosa uma parte da sua biblioteca, que tem primeiras edições de Augusto Comte, publicadas na França, e todos os autores positivistas. Além de positivista, naturalmente republicano, integrou um clube republicano e abolicionista, ainda garoto, com dezenove, vinte anos. De modo que ele se formou na Escola Militar, alcançou o posto de tenente e foi nomeado professor de matemática ou geometria na Escola Militar de Fortaleza. Estava lá quando houve a Proclamação da República e, embora recémchegado, teve papel muito importante na articulação da República no Ceará. A gente precisa se lembrar que o Ceará tinha feito a sua Lei Áurea, a sua libertação dos escravos, antes da Lei Áurea de 1888, com uma grande participação da oficialidade do Exército. Queixas que nós possamos ter de alguns militares ou de uma parte dos militares em anos recentes não podem nos cegar para a importância das Forças Armadas nesse período. Um dos momentos mais dignos da história do Brasil foi quando oficiais do Exército Especial - Barbosa Lima Sobrinho

disseram que não eram capitães-de- mato para sair correndo atrás de escravos fugidos. Então, o tenente Barbosa Lima, em 1890, muito jovem, foi eleito representante do Ceará à Assembléia, ao Congresso Constituinte que ia fazer a primeira Constituição republicana. Teve um papel notável e aparentemente contraditório na Constituinte, que vai acompanhar toda a vida dele e constitui a divergência do sobrinho, Barbosa Lima Sobrinho, com o tio. Um pouco por causa da formação positivista - e por um mal entendido que as circunstâncias da época explicariam ele se tornou também adepto do pensamento econômico de Adam Smith e Herbert Spencer. Ele não acreditava na intervenção do Estado, não acreditava em medidas protecionistas; daí a divergência do sobrinho com ele. Isso em teoria, porque na prática todas as manifestações dele, todos os votos dele, teriam a concordância do dr. Barbosa Lima Sobrinho. Mas ele dizia que era um liberal na linha de Adam Smith, de Herbert Spencer, figuras que o nosso dr. Barbosa Lima Sobrinho nunca aceitou e sempre combateu. Agora, é curioso que outro brasileiro de formação positivista, Getúlio Vargas, pouca coisa depois do velho Barbosa Lima, veio a se posicionar, ainda na juventude num debate na Assembléia de representantes do Rio Grande do Sul, quando alguém citou Spencer - um grande pensador do século dezenove, um grande pensador da economia industrial do século dezenove, só que vendo o universo e a sociedade como máquinas - para o Getúlio, o Getúlio disse: “O Spencer, quando escreveu isso, já estava meio gagá”. E o que era? Era quando o Spencer dizia que o mercado resolvia tudo, essa ilusão que ressurgiu nos nossos dias de que o mercado, além de mercadorias, pode produzir justiça. O velho Barbosa Lima em tese aceitava isso, mas na prática ele foi o autor, o precursor, da legislação trabalhista no Brasil. Foi, de certo modo, um precursor do pensamento socialista no Brasil. É só ler os discursos dele na Câmara e os seus projetos. Ele uma vez renunciou ao mandato, depois foi convencido a não consumar a renúncia. Foi convencido a retirar o pedido porque havia um compromisso das forças majoritárias de apoiarem uma proposta dele que seria um embrião de direitos operários. Era garantir aos operários do serviço público federal alguns dos direitos dos funcionários públicos. Por exemplo: o direito de não ter descontado o salário em casos de doença, o direito de ter alguma proteção contra um acidente de trabalho... Essas coisas básicas, simplesmente básicas, que a Primeira República - dominada pelos fazendeiros, pelos barões do café, que tinham sido expropriados daquele patrimônio que era sua escravaria... - desprezou, produzindo uma Constituição in-

“Ele guarda cuidadosamente, com índice e tudo, quase quatro mil artigos para poder consultar e manter a coerência no que escreve. É impossível ler isso tudo às carreiras.” teiramente insensível à questão social. Quando Bismarck, o tirano Bismarck, já tinha na Alemanha inventado a Previdência Social, estava dando um jeito de regulamentar a vida dos sindicatos, tinha levado o Partido Socialista para dentro do Parlamento, os nossos aqui eram mais reacionários que Bismark, com o protesto do velho Barbosa Lima. Embora o velho Barbosa Lima fosse spenceriano e adamsmithiano. É claro que um homem assim exercia na família um verdadeiro fascínio. E depois de ter sido deputado pelo Ceará, foi eleito governador de Pernambuco. A primeira eleição, assim que foram votadas as Constituições, foi pela Assembléia Estadual. Ele foi votado e o. dr. Barbosa não tinha nascido. A Constituição foi promulgada em 91, ele continuou como deputado na câmara legislativa ordinária. Em 92 foi eleito governador e exerceu o mandato até 95. O tabelião Francisco Cintra Lima, cunhado dele, foi seu oficial de gabinete e tinha de ser fascinado por ele. Ele foi eleito com o apoio do marechal Floriano, mas houve um momento em que não o Floriano, que já tinha morrido, mas os florianistas, que eram muito exaltados quiseram derrubá-lo do governo do Estado (e olhe que Floriano era um nacionalista, então o velho Barbosa Lima, spenceriano e partidário de Adam Smith, estava ligado a um presidente nacionalista...). Ele soube, montou a cavalo, sozinho, e foi para o quartel. Aí, o pai do dr. Barbosa pegou um outro cavalo e foi atrás. Quando chegou no quartel, o governador, que era tenente, estava enquadrando o general: “Eu sou o governador eleito, o senhor ponha-se no seu lugar ou eu lhe prendo!” E o general sossegou. A gente lendo hoje os discursos dele fica fascinado, como é que não iam ficar na época em que ele estava vivo? Mas ao lado disso, era um homem profundamente carinhoso na convivência familiar. Quando o dr. Barbosa estava para nascer, o velho Barbosa Lima já tinha deixado de ser governador, acho que ele estava preso em Fernando de Noronha... Porque ele teve uma longa carreira de oposição, de

O Barbosa tio, além de deputado e governador, foi o precursor da legislação trabalhista no Brasil. De certo modo, precursor do pensamento

socialista no Brasil.

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perseguições, eu acho que estava preso em Fernando de Noronha, acusado de ter parte numa conspiração para assassinar o presidente Prudente de Moraes, conspiração na qual foi assassinado o ministro da Guerra, o marechal Carlos Machado Bittencourt. Ele não tinha nada a ver com essa conspiração, foi preso porque foi decretado estado de sítio, as imunidades parlamentares foram suspensas e ele e muitos outros deputados foram presos... A.A.: É sempre tudo igual... estado de sítio, aí prendem todos aqueles de sempre... J.A.R.: Os de sempre. Ele estava em Fernando de Noronha ou estava preso no Rio a caminho de Fernando de Noronha. É possível que o navio tenha parado, tenha feito escala no Recife e ele não tenha podido desembarcar para ver o sobrinho recém-nascido. Quando o dr. Barbosa estava para nascer, houve um acordo entre o pai e a mãe dele. Havia também um outro tio muito querido chamado Sebastião. Então o acordo era o seguinte: se ele nascesse até o dia 20, dia de São Sebastião, se chamaria Sebastião; se nascesse depois do dia 20 seria Alexandre. Ele nasceu no dia 22 e foi Alexandre. Mas foi registrado como Alexandre José Cintra Lima, porque o pai dele era Cintra Lima. Tempos depois, quando ele estava no ginásio, e começou a se destacar, a escrever no jornalzinho do colégio, aquela coisa toda, o pai chegou para ele e disse assim: “Vamos mudar o seu registro civil, vamos mudar para Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho”. Como que dizendo: “Você vai ser não o herdeiro, mas o sucessor”. E ainda era vivo o tio, o tio viveu até 1931. A.M.L.: Com quantos anos morreu o tio? J.A.R.: Ah, morreu moço. Quer dizer... morreu moço comparando com o sobrinho! Morreu com sessenta e poucos anos. A dureza da vida dele sacrificou muito a saúde e ele morreu. A.A.: Mas então ele viu o sobrinho com o nome dele em plena glória, porque em 31 o dr. Barbosa já era uma personalidade. J.A.R.: Em 31 o dr. Barbosa já era mais importante do que o tio. Bom, então esse tio foi a inspiração da família. Não só a inspiração intelectual, como a inspiração moral. Ele mandava muitos livros para o sobrinho, quando ele entrou na Faculdade de Direito... Imagina, esse tio era oficial engenheiro do Exército, professor de matemática e geometria. Escreveu uma carta ao sobrinho sobre questões jurídicas! Ele era uma figura, do ponto de vista intelectual, uma figura renascentista, uma cultura enciclopédica. Os discursos dele na Câmara, depois no Senado, não eram pedantes, ele não ficava fazendo citações para mostrar que tinha lido isso, que tinha lido aquilo, mas ele conhecia os assuntos. Há esse misto de influência de um lado e divergência de outro. O que é muito bom, porque afia o espírito crítico. E o tio marca a estréia jornalística do dr. Barbosa. Ele


fazia lá umas crônicas, umas resenhas esportivas, estudante ainda, para tentar ganhar uns trocados, porque a situação da família era muito difícil. Ele pretendia estudar não Direito mas Medicina. Não pôde, porque Medicina ele teria que estudar na Bahia ou aqui no Rio e a família não tinha como sustentá-lo. E era impossível, com as exigências do curso, fazer a faculdade de Medicina e ainda ter algum trabalho. Então ele ganhava lá uns trocadinhos fazendo umas resenhas esportivas num jornal chamado A Província, que era um jornal tradicional. Antes de dezoito anos. Parece que já aos treze anos ele escreveu alguma coisa num jornalzinho do colégio, mas isso se perdeu e, naturalmente, ele não lembra ou até prefere não lembrar.

Mas esse jornal A Província era de propriedade dos filhos de um antigo adversário político do velho Barbosa Lima, um adversário que foi assassinado no dia de uma eleição no Recife. Então a família, de vez em quando, atacava o velho Barbosa Lima dizendo que ele tinha sido o mandante do crime, o que não era verdade. O crime aconteceu quando o velho Barbosa Lima era governador e o velho Barbosa Lima nomeou sucessivamente duas comissões de inquérito e entregou essas comissões de inquérito a adversários políticos seus, partidários desse José Maria que tinha sido assassinado. E as duas comissões de inquérito o inocentaram... Na verdade o José Maria era um sujeito meio demagogo, que ia nas seções eleitorais onde sabia que estava em

minoria e criava alguma confusão para anular aquela urna. E numa dessas seções eleitorais - quer dizer, não tinha nem como prever que naquela hora ele estivesse naquela seção para mandar matar -, ele provocou um conflito, o conflito se agravou, alguém começou a atirar, entrou polícia, era uma escola, ele tentou pular o muro dos fundos e um soldado da polícia atirou. Mas enfim, em 1915, vinte anos depois da morte de José Maria, esse jornal em que o dr. Barbosa colaborava publicou um ou dois artigos, assinados por pseudônimos, atacando duramente o velho Barbosa Lima. Ele não estava preso nessa época, estava no ostracismo, porque ele foi contra a candidatura do marechal Hermes e a favor de Rui Barbosa. Então,

o Pinheiro Machado, que era a cabeça do marechal Hermes e que mandava no governo, impediu a reeleição do velho Barbosa Lima. Aquela coisa das atas falsas... impediu. Então o velho não tinha nem mandato para se defender. Aí o sobrinho, que tinha dezoito anos e ainda nem tinha terminado a faculdade, escreveu e publicou em outro jornal - O Diário de Pernambuco - dois artigos em defesa do tio, em que ele denunciava a covardia do autor dos ataques, que se escondia atrás de pseudônimo. E assinou o nome dele, Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho. Deve ter sido grato ao pai, nesse momento, por ter dado a ele o mesmo nome, para ele defender o tio. Então, aí ele perdeu o emprego...

AS PRIMEIRAS E BEM TRAÇADAS LINHAS A defesa da honra do tio, que lhe deu o nome, é considerada pelo próprio Barbosa Lima Sobrinho como sua primeira matéria em jornal. Era o início de um estilo, caracterizado pela defesa de idéias Diário de Pernambuco, 18 de julho de 1915 SOLICITADAS Em resposta ao sr. A. de Andrade Ilmo. Sr. Tendo lido nas columnas d’ “A Provincia”, num grande espaço roubado aos honrados commerciantes de nossa praça, um “vosso” artigo onde o brilho das idéas desafia o vigor do estylo, não me pude conter e por isso vos respondo. Certo, caro senhor, naquelle dia acordastes tarde, o rosto inchado, a cabeça pezada -toda uma larga predisposição para as tragedias. Ao depois, um vosso filho berrava desesperadamente (eu não vos conheço, mas tenho a convicção de que tendes, como patriota que sois, varios filhos e estes, por hereditariedade, não meditando nada e fallando muito, temos justificada a segunda asserção), a vossa criada, na cosinha, quebrara um bom par de pratos. Nimbus aggrupavam-se, reuniam-se, cobrindo de cinzento escuro o firmamento de vossa intelligencia. Ventanias rispidas açoutavam a vossa paciencia. Não pudestes mais e ... chovestes (que passe a pessôa), quero dizer escrevestes aquelle bello artigo. Ora, no vosso gabinete ha um

retrato de Martins Junior. Mirando-o, abristes sem querer a gaveta de vossa meza e tirastes della uns jornaes velhos onde se gravam discursos de Martins Junior. Não ha um só leitor de vosso artigo que não affirme: estava prompta a obra. E surgistes do fundo de vossa modestia vestido de escriptor. Mas, senhor Andrade, si não houvesseis commentado as palavras de Martins Junior, si as deixasseis soltas, sem nexo e sem ligação, não serieis, é certo, o escriptor Antonio, mas tambem não terieis o desgosto de ser o tolo Andrade. Eu vos consideraria, si vos encontrasse em qualquer parte, um burguez serio, honrado, pensando muito sem fallar quasi e sem nada escrever, orgulhoso ou modesto, mas, em todo caso, um homem serio e um pensador grave. Quando muito eu vos diria Acacio ou José Augusto Correia; quando muito eu chegaria a vos chamar Pacheco. Mas depois do vosso artigo, eu tenho de vós a mesma impressão que me resta de Monsieur Jourdain e de Ganot. Quando vos vi affirmar - “o sr. Barbosa Lima é o eleito dos srs. Antonio Carlos e Mauricio de Lacerda”, considerando a pouca influencia que este teve nos conchavos, pensando nas

manifestações que recebeu o sr. Barbosa Lima, na sua bella contestação que, si lestes, não comprehendestes, relendo as palavras do sr. Fausto Ferraz, distrahi-me, o olhar perdido em meditação. E, depois, voltando ao vosso artigo não via mais as palavras supracitadas e em seu logar, lia, mas claramente: “Mon pére avait um beau couteau, devant Dieu soit son ame, pendu a sa ceinture.” Sr. Andrade, eu não sei o que pensais de Floriano Peixoto mas, si conheceis Historia, não podereis negar que elle foi o pulso de ferro que afastou de nós o perigo dos pronunciamentos. Entretanto, que de violencias desmedidas não enxameam na sua administração! Basta, para evidencial-o, a destituição dos 13 generaes, antes do estado de sitio. E, quem nega que o sr. Floriano tenha sido o homem admiravel que consolidou a Republica? As suas arbitrariedades explicam-se: o momento tudo justificava. Na revolta de Triumpho, o sr. Barbosa Lima mandou, para suffocal-a, um batalhão sob o commando do capitão Florencio de Carvalho. Um tenente, ou melhor, um covarde, deserta e vem para a capital dizer ao sr. Barbosa Lima que o sr.

Florencio fora assassinado e o batalhão massacrado. Num moço de 32 annos a colera justamente despertada pela narrativa desoladora de um tenente (frizemos o posto) suffocou todas as considerações e incidiu sobre a opposição. E, notavel sr. Andrade, nada podereis censurar neste arrebatamento, pois em vós, cuja idade ignoro, a colera produzida pelo reconhecimento do sr. Barbosa Lima faz esquecer tudo, abafa a vossa modestia e vos leva a escrever um máo artigo. Guardadas as proporções, o caso é o mesmo, com uma differença: o sr. Barbosa Lima auxiliava Floriano Peixoto; vós auxiliais a obra desmoralisadora do parrecismo. Um arriscava a sua vida pela Patria, levava a Floriano o auxilio de sua energia para erguer a Republica vacillante; vós fostes para a rua, agarrastes a primeira pedra que encontrastes e a atirastes contra a Republica empobrecida e desconsiderada. De Floriano Peixoto a Pinheiro Machado ha a mesma differença que vai de Barbosa Lima a Antonio Andrade. Que o digam os srs. José Verissimo, Leal de Souza e Fausto Ferraz, entre outros. 17 de Julho de 1915 Barbosa Lima Sobrinho

No jornal da formatura em direito, em 1917, ele brincou com os 32 colegas e, só para disfarçar, criticou a si mesmo, sem perdão, mas já com as sutis ironias que passaria a adotar nas polêmicas Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho - “É um nome grande demais para sua pessoa. Herdeiro da esquelética magreza do seu tio, tem um físico desgradável -alto como uma montanha, magro como um espeto, pernas cumpridas e por cima de tudo, uma cabeça grande com um rosto pequeno. Dá a impressão exata de uma maravilha em equilíbrio - uma vara de espanar,

mantendo na extremidade, um craneo desnudado. É, entretanto, um sportman. Futebol, natação, remo, escoterismo, tudo isso lhe é grato e a julgar pelas aparências, muito tem concorrido para lhe desenvolver os... ossos. É o campeão das distinções, a cujas brilhaturas tem feito jus, menos pela inexistente inteligência e

fosforescentes estudos, que por sábios expedientes. Foi um dos palpáveis a oratória do 5° ano, mas a sua insignificante candidatura, injustificada e extravagante, esvaiu-se aos primeiros embates da feroz campanha. A sua discreta vaidade é o menor dos seus grandes defeitos. A perseguição incansável de deidades horrendas (ASINUS, ASINO FRICAT)

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tornou-o misógino, tanto que, quem o quiser ver raivoso apresente-lhe senhoritas. Ele se abaterá e chegando a casa cansado e afobado explodirá com a voz entrecortada. O Diabo! O Diabo! Tanto violento misoginismo não pode ter outro termo o casamento com Mademoisele Timidez, que já lhe vive no coração, por lhe viver no sangue”.

Jornal da ABI


um livro sobre educação, que fala que o ser humano precisa da educação intelectual, da educação moral e da educação física. Marca dos 100 anos

A VIDA DE BARBOSA... André Motta Lima: Vamos voltar agora, ele tinha feito o artigo... José Augusto Ribeiro: Em 1915. Ele estava tentando advogar, mas ganhava muito pouco. Foi nomeado promotor público substituto e só ganhava alguma coisa quando era chamado para atuar. Então apareceu a oportunidade dele escrever uma crônica dominical num outro jornal, chamado Jornal do Recife. Ele começou a escrever essa crônica e eram crônicas mesmo: ele tratava do cotidiano da vida na cidade, às vezes falava como era o Natal, as festas de São João, como é que era o carnaval, falava do bonde... E até outro dia eu relembrando com ele, ele disse assim: “Falava de jangada, não se esqueça que eu tive uma jangada...”. Ele fazia muito esporte com um grupo de amigos e até uma vez eles foram de Olinda - ele morava em Olinda - a Goiânia, que são nove léguas. Aí ele disse: “Nove léguas dá mais de cinqüenta quilômetros”. Foram num dia só. Eles saíram às quatro horas da manhã, pararam no meio do caminho para fazer um lanche leve, e chegaram em Goiânia à noite. Ele jogava futebol, remava iole, nadava de uma ponta a outra da praia de Olinda. E até tinha um sujeito lá que fazia jangadas artesanais, que deviam ser muito baratas, era uma jangada que só cabia uma pessoa e não era nem a vela, era com remo. Então ele remava. No Náutico remava iole. Ele até disse que a equipe que remava tinha, por exemplo, o Múcio Leão, que foi um grande amigo. Ana Arruda: Foi um grande amigo, foi com ele a Goiânia. Foi o único que topou. Ele disse que vários rapazes disseram “Que maravilha, vamos!”, aí quando marcaram a hora cedo, não apareceu ninguém. Porque aquela rapaziada universitária de Pernambuco achava esse negócio de exercício um horror, só ele e o Múcio é que toparam. J.A.R.: É. Tem até uma crônica dele sobre o tipo intelectual, magro, escaveirado, fumando... Ele disse: “O sujeito para ser inteligente não precisa ser assim tão desagradável”. A.A.: Agora, isso parece que não, mas é uma atitude muito moderna, não é? Quer dizer, moderna que eu digo é “prá frente”, porque na época era o oposto, o rapaz que se dedicava a uma carreira intelectual realmente não tinha nada a ver com esporte. J.A.R.: O dr. Barbosa estudou muito, e aí ele concorda com o Spencer. O Spencer tem

Especial - Barbosa Lima Sobrinho

A.A.: É, mas isso era uma coisa européia, não era brasileira, e muito menos nordestina. J.A.R.: É, o esporte estava começando. Talvez a Olimpiada de 1896 tenha sido um esforço nesse sentido. Mas eu acho que era preocupação dele... Na adolescência, fundou um time de futebol chamado Coríntians Olindenses. Havia um time na Inglaterra, que fazia muito sucesso, que era Coríntians. Deve ser a origem do Coríntians paulista. Porque veja só, é uma coisa grega, uma coisa que vem do classicismo grego, Coríntians, de Corinto. Então ele criou um time de pelada, porque ele se preocupava muito com amigos dele, adolescentes, jovens que, dizia ele, iam à noite para os bares, ficavam jogando sinuca, bebendo, fumando e coisa e tal. E se desgastando. E ele achava que o esporte era o melhor antídoto contra esse veneno. Ele foi sempre um pouco puritano. Mas ao mesmo tempo, ele escreveu depois vários artigos discutindo a utilidade. Tem um artigo dele muito engraçado que é “A utilidade do futebol”. Porque aí vinha aquela discussão sobre a utilidade do futebol para a vida intelectual e ele dizia “Aí, não, porque eu quando jogo uma partida inteira de futebol, preciso depois de vinte e quatro horas para poder produzir intelectualmente. O futebol esgota... Pode ser bom fisicamente...”. Tem até um trecho em que ele discute se não há perigo em jogar futebol debaixo do sol. Ele disse: “Ah, a gente joga o futebol já depois de uma certa hora, o sol está declinante... e o que dizer dos pobres trabalhadores rurais que ficam no eito cavando a terra sob a canícula do meio-dia?” Já o protesto social, discutindo futebol. A.M.L.: Ele dizia até que o exercício, com o facilitar e o apressar da sudação, é um reajuste precioso contra o calor. J.A.R.: Sim, mas depois ele dizia : “Aí, quando eu saio de um jogo de futebol, eu não consigo escrever, eu preciso de um tempo para descansar.” Então... A.A.: É, o futebol não é um bom exercício para a mente. J.A.R.: Não, ele não disse que não é bom. Ele disse que é inútil, do ponto de vista intelectual é inútil. Ele foi categórico. A.M.L.: Tá, mas nós estávamos naquela questão em que ele, procurador, ganhava pouco e aí surge o concurso... J.A.R.: Surgiu a oportunidade no jornal. Mas a crônica não dava para viver. E ele muito preocupado com aquilo. Ele tinha planos de ser professor, até estimulado por professores, porque foi aluno laureado na Faculdade de Direito. Então o projeto de vida dele era ser professor na Faculdade de Direito. Como foi aluno laureado,

ganhou um prêmio chamado prêmio de viagem, que era um prêmio em dinheiro que permitia ao aluno premiado fazer uma viagem a algum país da Europa, qualquer lugar... para um dos chamados centros civilizados de época, estudar alguma questão jurídica da sua especialidade, que depois fosse útil para o exercício da advocacia ou da magistratura, ou do próprio magistério.

Fundou um time de futebol, o Coríntians Olindense, para tirar os amigos dos bares. No Náutico, jogou como centro-avante. Trocou um prêmio de viagem à Europa por livros importados. Com pouco mais de 20 anos, publicava seu primeiro livro: uma tese sobre direito de guerra. E ele não fez viagem nenhuma. Ele pegou o dinheiro e ficou encomendando livros em vários países, para escrever a tese dele de concurso, que era “A ilusão do direito de guerra”. E se inscreveu para o concurso: havia uma vaga de professor catedrático na seção de direito constitucional e internacional. A organização do ensino superior era diferente da de hoje... Ele apresentou uma tese de direito internacional, esse “A ilusão do direito de guerra” que é um livro atual ainda hoje. Começou a escrever em 1919, 1920, e é atual ainda hoje. E para isso ele mandou vir livros italianos, franceses... Em italiano e francês ele lia bem, em inglês ele lia bem, acho que autores alemães ele lia em traduções francesas ou italianas. Gastou acho que quase todo o prêmio com esses livros e tenho a impressão que o resto ele destinou para ajudar a família. E estava com a tese praticamente pronta, quando o concurso foi cancelado. É uma das histórias mais sombrias da vida de Pernambuco. Havia lá um juiz federal chamado Sérgio Loreto, que depois foi governador de Pernambuco. O juiz Sérgio Loreto tinha um filho que queria ser professor, mas que era muito fraco, em todos os sentidos. Então, com a proteção do pai, o que faz esse filho? Descobre lá uma lei, que talvez tenha sido regulamentada por algum decreto do presidente Epitácio Pessoa - e você sabe como é que essas coisas sempre se arranjam... Então ele requereu ser nomeado para aquela única vaga, sem concurso, sob a alegação de que a congregação da Faculdade, por dois terços

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de voto, podia cancelar o concurso e nomear, sem concurso, algum pretendente ou alguma pessoa que tivesse uma obra notável. A inspiração ou pretexto de uma lei dessas poderia ser até legítima -um homem como Rui Barbosa não pode ser chamado para fazer um concurso com um garoto recém formado. Então, o Rui Barbosa tem que ser atraído para a Universidade. A lei foi feita para Rui Barbosa, não para um débil mental como era aquele. Bom, e o rapaz então apresentou uma série de trabalhos, que eram de uma banalidade extrema, eram trabalhos “acacianos”, coisa que envergonharia estudante de primeiro ano da faculdade. E o dr. Barbosa o que é que fez? Escreveu uma série de artigos - ele ficou indignado! -, elegantes como sempre, mostrando a banalidade, a desimportância, a ausência total de notabilidade e a presença absoluta de mediocridade nesse aluno. A.A.: Isso depois dele ter sido nomeado? J.A.R.: Não, não, quando apresentou os trabalhos. Enquanto estava em julgamento. Eu acho que ele fez esses artigos para tentar influir. Mas o assunto virou tema jornalístico. Um amigo escreveu um artigo em defesa dele que acabou atrapalhando, porque mostrava um Barbosa Lima Sobrinho tão inteligente que nem o Rui Barbosa... O artigo dizia assim: “Nem o Rui Barbosa...” Mais ou menos isso: nem o Rui Barbosa teria nota mais alta que o Barbosa Lima Sobrinho no concurso. Aí ele escreve um artigo muito modesto dizendo “Quem sou eu, imagine... E também, eu sou muito novo, o Rui se tornou o grande Rui depois que escreveu O Papa e o Concílio, e estava com trinta e tantos anos, a obra juvenil do Rui o próprio Rui não reconhece.” Mas não adiantou, o juiz era muito poderoso, tão poderoso que ninguém ousou afrontar a vontade dele. E para não parecer que eu estou fazendo uma acusação aqui ao passado, injustificada, esse juiz depois... Houve uma crise política em Pernambuco, tinha um governador que estava eleito, houve um verdadeiro levante militar, que acabou precipitando a revolta do forte de Copacabana aqui no Rio. É uma história muito comprida para detalhar agora, mas foi por causa dessa crise em Pernambuco que houve o levante do Dezoito do Forte aqui no Rio. Nessa crise havia um governador eleito, um homem cordato mas fraco de vontade, que acabou renunciando e houve uma eleição pela Assembléia. O juiz foi eleito como candidato de conciliação. A primeira medida do juiz, ao ser empossado governador, foi dar uma ordem para fechar todos os sindicatos e prender todos os líderes sindicais. “Entrem batendo. E se for preciso matem.” Isso está contado nas memórias do professor Joaquim Pimenta, advogado dos sindicatos em Pernambuco, que foi um homem notável e o autor das primeiras leis trabalhistas no governo Getúlio Vargas. Está contado nas memórias dele. O Joaquim Pimenta foi aconselhado por amigos a vir para o Rio, porque ele seria assassinado por ordem desse governador.


Quer dizer, um sujeito que manda fechar os sindicatos e entrar batendo, não vai se deter diante de um concurso para uma cátedra de uma faculdade de Direito. Aí o filho do juiz foi nomeado. Naturalmente, foi um desastre. Ele tinha que implorar para os alunos irem à aula dele, e isso não é o dr. Barbosa que conta, porque ele não entra nessas... Mas aí o dr. Barbosa constatou o seguinte: ele não tinha futuro em Pernambuco. O jornalismo pagava muito mal, não tinha condições de pagar bem. E ele tinha desmoralizado o filho do juiz, e portanto, o próprio juiz. Quer dizer, nem um emprego público ele teria. Um emprego assim de advogado do Estado, nem isso. A Faculdade estava fechada para ele, porque a congregação cedeu aos desejos do juiz, mas também ficou desmoralizada. Na advocacia ele não conseguia ganhar dinheiro. Então ele resolveu vir para o Rio, em 1921. De modo que eu acho que, não em Pernambuco, mas talvez aqui no saguão do prédio da ABI, nós deviamos mandar erigir o busto desse juiz, que tirou o Barbosa Lima Sobrinho de Pernambuco e deu o Barbosa Lima Sobrinho ao Brasil. O trabalho dele jornalístico não poderia ter em Pernambuco a repercussão aqui do Rio. A.M.L.: Só que em 21, essa vinda dele tinha uma relação prévia com o conde Pereira Carneiro, dono do Jornal do Brasil...

J.A.R.: Tinha. Daí, uma outra coisa, com o tio... O velho Barbosa Lima foi expurgado da Câmara. A eleição dele não foi reconhecida, logo depois da eleição do marechal Hermes. Mas depois do marechal Hermes veio o Wenceslau Brás, aí já houve um período de apaziguamento. Logo em seguida o Pinheiro Machado foi assassinado, então aquela sombra que era

já praticamente inválido, foi eleito deputado, de novo por Pernambuco. Por que esses outros estados? Em Pernambuco, quando terminou o governo dele, foi eleito deputado. Mas aí, assumiu a liderança política pernambucana um sujeito que foi importantíssimo, chegou a vice-presidente da República, chamado Conselheiro Rosa e Silva, que era muito

Tentou ser professor de Direito. Suspenderam o concurso e nomearam o filho de um Juiz. Veio para o Rio, em 21, e virou jornalista. Preterido para uma vaga no Loyd, que era dirigido pelo tio, preferiu não mais depender da família para viver. o Pinheiro Machado deixou de pairar sobre o país e sobre o destino do velho Barbosa Lima. Aí eu preciso retomar um pouco a história do velho. Ele foi o único brasileiro que, no Congresso Nacional, representou cinco Estados. Ele foi deputado pelo Ceará, depois que terminou o mandato de Pernambuco (como governador), foi deputado por Pernambuco, depois pelo Rio Grande, pelo Rio de Janeiro, foi senador pelo Amazonas e, no fim da vida,

ANUNCIO BRASIF/MITA

ligado ao esquema do café-com-leite que se estabeleceu no Brasil, o esquema oligárquico da Primeira República. Então eles queriam, como depois quiseram em várias outras etapas da história do Brasil, como foi com a Arena, acho que estão querendo agora com o PSDB, uma representação, como disse um velho chefe pessedista, uma representação silenciosa, cabisbaixa e obediente. E o velho general Barbosa Lima não poderia ser silencioso, não poderia ser cabisbaixo e não poderia ser obediente. Quando ele terminou o mandato de deputado por Pernambuco, ele não tinha condições de se reeleger em Pernambuco. Imagine...as eleições eram falsificadas e o Rosa e Silva não queria conversa com ele. Então Júlio de Castilho, também positivista, um dos fundadores da República e um dos lutadores para a introdução dessas medidas pioneiras de proteção ao trabalho na Constituição, lançou o velho Barbosa Lima candidato a deputado pelo Rio Grande do Sul. Ele nem foi lá... Ele quis ir lá e o Júlio de Castilho disse “Não precisa”, porque a eleição era falsa em toda parte. E ele não pretendeu ser na Câmara um defensor dos interesses regionais do Rio Grande do Sul, porque não tinha muita legitimidade. O que é que ele fez? Ele assumiu a defesa dessas propostas sociais do Júlio de Castilho na Câmara, com uma ferocidade, uma bravura... A.A.: Você depois vai fazer a biografia do velho, não é? J.A.R.: Quem vai fazer é o dr. Barbosa... Mas falo para mostrar que sujeito maravilhoso ele era desde o começo, a favor da separação entre Igreja e Estado. E era positivista... Agora, não era anticlerical. Então quando um grupo de anticlericais propôs a expulsão dos jesuítas do Brasil - os jesuítas tinham sido expulsos de Portugal e houve uma onda anti-jesuítica no Brasil - ele se levantou feito um leão para defender os jesuítas. Ele disse assim: “Quando eu defendi a separação entre Igreja e Estado foi em

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benefício da Igreja, não foi para perseguir a Igreja. E nós vamos ter medo agora que os jesuítas restaurem a monarquia no Brasil? Nós não temos competência para defender a República?” Enfim, tinha essas coisas todas. Aí morre o Júlio de Castilho e assume a liderança do Partido Republicano Riograndense uma dupla: Borges de Medeiros, que ficou cuidando dos assuntos estaduais, e o Pinheiro Machado. O Pinheiro Machado não queria o velho Barbosa Lima. Então, ele não pôde ser reeleito pelo Rio Grande. Veio ser eleito aqui pelo Rio, lançado pelo Edmundo Bittencourt com o apoio do Correio da Manhã. Eleição popular, porque aqui no Rio era mais difícil fraudar. Aí, há um conflito muito grande dele com o Pinheiro Machado. Ele fez um discurso muito violento contra o Pinheiro Machado, quando houve a revolta dos marujos, do João Cândido. O Congresso, a pedido do governo, votou uma lei de anistia... A pedido do governo e com o voto do Pinheiro Machado. Quando o governo dominou a revolta, resolveram se vingar dos marinheiros, porque eram marinheiros... Foi um massacre, um massacre... Jogavam em covas de cal. E o Pinheiro Machado começou a dizer que aquela lei de anistia tinha sido uma coisa irresponsável, o Congresso tinha se acovardado... porque os marinheiros tomaram os navios e estavam com os canhões apontados para a cidade. Aí o velho Barbosa Lima faz um discurso denunciando o Pinheiro Machado: “O senador Pinheiro Machado votou como nós, estava de acordo. Agora, que tomaram conta, está a favor do massacre dos marinheiros. Eu tenho que denunciar isso.” O Pinheiro Machado usava expressões sempre muito elegantes, mas muito contundentes. Eu não me lembro que metáfora ele usou para o Pinheiro Machado, mas era uma coisa parecida com uma metástase, um troço desses... O Pinheiro Machado desafiou o velho para

Era amigo do conde Pereira Carneiro, diretor do Jornal do Brasil, desde o tempo em que foi vice-presidente do Náutico. Mas entrou por baixo no jornal. um duelo. Mandou os padrinhos. Aí, o velho disse assim: “As minhas convicções positivistas me impedem de aceitar um desafio para um duelo, mas digam ao senador Pinheiro Machado que todo dia, a tal hora, eu pego a barca para Niterói na Praça Quinze” - ele estava, parece, passando uma temporada em Niterói . “Se ele quiser, vai me encontrar lá.” O Pinheiro Machado não foi.

Jornal da ABI


Então, houve esses conflitos todos, mas depois, com a morte do Pinheiro Machado, mudança de governo, o Delfim Moreira assumiu, foi breve. O Delfim Moreira assumiu como vice-presidente, até haver nova eleição, que foi a do Epitácio, porque tinha sido eleito o Rodrigues Alves, que ficou doente, não pôde assumir e morreu logo depois. Em

conde? Porque eles foram amigos no Náutico, em atividades esportivas...

Entrevistou um cirurgião plástico que voltava da Alemanha e transformou a matéria numa profecia política sobre o ressurgimento militar alemão. Ganhou a manchete de página e uma promoção imediata para redator.

J.A.R.: Era o teu pai? Dessa diretoria? Que idade tinha o teu pai?

J.A.R.: Era, sim. O Náutico elegeu uma diretoria toda de garotos, o dr. Barbosa com 24 anos era vice-presidente do Náutico. E aí os antigos do clube... A.A.: O presidente era o meu pai.

A.A.: Não sei, uns quatro mais do que Barbosa, só. J.A.R.: Quer dizer, o teu pai tinha uns vinte e oito anos. O dr. Barbosa tinha vinte e quatro. Então, uns antigos do clube eram contra essa coisa de entregar o clube para os garotos. E o conde prestigiou... A.A.: Inclusive dando dinheiro para fazer a nova arquibancada, que foi a grande obra do meu pai, a nova arquibancada do Náutico. A.M.L.: Como era o nome do seu pai?

1919, o Delfim Moreira, por sugestão de Afrânio de Mello Franco, que era um grande amigo do velho Barbosa Lima, nomeou o velho Barbosa Lima diretor do Loyd. Ele tinha sido um dos defensores, na Constituinte, de uma emenda que teve o apoio de todos os militares que foram eleitos para a Constituinte - o Floriano Peixoto, o almirante Wandenkolk, acho que o general Joaquim Inácio, avô do presidente Fernando Henrique Cardoso, grande nacionalista o general Joaquim Inácio... O velho Barbosa Lima tinha apoiado uma emenda, em favor da navegação brasileira de cabotagem, e o Loyd foi uma decorrência disso. Ele foi nomeado diretor do Loyd e quis nomear o sobrinho para secretário dele. E o dr. Barbosa, então, veio ao Rio para resolver isso, mas o general, envolvido, influenciado por um genro, antes dele chegar nomeou outra pessoa. Claro que ele ficou um pouco decepcionado com isso, mas não ficou magoado com o general. Ele entendeu que tinha sido uma manobra de família e que o general, preocupado com coisas maiores, acabou não dando atenção. Ele passou um ou dois meses aqui, começou a colaborar no Jornal do Brasil... Ele conhecia o conde Pereira Carneiro de Pernambuco. E voltou para Pernambuco em 19. Foi aí que ele tentou o concurso que não deu certo. Então em 21, quando ele teve que vir, ele resolveu que não queria depender de ajuda de ninguém da família para se fazer. Ele ia se fazer profissionalmente. Então ele veio com uma carta, que eu não sei se é do conde para o diretor executivo do jornal, ou se era uma carta ao conde. Porque eles eram amigos, mas era uma relação muito reverencial, o conde já era o conde e eles eram... Não sei se já era conde, mas já era um grande empresário. E a diretoria... A.M.L.: E ele era de Pernambuco, o Especial - Barbosa Lima Sobrinho

A.A.: José Arruda de Albuquerque. presidente do Náutico nessa época. J.A.R.: Eu acho que o dr. Barbosa conheceu o conde num desses lances, quando foi um grupo do Náutico fazer uma visita ao conde, dar um presente a ele e um mimo à senhora dele, que não era a condessa, era do primeiro casamento, que morreu logo depois. Então o dr. Barbosa foi indicado para falar em nome do grupo de visitantes e acho que o conde gostou do discurso dele, coisa e tal... Então, quando precisavam pedir alguma coisa ao conde organizavam um grupo e parece que o orador do grupo era o dr. Barbosa. Então, eu acho que ele não veio para o Rio com uma carta do conde, ele veio para o Rio com uma carta ao conde.

Sanson, cirurgião geral e cirurgião plástico, que tinha feito uma viagem de estudos pela Europa e voltado muito impressionado com a Alemanha. Em 1921, o noticiário sobre a Alemanha era uma coisa terrível: assassinato da Rosa Luxemburgo, do Liebknecht. Não tinha começado a surgir o movimento nazista, mas já havia um militarismo fascista retomando o poder na Alemanha. E o dr. Barbosa escrevia muito sobre a Alemanha, porque ele tinha muita simpatia pela social-democracia alemã. Ele escreveu um artigo, uma espécie de avaliação pos mortem do Liebknecht e da Rosa Luxemburgo, em que ele dizia que eram criaturas admiráveis e dizia assim: “O bolchevismo, o maximalismo, são produtos da miséria. Então se não quisermos a violência bolchevista, nós temos que...”. Admirava a Rosa Luxemburgo, mas a adesão intelectual dele era aos grupos reformistas, não revolucionários; ele sempre foi um reformista, não um revolucionário. O dr. Barbosa conhecia a situação política da Alemanha e da Europa. Ele já tinha publicado o livro “A ilusão do direito de guerra” e vai entrevistar o médico. E o médico começa a dizer: “Olha, eu estou espantado com o progresso, não só da medicina, da ciência em geral na Alemanha. Como é que aquele país arrasado conseguiu constituir um núcleo de cientistas e levantar recursos ... Estão mais adiantados nisso, mais adiantados naquilo, desenvolveram fantasticamente a cirurgia plástica para tratar dos mutilados de guerra... Eles desenvolveram isso...”. Aí o dr. Barbosa - está na matéria. Nas reportagens de antigamente o repórter

Em 1924, com 27 anos, já era redatorchefe do JB. O outro pretendente à vaga era o pai do brigadeiro Eduardo Gomes.

A.M.L.: Carta de quem? Não se sabe? J.A.R.: Há um depoimento dele que registra isso. Aí há contradições de detalhes, que eu ainda não consegui esclarecer. Mas enfim, o diretor executivo do jornal - eu não tenho o nome de memória, mas está registrado - não confiava muito nas indicações do conde, porque o conde era muito generoso, então qualquer bacharel, tendo um certo talento, ele indicava. E o sujeito queria jornalista. O sujeito queria jornalistas com alguma experiência, e não acreditava que o dr. Barbosa tivesse experiência. Então contratou o dr. Barbosa com salário de repórter, que era muito menor que o de redator. E o repórter, na época, era o que nós chamamos depois o legman, que era o sujeito que trabalhava mais com as pernas do que com a cabeça: ia buscar as coisas, depois o redator escrevia. Em geral não escrevia, ou escrevia pouco. Mas um dia mandaram o dr. Barbosa entrevistar um médico brasileiro, que ele define como o Pitangui da época, chamado David

intervinha muito mais do que hoje - disse assim: “Diante disso a nossa reportagem perguntou ao doutor Sanson qual tinha sido a sua simpatia na última guerra”. Ele disse: “Não fui partidário da Alemanha, fui partidário dos aliados. Portanto, não é uma coisa saudosista, de defesa da Alemanha”. Aí o dr. Barbosa termina a matéria mostrando: “Olha, isso vai ter uma repercussão política, vai ter uma repercussão econômica”. E ele já tinha escrito, logo no fim da guerra, um artigo profético: “Se os aliados continuarem com essas cerimônias e deixarem a Alemanha se organizar sobre a hegemonia prussiana, nós vamos ter uma nova guerra”. A guerra terminou em novembro de 1918 e ele escreveu isso em dezembro de 18. Então ele conhecia e se preocupava com o ressurgimento do militarismo alemão. E ele viu no ressurgimento da ciência alemã a plataforma de lançamento... Se você desenvolve a cirurgia plástica num país miserável, você está desenvolvendo a

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indústria bélica... Aí, o diretor do jornal ficou impressionado com a reportagem, e publicou essa reportagem na página política do jornal, na página dos editoriais. São duas colunas de alto a baixo. Naquela época era o que é hoje uma manchete de oito colunas na primeira página. E na mesma hora aumentou o salário do dr.

No segundo livro, em 23, já teorizava sobre a atuação da imprensa, mostrando como funcionavam os jornais nos EUA e Europa. Barbosa, de modo que quando ele foi receber - isso foi antes de completar um mês da entrada dele no jornal - já não era o salário de repórter, era o salário de redator. E ele começou a ser requisitado no jornal para mil tarefas. Foi requisitado para fazer a cobertura no Senado - os postos principais de reportagem no jornal eram a Câmara e o Senado. Além disso, ele fazia a coluna “Coisas da Política”, que eu não sei se foi criada por ele ou pelo Dunshee de Abranches, por um dos dois. E aí foi fazendo carreira... em seguida publicou um outro livro, que é atualíssimo, “O problema da imprensa”, em pleno estado de sítio, em 23. A.A.: Importante ressaltar que ele analisa e teoriza sobre o jornalismo em pleno exercício profissional, como redator político do JB. J.A.R.: É. E já em 24 ele foi promovido a redator-chefe, com a morte do redator anterior, Nuno de Andrade. Um médico que escrevia muito bem. O redator-chefe escrevia o editorial principal do jornal. Naturalmente escrevia artigos seus também, assinados, e supervisionava toda a parte de opinião do jornal; todos os artigos assinados. Quem controlava, assim, reportagem, noticiário, era o secretário de redação. Houve uma vez em que o dr. Barbosa acumulou a função de redator-chefe e redator-secretário; trabalhava muito. Então morreu Nuno de Andrade e havia um outro pretendente ao lugar de redator-chefe, era o comandante Luiz Gomes, um antigo oficial de Marinha, grande conhecedor de questões econômicas e questões de transportes. E escrevia muito sobre isso. Mas a direção do jornal - não sei se foi o conde sozinho... eu acho que o conde dirigia colegiadamente o jornal, consultando lá os homens - escolheu o dr. Barbosa. Esse comandante Luiz Gomes, sabe quem era? Pai do brigadeiro Eduardo Gomes. Mas acho que o comandante não ficou magoado nem nada. E o dr. Barbosa era... Sabe, tinha a energia da juventude dele, já chegando perto dos trinta anos. Ele foi redator-chefe em 24, quer dizer, estava com 27 anos.


UMA HISTÓRIA DE DEDICAÇÃO À IMPRENSA Em depoimento inédito, Barbosa Lima Sobrinho revela como implantou o sistema de arquivo e pesquisa na redação do JB, preocupado em garantir qualidade e eficácia para a própria profissão Vim (de Pernambuco) para o Jornal do Brasil com a recomendação do Pereira Carneiro. Eu vim como redator, mas na última categoria. Tanto que eles pagavam a redator naquela ocasião 250 e o meu primeiro ordenado era 150. Mas com o trabalho do primeiro mês já fui equiparado a redator. Eu passei a ser redator da Câmara dos Deputados e fazia a cobertura de tudo o que acontecia. Tinha um secretário, o João Guimarães, que era o secretário do Jornal do Brasil, dirigia o jornal e completava os noticiários. Não havia os arquivos de fotografias, tínhamos uma pessoa que fiscalizava os arquivos, mas quando ele faltava na redação ninguém sabia onde estavam os retratos. Aconteceu que ele foi vítima de um desastre de trem e o pessoal ficou pelos ares sem poder encontrar... Depois, na função de redator principal do jornal, organizei com o redator, que depois passou a ser meu compadre, organizamos um serviço por fichas e um serviço sistemático em que qualquer pessoa podia encontrar a foto. A minha preocupação era essa -faltava o redator... era necessário que houvesse um sistema que estivesse acessível a qualquer outra pessoa. Nessa época não havia um serviço de documentação no Jornal do Brasil. Eu guardava os artigos de fundo como um elemento de informação para mim mesmo, porque a gente escrevia sobre um assunto, quando voltasse ao assunto tinha que reler o artigo para documentar exatamente com os conhecimentos que já tinha adquirido. Para mim constituiu exatamente um setor de pesquisa. Na nova sede do Jornal do Brasil, os serviços de documentação do Jornal do Brasil eram notáveis. No meu período no Jornal do Brasil eu gostava muito de fazer entrevistas e foi até na entrevista com David de Sanson em relação aos problemas da cirurgia da face que eu consolidei a minha situação de redator. O próprio Rocha Fragoso mandou me promover nos meus vencimentos. Em Pernambuco eu já tinha feito muitas entrevistas com pessoas assim, e eu tinha uma memória muito boa... Uma coisa curiosa que o gravador extinguiu foi exatamente essa memória que os jornalistas antigos tinham, porque eles gravavam durante três dias, de uma maneira extraordinária, as coisas que tinham ouvido; ao passo que com o gravador essa “faculdade” foi esquecida porque o gravador reconstituía tudo. Depois começaram a vir as promoções. Eu passei a ser um redator de Câmara, redator político. O próprio Rocha Fragoso, que era diretortesoureiro, me chamou e perguntou qual era o ordenado que eu precisava e eu timidamente me dei um ordenado de 800

cruzeiros, que era um ordenado que bastava para as minhas despesas, mas não dava propriamente para ter uma vida bem organizada. Mas fui subindo no jornal e passou depois para um conto e quinhentos. O último ordenado que eu tive no jornal foi de três contos, naquela ocasião era um ordenado bom. Eu vivia exclusivamente do ordenado do jornal. A maior parte dos jornalistas vivia exclusivamente do ordenado do jornal. Eu levei, vivendo exclusivamente de jornal, uns 14 ou 15 anos. Eu escrevi a mão, sempre, no Jornal do Brasil, até o fim... Até 34 ainda se escrevia a mão. Agora, depois de 34 é que a máquina se tornou uma exigência indispensável. Aí eu já estava mais na função de colaborador... Como colaborador eu gostava de fazer o rascunho, porque permite coordenar as idéias. Embora depois, quando vai para a máquina, a gente possa fazer um artigo completamente diferente do rascunho. Eu faço isso ainda hoje. Às vezes quando vou confrontar uma coisa e outra fico até dando risada. Mas a coordenação das idéias é indispensável. O Jornal do Brasil apoiou a candidatura do Nilo Peçanha. Como o Bernardes venceu, o jornal procurou um modus vivendi com o Bernardes, convocando o Aníbal Freire, que era amigo do Bernardes. E o jornal passou a ter uma atitude...não de apoio incondicional ao Bernardes, mas de uma crítica moderada. Não poupando, às vezes, quando havia motivo para o elogio. O jornal, aliás, conservou uma certa independência. Basta dizer que, quando Washington Luís chegou à Presidência da República, ele tinha um programa financeiro e o Jornal do Brasil criticou

“Até 34 ainda se escrevia a mão. Depois a máquina se tornou indispensável. Mas eu escrevo a mão ainda hoje, porque permite coordenar as idéias e eu gosto de fazer um rascunho. Quando vai para a máquina, fica completamente diferente. Chego a dar risada.”

o programa financeiro... Nesse tempo eu já tinha estudado questões econômicas e já estava em condições de criticar o programa financeiro do Washington Luís, numa série de artigos que eu escrevia no Jornal do Brasil, moderadamente divergindo num ponto e noutro, mostrando que era um programa que, numa situação de crise, não tinha condições de sobreviver. Mas, em todo

“Não havia um serviço de documentação no jornal. Organizei um arquivo por fichas para poder localizar fotos.” o caso, moderadamente, sem hostilizar o governo, até admitindo mesmo que ele tinha as melhores das intenções, mas com a independência do Jornal do Brasil isso de 1923 à 1930. O jornal apoiou a candidatura de Nilo Peçanha, acomodou-se depois com Bernardes, depois apoiou a candidatura do Washington Luís, já por inspiração do próprio Pereira Carneiro, que era amigo pessoal do Washington Luís. Essa parte geral cabia propriamente à administração do jornal e nós tínhamos até como diretor comercial do jornal o diretor da Companhia de Comércio e Navegação, que era o João Santos. O velho Barbosa Lima não chegou a influir, propriamente, na minha vida. Eu conquistei dentro do jornal... Fui inclusive líder da bancada da imprensa na Câmara dos Deputados e tinha uma presença na Câmara dos Deputados que influiu. Primeiro eu fazia os artigos de fundo do Jornal do Brasil de 1924. Quando morreu Nuno de Andrade... porque quem fazia os artigos de fundo do Jornal do Brasil sem ir ao jornal era o Nuno de Andrade, que mandava de casa os artigos para o Jornal do Brasil - eu fui então promovido a redator-principal do jornal com a incumbência de fazer os artigos de fundo. E fiz até 1930. Além disso eu tinha artigos assinados, que eu publicava em várias edições, mas sobretudo, a partir de 1927, publicado aos domingos...Saía um artigo assinado com o meu nome no Jornal do Brasil. E isso me deu um prestígio maior dentro do próprio Jornal do Brasil e nas rodas que freqüentava. Inclusive nos meios literários, com o João Ribeiro, Coelho Neto, que eram figuras do Jornal do

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Brasil. Eu também me dava muito com Oliveira Lima, com quem inclusive me correspondia. Nessa ocasião eu já tinha um certo prestígio pessoal, que fez com que Solidônio, que era líder da bancada de Pernambuco na ocasião, insistisse para que eu fizesse parte da bancada de Pernambuco. A questão minha com o Jornal do Brasil foi a seguinte: o Jornal do Brasil tinha tido a necessidade de substituir o Aníbal Freire, no tempo da Revolução, pelo Brício Filho, que era favorável à Revolução. Mas o Brício Filho também não estava nos planos do próprio Jornal do Brasil. Foi quando se apresentou um amigo do conde, que era o Pires do Rio, um homem que tinha uma facilidade maior de se apresentar nas repartições de estado, porque a situação do jornal já não era tão fácil, o conde Pereira Carneiro, que tinha recebido grandes indenizações, estava em dificuldades na Companhia de Comércio e Navegação. Todo o plano do Jornal do Brasil era se libertar da Companhia de Comércio e Navegação, que já estava dando prejuízo. Para se libertar disso precisava de um homem que tivesse prestígio na área dos transportes como o Pires do Rio, que inclusive tinha sido o ministro de Viação no período anterior. De modo que o Pires do Rio foi chamado como diretor. Ele tinha a idéia de ter uma presença mais efetiva no jornal e achava que eu era uma espécie de competidor, porque eu tinha as minhas idéias próprias e nem sempre concordava com ele. Ele publicava os meus artigos, discordando às vezes das idéias que eu defendia mas publicava. Eu tinha boa relação com o conde Pereira Carneiro. E ele, nesse ponto, respeitava. Mas, os artigos de fundo já tinham desaparecido, porque os artigos de fundo era eu quem fazia. Me afastei do Jornal do Brasil nesse período, embora continuando como colaborador. O conde ainda fez força para que eu voltasse ao cargo, mas eu mostrei que era impossível. Acontecia, por exemplo, isso: eu assumi o cargo de redator-principal com a incumbência de rever os tópicos que eram apresentados; eu aprovava um tópico, mas o Pires do Rio intervinha na oficina e proibia a publicação desse tópico. Eu disse ao conde: não há condição de eu continuar no Jornal do Brasil dentro dessas funções. De 30 a 35 continuei a escrever os artigos no Jornal do Brasil nos domingos, já que as minhas relações com o conde foram até a morte dele; de modo que o prestígio do conde me mantinha no jornal. O Pires do Rio queria ter uma influência maior no Jornal do Brasil e se queria ter uma influência maior o meio que tinha era me afastar porque o pessoal da imprensa que me conhecia, que sabia

Jornal da ABI


do meu trabalho, tudo o que havia de melhor no Jornal do Brasil eles me atribuíam, e isso punha o Pires do Rio numa certa sombra que não era interessante para ele. O Pires do Rio resolvia só o problema “da Comércio e Navegação”, foi a função dele em relação ao jornal. Mas ele também não tinha uma visão da parte comercial do jornal, tanto que ele achava que a parte comercial era muito importante, mas não sabia também projetar e desenvolver essa parte comercial do jornal. De modo que o jornal foi vivendo uma vida um pouco difícil até a saída dele... Tinha o balcão e o pequeno anúncio. O jornal vivia, sobretudo, do pequeno anúncio, que foi exatamente um privilégio que manteve o jornal desde o começo, desde a fase, sobretudo, dos Mendes de Almeida. O Jornal do Brasil com o pequeno anúncio, com o anúncio classificado, tinha o seu meio de vida garantido. O pequeno anúncio dava o suficiente para a manutenção do jornal, no tempo dos Mendes de Almeida como no tempo do Pereira Carneiro. Com o Martins Alonso, que foi o subsecretário do jornal, nós tínhamos a preocupação de acompanhar os jornais argentinos, La Prensa e La Nación. Nós procurávamos adaptar no Jornal do Brasil as coisas que pudessem ser feitas, embora o Jornal do Brasil estivesse sacrificado porque tinha, pela tradição dos pequenos anúncios, a primeira página toda de pequenos anúncios, uma reforma que só se poderia fazer à custa da própria direção do jornal e que foi realizada pela condessa Pereira Carneiro. Eu acho que o jornal, hoje, vive mais dos anúncios em geral. Porque, inclusive, com a concorrência de O Globo ele perdeu uma parte da supremacia do pequeno anúncio. E porque perdeu uma parte, teve que recorrer a uma publicidade mais ampla e procurar desenvolver também um pouco a sua própria vendagem e assinatura, mas mantendo, tanto quanto possível, uma linha de independência. Acho que aqui no Rio de Janeiro o público, em geral, reconhece que o Jornal do Brasil tem uma atitude discreta; não dá a impressão de um jornal que se vende em troca de compensações imediatas -mantém uma atitude de relativa independência que lhe dá um certo prestígio na imprensa carioca. Hoje, de certa maneira, o jornalismo depende menos dessa parte das candidaturas presidenciais. Agora, não deixa de ter uma certa influência, uma certa possibilidade de trazer alguns recursos, mas não é... A dependência não é tão grande, tanto que o Jornal do Brasil costuma manter uma certa independência, dizendo coisas de um lado e do outro, não é? Essa independência, aliás, sempre foi um privilégio do Jornal do Brasil, porque no próprio período da candidatura do Nilo Peçanha e do Bernardes o Jornal do Brasil publicava as plataformas dos dois candidatos. Como também no período do Washington Luís publicava as plataformas do Getúlio Vargas. Manteve sempre, acima de tudo, a preocupação de informar o ponto de vista dos dois lados.

Especial - Barbosa Lima Sobrinho

A IMPRENSA DOS ANOS 20: RADIOGRAFIA DE UMA ÉPOCA Jornais faziam o maior sucesso, com tiragens de até 60 mil exemplares Marialva Barbosa Quando em 1920 Barbosa Lima Sobrinho era o jovem comentarista político do jornal mais popular de então, o Jornal do Brasil, a imprensa do Rio de Janeiro iniciava um novo momento de bruscas transformações, que se caracterizaria, ao longo da década de 20, pela introdução de um jornalismo nitidamente sensacionalista e pela formação do primeiro conglomerado de imprensa. Na verdade, cada uma dessas inovações já vinha se anunciando há pelo menos duas décadas. A cidade vivia desde o início do século a febre da modernização. As transformações econômicas, políticas e sociais, que mudariam completamente o cenário urbano, criariam as condições indispensáveis para o desenvolvimento da imprensa como empreendimento industrial. Nesse cenário, cinco jornais despontavam como verdadeiras empresas jornalísticas: o Jornal do Brasil, o mais popular da cidade; o velho Jornal do Commercio, o de maior prestígio político; a Gazeta de Notícias, o de maior penetração entre os intelectuais; o Correio da Manhã, que se rivalizaria com o Jornal do Brasil na conquista de mais leitores; e o Paiz, que no início dos anos 20 já estava em fase de franca decadência. Introduzindo a fotografia em suas primeiras páginas, criando manchetes em títulos fortes, modernizando a administração (com a divisão do trabalho nas redações e nas oficinas), adotando novas fórmulas editoriais e modernas máquinas no processo industrial, esse jornalismo diário implementou, nas duas primeiras décadas do século, a mais radical mudança no processo de fazer jornal já conhecida na imprensa brasileira.

Ocupando grandiosas sedes na mais moderna avenida -a hoje Avenida Rio Branco-, conquistavam dia-a-dia mais leitores, mais anunciantes, mais verbas públicas. À medida que cresciam as tiragens, aumentava também o prestígio político.

Uma revolução industrial, com linotipos e rotativas consideradas "vomitadoras de folhas" Apesar de ser praticamente impossível determinar as tiragens dos jornais dessa época, pode-se estimar que, antes mesmo de 1920, o mais popular do Rio de Janeiro (o Jornal do Brasil) já imprimia mais de 60 mil exemplares. Como os jornais eram lidos geralmente em voz alta nas rodas noturnas familiares, ou no ambiente de trabalho ou ainda nas ruas, pelo menos mais quatro pessoas tomavam conhecimento do conteúdo de um único número. Assim, apesar dos altos índices de analfabetismo da população, não se deve menosprezar o poder de difusão desses impressos. E porque havia público, havia leitores e havia o interesse da população, a imprensa chegou aos anos 20 com todas as condições para um maior desenvolvimento. Do ponto de vista editorial, iniciara o século XX introduzindo

ilustrações em suas páginas: primeiro as caricaturas e desenhos e, posteriormente, a fotografia. Dividiu a opinião da informação e estabeleceu um diálogo permanente com o seu público. Crônicas, poesias, contos e peças teatrais ganhavam destaque, notadamente nas edições dominicais, e o jornal passava a ser, do ponto de vista editorial, um meio informativo e, ao mesmo tempo, de entretenimento. Mas, a revolução na forma de fazer jornal não se limitou a mudanças de natureza editorial. Novos artefatos introduzidos naquelas verdadeiras “fábricas de notícias” possibilitam maior rapidez no processo de produção. Primeiro vieram as linotipos, depois as modernas rotativas, formidáveis “vomitadoras de folhas” capazes de imprimir até 20 mil exemplares de 18 páginas por hora, como a máquina Walter Scott, do Jornal do Commercio, em 1920. Se, por um lado, essas inovações significaram maior rapidez no processo de fazer jornal, por outro permitiram a explosão da técnica, com a introdução da cor, adotada desde 1907 pela Gazeta de Notícias. Como empresas gráficas, esses periódicos fundavam também oficinas de obras, transformando-se em verdadeiras editoras. Estava aberto o caminho para novas empresas, novas fábricas de notícias que surgiriam no decorrer dos anos 20. E nesse cenário um novo tipo de jornalismo começava a despontar. Desde a década anterior os jornais que mais aumentaram o seu poder de difusão junto ao público leitor foram aqueles que destacavam em suas páginas os “crimes sarrabulhentos, as notícias hediondas e as tragédias quotidianas”. Páginas inteiras mostravam mortes horríveis, crimes

“DESPREENDIMENTO, COERÊNCIA E NOBREZA” A opinião de quem conheceu o profissional Barbosa Lima editando o JB, na mesma época em que Irineu Marinho fundava O Globo ele viveu mais longa e intensamente do que qualquer outro homem público. Não há novidade maior em dizer que somos companheiros e amigos de longa data. A novidade está no fato de termos convivido tanto tempo na mais perfeita discordância de idéias e na mais perfeita harmonia pessoal. Há inúmeras e preciosas lições que os homens públicos de hoje podem aprender com Barbosa Lima. Uma delas, talvez uma das principais, é a que nos ensina a não confundir coerência com intransigência, firmeza de pontos de vista com teimosia ideológica, convicções

Roberto Marinho A democracia já foi definida pela habilidade verbal de Winston Churchill como um péssimo regime, só que ainda não se descobriu outro melhor. E enquanto não descobrimos outro melhor, a obrigação e o compromisso dos homens de bem é o de zelar por ela, praticando-a com despreendimento, coerência e nobreza. Estas são três das muitas virtudes que Barbosa Lima Sobrinho vem demonstrando ter, em doses generosas, ao longo deste século que

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pessoais com verdades absolutas. É na sua admirável capacidade de conviver com os contrários, sem azedumes nem intransigências, mas com retidão e firmeza, que Barbosa Lima Sobrinho se torna exemplar em muitos aspectos, mas um deles ressalta dos demais: o de ser ele um democrata autêntico, não por dedução lógica ou conveniência política, mas por uma das mais belas e sólidas formações humanísticas que conheci e aprendi a admirar. Roberto Marinho, jornalista e presidente das Organizações Globo.


A sociedade parecia de tal forma contida naqueles relatos que o leitor tinha a impressão não só de estar em contato com aquela realidade, mas participando dela. Compondo o seu texto a partir de um mundo, o repórter gerava um outro mundo. revoltantes, violência e dramas particulares. O leitor podia contar ele mesmo a sua tragédia ou se identificar com a tragédia de um outro. Essas notas sensacionais, como se chamava na época, aumentavam a popularidade dos periódicos que narravam fatos cotidianos descritos em notícias que envolviam crimes, desastres, roubos, incêndios, enfim, as tragédias diárias da cidade. A sociedade parecia de tal forma contida naqueles relatos que o leitor tinha a impressão não só de estar em contato com aquela realidade, mas participando dela. Compondo o seu texto a partir de um mundo, o repórter gerava um outro mundo. Modificando a forma de composição da escrita, os autores adaptavam aqueles textos às propostas do próprio leitor. Alargando a sua audiência, desenvolviam o gosto urbano pelos periódicos, tornando-os acessíveis. Criavam, assim, um público diversificado. Ao leitor fiel, ao assinante assíduo, juntouse o leitor eventual, que ainda não possuía o hábito de ler jornal, mas se interessava pelos dramas e tragédias do cotidiano. Não causa, portanto, estranhamento ser o jornalismo da década de 20 marcado pela criação de dois novos periódicos que iriam explorar ao máximo esse jornalismo sensacionalista: Manhã e Crítica. Ambos fundados por Mário Rodrigues, o primeiro em 1925 e o segundo três anos depois; esses periódicos são exemplos marcantes de uma imprensa inteiramente calcada em notícias sensacionalistas, a chamada yellow-press dos países anglo-saxãos, marca evidente do jornalismo dos anos 20. Outra marca dessa década seria a criação do primeiro conglomerado da imprensa brasileira, com a compra por Assis Chateaubriand, em 1924, de O Jornal, primeiro órgão dos Diários Associados. Fundado em 1919 por Renato Toledo Lopes, com o objetivo de levar adiante uma campanha em defesa da criação da siderurgia nacional, O Jornal assumiria, em seguida, uma posição de ataque à política de Epitácio Pessoa, o que o levou a uma situação financeira precária. Chateaubriand, com a ajuda do próprio

Epitácio Pessoa e de Virgílio Melo Franco e com o apoio de Arthur Bernardes, comprou por 5 mil contos de réis o diário de Toledo Lopes. Este seria o primeiro veículo de uma série de outros ligados à Chateaubriand. Ainda em 1924 fundou, em São Paulo, o Diário da Noite, e quatro anos depois aquela que atingiria nos anos 50 a impressionante cifra de 720 mil exemplares: O Cruzeiro. Iniciava-se assim, no final dos anos 20, a criação de um grupo - de jornais e revistas, seguidos de emissoras de rádio e, na década de 50, das primeiras emissoras de TV - que viria a ser o mais importante e poderoso conglomerado de imprensa (até os anos 60) no Brasil. Revista semanal ilustrada, O Cruzeiro começaria a circular em 10 de novembro de 1928, com 50 mil exemplares. Cartazes afixados na cidade anunciavam o preço da nova publicação 1 mil réis- e o emprego da “moderníssima técnica de rotogravura”. Na capa, em close, o rosto de uma mulher sensual e glamourosa, bem ao estilo do final dos anos 20. “Colocamos nas mãos do leitor a mais moderna revista brasileira”, apregoava o editorial de apresentação. As matérias do seu primeiro número refletem o clima de um país que vivia os reflexos econômicos provocados pela I Guerra Mundial e que ainda não sofrera o impacto da Depressão de 1929: abertura de novas estradas (sintonizada com o slogan, Governar é abrir estradas, criado pelo presidente), o boom da construção civil acelerando o mercado imobiliário e a absorção de novos contingentes de mãode-obra. Com 1.430.608 pessoas, o Rio de Janeiro, então capital da República, ainda era a maior e mais importante cidade brasileira. A população do país era de pouco mais de 36 milhões e desse total o Estado do Rio de Janeiro possuía 1.806.210 habitantes. E eram eles os leitores habituais ou esporádicos do eterno oposicionista Correio da Manhã; do popular Jornal do Brasil, sob nova direção desde 1918; do conservador, prestigioso e mais antigo diário da cidade, o Jornal do Commercio. Eram eles também os leitores das revistas de crítica aos costumes, da nova revista ilustrada O Cruzeiro ou da escandalosa imprensa sensacionalista. No final dos anos 20 os homens de imprensa ainda olhavam desconfiados para um novo veículo, mais imediato mas sem o simbolismo que a palavra impressa oferecia: o rádio. Três anos depois do início da década, em 1923, Roquete Pinto funda a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. Veículo elitista inicialmente, na verdade o rádio só se popularizaria na década seguinte, durante o Estado Novo, quando foi usado como meio de propaganda política e de difusão ideológica do governo. Mas este é um novo capítulo, que introduz outra década rica na história de uma imprensa que também faz a história, mas que nem sempre encontra historiadores dispostos a estudá-la. Marialva Barbosa, professora de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense e doutora em História Social.

MULHERES VÃO À LUTA PELO DIREITO DE VOTOETRABALHO A organização das mulheres na década de 20 é o início de um processo gradativo de conquista de espaço na sociedade. Hoje elas já começam a ser maioria nos cursos de comunicação. Kátia de Carvalho O Rio de Janeiro, capital do país na década de 20, exercia o papel de centro de grande força política, social e cultural, e como consequência, favorecia o crescimento da imprensa, notadamente, da imprensa periódica que encontrava na renovação do parque gráfico o apoio indispensável para a proliferação de revistas e jornais. O acervo de periódicos da Biblioteca Nacional reúne cerca de 616 títulos de periódicos que circulavam nesta cidade, sendo que 420 eram editados na capital do País, entre 1920 e 1929. Essas revistas e jornais atingiam um público leitor cada vez maior, sendo expressiva a presença feminina entre os assinantes. O crescimento urbano e os meios de comunicação disponíveis fizeram emergir um novo perfil feminino. Os movimentos de interesse feminino estavam dirigidos para a defesa da melhoria da condição da mulher na sociedade, para as lutas pelo direito ao voto e pelo acesso ao trabalho remunerado. Nesta década, se inicia o movimento de emancipação feminino, com a criação de organismos associativos. Coube a Berta Lutz o mérito de liderar o processo e de fundar a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, em 1922, a União Universitária Feminina, em 1929 e ainda, a União de Funcionárias Públicas e a Liga Eleitoral. A bandeira do movimento feminino na década de 20 era garantir à mulher a sua participação na força de trabalho do país e, principalmente, o direito de votar. De 1929 a 1994, sessenta e cinco anos se passaram e as tecnologias da Comunicação e da Informação baseadas na eletrônica exercem a mediação no sistema de relações reais entre as pessoas alterando a nova ordem informacional. A fragilização das tênues fronteiras entre o público e o privado ampliam e aperfeiçoam cada vez mais as possibilidades de simulacro, modificando a ordem, afetando as relações sociais e ainda exercendo novas formas de dominação cultural. Conseqüentemente, as relações da mulher também se modificaram em muitos aspectos. A cultura feminina passa a ser objeto de debate de certos grupos de historiadores. Elaine Showalter (1) se refere ao grupo que defende o movimento da esfera feminina voltado para a sua própria cultura e para a evolução dos seus

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direitos, enquanto outros grupos privilegiam a interação permanente entre a cultura de mulheres e a cultura geral. Heloisa Buarque de Hollanda (2) elabora um interessante mapeamento sobre o tema e agrupa as novas tendências em dois pólos conceituais: o feminismo angloamericano e o feminismo francês. Enquanto o primeiro enfatiza a área da teoria literária, o segundo prestigia a psicanálise como fundamento orientado para a subjetividade feminina. Nos anos 70 esta corrente se fortalece com base nas teorias de Derrida e Lacan. Outros estudos se consolidam a exemplo da produção cultural latino-americana, a partir da segunda metade do século XIX. Assim o novo enfoque se direciona para as questões da identidade feminina e o lugar da diferença. A partir da década de 80, novos rumos se delineam e a pesquisa dá ênfase ‘a investigação sobre a mulher em relação a nova ordem mundial, onde a Comunicação e a Biologia assumem papéis preponderantes. No âmbito da Comunicação, da Informação e da Informática surgem alguns temas de ponta. Assim sendo, a cultura das mulheres pode ser compreendida a partir de uma visão sistêmica, onde o modelo de sistema de informação codifica e decodifica a informação gerada entre a esfera pública e a esfera privada e a mulher atuando na transferência da informação. Para a Ciência da Informação, o sistema de informação feminino aponta para a pesquisa de linguagens. Os textos femininos passam a ser objeto de interesse e, conseqüentemente, a revista feminina. A imprensa periódica abriu o espaço para a circulação de opiniões que não dependem únicamente de um conhecimento erudito ou especializado. De 1920 a 1990 muitas mudanças ocorreram, mas as duas décadas são representativas para a história da mulher. A imprensa feminina brasileira na década de 20 se desenvolveu refletindo as necessidades e aspirações de uma classe média predominantemente estabelecida nos centros urbanos. A década de noventa também representa um momento de mudanças no País, onde uma significativa crise de ordem econômica, moral e ética convive com as aceleradas mudanças impostas pela revolução tecnológica, às vésperas da virada do milênio. Jornal da ABI


Uma pesquisa publicada sobre a mulher brasileira ofereceu alguns elementos relativos à presença feminina na sociedade, sua evolução desde a década de vinte até os dias atuais, e considerou que a mulher brasileira, hoje, progrediu, mas ainda está muito distante de ter atingido os seus ideais. Embora os questionamentos sobre a eficácia da revolução feminina persistam, discute-se os efeitos produzidos neste campo. Preliminarmente, as discussões versam sobre a questão do poder do ponto de vista masculino e feminino. Enquanto o homem toma decisões em função do sistema, a mulher age de acordo com as necessidades e capacidades humanas, preconiza a pesquisa Mulher: a grande mudança no Brasil (3). A mulher repele a política partidária e exerce com maestria as funções de executiva nas questões práticas voltadas para a cidadania, marcando a sua ascensão no âmbito da esfera pública. Segundo as estatísticas apresentadas, a mulher 90 ascende a cargos públicos, sendo da ordem de 3,7% a sua participação no Tribunal Superior do Trabalho, 3,4% no Executivo (ministérios), 3,4% nas prefeituras municipais e 11,5% nas prefeituras das capitais; o que leva a crer que é realmente nos centros urbanos que se deflagra as possíveis lideranças dos movimentos emancipacionistas. A consagração da mulher enquanto cidadã começa com a conquista do direito ao voto feminino, no Brasil em 1932, antes mesmo da França e do Japão (1945), Argentina (1946), Suíça (1971) e Liechtenstein (1984). A presença feminina no poder político ocorre naturalmente; com receptividade e concordância dos públicos, masculino e feminino. As ações no exercício de suas funções são marcadas pela dedicação e sensibilidade, mas a unanimidade sobre a igualdade de sexos está longe de ser alcançada. A primeira ministra brasileira, professora Esther de Figueiredo Ferraz, ocupou a pasta da Educação em 1982, onde é notório que funções a exemplo desta eram herméticas para o universo feminino. Do total das mulheres que trabalham, 66% têm nível de instrução acima do nível médio. Atualmente quase todas as universidades públicas brasileiras têm seus núcleos de pesquisa feminina e se interligam a outros centros internacionais produzindo sobre o tema . O CIEC Centro Interdiscipinar de Estudos Contemporâneos -, UFRJ/Escola de Comunicação, mantém uma linha de pesquisa. Paradoxalmente, enquanto a sociedade civil avança e cria os seus próprios métodos e regulamentos, o Estado continua aquém do desenvolvimento social. A Constituição Brasileira de 1988 contemplou a mulher com 28 dispositivos levando a crer na sua ascensão enquanto cidadã. O Artigo 3 da Carta Magna estabelece a igualdade numa sociedade livre dos preconceitos de origem, raça, sexo, cor e idade. Entretanto, enquanto a Constituição avançou, os códigos Civil e Penal continuam colaborando para a dupla

Especial - Barbosa Lima Sobrinho

Numa amostragem de um ano em quatro grandes jornais, dos 3.969 artigos assinados, elas só aparecem com 154. Mas na graduação de comunicação da UFRJ, são 661, enquanto os homens ocupam 478 vagas. Na pós-graduação a maioria se repete: 101 a 73. imagem do país, real e virtual. Alguns aspectos merecem destaque: a virgindade, pelo Código Civil de 1916, não se alterou; prega conforme os artigos 178 e 219 -a virgindade é essencial ao casamento e pode determinar a sua anulação. O Código Penal de 1940 estabelece que a mulher honesta é aquela que somente pratica o sexo depois do matrimônio; causa perplexidade a questão da violência sexual, que aparece no Código de 1940, dando margem a ser interpretado como um simples atentado ao pudor (capítulo dos crimes contra os costumes). Como então contrapor uma Constituição a códigos arcaicos? Como entender que uma Constituição possa ser ameaçada de revisões apressadas por uma representação

política composta de membros que não representam, de fato, a causa e cuja presença feminina não legitima a representação deste segmento? Deste modo, a imprensa periódica feminina continua a refletir uma sociedade onde a ambigüidade está presente, dificultando o desenvolvimento deste segmento social; a maioria ascende por intermédio de um sistema educacional imperfeito e o analfabetismo cultural ainda é mais preocupante. A pesquisa baseada nas 365 edições dos quatro maiores jornais brasileiros, Estado de São Paulo, O Globo, Jornal do Brasil e Folha de São Paulo, mostra que, dos 3969 artigos publicados durante um ano, somente cerca de 154 são assinados por mulheres. No Estado de São Paulo elas não aparecem como articulistas aos domingos, dia de maior circulação do jornal. Entretanto, na mídia eletrônica, a presença feminina é expressiva e demonstra uma participação cada vez maior nos últimos anos. As mulheres repórteres, âncoras, editoras-chefes, apresentadoras e atrizes ascendem cada vez mais. Dentre os cursos responsáveis pela formação dos profisssionais que vão para o mercado de trabalho, o Curso de Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ constata que, dentre os alunos matriculados recentemente, 661 são do sexo feminino e 478 são do sexo masculino; já a Pós-Graduação, dispõe de 101 estudantes do sexo feminino e 73 do sexo masculino, perfazendo um total de 762 mulheres e 551 homens. Nos movimentos sindicais a mulher brasileira está representada nos 5.324 sindicatos urbanos e 14,8% dos diretores efetivos são mulheres. As feministas avaliam o movimento e consideram, por ordem de importância: os ganhos com a abertura do mercado de

trabalho, valorização da mulher pela sociedade, mais autoconfiança e participação da mulher na política, bem como a liberdade de expressão. A imprensa feminina dos anos vinte acena, principalmente, para a emancipação através da presença da mulher na força de trabalho e pelo direito ao voto, mas o movimento emancipacionista tinha contornos bem dirigidos pelo imaginário masculino. As feministas dos anos noventa não falam mais em emancipação, defendida também nos anos setenta. A palavra de ordem é a igualdade na diferença - dando ênfase ao direito reprodutivo. O foco de interesse da mulher se desloca para questões mais profundas. Mas a complexidade continua, e se por um lado tem um peso progressista, por outro é também conservador, se consideradas as diferenças de raça, gênero e classe social. Contudo, a imprensa feminina talvez continue sendo pensada e conduzida pelas classes dominantes que determinan os novos padrões de comportamento. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: (1)SHOWALTER, E. - A crítica feminista no território selvagem. In: HOLLANDA, H.B. (org.) - Tendências e Impasses. 1994, Rio de janeiro: ROCCO (p. 16 a 30). (2) HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). In: Tendências e Impasses - O feminismo em tempos modernos . 1994, Rio de Janeiro, ROCCO (p. 7 a 22). (3) Revista VEJA - Mulher: a grande mudança no Brasil. 1994, agosto/ setembro (edição especial), São Paulo, Edit. Abril. Kátia de Carvalho, diretora da Escola de Comunicação da UFRJ, com mestrado em Ciências Sociais e doutorado em Comunicação.

UMA PESQUISA DOS ANOS 20 Considerada por muitos como uma década que não se contém historicamente em seus limites cronológicos, esse período efervescente motivou um alentado estudo do jornalismo como fenômeno característico dessa fase de transição social, incluindo os aspectos econômicos, políticos e culturais. Realizada em 1981 e ainda pouco conhecida, a pesquisa A imprensa na década de 20 - um projeto do Centro de Pesquisa de Memória do Jornalismo Brasileiro, da ABI, financiado pela Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) - está à disposição como fonte de consulta na Biblioteca Bastos Tigre (12º andar), da ABI. Análises, entrevistas com jornalistas militantes nos anos 20 e estudos de caso historiando quatro jornais (Jornal do Commercio, O Globo, Correio da Manhã e A Nação), além de uma relação com os mais de 100 jornais e 175 revistas existentes à época, estão reunidos num volume com mais de 450 páginas de pura história da imprensa na então capital da República. Com o objetivo de “identificar o comportamento e o desenvolvimento da

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imprensa no período imediatamente posterior à primeira guerra mundial - até a crise econômica de 1929 e a Revolução de 30 levantando e interpretando dados relacionados com a evolução histórica, as transformações econômicas e técnicas, o perfil social e urbano, os aspectos da ideologia e as condições de implantação de uma sociedade industrial no Brasil”; a pesquisa A Imprensa na década de 20 teve como supervisor o professor Antonio Idaló Neto, foi coordenada, na fase de execução, por Ivan Alves, e o projeto de pesquisa elaborado por Nilson Lemos Lage. Mais de 30 pessoas ajudaram na sua realização (entre jornalistas, professores e estagiários concursados) e foram levantados os acervos das principais bibliotecas (inclusive a Nacional), além da contribuição particular de intelectuais do porte de Antonio Houaiss e Plínio Doyle. São dez capítulos, sem contar o de bibliografia. O 1º, 5º e 6º ficaram sob a responsabilidade direta de José Nilo Tavares, respectivamente: Visão geral

da sociedade e da imprensa na década de 20, Estudo de caso - A Nação, e Gênese do Império Associado. Maria Alice de Aguiar Medeiros assumiu o 2º capítulo, outro estudo de caso que enfoca o Jornal do Commércio (Construção do perfil). Maria Alice de Carvalho respondeu pelo 3º, que analisa O Globo. Maria Célia Freire de Carvalho assinou o 4º capítulo, sobre o Correio da Manhã. Ivan Alves foi o responsável pelas entrevistas, no 7º capítulo, com onze jornalistas atuantes na imprensa dos anos 20, figuras notáveis como Afonso Várzea (cronista esportivo Max Valentim do A Noite) e Alvaro Cotrim Neto (Alvarus, caricaturista). Ana Maria Palma escreveu o 8º capítulo Cronologia nacional e internacional na década de 20. O 9º capitulo, que apresenta o Cadastro das Publicações (jornais, revistas, boletins e anais), reuniu Maria Alice Aguiar, Maria Alice Carvalho, Maria Célia Freire, Ana Maria Palma e o estagiário João Luiz Ribeiro. E o 10º capítulo, dedicado a documentos fotográficos, levou a assinatura do fotógrafo Luiz Paulo Machado.


O PROBLEMA DA IMPRENSA: A EDUCAÇÃO No último capítulo do livro de 1923, demonstração de atualização na defesa de princípos éticos Barbosa Lima Sobrinho Quem chegou ao fim de seu trajeto, de si mesmo indaga se caminhou bem e se valeu o esforço. Mas será essa uma questão que ele não pôde resolver com os recursos de seu próprio julgamento. De si mesmo deve apenas o viandante procurar a recordação das vias percorridas, para ter de todas as paisagens uma vista de conjunto, na qual se integrem os montes cheios de arestas e os vales cortados de ribeiros, que tudo isso viu, ao longo de sua viagem, esse caminheiro. A mim próprio só me pergunto se a imprensa é culpada de todos os males que lhe imputam, ou autora de todos os benefícios que vai semeando com despreocupação. E só me acode a resposta de que ela vale como a peça indispensável de um maquinismo, forçada ao movimento de outras peças e ela própria fazendo girar, nos seus eixos, outras rodas. Há jornais maus, dissemos; a imprensa, todavia, é boa. Confessemos que se acha ao alcance de fatores perniciosos, capazes de perturbarem a sua eficiência e de anularem a sua utilidade. De onde vem essa força perturbadora e nefasta? Do público, da própria imprensa e do governo. Primeiramente do público, para quem se faz o jornal. Ele manda nas gazetas e são as suas paixões, as suas tendências e idéias que a folha reflete como um espelho. Um autor nos diz que o jornal é mais dos seus leitores do que dos seus redatores, ou proprietários. Debalde se esforçaria uma imprensa para se avantajar ao povo a que servisse. As necessidades a obrigariam a encurtar tais distâncias e a aproximar-se de seus leitores. Se todos os jornais não se modelam por uma forma única, é que há a diferenciação das classes sociais, manifestada na imprensa. Os jornais discretos e moderados servem ao escol; para a populaça, há folhas ardentes, agressivas, ásperas. A imprensa inglesa nos deixa uma impressão melhor por ser a mais aproximada da moderação; mas em nenhum país se observa menos diferenciação social, apreciada sob um critério de elevação moral e intelectual. Já na França encontra-se um escol admirável e a massa tumultuária; a imprensa toca os dois extremos, o da serenidade e o da virulência. No Brasil, as folhas discretas impressionam as classes elevadas, mas falham completamente diante do grande público. Há, em segundo lugar, a culpa do governo. Ou por meio dos comunicados franceses, ou das subvenções com que Bismarck mantinha a “reptile press”, a autoridade intervem no jornalismo e concorre, pelo suborno, para a sua perversão. Não escapou o nosso país do flagelo. Conhecemos os processos da subvenção e os da concessão de favores, ou empregos. Encontrando-se sem o apoio de uma imprensa de partido, o governo corrompe jornalistas com que se defender. Criou, com esses processos, em torno da administração, o assédio natural

dos negocistas, que possuem gazetas apenas como um instrumento de vitória. De quando em quando, ou para a defesa de atos escandalosos, ou para a propaganda de candidaturas políticas, um derrame de dinheiro sitia a honestidade dos homens de imprensa. Nos momentos necessários, pratica-se o sistema dos envelopes fechados, com que fazer silenciar, diante das trapacices formidáveis, o protesto dos jornalistas e o escândalo conseqüente. Por último, vemos a culpa dos próprios jornalistas. Alguns sentam praça na imprensa com o intuito premeditado das negociatas; outros cedem, como Fausto, às facilidades que os Mefistófeles oferecem; outros anulam o prestígio de

“Os americanos instituem escolas de jornalistas, para o preparo de profissionais competentes.” sua honestidade com os excessos de linguagem, as leviandades, a volubilidade de suas dedicações políticas ou de suas opiniões. Não se lembra o jornalista, nas suas atitudes, de que está agindo como num palco, diante de um público atento e rigoroso. Desconhece que a sua missão social exige de sua parte compostura; ignora muitas vezes que deve servir a causa pública, sacrificando-lhe as suas questões pessoais e as suas inimizades. O desconceito do jornalista se reflete imediatamente no seu jornal e até mesmo em toda a imprensa. Ainda hoje se fala no Corsário quando se quer atacar a imprensa, sem se atender a que se tratava de uma folha que chamava a atenção por ser a única no gênero. Para os defeitos que se registram na imprensa há, pois, muitos responsáveis e não é possível emendá-la agindo tão somente contra um dos três culpados. É necessário cuidar de providenciar para os outros. Mas elevar o público, educá-lo, corrigindo-lhe a moralidade, não é obra para uma geração. Às vezes resulta impossível. Convencer também os governos de que não devem usar do suborno, depende de vários fatores, pois pode suceder que a corrupção seja menos nefasta do que a inação. Se tal não se der acreditamos pouco nos benefícios do suborno - há vários problemas de ordem moral que resolver diante da pessoa dos governantes. Nem todos sabem colocar a segurança de sua consciência acima dos reclamos e dos receios de sua vaidade. Certos dessa dificuldade, vários legisladores pensam em evitar todos os males criando para a imprensa uma situação especial, mediante providências que impeçam a atuação daquelas causas de ordem social. Faz-se cair sobre o jornalismo o peso de toda

responsabilidade, da própria como da alheia. Ele é punido pelo que faz e ainda pela culpa do público a que serve e do governo que o corrompe. Eis aí o intuito de leis de imprensa severas: eis aí a revoltante injustiça dessas medidas de arrocho. Mas há uma compensação: a ineficácia dessas leis opressoras. Os fatores de ordem natural zombam dos artifícios. A sua força invencível desbarata o exército de providências repressivas que não procuram agir nas próprias fontes do mal. Não se desvia facilmente o curso de um rio junto de sua foz; a inteligência manda que se remonte ao tênue veio d’água que escorre por entre a relva. Há defeitos na imprensa incorrigíveis e diante dos quais é preciso cruzar os braços, pelo receio dos danos imensos que qualquer intervenção acarretaria. Esclareça-se ao espírito público, difunda-se a instrução e entreguese à educação o preparo de caráteres; à medida que esse esforço venha atuando, a imprensa naturalmente se elevará. Convem igualmente agir sobre a imprensa, mas não com uma legislação drástica. A prudência, que dirige os homens sábios, desaconselha os meios violentos. Ela quer que a medida seja moderada para ter eficácia. Uma legislação arbitrária destruirá a imprensa e isso representa um mal infinitamente maior do que a licenciosidade do jornalismo; enquanto que uma lei sensata conterá a imprensa sem anular o direito de crítica. Lei sensata será aquela que evitar à imprensa todo o perigo de violência e de injustiça, garantindo-a na sua liberdade e nos seus direitos, para que ela não entibie a sua ação social pelo receio das penalidades. Vários princípios nos foram revelados pela experiência como escudos da liberdade de imprensa. Um é o julgamento, pelo júri, dos abusos dessa liberdade, como vemos na prática das nações livres e na doutrina dos grandes escritores. Outro, é a prova da verdade das imputações permitida toda a vez que se tratar de um funcionário público acusado em virtude de seu cargo. Terceiro ponto fundamental, é o respeito às classificações de delitos do direito comum, evitando-se a criação de delitos especiais de imprensa. Privada de qualquer uma dessas colunas, não há lei de imprensa: há lei contra a imprensa, contra a liberdade de opinião, contra o direito de crítica, lei destinada a uma existência breve, porque a odiosidade que a há de cercar, a antipatia que necessariamente provoca, farão odiosos e antipáticos todos os que dela se utilizarem. Outra lei virá, outra lei sensata, justa, conveniente. Mas não basta uma lei. Há outros meios úteis. Os americanos instituem escolas de jornalistas, para o preparo de profissionais competentes, uma vez que à ignorância cabe tanta parte de culpa nos males da imprensa. Eles também usam os congressos em que se dispõem preceitos de ética para o governo de todos. Já dois códigos podem ser apontados: do Estado de Kansas e o do Estado de Oregon. O

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intuito real desse esforço no-lo explica o Sr. Allen, em resposta a críticas do NewYork Times: “Os códigos escritos são instrumentos de educação”. A sua influência na América será maior do que no Brasil. O americano tem a capacidade de se dirigir por preceitos de moral que ele pendura na parede de seu quarto. A nossa irreverência nesse particular nos faria achar ridícula a submissão de nossas almas a pedaços de papelão. Que fazer? Somos um povo que se preza de ceticismo e de elegância espiritual. No dia que o jornalista tiver a noção completa de sua responsabilidade e de sua atuação social, provavelmente se sujeitará a normas escrupulosas de ética. Evaristo

“Vários princípios nos foram revelados pela experiência como escudos da liberdade de imprensa. Um é o julgamento, pelo júri, dos abusos dessa liberdade, como vemos na prática das nações livres e na doutrina dos grandes escritores.” da Veiga compreendeu toda essa responsabilidade e por isso se orientou superiormente em meio da agitação do Primeiro Império e da Regência. De sua pena saiu certa vez esse precioso código de ética jornalística: “Respeite-se a lei sem ficção, ou subterfúgios de chicana; respeitem-se os cidadãos para que haja tranqüilidade e confiança; sirvam os jornalistas de instruir e não de ofender e perturbar; estendam os escritores um manto de silêncio sobre todas as contestações pueris e indecentes, que tanto escandalizam e irritam os espíritos; argumentem mas não insultem. Moderação nos escritos; verdade nas doutrinas; decência no estilo; instrução; moral, mais moral, muita moral”. Quem teria mais autoridade do que Evaristo da Veiga para traçar esse programa de ação? Mas não há forças humanas que realizem a sua aplicação instantânea e os recursos divinos, desde o paraíso, deixaram provada a sua ineficácia. No homem existem mais instintos do que inteligência e os freios morais nem sempre funcionam. Todavia, ainda veremos algum dia o legislador que há de escrever a lei em cujo artigo primeiro se dirá: “Fica proibido ao homem o sentimento da maldade”... Do livro O problema da Imprensa, de Barbosa Lima Sobrinho, publicado em 1923.

Jornal da ABI


EM 31 ELE UNE A CATEGORIA E A PRÓPRIA ABI Mais jovem presidente, em 26, volta em 30 e renuncia para garantir a fusão em uma só entidade Edmar Morel (...) Ao assumir a presidência da ABI, com menos de 30 anos, era redator-chefe do Jornal do Brasil, onde trabalhava desde abril de 1921. Moço, dono de extraordinária força de vontade, com elevado espírito associativo, Barbosa tinha uma meta ao substituir Raul Pederneiras: servir à classe. A nação voltava aos dias de inquietação vividos no tempo de Bernardes. O presidente Washington Luís seguia política surda ao clamor público, governando de uma torre de marfim, sem perceber os descontentamentos que iam crescendo, valendo-se da incompreensão dos governos. Dinâmico e contando com o apoio da diretoria, inclusive de João Mello, que era o vice, Paulo Filho, procurador, Barros dos Santos, tesoureiro, convocou uma assembléia geral para reformar os estatutos, regulamentou a concessão da carteira e título de sócio, estabeleceu intercâmbio com as associações de imprensa dos estados, criando-se, desta maneira, um elo entre os jornalistas brasileiros. Atraiu novos valores para a ABI, na certeza de que, em breve, os quadros seriam renovados. Exercendo influência na antiga prefeitura do Distrito Federal, da qual o Jornal do Brasil era o órgão oficial, reiniciou as démarches para obter a escritura definitiva do terreno doado à ABI pela prefeitura, para a sua nova sede social,

Descumprimento de um item do acordo de unidade, em 31, fez Barbosa se afastar da ABI até depois da morte do conselheiro rejeitado. Só voltou em 74. num pedaço de morro do Castelo, que há anos vinha sendo demolido. Existiam sobre o assunto duas leis dúbias de 1921 e 1922. Baseado num parecer contrário do procurador Miranda Valverde, Adolfo Bergamini, interventor no Distrito Federal, não dava solução ao caso. Note-se que Bergamini era jornalista, tendo participado do primeiro congresso da classe em 1918. Todavia, em face dos obstáculos criados pela máquina burocrática da Municipalidade, apoiada num documento várias vezes contestado, o caso do terreno caiu em ponto morto. Barbosa Lima não desistiu. Voltou ao assunto e o processo foi desarquivado. Meio caminho andado para a ABI ter a sua atual sede na esplanada do Castelo. Ao terminar o seu mandato, em 1927, quando foi eleito Gabriel Loureiro Bernardes, não

Especial - Barbosa Lima Sobrinho

escondeu o seu desencanto: “Há uma ilusão curiosa a respeito da Associação Brasileira de Imprensa. Acreditam todos que ela possui elementos de incomparável prestígio, por ser um núcleo de jornalistas e por se presumir que a favor da Associacão se manifeste a força irresistível da publicidade. Eis um engano completo. Se há uma sociedade sem prestígio junto ao jornalismo é a sociedade de jornalistas. Mais facilmente conseguiremos publicar nas gazetas a notícia de um clube carnavalesco do que o relato sumário e impessoal dos nossos trabalhos. Junte-se à quase inacessibilidade da divulgação, a constância e a minuciosidade da crítica. Os menores atos desta casa são investigados sem espírito de tolerância. Como se não bastassem esses obstáculos, temos ainda que vários dos nossos consócios desejam que a Associacão seja para eles como que uma caixa de repercussão de suas atitudes. Se a Associacão cede a esses intentos, embaraça-se num cipoal de interesses e de paixões; se resiste, desagrada o solicitante que por isso lhe moverá guerra. Creio que esses fatos são comuns a todas as sociedades. Uma circunstância, porém, se destaca e agrava em nosso caso particular: é que somos uma associação onde as menores divergências se ostentam livre e espetacularmente pela publicidade. Eis porque o principal encargo de uma diretoria será menos administrar do que atenuar e reduzir esses conflitos, resolver os incidentes pessoais, amansar a reação das vaidades feridas, fornecer favos de mel aos melindres...” Eleito presidente para um segundo mandato na ABI (1930-1932), seu primeiro cuidado foi cogitar de uma boa instalação para a nossa entidade que, na ocasião, tinha a sua sede na rua do Rosário, depois de haver ocupado um segundo andar na rua 1º de Março. Foi, então, que vagou o primeiro andar na rua do Passeio, em que até então havia funcionado o Clube dos

" Moço, dono de extraordinária força de vontade, com elevado espírito associativo, Barbosa tinha uma meta ao substituir Raul Pederneiras: servir à classe." Democráticos, que ali realizava os seus bailes extraordinariamente concorridos. Alguns diretores visitaram o local achando-o excelente, e a ABI não demorou em fechar o contrato de locação. O bibliotecário, que era o escritor e poeta Carlos Dias Fernandes, não contendo o seu entusiasmo, exclamou, com a voz poderosa que o caracterizava: - Aqui caberiam os exércitos de Xerxes! Barbosa Lima passou a considerar o problema da unidade da classe dos jornalistas. Havia, naquele tempo, além da ABI, duas outras entidades: o Clube da Imprensa e a Associação da Imprensa Brasileira. A primeira contava com o grande prestígio da família Motta Lima, com os irmãos Rodolfo e Pedro, e com seu presidente, que era Carvalho Neto, em plena atividade na chefia da redação de A Noite. A Associação da Imprensa Brasileira, fruto de uma dissidência numa das eleições da ABI, tinha à sua frente um médico baiano muito atuante, Alvim Horcades. A presença das três entidades prejudicava a ação de todas. Bastava uma delas tomar uma atitude e corria o risco de se ver desautorada pelas outras. Barbosa Lima ficou muito impressionado quando, por ocasião de um congresso de História do Brasil, ao verificar que a ABI

BARBOSA LIMA, ETERNO CONSELHEIRO DA ABI José Texeira Peroba O presidente Barbosa Lima Sobrinho faz parte do Conselho Administrativo da ABI, independentemente de concorrer a qualquer eleição para esse fim. Muitos associados não sabem que o Dr. Barbosa Lima é conselheiro nato desde 1931 quando, com a fusão das entidades, ficou acertado que os três presidentes passariam a conselheiros vitalícios. Assim sendo, ao invés de 45 integrantes, o Conselho da ABI tem, no momento, um efetivo de 46 membros para deliberar sobre as matérias de sua competência. A partir de 22 de março de 1949, todos os ex-presidentes da Associação

Brasileira de Imprensa - só até aquela data - foram considerados conselheiros natos, por força do artigo 50 - inciso III do estatuto, dispositivo aprovado em Assembléia Geral instalada em dezembro de 1948 e encerrada em março do ano seguinte. Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho, único remanescente dos expresidentes antes de março de 1949, aos 100 anos de idade - para felicidade nossa continua valorizando o colegiado do Conselho da ABI, já tendo sido, inclusive, seu presidente por um bom período anterior a 1978. José Teixeira Peroba, jornalista, conselheiro e tesoureiro da ABI.

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não recebera nenhum convite, tomou a liberdade de indagar a razão dessa ausência, e Max Fleiuss, secretário perpétuo do Instituto Histórico respondeu que havia três associações de Imprensa e não sabia a qual delas deveria dirigir o convite. Isso levou o presidente a pensar que a perplexidade dele deveria ser generalizada, transformando-se em perda de prestígio e de significação para toda a classe de jornalistas. Resolveu, então, lutar pela unidade da classe e foi procurar Carvalho Neto e Alvim Horcades, propondo a união das três entidades numa só que, pela antiguidade, bem poderia ser a ABI. E, para que não houvesse nenhum constrangimento, propôs que todos renunciariam aos cargos que exerciam, acompanhados das diretorias a que pertenciam, organizando-se, então, uma nova diretoria, por comum acordo entre os três presidentes das diretorias que representavam. O plano foi aceito, redigiu-se um protocolo e, por comum acordo de todos, foi escolhido o futuro presidente da ABI rejuvenescida, como candidato unânime, o então diretor-tesoureiro de O Globo, Herbert Moses. Mas no acordo figurava uma condição, que seria a eleição dos três presidentes resignatários para membros natos do conselho administrativo da nova ABI. Na assembléia geral para a aprovação do acordo, o nome de Alvim Horcades foi combatido por uma numerosa corrente que o conseguiu vencer. Carvalho Neto e Barbosa Lima Sobrinho foram eleitos membros natos da ABI. E essa exclusão criou uma situação difícil. Barbosa Lima Sobrinho empenhou-se quanto pôde pela eleição de Horcades. Mas, uma vez derrotado, não queria que se pudesse pensar que tivera qualquer responsabilidade pela derrota que atingira Horcades. E para isso só encontrou uma solução, que seria também o seu afastamento da ABI, não tomando posse no Conselho. Manteve-se afastado enquanto viveu Alvim Horcades, em testemunho de sua solidariedade. O golpe de Estado de 1964 trouxeo de novo à nossa velha entidade. Barbosa Lima compreendeu que estava em causa a necessidade da unidade de toda a classe. No longo período em que estivera afastado da ABI, não via razão para combatê-la. Também não fazia restrições a Herbert Moses que soubera atravessar períodos difíceis, sempre interessado na sorte dos jornalistas, como defensor da liberdade de imprensa. O que mais prestigia a ABI é a certeza de que, em todos os tempos, ela sempre lutou em favor da classe e em prol da liberdade da imprensa, com uma tal continuidade e persistência que nos dá o direito de esquecer os nomes de seus dirigentes, para pensar, apenas, na firmeza de um corpo social que impõe a todos a defesa dos nossos ideais. (...) Do livro A trincheira da liberdade - História da ABI, do jornalista e escritor Edmar Morel. 1985, Rio de Janeiro, Editora Record.


Marca dos 100 anos

A VIDA DE BARBOSA... José Augusto Ribeiro: Em 26 publica um livro de contos e crônicas chamado “A árvore do bem e do mal”. O tema do livro é mulher; a mulher é a árvore do bem e do mal. Ele já se revela um feminista, mas não se percebe ali nenhum vínculo afetivo dele. Porque ele era muito tímido. André Motta Lima: E engraçado que ele se revela - logo que se forma em Direito e tem que fazer um jornalzinho de crítica aos colegas - como misógino, com um verdadeiro pavor a mulher por conta da timidez. J.A.R.: Mas na crônica em que ele se despede de Pernambuco, ele diz assim: “Quero agradecer às gentis amigas que me suportaram tanto, inclusive dançando comigo nos bailes, eu com o meu desajeitamento, com a minha timidez...”. Mas eu acho que ele fazia algum sucesso, porque, por exemplo, nesse livro de contos e crônicas, ele inclui uma conferência que ele fez, com o título “Os inimigos da mulher”, num curso que tem o nome de uma senhora, que era um curso de declamação. Quer dizer, ele foi o “bendito fruto”, o único homem numa tertúlia de mulheres num curso de declamação... Ana Arruda: Os tímidos fazem sucesso com as mulheres, eu posso assegurar... A.M.L.: Basta dizer que quando ele chegou na redação de O Dia, ano passado, para um jornal especial que a gente fez, ele fez o maior charme com as mulheres, disse que nunca tinha visto tantas mulheres numa redação... Fez o maior sucesso. J.A.R.: É...Outro dia foi uma equipe de televisão filmar com ele. Aí ele ficou olhando e quando saíram disse: “Olha só o avanço das mulheres, que coisa boa, não é?” Eu disse: “É, dr. Barbosa...”. E ele disse: “Os homens lá eram só para carregar as câmeras. Todo o trabalho intelectual era das mulheres...” A.A.: A questão da poesia. Ele, quando começou a namorar a Maria José namorar não, não se namorava naquele tempo, cortejar muito respeitosamente... - escreveu pelo menos uma que ela lembra. Sobre as violetas, porque ela gostava de violetas, para ela. Ele fez poesia? J.A.R.: Ele não fala nunca nisso. Eu tenho muita vontade de perguntar, mas ainda não tive coragem. Olha, o que eu descobri não Especial - Barbosa Lima Sobrinho

foi porque ele contasse, não. Foi porque eu fui fuçar os quatro mil artigos dele. Poesia publicada não encontrei nenhuma. Alguns textos de prosa poética isso sim, mas poesia não vi nenhuma publicada. Bom, em 27 tem uma coisa que eu acho que vale a pena registrar. Que eu também fui descobrir pelos artigos dele. Ele já se interessava pela questão do petróleo. Num artigo posterior ele menciona um livro, de 1921, de um escritor europeu sobre a questão internacional do petróleo. Num outro artigo, de 1925, ele trata de um livro do professor espanhol de Direito Internacional chamado Camillo Barcia Trelles que trata da política exterior dos Estados Unidos no pós-guerra. Foi uma série de conferências desse professor na Universidade de Salamanca. O dr. Barbosa termina o artigo dizendo assim: “O professor Barcia Trelles promete que na próxima série de conferências, que deve ser também publicada em livro, vai tratar da questão do imperialismo petrolífero”. Imperialismo petrolífero, em 1925! Em 1927, o Jornal do Brasil publicou uma série de artigos do professor Solidônio Leite, que era um grande jurista, um grande estudioso dessas questões, que já defendia não só a nacionalização dos recursos petrolíferos do Brasil como a solução estatal. Já era o projeto da Petrobrás. Já era a lei 2004, antecipada para 1927. Foi uma série de artigos muito bem documentados. Só em 1963 - acho que foi quando morreu Solidônio Leite, no enterro dele, o cônego Olímpio de Melo mencionou esses artigos, dizendo que

"Estava apaixonado...ele demorou, foi uma corte pesada...ela endureceu o jogo. O pai não ia deixar ela casar."

Lorde Curzon, que eu acho que foi ministro do Exterior inglês, que dizia que “a Primeira Guerra Mundial foi ganha em cima de ondas de petróleo”. E o Clemenceau, que dizia: “Assim como a última, as próximas guerras vão exigir tanto o sangue dos combatentes quanto o petróleo das nações”. Então ele já estava de olho posto nisso e teve a modéstia de publicar os artigos de Solidônio Leite, que conhecia mais a questão. Em 28 ele estava muito cansado, magro, a vida dele era muito espartana, até porque o pai dele tinha morrido em 25 e ele sustentava a mãe, quatro irmãs e dois irmãos. Então, o pessoal no jornal disse “Olha, você precisa tirar umas férias, dar uma descansada...” E ele foi para Cambuquira. Agora, por quê para Cambuquira? Eu imagino que já na época os jornais tivessem esses convênios com os hotéis, permutas... Em Cambuquira encontrou a dona Maria José. Quando ele volta de Cambuquira, sai um artigo dele - ele já escrevia todos os domingos no Jornal do Brasil, quer dizer, o que começa em 27 é a publicar os artigos no domingo, mas antes ele já escrevia pelo menos uma vez por semana - e o que escreve não é sobre petróleo, não é sobre guerra, não é sobre o interesse nacional mas sobre “Cambuquira, a cidade amada do sol”.

J.A.R.: Aí algumas irmãs dele já tinham chegado em idade de trabalhar. Ele conseguiu emprego para as irmãs, porque também tinha que conseguir. Eu não sei em que época de 30 foi esse encontro de Cambuquira, mas ele foi do Rio para São Paulo, em plena Revolução de 30, porque era o aniversário dela, 23 de outubro. Ele foi dias antes. A Revolução estava em andamento, mas entre São Paulo e Rio havia comunicações. Ele estava em São Paulo no dia 24 de outubro, quando a junta militar aqui no Rio depôs Washington Luís. Aí a Revolução tomou conta de São Paulo e ele não pôde sair de São Paulo. E também não pôde continuar no hotel, porque acho que o apartamento dele estava reservado para outra pessoa e ele teve que entregar. Então o dr. Horácio, pai dela, convidou-o para ficar na casa deles. Ele diz: “E aí, graças à Revolução, eu fiquei na casa de Maria José!” Mas já estavam noivos.

Era aniversário da noiva na época da revolução de 30. Aí o pai convidou e ele ficou hospedado na casa dela.

A.A.: Estava apaixonado... Porque ele demorou, foi uma corte pesada... Ela endureceu o jogo e, principalmente, o pai... O pai tinha uma ligação com ela enorme e não ia deixar ela casar.

quem fez publicar esses artigos foi o Barbosa Lima Sobrinho - o dr. Barbosa escreveu um artigo dizendo: “De fato, fui eu que convenci a direção do jornal a publicar. O que eu não sabia, e agora nesse discurso fúnebre o cônego Olímpio de Melo revelou, é que quem pediu que o Solidônio Leite escrevesse esses artigos foi o general Olímpio da Silveira.” Que era ou o chefe do Estado Maior do Exército ou um dos homens principais do Estado Maior do Exército. O Exército estava preocupado com a questão do petróleo. Aí ele dizia assim: “Então, nós temos que prestar homenagem, não só ao Solidônio Leite, como ao general Olímpio da Silveira e ao grupo de militares que já se preocupavam com isso.” A questão da siderurgia foi a mesma coisa, nasceu no Exército. Então, já em 1927 ele fez publicar, no Jornal do Brasil, uma série de artigos em defesa do que é hoje a lei 2004. E a gente vê que ele conhecia bem o assunto, ele não escrevia muito sobre, mas ele conhecia bem o assunto. Ele cita aquele

estação. E dois anos depois voltam a Cambuquira e encontram esse general, que avisa o dr. Barbosa e ele vai já para pedir em casamento.

J.A.R.: E ele também não tinha condições de casar porque era arrimo de família. Tanto que ele diz assim: “Eu não avancei mais nesse primeiro encontro porque eu não podia assumir compromisso.” Então ele escreve “Cambuquira, a cidade amada do sol”, em que ele fala só sobre Cambuquira. Depois tem um outro: “Carta para longe”, que aí é o torpedo direto. Torpedo aberto. E tem um terceiro, que é “Consulta psiquiátrica”, que é uma crônica, toda dialogada, em que um paciente chega num psiquiatra e o psiquiatra diz assim: “Meu amigo, qual é o problema?” E ele diz: “dr. o problema é o seguinte, é que eu estou aqui e não estou aqui”. E como é que é, como é que não é? Aí acaba, mais ou menos assim, o médico dizendo: “Olha, meu filho, o jeito é o seguinte: não brigue com aquele que está lá, vá para lá, junte os dois lá”. Claramente a coisa voltada para ela. E ele recebia notícias dela por um vizinho, que era o comandante Góes, se eu não me engano, que ia muito a Cambuquira e era o serviço de informações dele. A.A.: Ela foi com a mãe, que precisava de banhos, aquela coisa. E no outro ano não foram para Cambuquira, foram para outra

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A.A.: E o dr. Horácio queria observá-lo, o dr. Horácio parece que queria ficar de olho, perto. Mandou investigar a vida dele... J.A.R.: Sim, mas antes do dr. Horácio mandar investigar, sabe o que ele fez? Ele era muito amigo dos deputados da bancada de São Paulo, porque ele cobria a Câmara dos Deputados, fazia a coluna “Coisas da política”. Então ele foi falar com os deputados de São Paulo assim: “Quando vocês encontrarem o dr. Horácio, falem bem de mim.” A.M.L.: O Horácio era o quê em São Paulo? A.A.: Advogado de grandes companhias. E foi presidente também de uma companhia importante em São Paulo... J.A.R.: Mas era membro da executiva do Partido Republicano Paulista. Amigo pessoal do Washington Luís, era uma figura influente... Tanto que um dos irmãos de dona Maria José lutou na Revolução de 32. O pai não, porque ele não estava mais em idade disso. Então o dr. Barbosa só pôde voltar para o Rio depois, quando as coisas acalmaram. Por isso ele não estava no Jornal do Brasil quando o Jornal do Brasil foi atacado. Num momento da Revolução, aqui, quando a junta militar tomou o poder, o Jornal do Brasil foi atacado e ele não estava. Há um intervalo nos artigos dele, por censura, e aquilo tudo não dava para escrever. Então em 31 ele foi a São Paulo, casou com a dona Maria José e vieram para o Rio de Janeiro.


MARIA JOSÉ, COMPANHEIRA DE LUTA Atrevida, começou a dirigir aos 17 anos, numa época em que "não ficava bem" estudar com rapazes Ana Arruda Callado Atrás de todo grande homem há uma grande mulher? Negativo! Se fica atrás, não ajuda em nada, não participa de nada, não é nada. Ao lado do grande homem que é Barbosa Lima Sobrinho há uma mulher solar, luminosa, que é dona Maria José Pereira Barbosa Lima. Durante algum tempo eu também achava que aquela senhora sempre vestida com discreta elegância, sorridente, que comparecia às cerimônias ao lado do marido ilustre fosse uma sombra dele. Uma dessas mulheres que se tornam apenas a sra. Fulano de Tal. Ao conhecê-la melhor, vi outro aspecto de Barbosa Lima Sobrinho, ou de Alexandre, como ela o chama. Ele é do tipo de homem que não quer ninguém atrás, que não quer sombra. Quis e tem companheira, complemento e não suplemento. Maria José nasceu em família paulistana de recursos financeiros e intelectuais; era a mais velha de oito irmãos. Mais velha e líder. Tendo tirado carteira de motorista aos 17 anos, levava a mãe e os irmãos até a praia, em Santos, depois da missa; um escândalo naquele tempo. O pai, embora homem severo, fazia que não via. Porque, para ele, Maria José podia tudo. “Não peça a lua a seu pai, que ele vai

tentar buscar!”, dizia a mãe, bemhumorada, à filha atrevida demais para a época. Doutor Horácio Pereira adorava a filha, mas não a deixou fazer o curso de Direito, que ela tanto quis. (Mesmo dessa única decepção confessa, Maria José fala tentando justificar o pai.) Não ficava bem para uma moça freqüentar curso que só tinha rapazes. Era ciumento o cacique do Partido Republicano Paulista. Tanto que desencorajou o quanto pôde o casamento da filha com o jornalista que a cortejara na estação de águas de Cambuquira. Mandou investigar o pretendente, a essa altura já intelectual conhecido, redator-chefe do Jornal do Brasil. Só obteve opiniões favoráveis. Filho exemplar, profissional competente e respeitado, homem inteligentíssimo. Com essas recomendações, Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho chegou para pedir a mão da moça. Doutor Horácio tenta convencê-lo de que o casamento não seria bom para ele: - O senhor veja, minha filha não sabe cozinhar, não sabe costurar, não sabe passar uma peça de roupa. - Se eu quisesse uma empregada, doutor, eu não viria falar com o senhor. Trabalho no jornal que tem a maior seção de classificados do país. O casamento aconteceu em São

Paulo, em 1931. Até hoje os dois acham que foi muito bom negócio. Maria José desenvolveu importantes obras sociais durante toda a vida. Quando dr. Barbosa foi governador de Pernambuco, criou a Campanha Pernambucana PróInfância, a mais vasta e eficiente ação de combate à mortalidade infantil e de educação popular que se fez no Brasil. E sua maior façanha foi mobilizar centenas de senhoras da sociedade pernambucana que antes se recusavam a encarar a pobreza da gente de sua terra. Muitas delas torciam o nariz para a primeira-dama paulista e muitas outras eram esposas de inimigos políticos do governador. -Eu não entendo nada de política. Dizia logo a elas que não queria saber nada de política. Queria era ajudar as crianças. Mas só sei que, trabalhando comigo, elas foram conhecendo Alexandre e, quando ele deixou o governo, não tinha mais nada de oposição. Há mais de 50 anos o casal mora na rua Assunção, em Botafogo, zona sul do Rio. Em uma casa construída por Maria José. Ela escolheu e comprou o terreno, fez a planta, contratou um mestre-de-obras, comprou todo o material. O marido tinha notícias do andamento da obra, mas sequer ia dar uma olhada. Pronta a casa, Maria José queria, evidentemente, se mudar para lá.

O marido não dizia sim nem não. Um dia, depois de tudo lustrado e encerado, ela perdeu a paciência: - Alexandre, hoje eu vou dormir na casa nova. Já está aí na porta o caminhão que contratei para levar minha mobília, minhas roupas, meus objetos pessoais. Vou dormir lá hoje. - Você vai mesmo, Maria José? - Você me conhece. Vou. Após uns instantes de silêncio: - Maria José, você pode levar hoje mesmo todos os meus livros? - O caminhão está aí. É só mandar eles embalarem tudo. - Ah, bom. Então eu vou dormir lá também. Essa história não consta do livro dona Maria José. O melhor dela é exatamente que me foi contada por Maria José há apenas uma semana (final de março). E ela ria muito ao contá-la. É esta relação entre Barbosa Lima Sobrinho e Maria José que eu chamo de complementar e não suplementar. Duas pessoas formidáveis construindo juntos a vida. Ana Arruda Callado, professora, jornalista, integrante do Conselho da ABI e autora, com Denilde Leitão, da biografia de Maria José Pereira Barbosa Lima.

A FOLHA DE SP

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Jornal da ABI


MEU QUERIDO AMIGO O filho Fernando lembra do pai quando o fez ler quase toda a obra de Machado de Assis aos 10 anos: melhor que o "terror" de Dorian Gray aos 7 Fernando Barbosa Lima Sete da noite. Estávamos terminando de jantar na mesa grande da casa de Botafogo. Meu pai, eu e meu irmão Roberto. Minha mãe, Maria José, tinha ido a São Paulo junto com meus irmãos menores para visitar meu avô Horácio, já em seus últimos dias. Papai fez uma proposta irrecusável: vamos ao cinema? Ele mesmo escolheu o filme - O Retrato de Dorian Gray, história de Oscar Wilde. Para uma criança, eu estava entre 7 ou 8 anos, foi um verdadeiro filme de terror. À noite, com medo, vendo em todos os cantos o terrível retrato de Dorian Gray, acabei dormindo na cama de meu pai. Na verdade, ele nunca chegou a pensar que poderia ser um filme de terror. Ele só via a qualidade do texto e a imaginação fantástica de Oscar Wilde. Era assim quando, aos 6 anos, eu o ouvia ler as histórias mais tristes e dramáticas de Charles Dieckens com

crianças sofrendo todas as injustiças do mundo. Mas era um lindo texto. Quando eu já tinha 10 anos ele me fez ler quase toda a obra de Machado de Assis. Ler e comentar. Eu me lembro, como se fosse hoje, do meu primeiro cachorro. Papai o trouxe numa caixa de sapatos e foi logo dizendo: o nome dele é Chip. Era uma homenagem ao professor Chips do filme e do livro Good bye Mr. Chips. Anos depois, eleito governador de Pernambuco, ele foi o primeiro a aceitar que o Chip - um vira-lata com alguns vestígios de terrier, fosse junto, fosse morar com toda a dignidade no Palácio das Princesas. Papai sempre amou, discreta e silenciosamente, a sua família, os cachorros, os empregados, as crianças, os amigos etc... Para ele, grandes demonstrações de sentimentos não são permitidos, herança da sua timidez que vem de uma infância solitária , caminhando nas praias de Olinda. Abrir o peito, amar descarada-

mente, ele só sabe fazer com o Brasil e o nosso povo. Aí o seu patriotismo e nacionalismo não tem limites. É o seu destino, é a sua vida, a sua bandeira. Pelo Brasil ele rasga o coração, mergulha nos moinhos, enfrenta os críticos, os idiotas e os vendedores da pátria. Caminha de peito aberto e em paz com a sua consciência de verdadeiro brasileiro. E hoje, quando eu entro na velha casa de Botafogo, abarrotada de livros, e o vejo ao lado da minha mãe, percebo uma grande alegria em seu rosto ao meu ver chegar. Me emociono. Sei que sempre tive e tenho um verdadeiro amigo, um querido amigo. Olho a sua mão, com mais de 100 anos, e me lembro da noite em que essa mesma mão segurou a minha para afastar o medo do retrato de Dorian Gray. E para falar a verdade, afastar para sempre o medo de viver a vida. Fernando Barbosa Lima, jornalista, diretor-geral da TV Manchete.

TIO XANDRE, COM CARINHO Maria Lúcia Amaral O que dizer de Barbosa Lima meu tio e padrinho com muita honra? Impossível fugir de um depoimento pessoal, familiar mesmo, e que me foi contado por minha mãe, Maria Clarice, sua irmã mais velha. Ao nascer, em Recife, numa casa perto do quartel do exército, ouviu-se uma estrondosa salva de tiros. Disse, então, a parteira à minha avó: “este menino vai ser um grande homem”. Verdadeira profecia para alguém que, apesar dos cem anos, continua lutando por um Brasil grande e respeitado. Outra recordação familiar: o seu amor enorme à criança. Nós, seus sobrinhos, o adorávamos pois ele inventava brincadeiras, sendo memorável a queda de uma rede onde ele entrou com toda a criançada. Daí, quem sabe, ter dado todo apoio à campanha pelas crianças de Recife, fundada por sua mulher, Maria José, em Pernambuco. É esse tio humano, tolerante e conciliador que trago aqui e que ficou para sempre na minha lembrança. Maria Lúcia Amaral, escritora, jornalista, conselheira da ABI, sobrinha e afilhada de Barbosa Lima Sobrinho.

UMA VERDADE SOBRE A REVOLUÇÃO DE 30 Análise política lançada em livro, três anos após o fato, conseguiu agradar vencedores e vencidos Lúcia Lippi Oliveira Para homenagear Barbosa Lima Sobrinho nada melhor do que explorar a contribuição da sua análise da política brasileira referida à Revolução de 1930. Seu livro A Verdade sobre a Revolução de Outubro, publicado em 1933, foi aplaudido tanto pelos vencedores quanto pelos vencidos. A primeira edição deste livro viu esgotar, em poucos meses, os seus quatro mil exemplares. A despeito de tal sucesso, o texto só foi reeditado em 1975 pela Editora Alfa- Ômega. Escrevendo no calor dos acontecimentos o autor apresenta um panorama de conjunto onde destaca os erros e méritos dos grupos políticos em conflito. Analisa as sucessões presidenciais a partir do governo Epitácio Pessoa e mostra como a atuação dos governantes distanciou o poder e a opinião pública, criando um clima favorável às revoltas. Os políticos, segundo Barbosa Lima Sobrinho, se transformam ao assumir os postos governamentais, abandonam a prudência, a moderação, a tolerância e o cetícismo para adotar a arrogância, o sentimento de infalibilidade e a certeza da onipotência. Ao examinar a sucessão de Washington Luís aponta a discordância doutrinária de Antônio Carlos em relação ao plano de reforma financeira do governo federal. O presidente de Minas, entretanto,

Especial - Barbosa Lima Sobrinho

diante de seus sonhos presidenciais, abandona sua posição original e passa a aplaudir o governo da União. O Rio Grande do Sul, centro de forças rebeldes, manifestava-se contrário às combinações dos grandes estados que marcaram a vida política da Primeira República. A união dos partidos gaúchos, o Republicano e o Libertador, conferia novo peso às reivindicações do Rio Grande. Os políticos gaúchos manifestavam solidariedade ao presidente da República, através de cartas assinadas por Vargas, ao mesmo tempo em que João Neves, então líder da bancada rio-grandense, fazia ameaças. Vargas dizia que Antônio Carlos se recusava a aceitar a candidatura Júlio Prestes e propunha como alternativa um nome gaúcho. Assim, diante do veto de Minas, esperava que Washington Luís apelasse para um tercius - naturalmente o próprio Vargas -, pois ninguém melhor do que ele para assumir tal papel. A Aliança Liberal entendia que o presidente exorbitava de sua função coordenadora da sucessão; mas, se Washington Luís tivesse usado seus poderes em benefício da candidatura Vargas, certamente não haveria censuras. Barbosa Lima considera que a luta política de 1929 “não teve outros motivos senão de natureza absolutamente pessoal”, só posteriormente vieram as doutrinas e os princípios.

A cristalização de candidaturas atribuir a um candidato todas as boas qualidades e ao outro todos defeitos - teve lugar na disputa de 1929: o candidato de oposição revestiu-se de todos os

"Barbosa Lima considera que a luta política de 1929 'não teve outros motivos senão de natureza absolutamente pessoal', só depois vieram as doutrinas e os princípios." predicados; o do governo teve contra si “a má vontade dos que não se incorporaram à máquina administrativa”. Foi este fenômeno que transformou em liberais os líderes da Aliança Liberal. O confronto entre as duas plataformas mostra que as discordâncias se referiam a questões secundárias. A plataforma aliancista continha palavras para contentar todas as correntes e sua originalidade residia em questões como a anistia e o voto secreto,

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que dividiam os campos partidários. Para o autor, a insistência de Washington Luís em manter seu plano financeiro de estabilização da moeda, abandonando o mercado do café num momento de crise, teve grande importância na campanha presidencial de 1929. “A exaltação contra o governo daria à lavoura cafeeira o desejo de alistar-se nas fileiras do oposicionismo fosse ele qual fosse. Seriam atitudes não a favor da Aliança, mas contra o governo”. Os líderes aliancistas eram adversos à idéia de revolução, embora existisse uma ala mais radical dentro da Aliança e um ambiente favorável por parte da população. A luta interna na Paraíba, com o movimento de Princesa; as hesitações do governo da União em apoiar o presidente daquele estado; o assassinato de João Pessoa, entre outros acontecimentos, fizeram renascer a chama revolucionária. Barbosa Lima relata os episódios revolucionários que ocorreram em todo o país e assinala a debandada dos governadores, que continuavam despreparados e confiantes na força do governo federal. Descreve as articulações dos generais que enviam um ultimatum a Washington Luís e aponta uma contradição pois “acreditavam os militares que haviam tomado conta do poder para eles e não para a Aliança; e a Aliança em armas não queria ceder os seus direitos à governança do país”.


O movimento de outubro de 30, como todas as revoluções, teve pretexto variado e causas efetivas. A invocação dos princípios liberais é vista pelo autor como uma manobra pra atrair as forças populares. Esta manobra, entretanto, teve êxito, dada a impopularidade do poder público, criando um ambiente favorável à revolta. Nas origens da Aliança Liberal encontra-se a combinação de interesses pessoais e ambição de mando: a irritação de Antonio Carlos, as esperanças de Getúlio Vargas, as mágoas da política paraibana, a cegueira e intransigência de Washington Luís. Mas, por entre este conjunto de causas, Barbosa Lima enxerga as paixões regionalistas: o desequilíbrio entre os estados, a força excessiva de alguns grandes que ameaçavam absorver os pequenos, ou seja, a luta contínua contra a supremacia de alguns estados resumiria os 40 anos de federalismo brasileiro. Sem esquecer a importância da crise de 1929, prevalece em sua interpretação o papel do “sentimento regionalista, na luta pelo equilíbrio das forças entre os estados federados”. E, nesta linha interpretativa, ganham sentido as afirmações de que a ’Revolução foi a Aliança em armas’e a ‘Aliança foi o órgão dos governos de três estados’, apresentadas por Barbosa Lima Sobrinho neste livro. Esta análise da conjuntura política do período enfatizando o conteúdo oligárquico das cisões regionais constitui hoje um “clássico”. Entretanto, sua análise interrompe-se com a ocupação formal do Estado pelas forças dissidentes em outubro de 1930, não dando conta das linhas de conflitos entre oligarquias e tenentes que, a partir deste tempo, passam a reger a luta política até a Constituinte de 1933. A Era Vargas apresenta múltiplas facetas mas pode ser entendida de forma sintética como período de contínuo fortalecimento do Estado enquanto pólo central da modernização do país. Barbosa Lima Sobrinho, como deputado federal por Pernambuco, de 1934 a 1937, como presidente do Instituto do Açúcar e do Álcool, de 1938 a 1946, participou deste processo que, é bom lembrar, guarda relações com as propostas de construção de um Estado nacional forte, defendidas por Alberto Torres, autor lido, conhecido, admirado por Barbosa Lima e ao qual dedicou seu livro Presença de Alberto Torres. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: FAUSTO, Boris - A Revolução de 30; historiografia e história. 1986, São Paulo, 10ª ed., , Brasiliense. LIMA SOBRINHO, Barbosa, A verdade sobre a Revolução de Outubro. 1975, São Paulo, Alfa-Ômega, A REVOLUÇÃO de 30. Seminário internacional, 1982, Brasilia, UNB. Lucia Lippi Oliveira, pesquisadora de História Contemporânea do Brasil do CPDOC/FGV, coordenou o livro Elite intelectual e debate poliítico nos anos 30, uma bibliografia comentada da Revolução de 1930 (FGV/INL/1980).

CHATÔ E OS ASSOCIADOS: UMA OBRA EM ZIGUEZAGUE Impossível poder julgar em linha reta uma obra que ajudou a fazer o Brasil Jacques A. Wainberg A modernidade emergente no Brasil nos anos 20 tomaria, nos anos 30 e seguintes, impulso verdadeiramente avassalador. Sob qualquer ótica, há evidências suficientes para afirmar o óbvio - o Brasil se faz, para valer, nestes anos. O que se vê é um movimento de criatividade e iniciativa, sonhos e desejos, em especial e decisivamente nos seus pólos propulsores: São Paulo, Minas Gerais, Distrito Federal, Rio Grande do Sul e Pernambuco. É ali, nestes centros de progresso, que se instalam as fábricas e onde aterrizam investimentos ingleses, franceses, alemães, americanos e italianos principalmente. É para o centro do país que convergem também os cafeicultores deslocados aos novos investimentos do comércio, transporte, indústrias e serviços. O Brasil aumenta sua produção de energia e matérias primas, importa automóveis, desenvolve as ferrovias e aerovias. O que lhe permite cultivar um ‘destino manifesto’ tupiniquim do tipo Nação Potência protegido por um Deus que é brasileiro. Assis Chateaubriand é o espirito mais bem acabado deste Brasil que sedescobre-e-se-vê, e da nação que se constrói com um imaginário povoado de misteriosos índios da Amazônia, de soberbos gaúchos dos Pampas, de seringueiros sorridentes e de operários que fincavam o solo com o cimento de uma nova pátria. É o tipo mais bem acabado porque sintetiza o espírito messiânico deste tempo (um espírito que contamina os golpistas redentores que povoam a história política do Brasil com movimentos salvacionistas desde 1922); porque também cultiva um nacionalismo disponível ao investimento de além-mar e ao capitalismo financeiro; porque constrói uma obra peculiar e original utilizando-se, para isso, do traço jagunço, nordestino e brasileiro da ambigüidade e dissimulação; da flexibilidade e violência; do agrado e sedução; da chantagem e agressão. Os Diários e Emissoras Associadas, sua obra máxima, acolheram as marcas destes tempos nos quais o Brasil se urbaniza, se industrializa, acolhe

imigrantes do Oriente e do Ocidente, desenvolve sua indústria cultural de massas e consolida seus mitos e símbolos nacionais. Seus jornais, emissoras de rádio e TV seriam uma extensão de seu espírito empreendedor e serviriam como instrumento preferencial para expressar sua marca preponderante: a de ser político que resolveu influenciar os destinos do país com a ameaça de sua pena, com a tropa de repórteres a seu comando, e com as tecnologias de comunicação que soube entender, adquirir, fazer uso e espalhar nos quatro cantos do país. O Chateaubrianismo constituirse-ia, pois, no credo da Taba. A família de soldados franciscanos deveria animarse dos ideais da fé no Brasil, na democracia, no anticomunismo, na veneração às potências americana e inglesa, e no uso do jornalismo como instrumento de mobilização, persuasão e propaganda. O que se tem não é um produto asséptico. Ao contrário, as páginas de seus jornais e revistas estavam plenas de maracutaias. Suas emissoras de TV e rádio lançavam chamas de ódio. Era assim, de resto, como funcionava, em grande medida, o gingar dos corpos da elite nacional que dançavam, entre achegos e conchegos, a valsa do poder. E ninguém como Chateau animava o baile. Seduzia empresários, mulheres e banqueiros. Criava uma ‘obra cívica’ a ser legada, doada a fiéis seguidores, como ocorreria, de fato, um pouco antes de sua morte em 1968. O jornalismo que pratica não poderia ser desconsiderado pelos atores sociais. Tinha algo a dizer, sempre, sobre tudo, tornando-se, com o passar dos anos, num fator a ser considerado nas decisivas disputas políticas do país. Era o que quis que ocorresse desde que, em 1924, adquiriu, no Rio de Janeiro, O Jornal, expandindo os Associados dali a São Paulo e depois a todas as capitais dos principais estados. Na verdade, nunca foi empresário. Não olhava balanços. Revelava um desinteresse abismal por resultados econômicos. Era, realmente, um político com P grande, como gosta de lhe definir o caráter seu companheiro-escudeiro João Calmon. Sonhava com os

"O chateaubrianismo se constitui de fé no Brasil, na democracia, no anticomunismo, na veneração a ingleses e americanos e no uso do jornalismo como instrumento de mobilização, persuasão e propaganda."

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Associados transformados em Instituição Nacional. O que explica o seu vigor em lançar raízes Associadas no Norte e no Sul, no Leste e no Oeste. Cidadão de Umbuzeiro, era um ser híbrido: local e regional, nacional e cosmopolita, viajava ao exterior, em média, a cada mês e meio. Cruzava o país sem cessar. Na Amazônia perambulava seminu. No Sul, pilchado a caráter, lançava a TV Piratini, transformava a rádio Farroupilha numa das raras emissoras com sinal livre internacional. Na Tupi comovia o país com o Jornal Falado. Metia-se em tudo, com fôlego de cabra-da-peste. Promovia campanhas cívicas de todo o tipo: em prol das bandeirantes, pela promoção do cheque, por este e aquele cultivo de variedade agrícola, por uma pecuária de qualidade, por mais e mais aviões e aeroportos. Acariciava a auto-estima nacional com concursos de beleza: a mais bela comerciária, a mais linda prenda, miss Brasil... Cercava os presidentes tirando-lhes o fôlego. Foi assim desde 1924. Promove, em 30, a Getúlio Vargas. Persegue-o em 1932, sendo encarcerado e quase exilado. Ameaça Vargas em 1937, aplaudindo a seguir seu paladar persecutório aos comunistas. Uma relação de ódio-e-amor com o mais perfeito alter-ego que a natureza política nacional poderia lhe reservar. Com Dutra, JK, Jânio Quadros e Jango não seria diferente. Temido e bajulado, torna-se embaixador brasileiro em Londres num escambo típico de caixeiro-viajante: a corte londrina pelo silêncio dos críticos Associados a JK. Com Jango tentam os sucessores o mesmo: o silêncio da artilharia Associada em troca dos débitos previdenciários e impostos. Os mesmos débitos que serviriam de motivo para, em 1980, os militares cortarem a língua do império que lhes prometera apoio e que, por fim, pregara a faca da oposição mordaz nas costas da 'revolução redentora.'. Tolerância tem limites, como logo descobriram os condôminos herdeiros ao ver a Rede Tupi de Televisão desmantelarse ceifada pela autoridade, caindo como um castelo de areia. No Sul do país, onde Chateau mandava e comandava, os Associados são simples memória. Ou seja, a era pós-Chateau cobrou o preço de uma nova exegese do chateaubrianismo. O tema da militância política cedeu lugar ao comportamento low profile. A estratégia opcional foi andar a passo curto e seguro. A meta tornou-se incorporar valores do jornalismo mercadológico: com serviços, entretenimento, com cores, novelas e folhetins, e menos - bem menos - disputas, perseguições e corridas a banqueiros e empresários. Uma corrida sem disfarces: de pires e com a faca ameaçadora nas mãos. Jornal da ABI


O Brasil mudou e espíritos pioneiros, utópicos desbravadores, tornaram-se mais sofisticados, menos rudes. O que Chateau fizera, reconhecem todos, poucos poderiam fazer à época. Ele desconheceu a regra básica dos bons costumes, a dos cálculos de custos e benefícios. Trouxe a TV para um país tímido, o 4º em todo o mundo a incorporar a nova e revolucionária tecnologia, o que lhe permitiu aproximar vizinhanças, brasis que não se conheciam de brasileiros que não se viam e ouviam. Criou o Cruzeiro e a semeou de reportagem de arte, cultura, de Brasil. Jogou correspondentes na selva e na guerra da Europa. Imprimiu a cor na Argentina. Ousava endiabrado o que o Brasil adormecido temia realizar: de tudo um pouco, trazendo, comovido, a modernidade que via em suas viagens além-mar a caboclos e peões de norte a sul. O julgamento que Chateau temia da história não é, pois, tarefa fácil e, certamente, não será feita em linha reta. Um ziguezague lhe convem mais: méritos

Marca dos 100 anos

A VIDA DE BARBOSA... André Motta Lima: Então a gente pega agora 30-32. José Augusto Ribeiro: Ele escreveu muito contra a candidatura do Getúlio, contra a Aliança Liberal, porque ele não acreditava que aquele grupo, que os líderes mais antigos do grupo, como Antônio Carlos, que era governador de Minas, e o Borges de Medeiros, que era governador do Rio Grande do Sul, fossem uma alternativa verdadeiramente renovadora ao esquema de Washington Luís, que tinha lançado a candidatura de Júlio Prestes. Também um ponto frágil da Aliança Liberal era o candidato a vice-presidente, João Pessoa, que virou herói por ter sido assassinado. Mas o João Pessoa tinha sido juiz do Superior Tribunal Militar, tinha sido muito duro com os revolucionários de 22, de 24; era um reacionário. A.M.L.: Inclusive na questão do Tenentismo, qual a posição que ele tem? J.A.R.: Olha, ele nunca teve simpatia por movimentos revolucionários. Tanto que eu não me lembro de artigos importantes dele sobre isso, até porque a censura não permitia. Ele driblava a censura como driblou em 22 ou em 23 nos artigos sobre Pedro Lessa para defender a aplicação de Especial - Barbosa Lima Sobrinho

em profusão, em meio a tramóias de um Brasil wild- west, com direito a banguebangue e, no qual, até mocinhos de verdade pareciam-se com ameaçadores tropeiros ambulantes. Reduzi-lo ao jornalismo sensacionalista, reduzi-lo a réu de crimes vis, reduzi-lo ao hall of fame dos arrogantes e prepotentes é empobrecer esta figura e sua obra que contêm, igualmente, os lances de uma genialidade criativa que soube impulsionar a indústria da comunicação de massa, a indústria cultural, e que soube reagir à demanda do seu tempo. A demanda de um país oco de identidade e que buscava ansiosamente mediadores que aproximassem a Amazônia ao Rio Grande, conectando suas gentes, permitindo-lhes, enfim, o culto ao sonho verde-amarelo. O que se tem hoje é o legado perene. Uma corporação de comunicação que sobreviveu à p erseguição, aos inimigos acumulados, aos fracassos econômicos, às disputas intestinas, e que firmou

passo firme nas regiões Centro, Norte e Nordeste do Brasil. A era de Assis Chateaubriand é, para os novos condôminos que chegam, história e memória. Não conheceram a figura. Não privaram de sua intimidade. Mas desculpamlhe, enfim, o paladar agressivo. É o que mandam rezar sempre nas datas comemorativas de seu falecimento. Afinal, comemora-se a vitória de Assis Chateaubriand. O mundo se parece mais com os seus sonhos. O mundo capitalista e democrático venceu. Os ditadores se foram. O Brasil se unificou e consolidou. E a ambição da modernidade já não é exclusividade de sonhadores marginalizados, enlouquecidos, que fustigados pelo atraso de sua gente, pela tacanhez da mentalidade dos líderes e intelectuais da nação, perguntavam-se: até quando?

habeas corpus... Mas não me lembro de artigos dele defendendo o “18 do Forte” ou o pessoal de 24, ou mesmo defendendo a “Coluna Prestes”. Agora, em 29, ele começa a escrever sobre a candidatura do Getúlio, escrevendo contra, muito contra. Até no início de 30, tem um artigo em estilo de crônica, muito irônico, sobre a leitura da plataforma do Getúlio num comício aqui, na esplanada do Castelo. Foi mais ou menos no carnaval. E ele faz uma crônica, é uma crônica mesmo. É um sujeito que tá mascarado - então o mascarado é a Aliança Liberal - e o sujeito quer tirar a máscara porque está cansado de ter que assumir aquelas atitudes, que na verdade não são as dele. Então, até o deflagrar da Revolução de 30, no dia 3 de outubro de 30, ele escreve muito contra a Aliança Liberal. E quando se começa a falar em revolução, ele - não digo que deboche pois o estilo dele nunca é debochado - põe em dúvida que vá realmente haver a Revolução e com muita graça, com muito humor, ele imagina uma cena na Avenida Rio Branco: ...os boatos correndo e um sujeito diz para o outro: “Vá falar com o João Neves da Fontoura para ver se vai ter Revolução mesmo”. E diz: “Pois é, já estão marcando até a data da Revolução pelo jornal”. Ou seja, ele, como muita gente na época, não acreditava que fosse haver a Revolução e no dia, por exemplo, no dia 3 de outubro, quando estourou a Revolução, ele estava no Rio.

escrever artigos nesse período porque, embora ele estivesse contra a Revolução, a censura impedia tudo. Dona Maria José, a noiva dele, fazia aniversário no dia 23 de outubro, dois ou três dias antes ele foi para São Paulo. Era perfeitamente possível viajar entre o Rio e São Paulo porque as operações militares estavam na divisa, estavam paralisadas na divisa entre São Paulo e Paraná, quer dizer, a fronteira sul de São Paulo, onde se esperava a famosa Batalha do Itararé, que foi a Batalha que não houve... Então não era difícil viajar do Rio para São Paulo. Talvez houvesse maior vigilância policial, talvez fosse preciso obter um salvo-conduto na polícia... Mas ele foi

A.M.L.: Ah, ele já tinha voltado para São Paulo? J.A.R.: Não... Ele foi para São Paulo depois. A Revolução começou em 3 de outubro e a luta armada terminou em 24 de outubro. Então, no 3 de outubro ele estava aqui. O governo decretou Estado de Sítio e os jornais só podiam publicar sobre a Revolução os comunicados oficiais, era a única coisa que podiam publicar. Então não há mais artigos dele, não podia

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Jacques A. Wainberg, professor, coordenador de pós-graduação em Comunicação da PUC-RS, pesquisador do CNPq e escritor.

Nunca teve simpatia por movimentos revolucionários. Não defendeu os 18 do Forte, os tenentistas ou a Coluna Prestes. para São Paulo e se hospedou num hotel para ir à festa do aniversário da Dona Maria José. No dia seguinte, 24 de outubro, instaurou-se no Rio uma junta militar que depôs o presidente Washington Luís e tomou o poder. Houve alguns momentos de confusão, mas afinal as forças próWashington Luís que estavam em São Paulo recebiam ordens para depor em São Paulo. A Coluna Revolucionária que vinha do Sul entrou por São Paulo, foi até a capital, o Getúlio chegou lá de trem, junto com todos os líderes revolucionários que vinham com ele desde o Sul. Então por alguns dias ficou aquela confusão e ele não

PARA SABER MAIS AMADO, Gilberto - Assis Chateaubriand. Traços para um estudo. 1967, RJ, mimeog. Ed. Diários Associados. BARATA, Mário - Presença de Assis Chateaubriand na Vida Brasileira. 1970, Ed. Martins. BARDI, P.M. - Sodalício com Assis Chateaubriand em São Paulo. 1982, SP, Museu de Arte. FREIRE, Gilberto e AMADO, Gilberto - Chateaubriand em dois perfis. 1992, Recife, Fund. Assis Chateaubriand. MENDONÇA, Carlos Eduardo - Dr. Assis Chateaubriand - Uma vida vertiginosa. 1972, Coleção Cultura Paraense, Série Theodoro Braga. MORAIS, Fernando - Chatô, o Rei do Brasil. 1994, Cia. das Letras. MOREL , Marco - O pequeno grande homem”. Revista da Comunicação. Ano 5 n.º 18 pp:10-11 WAINBERG, Jacques - Império de palavras. Estudo comparado dos Diários e Emissoras Associadas e Hearst Corporation. Tese de Doutorado. 1996, ECA/USP.

pôde sair de São Paulo e também teve que entregar o apartamento dele no hotel. Ficou hospedado, a convite do futuro sogro, na casa de Dona Maria José. Ele não viu, não presenciou o ataque que o Jornal do Brasil sofreu, porque quando caiu o governo Washington Luís houve uma explosão de revolta popular. Havia muita gente presa. O governo prendeu muita gente, a censura era absoluta, feroz. Então, no momento da vitória da Revolução, houve ataques a vários jornais, ataques espontâneos da multidão. Atacaram o Jornal do Brasil, como atacaram A crítica, do Mário Rodrigues, que foi inteiramente empastelado. Em São Paulo atacaram A Gazeta, de Cásper Líbero, de quem dr. Barbosa era amigo. Quando a situação se normalizou (Getúlio parou em São Paulo para receber homenagens e veio para o Rio, em seguida, para assumir a chefia do governo provisório), embora fosse um governo revolucionário, os jornais continuaram sob censura, como já estavam. Nesse período não há artigos do dr. Barbosa. Ele só volta a escrever em 1931, e aí havia também, segundo ele me diz, dificuldades na linha política do Jornal do Brasil, porque o Jornal do Brasil tinha apoiado a situação anterior, o governo de Washington Luís e a candidatura do Júlio Prestes, e com a nova situação acho que teve a circulação suspensa por algum tempo, até em virtude do ataque que a sua sede sofreu. Há um intervalo mais ou menos longo em que o dr. Barbosa não escreve, mas ele não sofreu, porque não tinha porque sofrer, nenhuma perseguição pessoal. Não havia razão porque prendêlo, nada disso. Então quando ele volta a escrever, ele retorna à linha que tinha sido sempre a dele. A linha, vamos dizer, das soluções legais. Assim como ele não tinha sido a favor do movimento tenentista dos anos 20, ele foi logo a favor da reconstitucionalização em seguida à


Revolução de 30. Aí ele conseguiu um desses prodígios da carreira de jornalista. Havia aqui no Rio uma revista chamada Hierarquia, que era controlada pela Ação Integralista Brasileira, que estava surgindo naquele momento. Os diretores dessa revista eram Santiago Dantas e Augusto Frederico Schmidt, na época ligados ao movimento integralista, mas muita gente boa também. D. Hélder Câmara foi ligado e muitos outros. Nessa revista ele publica um artigo de natureza tanto jurídica quanto política, demolindo os argumentos dos grupos tenentistas liderados por João Alberto, aquela figura mais expressiva do movimento tenentista. Outros apareceram como os maiores heróis, mas talvez João Alberto tenha sido o mais importante. Os tenentes de João Alberto diziam que se o Getúlio apressasse a convocação de eleições e a convocação de uma constituinte as conquistas da revolução seriam anuladas. E o dr. Barbosa então escreve um artigo nessa revista Hierarquia sustentando um ponto de vista oposto, ou seja, de que o que podia apressar a consolidação e a ampliação dos avanços revolucionários, como as leis trabalhistas, por exemplo, seria exatamente a Constituinte. Faz um longo estudo de casos. Ele mostra o que aconteceu na Alemanha logo em 1918, em que, convocadas as eleições, o Partido Socialista ficou no poder e a Constituinte de Weimar elaborou a Constituição mais avançada de todos os tempos em matéria de ordem econômica e direitos sociais. Ele cita o caso da Espanha também, em que, com a queda da Monarquia, a convocação de uma Constituinte acelerou o processo político em vez de atrasar. O curioso é que na página imediatamente anterior a esse artigo assim tão liberal, tão radicalmente democrático do dr. Barbosa, tem o fim de um artigo cujo autor, pelos recortes guardados no trabalho não dá para identificar - talvez na Biblioteca Nacional a gente possa saber quem é - de um integralista contando da visita a Mussolini e das emoções que tinha sentido diante daquele semideus, que era a nova aurora da humanidade. Isso até deve ter causado algum embaraço para o dr. Barbosa, porque no álbum em que ele guarda os seus artigos a coisa foi colocada de modo que a página anterior a essa parece como sendo a posterior e uma leitura desatenta dá impressão de que ele é que foi visitar o Mussolini, quando na verdade, ele ali, sem citar o Mussolini, estava combatendo o fascismo, que tinha muito prestígio na época; e defendendo a democracia liberal e já a democracia social. Aliás, ele atacava o Mussolini antes mesmo do Mussolini chegar ao poder em 1922. Há uma artigo dele, em 1919 ou 20, em que ele já faz um ataque veemente ao fascismo, a propósito de uma aventura fascista, que foi a ocupação de Fiúme, na Iugoslávia, pelo poeta Gabriele D’Annunzio, um herói da força aérea italiana na Primeira Guerra Mundial, que era fascista... E um grupo de fascistas ocupou Fiúme para protestar contra a suposta traição à Itália nos acordos de paz, suposta traição que foi o fermento da tomada do poder pelos fascistas na Itália. Então, o dr. Barbosa, que já em 19/20

combatia Mussolini e o fascismo, em 1932 publicava na revista integralista Hierarquia um artigo em que ele de novo condenava o fascismo ... A.M.L.: Por que em 32? Quando você perguntou para ele porque escrevia naquela revista, o que ele disse? J.A.R.: Foi uma oportunidade que ele teve. Foi uma tribuna que se abriu para ele para defender a reconstitucionalização. Não tinha porque ele recusar. Talvez ele não pudesse publicar mesmo aquele artigo no Jornal do Brasil, ou pela extensão ou pela combatividade do artigo. Não é um artigo agressivo em absoluto, é muito sereno, mas muito firme. A.M.L.: Com isso, como é que ele fica em relação a 32?

Um dos maiores prodígios da carreira de jornalista foi ter conseguido escrever um artigo defendendo a democracia liberal e o poder socialista na Alemanha numa revista dos integralistas. J.A.R.: Ele era a favor da causa que São Paulo defendia, ou seja, a convocação imediata de eleições para uma Assembléia Nacional Constituinte. Não era a favor de uma revolução. E a verdade é que a revolução, que foi chamada constitucionalista, não era bem constitucionalista, porque a eleição já tinha sido convocada, estava com a data marcada e tudo, quando ela foi deflagrada. Na verdade, era uma revolução para derrubar o governo do Getúlio, porque as lideranças de São Paulo naquele momento achavam que o Governo Federal estava perseguindo São Paulo. O que não era verdade. E, tempos depois, historiadores e economistas de São Paulo verificaram que jamais um Governo Federal deu tanto apoio econômico a São Paulo como o governo Getúlio Vargas. Já naquele momento, porque foi o governo de Getúlio que resolveu a crise do café e repôs em movimento a economia paulista, arruinada no governo de Washington Luís, que era um político de São Paulo, embora nascido no Rio. A.M.L.: “A verdade sobre a Revolução de 30” foi escrito como? Logo depois da revolução de 30 ou de 32? J.A.R.: Foi em 33... A.M.L.: Por que ele escreveu esse livro?

J.A.R.: Porque ele tinha acompanhado aquilo tudo. No momento dos acontecimentos, ele pouco tinha podido escrever, e eu tenho a impressão que ele conseguiu depoimentos e documentos. O livro dele foi um sucesso de livrarias, em primeiro lugar. E em segundo lugar, o livro dele era discutido com grande freqüência na Câmara dos Deputados. Quando queriam contestar o dr. Barbosa em alguma coisa, vinham com o livro dele. Nisso, ele dizia assim: “Reafirmo tudo o que eu escrevi no meu livro”. Isso já nos permite saltar um pouco adiante. Em 33 houve eleição. Eleição para a Constituinte, que foi instalada no dia 15 de novembro de 1933 e trabalhou até julho de 34. A Constituição foi promulgada no dia 14 de julho de 34. O dr. Barbosa foi convidado para ser candidato constituinte por Pernambuco. Foi convidado por Agamenon Magalhães, que era grande amigo e era ligado ao Getúlio, era ministro e talvez a principal figura do getulismo em Pernambuco. dr. Barbosa recusou o convite dizendo que tinha sido contra a revolução, então não achava correto aceitar uma candidatura por um partido ligado ao Governo. Continuou no jornal, cobriu a Assembléia Nacional Constituinte, escreveu na época uma série de artigos que são um livro - é só juntar e publicar, é um livro sobre parlamentarismo. Sobre a experiência parlamentarista no Império. Houve propostas parlamentaristas já na Constituição de 34. Promulgada a Constituição, houve eleições para a Câmara dos Deputados. Então, a chapa articulada pelo Agamenon Magalhães não era mais a chapa da revolução, não era mais a chapa da Aliança Liberal, não era mais a chapa do Getúlio, era a chapa de um partido que estava se organizando lá, com nome de Partido Social Democrático e que tinha as simpatias do dr. Barbosa. Ele primeiro se chamou Partido Social Democrático por suas simpatias com as idéias da social-democracia alemã, que eram as idéias do socialismo reformista, não era revolucionário. Ele sempre acreditou nisso; socialismo reformista não revolucionário. Então não havia mais esse impedimento de ordem mais política até do que moral. E acho que ele, a essa altura, já estava mais bem impressionado com algumas medidas do governo Getúlio, como a legislação trabalhista, a defesa dos recursos minerais, o Código de Águas, que defendia os interesses nacionais contra as concessionárias estrangeiras de energia elétrica; o próprio Código de Minas, que consagrava a separação da propriedade do solo da propriedade do subsolo. Então ele aceitou o convite de Agamenon e foi ser candidato a deputado federal em Pernambuco, numa eleição que se realizou... acredito que no início de 1935. Ele então continuou escrevendo um artigo semanal aos domingos no JB e foi exercer o mandato de deputado. E logo se tornou líder da bancada de Pernambuco. O PSD de Pernambuco tinha como líder o Agamenon Magalhães e a bancada de Pernambuco decidiu apoiar o governo de Getúlio. É nesse momento que ele começa a apoiar o governo Getúlio. Então, quando queriam na Câmara atacar o governo Getúlio, invocavam muito o livro...mas o

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fato é que o livro dele é equilibradíssimo, assim como faz críticas, menos ao Getúlio, mais ao Antônio Carlos, ao Borges de Medeiros, ao Osvaldo Aranha e outros líderes revolucionários; ele pinta um retrato muito verdadeiro, mas no fundo muito duro do Washington Luís, a teimosia do Washington Luís. Então, o livro é muito equilibrado. Ainda hoje é um dos melhores livros de reconstituição da Revolução de 30. A.M.L.: Engraçado que o Getúlio inclusive cita nos diários que não ficou muito contente com as observações que o dr. Barbosa fez. J.A.R.: É, o Getúlio se queixa...Nos diários ele diz o “ dr. Barbosa não entendeu esse episódio”. Ou talvez o dr. Barbosa não tivesse informações das quais nós dispomos hoje. Ao nível de informações disponíveis naquele momento, o livro é rigorosamente jornalístico.... nem dois depois do acontecimento. Mas como deputado, há até um debate muito curioso na Câmara. Havia um deputado do Rio Grande do Sul, chamado Adalberto Corrêa, que era irmão daquele civil, Otávio Corrêa, que morreu com os “18 do Forte” no 5 de julho de 1922. Esse Adalberto Corrêa foi eleito deputado pelo Rio Grande do Sul e fazia ataques terríveis ao Agamenon Magalhães. Aí atacava também o dr. Barbosa, que era na Câmara o líder da corrente comandada por Agamenon Magalhães. Esse Adalberto Corrêa, sem saber, estava resgatando a

Estudava profundamente os temas econômicos e acabou professor de economia na Escola Amaro Cavalcanti. memória do Agamenon Magalhães, que para a historiografia oficial era um nacionalista autoritário e fascista. Foi isso o que se quis pintar de Agamenon Magalhães. Esse Adalberto Corrêa dizia que Agamenon Magalhães era comunista, numa insistência feroz. Eu li esses discursos todos na Câmara e o dr. Barbosa respondia sempre com a maior serenidade, a maior firmeza. Comentando com ele, lembrei a intransigência desse deputado do Rio Grande preocupado com um homem de Pernambuco, o Agamenon. E o dr. Barbosa me explicou: como Ministro do Trabalho, o Agamenon tinha cortado do orçamento uma verba que era de interesse desse deputado, Adalberto Corrêa, e o deputado então ficou hostil a ele por causa de uma verba. Perguntei se era uma verba só de interesse eleitoral. Ele disse: “Eu não me lembro bem, mas acho que era mais do que interesse eleitoral.” E havia, é claro, um Jornal da ABI


interesse ideológico, porque a posição desse deputado, Adalberto Corrêa, contrastando com a do seu irmão, companheiro dos “18 do Forte” em 22, era uma posição de extrema-direita, tanto que ele achava o Agamenon um comunista e achava o dr. Barbosa também comunista, o que ajudou muito a biografia do Agamenon. Mas aí na Câmara o dr. Barbosa foi escolhido relator na Comissão de Finanças. A Constituição de 34, que foi a nossa primeira Constituição, no capítulo sobre a ordem econômica e a ordem social foi muito inspirada pela Constituição de Weimar, a Constituição alemã de 1919, e também pela Constituição do México, de 1917, que foi até anterior a de Weimar na inclusão de princípios de proteção ao trabalho, de princípios , vamos dizer, solidaristas na questão da ordem social. Então em 1934, entre outras coisas, dizia-se que a lei deveria nacionalizar progressivamente a indústria dos seguros. A indústria dos seguros era uma indústria meio invisível na época. O público, o tomador do seguro, mal conhecia a sua apólice e eram quase todas companhias estrangeiras. Havia estudos que mostravam a conveniência de nacionalizar a indústria dos seguros porque ela era uma bomba de sucção retirando recursos para o exterior. O Brasil já era então um país exportador de capitais. O Brasil já financiava os países ricos. O projeto que o Governo mandou era um projeto que cumpria a norma da Constituição, mandava nacionalizar, não era estatizar. As companhias de seguro tinham que ter maioria de capital nacional. Sempre aquela discussão doutrinária do que é o capital nacional. E a Comissão de Constituição e Justiça deu um parecer e apresentou um substitutivo em que aguava muito esse propósito da nacionalização, abria tais brechas que era uma falsa nacionalização. O dr. Barbosa na Comissão de Finanças estudou profundamente a questão. Ele já tinha uma boa experiência de jornalismo econômico. Em 29 ele havia tentado fazer concurso para professor de economia da Escola Amaro Cavalcanti. Ele se inscreveu e o concurso não se realizou por causa da Revolução. Mas em consideração ao trabalho apresentado para esse concurso, ele foi depois nomeado. Do modo como ele leva a sério tudo que faz, ele estudava profundamente economia. E ele fez na Comissão de Finanças um parecer que, do ponto de vista jurídico, foi mais amplo e mais profundo que o parecer da Comissão de Justiça. Ele fez uma análise econômica e financeira da questão dos seguros que documenta a sangria de recursos que o Brasil estava sofrendo e o risco que o Brasil estava sofrendo, porque as seguradoras pegavam o dinheiro que recebiam dos segurados brasileiros e levavam para fora. No caso de guerra, se fosse preciso pagar o seguro de um incêndio ou um seguro de vida, podia acontecer que a seguradora não tivesse dinheiro no Brasil para pagar esse seguro e não tivesse como mandar buscar esse dinheiro no exterior. O que dr. Barbosa fez? Esse parecer e um conjunto de emendas que iam ao ponto nevrálgico. Tudo aquilo que a Comissão Especial - Barbosa Lima Sobrinho

de Justiça desnacionalizava o projeto, ele renacionalizava o projeto. Poucas emendas. O parecer dele foi aprovado na Comissão de Finanças. Ele estava se preparando para discutir no plenário da Câmara, porque o parecer mudava o parecer da Comissão de Justiça; era fim de outubro de 1937. No dia 10 de novembro, com o golpe do Estado Novo, a Câmara e o Senado foram fechados. Mas o presidente Getúlio Vargas pegou os estudos do dr. Barbosa e, ao longo dos anos, entre 38 e 41, criou vários decretos-

baseados no estudo original do dr. Barbosa. Os decretos sobre o instituto de resseguros e sobre o controle acionário das empresas seguradoras por maioria de capitais nacionais. Quer dizer, quase conseguiram dar um tiro no passado para liquidar essas legislações. E o instituto de resseguros continuaria. Ele não estava em discussão, o que estava em discussão era a exigência de que as companhias de seguro fossem empresas brasileiras de capital nacional. A.M.L.: Já que ele era correligionário, do mesmo partido até do Getúlio, como ele se posicionou em relação ao Estado Novo?

Como deputado federal foi o relator de parecer da Comissão de Finanças sobre a regulamentação das atividades de seguro, defendendo o capital nacional no setor.

J.A.R.: O Estado Novo foi um fato consumado. Eu perguntei como ele tinha reagido e ele disse: “Bom, a Câmara foi fechada. Eu fui para casa e voltei ao meu trabalho no jornal. Agora, não fui visitar o Getúlio no Palácio Guanabara, como muitos deputados foram”. Alguns que depois tentaram aparecer como opositores do Getúlio e do Estado Novo. Ele não foi. O Estado Novo, ao contrário do que figura aí numa história oficial escrita por dois tipos de anti-getulismo (um anti-getulismo de direita que era o do pensamento udenista, e um anti-getulismo de esquerda que está muito presente no PT), a verdade está nos documentos: o Estado Novo foi recebido com grande alívio pelo Governo dos Estados Unidos. O Departamento de Estado fez saber que agora tinha certeza que o Brasil, na crise mundial que já prenunciava a Segunda Guerra Mundial , apoiaria os EUA, não a Alemanha. O presidente dos EUA era Roosevelt, o grande democrata. A Inglaterra, que era um país muito mais importante do que hoje, tinha uma liderança internacional muito maior que a dos EUA, e o vice-ministro do exterior da Inglaterra fez uma declaração na Câmara dos Comuns no mesmo sentido. Quando começaram protestos, no mesmo sentido.

alemães e pró-fascistas das Forças Armadas. Isso não obrigava o dr. Barbosa a aderir ao golpe. Ele não aderiu. Mas, no ano seguinte, ele de certa forma passou a participar do Governo porque foi eleito - eleito e não nomeado - presidente do Instituto do Açúcar e do Álcool, que tinha sido criado a partir de 1931. Houve uma comissão em defesa do açúcar e em 33 foi criado o Instituto do Açúcar e do Álcool. Esse instituto era dirigido por uma comissão executiva, que tinha representantes do Governo e dos vários setores da iniciativa privada que operavam na agroindústria açucareira. Tinha representantes dos usineiros, tinha representantes dos fornecedores de cana e acho que tinha representantes... não sei se já tinha representantes dos trabalhadores, porque não havia ainda sindicatos rurais, já haviam sindicatos urbanos, mas não rurais. E os representantes do setor privado eram em maior número que os representantes do setor público. É engraçado que se fala hoje nas tendências estatizantes do Getúlio, mas o Instituto do Açúcar e do Álcool , que ele criou quando exercia a chefia de um Governo provisório que era discricionário, ele era o ditador; mas criou o Instituto do Açúcar e do Álcool conferindo aos interesses privados maioria na comissão executiva. É claro que se o Getúlio quisesse ele tinha meios de impedir a escolha do dr. Barbosa. E foi naturalmente uma indicação do Agamenon Magalhães, que sabia do grande conhecimento que o dr. Barbosa tinha da questão açucareira. Já em 1920 ele escreveu uma série de artigos na imprensa de Pernambuco, defendendo Pernambuco contra umas medidas demagógicas do presidente Epitácio Pessoa. Epitácio, para agradar os consumidores do Rio de Janeiro, impôs restrições de preço nas fontes produtoras que estavam arruinando a lavoura. Aquela coisa de agricultura sempre ser maltratada. dr. Barbosa conhecia profundamente a questão da economia açucareira e acompanhava, como amigo do Agamenon, o que vinha sendo feito no Instituto do Açúcar e do Álcool . Então, ele aceitou. Foi lá. Quando ele chegou lá um antigo funcionário, um chefe de gabinete ou um secretário da presidência, uma pessoa assim, mostrou o gabinete dele e disse: “Olha dr. Barbosa, o senhor não precisa vir todo dia aqui não. Basta o Sr. vir um vez por semana, a coisa anda por si mesma. Ou então a gente manda para sua casa para o senhor assinar”. Ele disse: “Não aceitei uma sinecura , eu aceitei um trabalho, uma responsabilidade.” E passou a dar expediente em tempo integral, o que foi muito bom para o Instituto, muito bom para o Governo e muito bom para o Brasil. Porque um ano depois começou a Segunda Guerra Mundial. E como em toda guerra a importação de petróleo fica muito

leis que transformaram em lei aquelas propostas do dr. Barbosa Lima Sobrinho. Vou dar um salto aqui no tempo porque o local próprio para registrar isso é agora. Ele era constituinte, sem muita participação na Constituinte de 46 porque já era candidato a governador de

Não aderiu ao golpe do Estado Novo. Mas teve as simpatias de Getúlio, que aceitou a eleição dele para presidir o Instituto do Açúcar e do Álcool.

Getúlio Vargas tomou por base as recomendações do parecer para criar o Instituto de Resseguros do Brasil Pernambuco. Então ele vinha para votar. Mas ele, num artigo escrito anos mais tarde, registra que havia uma comissão elaboradora de um projeto constitucional. Esse projeto, no capítulo da ordem econômica, reproduzia o dispositivo da Constituição de 34, dizendo o seguinte: “A lei regulará a nacionalização das empresas de seguros”. Sem qualquer votação, o texto que acabou prevalecendo na Constituição de 46 é completamente diferente. Diz assim: “A lei regulará o regime das empresas de seguro”. Esse texto foi produzido fraudulentamente dentro da Constituinte, porque não foi votado, as votações ficam todas registradas, não há votação dessa mudança. Então, em vez de a lei regulará a nacionalização, passou a ser a lei regulará o regime das empresas de seguros, o que abria brechas. E com base nisso tentaram - logo depois de 1946, as forças econômicas, os interesses econômicos, sobretudo estrangeiros - levantar a tese da inconstitucionalidade desses decretos

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Por que isso? Os EUA e a Inglaterra iriam ignorar a situação política do Brasil? Havia o receio de um levante de direita, havia grandes influências de direita na Argentina e no Uruguai. Havia grandes receios de um levante de direita para tirar o Getúlio e colocar no lugar dele uma junta militar de simpatias pró-nazistas. Por isso é que os EUA ficaram tranqüilizados com a decretação do Estado Novo. E acho que nós devemos agradecer. O Getúlio podia ter saído fora; dizer “não, não aceito isso.” Deixava as suas armadas darem um golpe. Se isso tivesse acontecido o Brasil iria apoiar a Alemanha na Segunda Guerra Mundial. O Getúlio é que, com a capacidade dele de manobra, neutralizou as tendências pró-


reduzida, ele então lançou o Programa do Álcool Motor, um programa que já vinha sendo estudado por técnicos e cientistas. Esse Programa do Álcool Motor ajudava a resolver a crise de mercado da produção canavieira: boa parte da produção canavieira ia se transformar num açúcar para o qual não haveria compradores fora do Brasil. E o mercado interno já estava atendido e quase saturado. Então boa parte dessa produção canavieira se deslocou para a produção do álcool motor. E ele até reagiu com muito bom humor, décadas depois, quando em seguida à crise do petróleo, em 1973, o Governo brasileiro entrou no Programa do Álcool e a publicidade, a divulgação disso falava no álcool motor, na mistura do álcool na gasolina como uma novidade absoluta. Ele escreveu uma série de artigos dizendo: “Olha pessoal, vocês precisam entender que quem descobriu o Brasil não foi o General Castelo Branco, não foi o General Médici, foi em 1500.” Então, tinha nascido também o negócio do álcool a motor e ele até publicou um artigo com a foto de um dos técnicos que tinham desenvolvido. Na verdade foi só uma retomada do programa, porque com o fim da guerra em 1945, com a derrubada do presidente Vargas, aí naturalmente o dr. Barbosa saiu da presidência do Instituto do Açúcar e do Álcool. E uma das primeiras medidas do democratas que derrubaram a Ditadura Vargas foi acabar com o Programa para favorecer as importações de petróleo estrangeiro e, portanto, o interesse das sete irmãs, que já exerciam grandes pressões sobre o Governo Brasileiro. O programa do álcool só veio a ser retomado com a crise do petróleo, que quase nos arrebentou porque elevou o preço do barril de 3 dólares ,primeiro para 13, depois para 30 dólares! A.M.L.: Bem , o aspecto aí para a gente chegar na Constituinte de 46...É que ele também promoveu o estatuto da lavoura canavieira. A gente até pediu um artigo do Chermon. E também alguma experiência de assentamento uma espécie de reforma agrária, na medida que ele comprou uma fazenda para colocar as famílias dentro dessa fazenda. E também é bom lembrar o lançamento que ele faz do seu auxiliar Miguel Arraes, que sai do IAA e vira um seguidor dele no Governo.

Pernambuco, para as zonas rurais, para as zonas canavieiras de Pernambuco. É curioso a gente observar que a comida dessas populações rurais na região canavieira do Nordeste vinha do Rio Grande. Com a cri-

O Estatuto da Lavoura Canavieira, com apoio de usineiros e fazendeiros, acaba sendo a primeira experiência de reforma agrária no Brasil. se, houve uma crise de superprodução em 1929. Foi um desastre porque começou a quebrar tudo, até usinas açucareiras em São Paulo não tinham dinheiro para pagar os seus fornecedores, pagavam em açúcar. O Truda, no Rio Grande, ficou muito preocupado e disse: “Nós temos que dar um jeito na questão do açúcar senão o Rio Grande vai quebrar , não vai ter para quem vender a charque.” O Truda foi o primeiro presidente do Instituto do Açúcar e do Álcool; além de jornalista, era um economista brilhante. Naquele tempo os economistas não se formavam em Harvard nem no MIT, estudavam por aqui mesmo e não dá para dizer que eram piores que os atuais, porque o Truda enfrentou essa crise, começou a regularizar o mercado, a conseguir novos mercados no interior e a equilibrar a produção com o consumo. O papel do Instituto do Açúcar e do Álcool foi esse: estabelecimento de cotas, cota para São Paulo, cota para o Nordeste, cota para essa usina, cota para aquela. Quando o dr. Barbosa assumiu essa questão estava bem encaminhada. E a pedido do presidente Getúlio Vargas, do “fascista” Getúlio Vargas, ele começou estudar o estatuto da lavoura canavieira. E o presidente Getúlio dizia a ele que essa deveria ser a primeira experiência de reforma agrária no Brasil. O dr. Barbosa Lima Sobrinho ouviu do presidente Getúlio Vargas um pedido para promover estudos que conduzissem a uma primeira experiência de reforma agrária no Brasil. Isso explica que hoje o dr. Barbosa tenha a admiração que tem pelo presidente Getúlio Vargas, que ele considera o maior dos nossos presidentes em toda a República. Com o professor Vicente Chermont ele começou a trabalhar nesse estatuto. Mas percebeu que era difícil vingar. Mesmo num governo discricionário como era o Estado Novo, as forças econômicas continuavam sendo as forças econômicas, continuavam a deter parcelas ponderáveis de poder. Ele começou então a negociar. Primeiro tinha a negociação regional en-

Em plena Guerra Mundial, criou o Programa do Álccol Motor para substituir importações de petróleo.

J.A.R.: No IAA, o primeiro problema a resolver foi o da normalização do mercado. Grandes passos já tinham sido dados nesse sentido desde 1931 e, por incrível que pareça, por um jornalista gaúcho chamado Leonardo Truda, que tinha sido diretor do Diário de Notícias de Porto Alegre e era amigo do presidente Getúlio Vargas. Gaúcho, conhecia muito bem a economia açucareira porque ele achava que o dia-a-dia da economia gaúcha dependia da expansão ou, pelo menos, da manutenção do mercado interno no Brasil inteiro. A charque de produção gaúcha era muito vendida para

tre São Paulo, que já era um grande pólo açucareiro, e o Nordeste. Ele começou a negociar com os usineiros que, afinal, se convenceram que com esse estatuto eles teriam que fazer concessões, mas teriam uma certa margem de garantia contra essas crises brutais que arruinavam todo mundo. Aí, tendo atendido os usineiros, o dr. Barbosa disse a eles: “Bom, em compensação, vocês agora vão dar certas garantias aos fornecedores.” Fornecedor de cana é o plantador. Em geral, um grande plantador podia ser até um latifundiário, que não plantava tudo por conta própria, ele arrendava parcelas, aqueles meeiros. Explorava, explorava. Havia um outro grupo na indústria açucareira que, com o Instituto do Açúcar e do Álcool, graças a Deus foi exterminado. Eram os comissários, que eram os compradores ligados às grandes empresas de comércio internacional. Assim como no caso do café, as casas comissárias, em geral, eram dominadas pelo capital estrangeiro e estavam aqui para atender aos interesses do capital estrangeiro. Então o comissário explorava todo mundo, mas o usineiro tinha ainda uma maneira de se defender. O fornecedor não tinha. Às vezes, um grande latifundiário era arruinado, tinha que vender suas terras, essa coisa toda. O IAA começou a operar o mercado internacional do açúcar brasileiro e foi acabando com os comissários. Então, no estudo do estatuto da lavoura canavieira, o dr. Barbosa convenceu os usineiros: “ Vocês têm isso, têm isso de vantagem. Agora vocês vão dar garantias aos fornecedores”. Com o poder que os usineiros tinham junto aos fornecedores, eles podiam chegar para um plantador daqueles e dizer assim: “Não, nós só compramos a tua cana se você der um abatimento de 20%... “. Isso podia ser a ruína do sujeito. Ou então: “Nós não compramos a tua cana” ou “Nós queremos comprar a tua terra”. Tinha muito isso, da usina expandir-se e querer se apoderar das terras em volta. Quer dizer, é um grande exemplo. Há um livro do dr. Barbosa chamado “Problemas Econômicos e Sociais da Lavoura Canavieira”, em que ele discute isso da expansão, como uma das leis capitalistas definidas por Marx no “O Capital”. Barbosa foi até estudar “O Capital”, embora nunca fosse simpatizante do marxismo. Ele conseguiu estabelecer também garantias para os fornecedores, que eram, digamos, os fazendeiros, os donos da terra. Podia haver um pequeno fornecedor, um pequeno proprietário mas, em geral, eram grandes proprietários, que corriam o risco da ruína do dia para a noite. Então, conseguindo garantia para os fornecedores, ele disse: “Agora vocês vão dar garantias para o trabalhador”. Porque era muito mais fácil o fornecedor explorar o trabalhador de enxada do que o usineiro explorar o fornecedor. Era uma coisa brutal. Foi aí que começou essa experiência pioneira de reforma agrária, porque o

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estatuto obrigava o dono da terra a garantir a posse da terra ao meeiro; antes era comum o sujeito dizer: “Não interessa mais o seu trabalho. Vá embora com sua família”. Para fazer pressão e vender, o pequeno, o arrendatário, o meeiro, chegavam com a cana e deixavam a cana ao relento, apodrecendo...No que ela fermentava e azedava, não valia mais nada e o sujeito perdia o trabalho de um ano inteiro lavrando a terra. Então o dr. Barbosa negociou garantias de posse da terra e normas de trabalho para o trabalhador rural, trabalhador braçal e organização dos trabalhadores. Não só foi uma experiência pioneira de reforma agrária, como foi a primeira experiência de sindicalização rural no Brasil. E que só seria retomada em 1962, no gabinete parlamentarista do primeiro ministro Tancredo Neves, quando era presidente da República o João Goulart, A.M.L.: Já na Constituição de 46, ele acaba não tendo uma ação muito expressiva e constante porque, candidato em Pernambuco, começa a enfrentar uma série de recursos, já que foi uma votação muito apertada e ele fica basicamente concentrado nessa briga de tribunais para conseguir a sua posse, defender o seu mandato. Tem um episódio que parece interessante... você contava que na hora da votação da cassação dos comunistas um padre chamou a atenção dele...

Foi também a primeira experiência de sindicalização rural, que só seria retomada com Jango em 62.

J.A.R.: É... as relações dele com os comunistas são muito, muito interessantes, exemplo do espírito verdadeiramente democrático do dr. Barbosa. Quando ele foi lançado candidato a Governador de Pernambuco, o Partido Comunista era legal e forte, sobretudo em Pernambuco e no Rio. O Partido Comunista se dispôs a apoiar a candidatura dele, mas queria indicar um candidato a senador. Só que já estávamos em plena Guerra Fria e se ele aceitasse esse acordo correria até o risco de impugnação da candidatura... Oposição da Igreja, o Governo do General Dutra já era contra porque ele era amigo do Agamenon e o Dutra não gostava do Agamenon. O candidato comunista era fraco e ruim como candidato. E ele já tinha um candidato lançado, o Apolonio Sales (o último Ministro da Agricultura do primeiro Governo Vargas e o inspirador, o iniciador, da hidrelétrica de Paulo Afonso; o primeiro grande projeto de energia hidrelétrica no Brasil, controlado pelo Brasil, porque o resto era tudo da Light, desses grupos corsários estrangeiros). Não tinha cabimento o dr. Barbosa retirar a candidatura do Apolônio para lançar um obscuro candidato do Partido Comunista. O partido disse: “Olha, nós não apoiamos a sua candidatura”. O Partido Comunista lançou a candidatura Pelópidas Silveira(?) ao governo do Estado. O Pelópidas só tirava votos do dr. Barbosa. São grandes amigos hoje, mas Pelópidas hoje é do Partido Socialista. Jornal da ABI


Mas isso diminuiu muito a votação do dr. Barbosa na cidade do Recife, onde o Partido comunista era muito forte. Ele chegou no fim das apurações com 500 e poucos votos na frente do candidato da UDN, chamado Neto Campelo, que, aliás, saiu do PSD - tinha sido posto na comissão executiva do PSD por ele, dr. Barbosa. O Neto Campelo era advogado dos banguezeiros, o banguê era o antigo engenho de açúcar que estava desaparecendo por causa da expansão das usinas. Mas, enfim, toda essa política do IAA também tinha aquela coisa de não deixar os banguezeiros serem arruinados, o ideal era que eles se transformassem em usineiros. Então, ele pôs o Neto Campelo na executiva do partido porque achava importante o PSD ouvir o parecer dos banguezeiros, num estado açucareiro como Pernambuco. Mas o Neto Campelo foi envolvido pelo pessoal da UDN, saiu, quis que o dr. Barbosa retirasse a candidatura. A candidatura já estava lançada, aprovada em convenção. O dr. Barbosa disse assim: “Eu não tenho nenhuma ambição de ser governador. Você se entenda lá com o partido; se o partido retirar eu não vou ser obstáculo. Agora, tomar a iniciativa de retirar eu não posso.” Bom, chegou no fim da apuração com 500 votos de diferença. Então, juntaram-se alguns dos mais importantes advogados de Pernambuco e do Rio e entraram com uma série de impugnações querendo anular urnas em que o dr. Barbosa tinha ganho, para poder reverter o resultado. Era inconcebível imaginar que tivesse havido fraude a favor do dr. Barbosa, porque o General Dutra, o presidente da República, era contra ele, e o interventor federal em Pernambuco, General Demerval Peixoto, também era contra ele. Então podia-se falar em fraude contra o dr. Barbosa, mas a favor não. Mas aí vem aquela verdadeira chicana e os primeiros recursos foram ao Tribunal Regional Eleitoral. O dr. Barbosa ganhou tudo. Aí vieram recursos para o Tribunal Superior Eleitoral. Na época havia um código eleitoral, uma cláusula pela qual esse tipo de recurso tinha efeito suspensivo: enquanto esses recursos não fossem julgados, não poderia tomar posse. Isso levou um ano. Ele foi eleito em janeiro de 47, dias depois ou dias antes de ter completado 50 anos de idade - e só tomou posse em fevereiro de 48. Ele não tinha recursos para pagar grandes advogados, ele mesmo tinha que se defender. Ele estava aqui no Rio, era deputado, mas tinha que ir todo dia ao tribunal. Parece que usou da palavra do tribunal, em defesa oral, 118 vezes. Até já pedia desculpas aos ministros. Ele dizia: “Olha ministro desculpa, mas sou só eu, do outro lado era cada dia um”. E eram os maiores advogados. Mas foi indo e... resultado: na sentença final no Tribunal Superior, a diferença originária que era de 500 e poucos votos subiu para 800 ou 900 e tantos. Aí é que ele pôde ser empossado. Ele podia então se considerar indiferente ao destino dos comunistas; mas ele estava no exercício do mandato, lutando no tribunal, quando a Câmara foi chamada a decidir sobre a cassação dos mandatos dos deputados comunistas, sobre os candidatos eleitos pelo Partido Especial - Barbosa Lima Sobrinho

Monsenhor Valfredo Gurgel, que disse: “dr. Barbosa, senta, olha o seu mandato de governador!”. Ele ficou em pé e respondeu: “Monsenhor, muito obrigado pela sua consideração para comigo, mas a esse preço eu prefiro perder o mandato.”

Foi eleito governador de Pernambuco com apenas 500 votos de diferença.

A.M.L.: Tem até um outro episódio que Josué de Almeida contava, que foi o fato de as forças policiais terem, como era de praxe nessa primeira metade do século, resolvido a coisa quebrando o jornal. E a reação dele como governador foi obrigar a reconstrução do jornal que tinha sido depredado pelas forças policiais.

Passou mais de um ano nos tribunais para conseguir tomar posse. A diferença de votos quase dobrou. Depois de 118 defesas orais, chegou a pedir desculpas pela repetição aos juízes.

J.A.R.: Apesar dele ter votado contra a cassação do mandato dos comunistas, colocando em risco o seu próprio mandato de governador - tanto que logo que ele assumiu houve articulação de um plano para intervenção federal em Pernambuco o Partido Comunista e o jornal do Partido Comunista, dirigido pelo Josué, não ficaram simpáticos ao dr. Barbosa. Ele conta, num artigo muito posterior sobre um outro assunto, que marcou uma entrevista coletiva logo que foi tomar posse, em 48, para tratar dos assuntos de Pernambuco. Mas a Guerra Fria estava num momento brabo e o Partido Comunista estava numa fase particularmente sectária. Até porque o outro lado tinha sectarizado também . Era dos dois lados. Então o repórter do jornal do Partido Comunista (o partido tinha sido fechado, os deputados tinham sido cassados, mas o jornal podia circular porque não era oficialmente vinculado ao partido, era vinculado a uma empresa comercial, tinha diretor) perguntou a ele sobre a bomba atômica. Ainda não se tinha chegado na fase da bomba de hidrogênio, mas a corrida nuclear estava se acelerando. E o repórter pergunta a opinião dele sobre a bomba atômica. Ele diz: “Olha, esse não é um assunto em que o Governador de Pernambuco possa ter qualquer influência, mas já que você está pedindo minha opinião, eu vou te dar a opinião de alguém que tem escrito muito sobre a questão de direitos internacionais e política internacional, inclusive um livro sobre direito de guerra” (o primeiro livro dele). “ O que se nota, eu digo naquele livro e isso hoje está mais claro ainda, é que nenhum país abre mão de qualquer arma nova que a tecnologia lhe tenha tornado acessível.” Uma constatação absolutamente realista. Mas ele começou a ser atacado nesse jornal do Partido Comunista como “Governador Barbosa Lima, o Amigo da Bomba”. Tempos depois um destacamento da Polícia Militar, principalmente por ordem de um delegado de Polícia Civil, atacou e empastelou o jornal do Partido Comunista, que era dirigido pelo nosso companheiro Josué de Almeida. Desmontaram tudo, o jornal parou de funcionar. A direção do jornal queixou-se ao Governador Barbosa Lima, que demitiu o delegado; determinou que a Polícia Militar consertasse as máquinas escangalhadas; e anunciou que tiraria das verbas da Polícia Militar o dinheiro necessário não só para esse conserto como para o jornal voltar a ser impresso em alguma outra gráfica. Eu acho que vem daí o encanto do Josué pelo dr.

Comunista. E ele foi votar e o PSD de Pernambuco (o PSD depois acusado de partido tão conservador e tão reacionário), decidiu defender o mandato dos comunistas , dizendo que o mandato tinha sido conferido pelo povo, a Câmara não podia cassar. Uma coisa era o Tribunal Eleitoral fechar o Partido Comunista, o que já foi uma violência. Engraçado é que quando o Brasil reatou relações com a União Soviética, em 1945, fez isso a pedido do governo americano e em seguida a uma passeata de estudantes que tinha à frente o Brigadeiro Eduardo Gomes, símbolo depois do anticomunismo. Com a Guerra Fria vieram as pressões para fechar o Partido Comunista e o Tribunal fechou. A Câmara foi chamada a opinar sobre os mandatos. Era uma questão de princípio. Então começou a votação simbólica. O presidente da mesa dizia: “Os

Votou contra a cassação dos comunistas: "a esse preço, prefiro perder o mandato." senhores deputados que aprovam a cassação permaneçam sentados. Os senhores deputados que votam contra a cassação queiram se levantar.” Ele se levantou imediatamente, aí sentiu que estavam puxando a aba do paletó... e quem estava puxando a aba do paletó era um deputado do Rio Grande do Norte,

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Barbosa. A partir daí ele ficou sendo amigo do dr. Barbosa e é uma amizade emocionada. Até nas últimas vezes em que o Josué pôde vir nas reuniões aqui na ABI, a atitude dele diante do dr. Barbosa... parece que foi ontem que o dr. Barbosa mandou consertar o jornal dele. A.M.L.: O que você diria sobre esse período de governo em Pernambuco? Como caracterizar o que foi a administração do Governador Barbosa Lima Sobrinho? J.A.R.: Bom, ele assumiu ameaçado. Havia de fato uma articulação para decretar a intervenção federal em Pernambuco, aproveitando a antipatia do General Dutra pelo Agamenon Magalhães. Parece que o Dutra, em 45, época em que foi lançado candidato à presidência, teria ouvido uma frase até grosseira do Agamenon: “... esse velho acha que vai ser presidente” . Mas houve ainda um outro episódio que também pode ter servido de pretexto para isso. Em novembro de 48, houve num cemitério do Recife uma cerimônia, igual àquela que se realiza todo ano aqui no cemitério no Rio, em homenagem aos mortos da Insurreição Comunista de 1935, de novembro de 35. O dr. Barbosa foi. Nem tinha razão para não ir, até porque, primeiro, ele nunca foi comunista e sempre foi contra as soluções de força, foi contra 35 e foi contra depois o negócio dos integralistas. E nessa fase entre 35 e 37, ele votou pelo fechamento de todas as organizações radicais, o que incluia a Aliança Nacional Libertadora, que era ligada ao Partido Comunista, e também o Partido Integralista, que era a direita raivosa. Ele foi, fez um discurso, depois havia outros oradores. Mas o que tinha sido designado para falar em nome dos militares era um civil, um delegado de polícia chamado Vandenkolk Vanderlei, que se notabilizou na luta em Pernambuco contra os insurretos da Aliança Nacional Libertadora e que depois, já no período pós-64, foi deputado estadual pela ARENA. Era daqueles duros que prendiam e faziam aquelas barbaridades todas. Anticomunista de carteirinha, histérico. Esse camarada faz um discurso em que acusa diretamente os Secretários de Estado do Governador Barbosa Lima Miguel Arraes, Secretário da Fazenda, e Barros Barreto, Secretário da Educação. O dr. Barbosa já tinha falado, não deveria falar de novo, mas ficou tão indignado com essa rasteira, com essa coisa grosseira, cafajeste... assim que o camarada parou de falar, ele não esperou e começou a falar. Graças a Deus esse discurso foi preservado, porque ele ficou tão indignado com aquilo que saiu de lá, foi para o Palácio, sentou e escreveu o discurso, que acabou sendo publicado num volume que reúne os pronunciamentos dele como governador. Esse discurso foi mais ou menos assim: “Aqui perto de onde estamos está diante dos nossos olhos o túmulo do Joaquim Nabuco, o maior dos líderes da Campanha Abolicionista. No seu tempo, o Joaquim Nabuco foi acusado de comunista, de anarquista, de não sei mais o quê, porque queria a libertação dos escravos. Hoje, pessoas que querem reformas sociais pacíficas ouvem a


mesma acusação”. E matou a pau. Acabou de falar, saiu pisando duro e o General, comandante daquela região, muito embaraçado - quem escolheu o tal delegado foi outra pessoa - foi atrás do dr. Barbosa e quando o dr. Barbosa ia entrando no carro quando o General conseguiu estender a mão e dizer: “desculpe, Governador”. E o governador, que não é um homem de zangas, disse : “Passe bem, General.” Entrou no carro, foi para o Palácio e escreveu o discurso. E manteve os dois secretários. O Arraes saiu logo depois ou algum tempo depois para ser candidato a deputado estadual pelo PSD e iniciou a carreira política exemplar que vem desenvolvendo até hoje. E não foi a única vez em que ele foi chamado de comunista, teve até que ser exilado. Mas enfim, essa ameaça de intervenção se dissipou com a visita que o General Dutra fez a Pernambuco. Eu não lembro se ele foi visitar as obras da hidrelétrica de Paulo Afonso ou alguma obra, mas ele foi a Pernambuco e aí naturalmente foi recebido no Palácio pelo dr. Barbosa. No fim da visita, o chefe do Gabinete Militar, General Alcio Souto (do grupo mais ferozmente anti-getulista do Exército, teve uma participação muita ativa na derrubada do Getúlio em 45 e até acho que teve um comportamento meio indelicado com a família do Getúlio no Palácio Guanabara. Só para mostrar que o homem estava deposto, era um sujeito assim, durão. Mas um homem de bem, um homem de boa fé, meio grosso, mas um homem de boa fé), foi ao dr. Barbosa e disse “Governador, eu preciso lhe dizer uma coisa: de fato, houve propostas e pressões para uma intervenção federal em Pernambuco, mas depois de tudo que nós vimos eu posso lhe dar a minha palavra, em nome do presidente Dutra, de que não haverá intervenção em Pernambuco, porque o seu governo é um governo exemplar”. E aí acabou esse episódio. E era de fato um governo exemplar.

do de que no município de Angelim, uma fazenda de produção agrícola - onde trabalhavam e viviam quatrocentas famílias (no Rio de Janeiro são 1600 pessoas, quatrocentas famílias no Agreste ou no Sertão de Pernambuco talvez sejam 3000 pessoas) seria desativada para criação de gado. Nas regiões rurais é comum ouvir a expressão “o boi expulsa o homem”, porque um peão de fazenda controla um rebanho inteiro, agora para plantar precisa de muita gente. Ainda mais naquela agricultura extensiva, primitiva, que se praticava lá. O dr. Barbosa percebeu a gravidade do problema social que isso criaria, até

AMIL

A.M.L.: Bem, quando ele deixa o Governo de Pernambuco, ele volta e tem... J.A.R.: Isso também é bom registrar no Governo de Pernambuco. Ele tinha feito aquela primeira experiência de reforma agrária com o estatuto da lavoura canavieira. Ele foi informa-

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Governador, mandou a polícia recuperar os estragos do empastelamento no jornal comunista.

porque outras fazendas passariam pelo mesmo processo. E o que ele fez ? Mandou chamar o proprietário e disse que ele não podia desapropriar a fazenda. Primeiro, porque não estava regulamentado o mecanismo da desapropriação por interesse social, que figurava na Constituição e, segundo, porque, pelo entendimento da época, só o Governo Federal poderia, depois de regulamentado esse dispositivo, executar a desapropriação por interesse social E assim mesmo pagando a indenização em dinheiro e previamente. Então ele chamou o proprietário e disse: “O Governo compra a sua terra e o Sr. compra uma outra terra que não tenha ninguém e faz a sua pastagem”. Não sei foi o Arraes que conduziu isso ou se foi o Secretário da Agricultura. Determinou que os órgãos administrativos do Estado fizessem um estudo do preço da terra naquela região, em função da fertilidade, produtividade, aquilo tudo, para que fosse um preço indiscutível e que não pudesse ser impugnado no Tribunal de Contas como sendo um preço favorecido para beneficiar um amigo, para dar comissão para o governador ou contribuição para caixinha da eleição seguinte. Bom, fez-se a compra, não houve impugnação, todo mundo reconheceu que era um preço justo, qualquer particular que fosse comprar aquela terra pagaria aquilo mesmo, que não houve favorecimento, não houve comissão, não houve nada disso. Então ele manteve as famílias lá e dividiu a terra para cada família ter o seu lote. Mas, para evitar os malefícios do minifúndio, que ele já discutia desde o livro “Problemas Econômicos e Sociais da Lavoura Canavieira”, de 41-43, ele organizou uma cooperativa para que a terra fosse explorada solidariamente por aquelas famílias todas, que se tornaram proprietárias daquelas terras. De modo que a primeira experiência efetiva de reforma agrária no Brasil foi feita por dr. Barbosa Lima Sobrinho como presidente do Instituto do Açúcar e do Álcool. A segunda experiência efetiva de reforma agrária no Brasil foi feita pelo Governador Barbosa Lima Sobrinho. Houve uma terceira feita pelo Governador Leonel Brizola no Rio Grande do Sul e não se sabe de muitas outras. Jornal da ABI


A DIFICULDADE ECONÔMICA DO AÇÚCAR Para regular um mercado complexo e peculiar, Barbosa chegou a pesquisar O Capital de Marx Vicente Chermont de Miranda Ao dr. Barbosa Lima Sobrinho o Brasil ficou devendo a bravura de promover a reformulação da disciplina jurídica da agro-indústria canavieira e a serena firmeza com que assegurou a sua efetiva implantação durante todo o período que presidiu os destinos do Instituto do Açúcar e do Álcool. Na verdade, o Estatuto veio dar solução definitiva ao problema do relacionamento da indústria açucareira, isto é, das usinas de açúcar com os demais elementos da produção a saber, operários, trabalhadores, lavradores assalariados e fornecedores de cana em terras próprias ou alheias. Ao assumir a presidência do Instituto, em 1938, o eminente dr. Barbosa Lima Sobrinho verificou, desde logo, que o problema não somente era de âmbito nacional, como principalmente de natureza sócio-econômica, a exigir a instituição de um regime permanente de equilíbrio e harmonia entre todos os setores interessados, a usina, os consumidores e o Estado. Não se tratava, pois, de uma emergência a resolver com paliativos, mas de um conflito quatro vezes centenário a exigir planejamento completo para solução duradoura. Para isso era mister, preliminarmente, colocar o problema em seus verdadeiros termos, como aquela específica oposição de interesses que a doutrina jurídica classifica como conflitos de categoria. Era preciso descer ao fundo do problema para diagnosticar o porquê do conflito, e a sua natureza específica, pois não se tratava de uma simples contraposição de interesses, mas, na realidade, de uma luta que se vinha compondo, arbitrariamente, na base do poder, ou, mais exatamente, da força de um lado e sob a pressão da necessidade, de outra parte. Para que a composição dos conflitos desse tipo se possa realizar em termos de justiça, a primeira condição é realmente a da igualdade das partes adversas; igualdade não somente em termos jurídicos, mas especialmente em termos de posição, de situação e de poder. Nos conflitos de categoria, de um modo geral, é exatamente o que não ocorre, porque de um lado comparece um contratante fortalecido pelo poder econômico que ajusta, individualmente com cada um dos titulares dos interesses opostos, as condições do contrato. Além disso era mister ter presente que toda a economia canavieira se baseia em fato técnico de importância considerável pelas extensas repercussões que tem, não apenas sobre a organização industrial, como, também, sobre o sistema de exploração agrícola, a saber: o fato de que a cana-de-açúcar, uma vez cortada, deve ser aproveitada industrialmente dentro de 24 ou 48 horas, no máximo, pois a partir desse prazo o processo de inversão da Especial - Barbosa Lima Sobrinho

sacarose assume proporções suscetíveis de prejudicar enormemente o respectivo rendimento industrial. O estabelecimento fabril que irá aproveitar o algodão colhido pelo lavrador pode ficar situado a centenas de quilômetros da respectiva lavoura; o trigo, o arroz, depois de submetidos a um rápido beneficiamento, podem suportar longas caminhadas, sem nada perderem de sua substância. A cana-de-açúcar, porém, uma vez colhida, não resiste ao tempo e o seu aproveitamento imediato torna-se assim uma contingência econômica inelutável. Daí decorre conseqüências que não podem ser ignoradas pelo legislador porque se vão refletir, não apenas no regime de exploração da terra, como, até mesmo, no tipo de propriedade. Efetivamente, a fabricação de açúcar só é possível desde que a cana seja plantada nas redondezas da usina, nas suas circunvizinhanças, de forma a permitir a utilização dentro daquele prazo de 24 ou 48 horas a partir da colheita. Esta circunstância técnica da produção de açúcar se reflete, imediatamente, na terra; a instalação de uma usina em determinada região como que impõe a necessidade de se atribuir às terras circunjacentes um destino específico, a saber, o da lavoura de cana. Poderíamos dizer que a implantação de uma usina acarreta a predestinação das terras circunvizinhas ao cultivo da canade-açúcar. Por outro lado, se uma propriedade agrícola está em posição tal que possa indiferentemente fornecer suas canas a duas ou três usinas da região, já a regularidade do fornecimento irá periclitar

A plantação da cana-de-açúcar, tradição histórica brasileira, gera latifúndio e ressentimentos que passam de geração a geração. porque ficará na dependência do preço pago pelas usinas concorrentes, por força do funcionamento normal do princípio da liberdade de contratar. Todavia, se a matéria-prima é abundante em região onde não há senão um estabelecimento industrial, a posição das partes mudará substancialmente, pois que a produção do lavrador não interessa a qualquer pessoa, mas somente àquela que disponha de usina para transformá-la em açúcar. Nestas condições, sendo a matéria-prima abundante, enquanto que para a usina a compra representa uma “faculdade” para o lavrador a venda

significa uma “necessidade”. Rompe-se, assim, o equilíbrio das partes na formação do ajuste e um dos contratantes imporá ao outro a sua vontade. Se a matéria-prima é escassa, em conseqüência de uma calamidade agrícola, e duas ou três são as usinas interessadas em abastecer -se, a situação transforma-se radicalmente, pois a posição das partes na formação do

Se não for utilizada em 48 horas, no máximo, a cana-de- açúcar perde a capacidade de rendimento industrial. contrato inverter-se-à, ficando o lavrador na situação privilegiada de escolher o comprador que melhor pague e a usina, premida pelo imperativo de fazer funcionar suas moendas, na contingência de aceitar o preço que resultar do leilão das canas entre os prováveis interessados. A crueza desta luta gerava ressentimentos que se prolongariam nas safras seguintes e se transmitiriam de geração a geração. Mas a indústria não podia viver e prosperar em um ambiente de sobressaltos que logo apontavam quando a carência da matéria-prima determinava o leilão das canas e o desvio delas para outras usinas que melhor preço oferecessem. Essa exigência de segurança, na produção, gerou a tendência latifundiária que é um constante na evolução histórica da usina. Só havia um meio para o senhor de engenho prevenir-se contra o desvio das canas e evitar as oscilações de preços: consistia em assenhorar-se da maior porção de terra possível, a fim de garantirse contra a instabilidade do fornecimento. O surgimento dos grandes latifúndios açucareiros, desta forma, embora pudesse significar, em casos isolados, uma simples manifestação do instinto senhorial de domínio, na maioria dos casos correspondia, na realidade, a um imperativo de segurança. Ante tal realidade, era mister instituir um sólido regime da solidariedade e responsabilidade e, ao mesmo tempo, tornar desinteressante ou inútil para a usina a posse de vastos latifúndios. Diversas soluções seriam possíveis mas o Estatuto preferiu aurir, nas instituições jurídicas da colônia, os subsídios indispensáveis ao

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levantamento de uma construção duradoura, que constituísse não somente uma solução satisfatória do problema, mas ainda a que melhor se harmonizasse com a índole de nosso povo e a estrutura de suas instituições civis. Vimos, ao colocar os dados elementares da questão, que as terras adjacentes à usina apenas interessam a esta na medida em que se constituem como núcleos de produção. Daí decorre a necessidade de dar a tais núcleos uma participação efetiva nas vantagens do sistema nacional de defesa da produção de açúcar, enquadrando-os em tratamento legal capaz de protegê-los e ampará-los, como unidades de produção, consideradas em seu aspecto estático e também em seu aspecto dinâmico. O titular da exploração agrícola teria de ser protegido, não como simples proprietário, usufrutuário, arrendatário ou meeiro, mas como responsável pela direção de uma unidade produtiva, jungido a uma função econômica de que lhe derivam encargos e deveres, mas de que também descendem direitos e interesses protegidos; entre os quais não seria o de menor valia a segurança da efetiva colocação de sua produção, mediante garantia de moagem, preço justo e irredutível ao arbítrio de uma só das partes. A participação destes núcleos de produção no sistema de defesa do açúcar estaria assegurada pela concessão aos mesmos de cotas de fornecimento de cana, enquanto a segurança do agricultor, relativamente ao fruto de seu trabalho, e o interesse da usina, quanto à certeza do abastecimento, seriam garantidos através da adesão dessa cota de fornecimento,

Barbosa Lima foi estudar o conceito colonial da 'cana obrigada' para tentar reduzir os conflitos de interesses de latifundiários e plantadores. não à pessoa do fornecedor, mas ao fundo agrícola em que se encontrasse a lavoura que iria servir de base à sua fixação. Nasceu, assim, o instituto do fundo agrícola de que o legislador brasileiro haveria de fazer a pedra angular da renovação agrária canavieira, e que, no nosso direito, não constituía uma novidade improvisada, mas a mera transposição, para o setor agrícola, daquele conceito de corpo místico a que se refere o cronista do século XVII e de que nos dá ciência o dr. Barbosa Lima Sobrinho, na magnífica exposição de


motivos que acompanhou o anteprojeto do Estatuto da Lavoura Canavieira, peça de consulta obrigatória para todos os estudiosos dos assuntos canavieiros. Quando consideramos uma propriedade agrícola com sua terra e suas lavouras, seus móveis e semoventes, suas benfeitorias e instrumentos agrários, não temos diante de nós apenas um conjunto de coisas mais ou menos ligadas por força de sua destinação única, como quer o direito civil, mas uma unidade econômica em operação, realizando determinada função sócio-econômica, sob a direção de um chefe da exploração agrícola. A essa entidade, que é uma organização em funcionamento, dotada de cota de fornecimento junto a determinada usina, destinada precipuamente ao cultivo de cana-de-açúcar e exercendo uma função sócio-econômica definida, chamamos fundo agrícola. A vinculação da cota a determinada usina e a determinada terra restaurou em nosso direito, sob a forma mais precisa, o antigo conceito colonial da cana obrigada de que o sr. Barbosa Lima Sobrinho nos dá notícia, em seu precioso trabalho, escrito para o número de estréia da Revista de Direito Agrário. Sob o ponto de vista de sua organização, o fundo agrícola representa uma unidade econômica, isto é, um núcleo habilitado à produção de riqueza; sob o ponto de vista de sua função ele é, antes de mais nada, uma unidade de subsistência, isto é, um núcleo de produção que possibilita a manutenção de uma família rural e dos agregados da fazenda. A aderência da cota a esse fundo tem a virtude de impossibilitar a negociação isolada da cota, que seria um verdadeiro desastre, pois conduziria, inevitavelmente, à supressão da figura do fornecedor. E este - configurado como um lavrador radicado à terra que dela retira o sustento seu e de sua família e que nela vê a segurança de seu futuro representa a força conservadora indispensável para compensar o elemento instável e vibrátil, constituído pelo operariado das grandes indústrias. A máquina, de um lado, com sua força desumanizante e dissolvente, e a terra, do outro lado, como fator de conservação e estabilidade. Atendendo a esse objetivo, o Estatuto estendeu, desde logo, a sua ação protetora aos fornecedores propriamente ditos, aos lavradores de usina e aos lavradores de engenho, instituindo o regime de contratos-tipo para regular a respectiva situação que haveria de ser completamente disciplinada, pouco tempo depois, através do decretolei 6.969, de 19 de outubro de 1944, elaborado ainda sob inspiração do Instituto do Açúcar e do Álcool.

Vicente Chermont de Miranda, advogado, ex-procurador geral do IAA e autor do anteprojeto do Estatuto da Lavoura Canavieira.

REVIVENDO O GOLPE DE 1937 Passados quase 60 anos, análise de documentos permite rever a história Maria Cecília Ribas Carneiro Em 1937 o clima político no Brasil se encontrava profundamente agitado. A insurreição de 1935 ainda não havia aplacado os ânimos de todas as correntes políticas. Prestes e Harry Berger foram presos somente em 1936. Havia uma grande confusão, por divergências partidárias, dentro do Congresso Nacional. No Rio Grande do Sul era grande a luta partidária. A Frente Única em oposição ao governador Flores da Cunha travava a sua batalha na Assembléia. Os políticos gaúchos reclamavam de Vargas a intervenção nos desacordos que ocorriam no Rio Grande do Sul. Desde 1935 que Vargas e Flores, quando se comemorou o centenário Farroupilha, não se entendiam. Em gíria gaúcha, da época, eles daí por diante andavam “se encostando as orelhas”. Acordos e desacordos, mas nenhum confiava no outro. A atividade de elementos que apoiavam Flores da Cunha concentravam forças, chamadas de provisórios, em várias localidades, apesar de ter havido a nomeação do general Lúcio Esteves para o comando da 3ª Região Militar. Mas a intriga política confunde os militares. Vargas não permite que se encerrem os

trabalhos na Assembléia gaúcha, pois lá tinha maioria. E age com moderação, mas seus amigos exigiam uma ofensiva fulminante contra Flores. A agitação política repercute na bancada federal. O ministro da Guerra de então era o general Eurico Dutra. E escreveu ele algumas anotações. 4 de julho de 37: “O deputado Macedo, pessoa chegada ao dr. Getúlio, em palestra comigo, embora em tom de brincadeira, manifestou receio de o gen. Flores da Cunha cercar-me de gentilezas no Rio Grande na minha próxima viagem àquele estado, e procurar me atrair para a sua causa.” No dia 5, diz o general: “Muito cedo esteve no meu gabinete ministerial o deputado Batista Luzardo, muito interessado pelos aspectos políticos do momento e pela minha viagem ao Sul. Cada vez mais antagonista de Flores.” Dia 6, ele diz que falando ao presidente “Declarei-lhe, então, que pretendo orientar os oficiais das guarnições sobre a conduta que lhes impunha a situação, especialmente no caso particular da reunião de forças irregulares do Flores em torno das guarnições, hipótese em que as forças do Exército deveriam assumir a iniciativa de dispersá-los de qualquer modo.” Dutra vai ao Sul e é recebido com

todas as honras pelo governador Flores da Cunha. Este fala-lhe mansamente e diz que só se preocupa em manter a calma em todo o estado, mas que estava disposto a defender a dignidade e autonomia do estado. Quanto aos Corpos Provisórios, estavam praticamente dissolvidos, conservando apenas cerca de 1.800 homens, que estavam sendo utilizados em serviços diversos. Dutra depois de visitar várias corporações do Exército em diferentes cidades gaúchas, regressa ao Rio no dia 16 de julho, tendo passado por Florianópolis para um entendimento com o general Daltro Filho, comandante da 5ª Região Militar. No dia 19 visita o presidente Vargas e dá conta de sua missão. No dia 25 Dutra vai, à noite, ao Guanabara: “Em sua conversa comigo, referiu-se, o dr. Getúlio, ao propósito em que se encontra de intervir militarmente no Rio Grande do Sul” e expõe-lhe o plano. Mas Dutra diz que não encontra motivo para essa intervenção. Combina com Getúlio a mudança de comando da 5ª R.M. O general Lúcio Esteves será substituído pelo general Daltro Filho. Em 1º de agosto o tenente-coronel Oswaldo Cordeiro de Faria procura Dutra preocupado com a possível intervenção

DOCUMENTOS PROIBIDOS Recentemente, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro comemorou o segundo centenário da imperatriz Leopoldina. Houve um excelente seminário, em que falaram pessoas do mais alto gabarito. Pois bem, notei que ainda há muito que se estudar sobre a infeliz imperatriz, que tanto amava seu esposo e foi trocada pela marquesa de Santos. Fora as tristezas da perda de filhos, e de tantos acontecimentos que a fizeram sofrer. No entanto, devemos muito a ela a nossa Independência, o que não é comumente divulgado. E vejam bem - decorridos duzentos anos e ainda não se pode dar uma completa opinião sobre o papel daquela jovem muito culta e que deixou a corte austríaca, que na era pós-napoleônica era um dos maiores centros políticos da Europa, quiçá do mundo, para vir a um país distante como o Brasil onde não havia quase nada e de clima atmosférico e cultural completamente diferentes. Nos meus quase 30 anos de trabalho com a história do Brasil contemporâneo tenho sempre evitado fazer uma análise e opinar sobre o acontecimento. A razão é simples. Os fatos históricos custam a decantar. Há necessidade de se aguardar um longo tempo para se poder dizer com alguma segurança se houve influências de esquerda ou de direita, se um personagem agiu

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acertadamente, se serão corretas as deduções já tomadas pelo público em geral etc. Por isso tenho me dedicado a escrever baseada em pesquisas documentos, entrevistas e tudo que possa descrever o fato, mas sempre citando as fontes. Além da cronologia do golpe, vale a pena ressaltar aqui um episódio marcante - envolvendo a origem dos documentos - que quase transforma em réus dois historiadores. Por volta dos anos 60, quando o marechal Dutra já se retirara da vida pública, Hélio Silva e eu fizemos uma grande amizade com ele. Não faltávamos às reuniões de domingo em sua casa, à rua do Redentor. Foi assim que ele ficou a par de nossos estudos de História. Por isso nos convocava para umas reuniões mais íntimas, de manhã, durante a semana. Não seríamos incomodados. E tanto interesse mostrou pelo nosso trabalho que foi nos dando, aos poucos, documentos de seu arquivo pessoal e nos prometeu que todo ele seria nosso. 'Quando morreu, Hélio e eu fomos convocados para uma reunião com a família de Dutra, já no apartamento da Av. Rui Barbosa. Lá chegando, estava armado um tribunal. De um lado cadeiras para a família, do outro só duas, uma para mim e outra para o Hélio. Este

cenário tinha sido armado para nos informarem que não receberíamos mais qualquer documento do presidente e mais, que teríamos de devolver tudo o que tínhamos. No dia seguinte esteve um oficial de Justiça em minha porta e na de Hélio também, para nos avisar que seríamos réus de uma ação judicial caso não entregássemos o que tínhamos. O que fazer? Aceitar. Com isso não escrevemos o livro que pretendíamos fazer sobre o nosso querido amigo. Anos depois, 1983, fomos surpreendidos com a publicação de um volume, de quase 800 páginas, que é um verdadeiro catálogo de telefone, com uma enorme coleção de documentos do velho marechal, produzido por seus dois genros. Como eles não são historiadores, o livro é apenas uma seqüência de documentos.' Como já se passaram tantos anos de proibição, e os documentos já foram publicados, desinteresseime do assunto. Agora, por acaso, fazendo uma arrumação no meu arquivo encontrei alguns dos primeiros papéis que ele nos dera, em xerox. E foi baseado justamente no diário manuscrito de Dutra que escrevi este texto para a edição especial do Jornal da ABI.

Jornal da ABI


no Sul. Ele era partidário da candidatura de José Américo à Presidência da República e teme a impossibilidade de realização das eleições para a sucessão presidencial. A 2 de agosto, José Américo conversa com Dutra e declara sua preocupação com umas declarações de Goes Monteiro que teria dito que haveria necessidade de ser implantada entre nós uma espécie de ditadura. Os meios políticos nacionais começam a se agitar, temerosos que a intervenção no Rio Grande venha mudar os planos eleitorais. No dia 15 José Américo torna a procurar Dutra, temeroso da intervenção militar no Rio Grande do Sul e suas conseqüências face às próximas eleições. No dia 26, em palestra com o gen. Dutra, Getúlio formula três hipóteses de intervenção no Rio Grande: 1ª) nomeado o interventor, Flores se conformará e deixará o governo; 2ª) reagirá pelas armas e o Exército terá que engajar-se na luta; 3ª) recebida a ordem para atuar no sentido de dar cumprimento à decisão do governo federal, o Exército recusará total ou parcialmente. Se isso se der, acrescentou Getúlio, renunciará ele ao governo. Deixou o presidente de considerar a hipótese, bem plausível, de a luta vir a generalizar-se após o início das hostilidades no Sul. No dia 28 Dutra telegrafa ao gen. Daltro mostrando-lhe a conveniência de concentrar tropas em Porto Alegre, a fim de ficarem em condições de atender a qualquer eventualidade. No dia seguinte, o ministro da Guerra, em resposta ao senador Medeiros Neto, que lhe perguntara sobre como seria o papel do Exército face a uma provável intervenção naquele estado; afirma que se a propalada intervenção viesse a se processar dentro das normas legais e se fosse necessária a cooperação do Exército, este, naturalmente, não faltaria. Dutra é procurado sucessivamente por vários políticos de projeção na época.

Uns são a favor da intervenção no Rio Grande, outros a temem pois pode atrapalhar o processo de sucessão presidencial e outros ainda sugerem a prorrogação do mandato de Vargas por mais um ou dois anos, como o padre Arruda Câmara. No dia 16 de setembro Getúlio toca

Dutra lança em seu diário: notícias de que Getúlio quer renunciar, e não prorrogar o mandato, mostram o quanto os jornalistas ignoravam os bastidores do poder. no assunto da prorrogação do mandato com Dutra. Mas no dia 17, o jornal Imparcial, e outros matutinos, anunciam que dr. Getúlio se opõe a qualquer prorrogação de mandato. Ainda mais, que deseja renunciar antes de terminar o período presidencial. E Dutra lança em seu diário que essas notícias mostram o quanto os jornalistas estavam ignorantes do que estava ocorrendo nos bastidores. A 18 de setembro Getúlio tem uma conversa franca com Dutra. Aludiu ao malogro de Benedito Valadares em conseguir uma revisão da Constituição com o fim de permitir a prorrogação do mandato presidencial. Por outro lado, o lançamento de uma terceira candidatura encontraria a oposição de José Américo e Armando Sales, ambos candidatos. Getúlio achava que a candidatura de José Américo estava em franca decomposição

e a de Armando Sales seria um desastre para a Nação. Getúlio passou a comentar o regime democrático, dizendo que a seu ver tinha acarretado tantos males para o país. O Congresso quase nada de útil produzia e se opõe às iniciativas do Executivo. Para ele só havia uma solução: a mudança do regime e a reforma da Constituição. Se Dutra estivesse de acordo ele levaria a termo seus projetos. “Repliqueilhe”, disse Dutra, “que poderia contar comigo.” No dia seguinte Benedito Valadares, além de comentar o que já vinha sendo dito pelos diferentes políticos, acrescenta que Getúlio vai unirse aos integralistas. No outro dia Valadares lhe diz que Plínio Salgado havia respondido favoravelmente a Getúlio. Valadares deixara com Dutra os projetos da nova Constituição e do Manifesto à Nação e declarou-lhe que eram trabalhos de autoria de Francisco Campos. Valadares também revela que Plínio queria como compensação uma pasta no governo. O presidente também tem apoio do almirante Guilhem, ministro da Marinha. No meio dessa confusão o general Newton Cavalcanti mostra-se extremamente preocupado com os comunistas, chegando até a propor o fuzilamento de alguns elementos. Dutra se reúne com vários oficiais e chegam à conclusão que esse era o processo mais viável para poderem exercer uma ação contra o comunismo. E as intrigas e confabulações políticas continuam até o mês de novembro. No dia 9 as correntes políticas procuram, por todos os meios, neutralizar o golpe. Em vista disso Dutra procura o presidente e sugere que antecipe o movimento para desarticular os arranjos dos adversários. Durante a noite foram tomadas todas as medidas necessárias - prontidão para todas as forças do Rio, Minas e São Paulo. No dia 10 de novembro a Câmara e o Senado foram ocupados por forças

da Polícia Militar. Às 10 horas todos os ministros, à exceção de Odilon Braga, reuniram-se no Guanabara, sob a presidência de Getúlio Vargas para assinar a nova Constituição. À noite Getúlio Vargas leu, pelo rádio, seu Manifesto à Nação dando os motivos da mudança do regime. Getúlio Vargas foi uma figura singular na história do Brasil. Chefiou os primeiros quatro anos (1930-1934) do Governo Provisório. Depois foi eleito pelo Congresso presidente constitucional. Em 10 de novembro de 37 dá o golpe do chamado Estado Novo. Permanece no poder até 1945, quando é obrigado a renunciar. Nas eleições de 46 é eleito senador por mais de um estado e deputado por vários. Em 1950 é eleito presidente da República e se suicida em 1954. Sua política era singular - nem direita, nem esquerda. Ele era fundamentalmente um nacionalista. Foi quem primeiro se lembrou dos trabalhadores, criando o Ministério do Trabalho e a legislação trabalhista, apoiando uma classe que nunca tinha tido vez. Nunca abaixou a cabeça para os potentados. No período da II Guerra Mundial, quando os americanos estavam aflitos pela ocupação da base aérea em Natal, ele manda um recado ao governo de Roosevelt (que muito o admirava, em declaração feita a mim pelo embaixador Adolf Berle Junior) - que não estava disposto a ser “dictated to by Washington”-; enquanto mandava nacionalizar as escolas alemãs espalhadas pelo país, principalmente no Sul. Cometeu vários erros e não teve culpa em várias situações que lhe foram atribuídas. Mas colocou o Brasil no mapa. Deixamos de ser o pays de la bas. Maria Cecília Ribas Carneiro, jornalista, historiadora, bacharel em Direito e conselheira da ABI.

A CASSAÇÃO DOS MANDATOS COMUNISTAS No tempo da "guerra fria" os votos populares de nada valeram e depois ainda vieram os assassinatos João Amazonas Há 50 anos, uma grande ofensiva anticomunista foi desencadeada em todo o mundo, tendo à frente os Estados Unidos da América, então presidido por Harry Truman. Nos Estados Unidos, um dos episódios mais conhecidos dessa ofensiva foi o macartismo. No Brasil, uma série de atentados à democracia foi realizado pelo governo do general Gaspar Dutra, inclusive a cassação do registro do Partido Comunista do Brasil, em 7 de maio de 1947, e a cassação dos mandatos de todos os parlamentares e do prefeito de Santo André, eleitos pelo Partido Comunista, em 7 de janeiro de 1948. Dentre as vozes democráticas que se levantaram contra essas arbitrariedades estava a do então deputado federal Barbosa Lima Sobrinho, que votou contra a cassação dos mandatos dos comunistas. Especial - Barbosa Lima Sobrinho

UM GRANDE CONFRONTO O mundo ainda se refazia das feridas da II Guerra Mundial. O socialismo era uma realidade palpável, tendo a União Soviética como um exemplo vivo de suas possibilidades. Teve papel de destaque, preponderante, na derrota do nazi-fascismo e em solo soviético todos esforços eram direcionados para a reconstrução de um mundo novo, sem explorados e exploradores. Vários países europeus passavam a adotar o socialismo e, na Ásia, a China, o Vietnã e outros países viviam períodos de intensa experiência revolucionária. Assim como o Brasil, vários países viviam processos de renascimento democrático, após duros regimes ditatoriais. Com a reconquista das liberdades democráticas, ganhavam novo ímpeto as lutas pela reforma agrária, pelo desenvolvimento econômico e social, e as

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reivindicações populares por soberania e independência nacional, contrapondo-se à opressão estrangeira. Diante dessa situação, os Estados Unidos adotaram a doutrina Truman. Buscaram realizar uma grande coalizão mundial anti-soviética. Internamente, o governo norte-americano criou uma atmosfera de cruzada para defesa da nação contra a “ameaça comunista”, da qual o macartismo é apenas o exemplo mais conhecido - muitas arbitrariedades foram cometidas a pretexto de combate ao “perigo comunista” nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, buscavam impedir a estabilização da nova Europa, como demonstrou o estímulo ao fascismo na Grécia; e incentivavam as restrições às liberdades democráticas em todo o planeta. Surgia a chamada “guerra fria”. Um amplo movimento contra as liberdades e o socialismo capitaneado pelos Estados

Unidos. A contradição dominante do período era entre o imperialismo ianque, de um lado, e, de outro, os povos coloniais, o povo americano e as próprias nações capitalistas que passaram, no pósguerra, a depender da América do Norte, a exemplo da Inglaterra, França e Itália. Com isso, a URSS encontrava aliados em todos os povos amantes da paz e mesmo entre os países capitalistas que viam seus interesses ameaçados pela política de domínio de Truman. RESTRIÇÕESÀLIBERDADE Nessas circunstâncias foi que assumiu, no Brasil, o governo do general Eurico Gaspar Dutra. Nos anos de 1946 e 1947 o governo do general Dutra acestou inúmeros golpes contra as conquistas democráticas registradas na Constituição de 1946. Ressuscitou-se a lei de segurança ditatorial do Estado Novo. O Ministério do Trabalho investiu contra a grande maioria


dos sindicatos operários. Trabalhadores foram condenados pelo “delito de greve”. Foi fechada a Confederação dos Trabalhadores do Brasil e cancelados os registros do Partido Comunista e da Juventude Comunista. O governo brasileiro rompeu relações diplomáticas com a União Soviética. O direito de reunião foi duramente cerceado, assim como a imprensa. Jornalistas foram presos e espancados. Jornais foram empastelados e atacados a tiros, como ocorreu com O Momento, Tribunal Popular, Hoje, dentre outros... Para realizar essas arbitrariedades, o Executivo se sobrepôs aos outros poderes e reduziu a Constituição a letra morta. Senhor da força e dos dinheiros públicos, o Executivo facilitou tudo para os parlamentares servis, garantindo maioria no Congresso, como tristemente vem se repetindo na história de nosso país. O Judiciário, por sua vez, também submetiase aos ditames do general Dutra, atropelando leis que, por sua função, deviam ser resguardadas. DEMOCRACIA GOLPEADA Em 7 de maio de 1947, o Tribunal Superior Eleitoral cancelou o registro eleitoral do Partido Comunista do Brasil, por 3 votos a 2! Nas eleições daquele ano o Partido havia conquistado grande êxito, elegendo 18 vereadores no Distrito Federal (numa Câmara de 50), a maioria da Assembléia Legislativa de Pernambuco, 2 deputados federais em São Paulo (Pedro Pomar, Diógenes Arruda, pela legenda de um outro partido). Um dos juizes que votou contra o cancelamento, o dr. Sá Filho, afirmou durante a sessão de julgamento: “O desaparecimento do Partido Comunista dos quadros legais coincide com o eclipse da democracia”. Foi decretada a prisão preventiva de toda a direção nacional do Partido (que se manteve até 1957). Meses

BARBOSA NOS DEFENDEU Barbosa Lima Sobrinho tem o que dizer e o tem dito com a coragem e a franqueza necessárias, capazes de fazê-lo ouvido e entendido, respeitado e estimado por uma massa cada vez maior de leitores apaixonados. O que ele tem dito com valentia e determinação, nesses seus bravios cem anos de vida, fez dele um símbolo de nossos anseios, de nossa afirmação. Recordo aquele ano de 1947, quando foi colocada na ordem do dia do Parlamento a expulsão da bancada comunista, a primeira a ter assento naquela casa. Barbosa Lima, ele próprio ameaçado, ergueu sua voz em defesa dos colegas, solidarizando-se com eles, protestando com determinação e coragem, o que era pouco habitual na época. Marcou uma posição que, desde então, tem se repetido nos momentos mais difíceis, tornando-se uma constante em nossa vida política. Neste momento da festa do seu centenário, quero saudá-lo com júbilo e emoção. Jorge Amado, escritor, foi um dos deputados comunistas cassados.

depois, em 7 de janeiro de 1948, o Congresso, submisso ao Executivo, cassou o mandato de todos os comunistas eleitos: um senador, 14 deputados federais, o prefeito de Diadema, São Paulo, e 190 vereadores de todo o país. As assembléias legislativas de São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Goiás, Pernambuco, Paraná, Bahia, Sergipe, Espírito Santo e Minas Gerais pronunciaram-se contra esse golpe, assim como várias câmaras municipais, inclusive a do Distrito Federal (na época, Rio de Janeiro). Organizações profissionais e populares aprovaram moções repudiando a medida arbitrária, dentre elas a União Nacional dos Estudantes, o Congresso Jurídico Nacional e o II Congresso dos Escritores do Brasil.

Mesmo assim, o parlamento foi dócil aos interesses do Executivo. Além dos parlamentares do próprio Partido Comunista do Brasil, poucos votaram contra a cassação. Dentre os que tiveram a postura corajosa e de convicção democrática de condenar esse golpe, estava Barbosa Lima Sobrinho, sempre fiel aos interesses do país e da liberdade.. Durante o governo Dutra, vários comunistas foram assassinados. Lafayete Fonseca e Zélia Magalhães, no Rio de Janeiro; Angelina Gonçalves, no Rio Grande do Sul, e mais três gaúchos, em Livramento; Marma, Rossi, em São Paulo, Deocleciano, em Santos, e o jornalista Calado, dentre outros.

FORÇAS DO PROGRESSO No próprio dia 7 de janeiro de 1948, quando foi aprovado o projeto de cassação dos mandatos comunistas, o líder da bancada na Câmara Federal, deputado Maurício Grabois, fez um pronunciamento contundente, dirigindo-se “a uma Assembléia que se dobra servilmente aos imperativos e à vontade do grupo que se encontra encastelado no Catete, levando o país para a catástrofe e para o caos”. Reverenciou a memória do operário Anísio Dário, morto pela polícia de Aracaju, “clamando contra o crime que se pretende perpetrar com a cassação dos mandatos de representantes legitimamente eleitos”. E, respondendo àqueles que criticavam a bancada comunista, porque seus integrantes falavam uma só linguagem, afirmou: “É verdade. Falamos a linguagem do povo, do interesse nacional. Mas todos nós, da bancada comunista, saímos dos mais diferentes setores da sociedade. Lá não estão os negocistas, os industriais reacionários e advogados de empresas imperialistas. ” Foi um dia triste para o nosso povo, para a história da democracia brasileira. Mas os comunistas e os democratas mantiveram-se firmes na defesa da democracia, da liberdade e do progresso. Como firmes continuaram quando se abateu sobre o país o período obscurantista do regime ditatorial militar, após 1964. Também nesse período o povo brasileiro reafirmou sua luta e seu desejo de liberdade. Também nesse período se fez ouvir a voz de Barbosa Lima Sobrinho, reafirmando seu compromisso com os interesses maiores do país e da democracia. Como continua a fazer, coerente e persistentemente, até hoje. João Amazonas, um dos cassados em 1948, atual presidente do PC do B.

O BRASIL DE 45 A 64: COMO NUM FILME, A CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA Duas décadas de fragilidade democrática não impedem o advento da ditadura que censura e mata Gilberto Agostino A entrada do Brasil na II Guerra Mundial selou o destino do Estado Novo, uma vez que representou os limites de manutenção da ordem autoritária, inaugurada em 1937. O fim do conflito e a volta dos pracinhas anunciavam a redemocratização inevitável e um novo arranjo de forças na política brasileira. Vargas procurou conduzir o processo de abertura, criando partidos - PSD e PTB e manipulando as datas eleitorais. Ao mesmo tempo, anistiava os comunistas, alimentando os receios dos grupos mais conservadores, e adotava medidas nacionalistas a fim de garantir respaldo popular. Diante deste quadro, a deposição de Vargas foi articulada por elementos da UDN - partido que aglutinava boa parte dos inimigos do Estado Novo - e por Especial - Barbosa Lima Sobrinho

setores militares, assustados com o crescimento do Queremismo, movimento que apoiava a reconstitucionalização com Getúlio. A campanha eleitoral transcorreu em um clima de intenso otimismo para o candidato udenista à presidência, o brigadeiro Eduardo Gomes. O controle da máquina administrativa e eleitoral, além do apoio de Getúlio foram, entretanto, fatores decisivos para a vitória do pessedista Eurico Gaspar Dutra, figura de relevo no Estado Novo. O PSD conseguiu uma vitória expressiva na composição da Assembléia Constituinte, conduzindo os trabalhos da Constituição de 1946. A Carta Magna reintroduziu diversas características abortadas pela Polaca (Constituição de 1937), como a Divisão dos Poderes, o Federalismo e a Representatividade. Por outro lado, manteve o corporativismo estadonovista,

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limitou o direito de greve, e impediu a livre organização de sindicatos. Vargas, por sua vez, continuava a monitorar a política brasileira, apoiando candidatos de sua preferência, como no caso das eleições para o Governo de Pernambuco, em 1947, quando apoiou o pessedista Barbosa Lima Sobrinho. Este candidato, embora vitorioso, teve seu pleito questionado por uma dissidência do partido, conduzida pelo ex-ministro de Dutra, Manoel Neto Campelo. O governo Dutra, geralmente considerado liberal, interferiu nas questões trabalhistas, planejou a economia (Plano SALTE), não conseguindo, entretanto, potencializar as divisas acumuladas durante a II Guerra Mundial. O resultado foi a importação de refugo da guerra e outros artigos - improdutivos descartáveis por uma Europa em fase de Reconstrução. No plano externo, à medida

que os contornos da Guerra Fria ficavam mais evidentes, Dutra alinhou o Brasil ao lado dos EUA, rompendo relações com a URSS. No plano interno, este alinhamento foi traduzido com a cassação dos direitos políticos do PCB. Vargas anunciou sua volta em uma entrevista exclusiva ao jornalista Samuel Wainer. Agitando a vida política do país e polarizando o quadro eleitoral, o anúncio do retorno do ex-presidente - desta vez nos braços do povo - criou expectativas e receios. Vencendo mais uma vez o brigadeiro Eduardo Gomes, Vargas implementou, inicialmente, um ministério moderado, contando com diversos membros da UDN. A campanha do Petróleo é Nosso e a criação da Petrobrás tornaram a coalizão governamental insustentável, polarizando a política nacional entre entreguistas e nacionalistas. Vargas passou a sofrer a


violenta oposição da UDN, de representantes dos interesses externos e de grupos militares, assustados com o nacionalismo e com as concessões às classes trabalhadoras, evidenciadas na proposta de aumento de 100% do salário mínimo, encaminhada pelo ministro do Trabalho, João Goulart. Sem o entusiasmo que o caracterizara anteriormente, Vargas não conseguia responder satisfatoriamente às acusações dos inimigos, cujo principal porta-voz era o jornalista Carlos Lacerda, caracterizado por uma oratória violenta e carismática. Lacerda atacava o presidente em todos os sentidos, mas criticava com mais ênfase as concessões privilegiadas para o Jornal Última Hora, frisando a corrupção do governo. O atentado da rua Toneleros, onde Carlos Lacerda foi ferido e o Major Rubens Vaz morto, levantou suspeitas em relação ao Palácio do Catete, contribuindo para agudizar a crise em curso. O governo perdera completamente o controle da situação, angariando a oposição das armas, da grande imprensa (com exceção da Última Hora) e de setores populares, interessados na 'apuração da verdade' em relação ao atentado que matara o major Rubens Vaz. Uma reunião ministerial fora programada para decidir a sorte do governo, já que a situação tornarase insustentável. Na manhã de 24 de agosto de 1954, a áurea metálica do Repórter Esso, capitaneado por Heron Domingues, proclamava para a perplexidade geral: o presidente Vargas suicidou-se com um tiro no peito. O último ato de Getúlio é comumente definido como um golpe de mestre. O suicídio provocou a reviravolta de uma situação adversa, contribuiu para a consolidação do mito e alijou do reconhecimento popular e consequentemente do poder federal - os inimigos mais ousados. A conhecida Carta Testamento, lida incessantemente nas rádios, contribuiu para as inúmeras agitações populares. Cerca de doze mil soldados foram mobilizados para conter as agitações militares, o que nos sugere que um dispositivo militar já estava pronto para a deposição do presidente. Aos gritos de “Morra Lacerda”, “Morra o brigadeiro”, “Morram os americanos”, a multidão percorria as ruas do centro da cidade, procurando os culpados. Com a morte de Getúlio, assumia seu vice, João Café Filho, que rompera com o presidente nos momentos finais da crise de agosto. O novo presidente vinha do PSP, de Adhemar de Barros, partido que não possuia uma bancada ampla no Congresso. Café Filho aproximou-se da UDN, organizando um gabinete conservador, comandado por Prado Kelly. O brigadeiro Eduardo Gomes foi chamado para colaborar com seu governo, já que representava uma liderança de peso dentro da Aeronáutica. Destaca-se no período o ministro da Fazenda, Eugênio Gudin, responsável pela implementação de um receituário antiestatizante e, principalmente, favorável à penetração de capital externo, consubstanciado na instrução 113 da SUMOC, fundamental para a futura política econômica desenvolvimentista do período JK. À primeira vista parecia que os

inimigos de Vargas haviam finalmente 'capturado o Estado'. Na verdade, as expectativas eram sombrias para os antigetulistas, que temiam as eleições próximas - para deputados e vereadores - chegando mesmo a cogitar, sem sucesso, o adiamento das mesmas. As circunstâncias do desfecho da crise de agosto dariam ao populismo getulista uma revitalização inesperada para a UDN, uma vez que esta, além de ser responsabilizada pelo suicídio, perdia também a razão maior de sua coesão: o próprio Vargas. A título de ilustração vale apontar como o PTB notadamente em São Paulo - explorou eleitoralmente o suicídio de Getúlio: os distintivos distribuídos aos eleitores

"O contragolpe de Lott, mesmo que a favor da Constituição, demonstrava a fragilidade de um sistema político suscetível a todo tipo de intervenções, democráticas ou não." apresentavam as iniciais do partido ao lado de uma gota de sangue! A predominância PSD-PTB nas urnas, empurraria ainda mais a UDN para Café Filho e acentuaria a perspectiva golpista daqueles que se anunciavam defensores do liberalismo. As eleições presidenciais - marcadas para 3 de outubro de 1955 - se aproximavam e a UDN, sentindo que a situação não lhe era favorável, chegou a propor a idéia de um candidato único, neutro e apartidário, representante da ordem e da pacificação nacional '. Na verdade, a aliança PSD-PTB é a chave para compreender o favoritismo de Juscelino. Podemos afirmar que este candidato aproximou-se decisivamente da presidência quando conseguiu costurar esta aliança, superando as divergências e os obstáculos tanto do radicalismo petebista, quanto dos velhos chefes pessedistas, ao demonstrar os perigos de um triunfo udenista - eleitoral ou não. A UDN acabaria lançando para a disputa presidencial, o legendário tenente, Juarez Távora, chefe da Casa Militar de Café Filho e um dos nomes de destaque do anti-getulismo. A campanha eleitoral para presidente transcorreu diante de um quadro de grande turbulência social e política. Às vésperas da posse de Juscelino, uma onda golpista, insuflada pela UDN, alegando não ter sido obtida a maioria dos votos (na verdade, argumento já utilizado em 1951) , foi frustrada pela atuação do general Lott. Este episódio, conhecido como Contragolpe da Legalidade, interferiu a favor do cumprimento da Constituição e garantiu a posse do presidente eleito.

De qualquer forma, o contragolpe de Lott, mesmo que a favor da Constituição, demonstrava a fragilidade de um sistema político suscetível a todo tipo de intervenções, democráticas ou não. Durante o seu governo, Juscelino ainda conseguiria driblar duas tentativas golpistas de oficiais da aeronáutica: em Jacareacanga, no Pará (1956), e em Aragarças, em Goiás (1959). No plano econômico, o governo JK seria marcado pela tendência industrializante, favorecida pela entrada de capitais externos. O Plano de Metas transformara-se em um norte para a administração de Juscelino, sendo a construção da nova capital considerada a meta-síntese. Externamente, Juscelino rompeu com o FMI e procurou organizar a Operação Pan-Americana (visando uma aproximação aos países da América Latina) e sua projeção como estadista. O final do governo foi caracterizado pela espiral inflacionária, produto da própria política desenvolvimentista. Nas eleições de 1960, o caminho estava aberto para a vassoura moralizadora de Jânio Quadros. O FURACÃO JÂNIO QUADROS Histriônico e pretensamente apartidário, Jânio emplacaria nas eleições de 1960 com um estilo absolutamente contrastante com a elegância e a bossa de Juscelino. Suas campanhas de rua transformavam os palanques em verdadeiros palcos de tragicomédia, simulando desmaios, tomando injeções em público e comendo sanduíches de mortadela diante das massas. Quando falava aos empresários, entretanto, assumia a postura de um homem corajoso e técnico. Já para os sindicalistas, apresentava-se como um nacionalista radical. Apoiada em Jânio Quadros, a UDN finalmente chegaria ao poder em 1961 Lacerda preferiu esquecer a antiga exigência de maioria absoluta tão cara ao partido em 1951 e 1956. Quanto à vicepresidência, seria eleito o petebista João Goulart, superando facilmente o vice

"Militares assustados, elites políticas desiludidas, sindicatos revoltados, Jânio transformou-se em uma unanimidade de insatisfação e avaliou mal a geografia do poder." udenista, Milton Campos. A lua de mel com a UDN duraria muito pouco, uma vez que Jânio procurou trilhar uma política externa independente, capitaneada por San Tiago Dantas, em plena tensão da Guerra Fria - 1961 seria marcado pela tentativa de invasão em Cuba e pela construção do Muro de Berlim.

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Em sua meteórica passagem pela presidência (31 de Janeiro a 25 de Agosto), Jânio conseguiu indispor-se com praticamente todos os setores conservadores brasileiros, reatando relações com a Bulgária, Hungria e Romênia, defendendo o direito da autodeterminação cubana, assumindo um discurso anticolonialista em relação à África e estreitando as relações com a República Popular da China e com a União Soviética. Já no segundo semestre de 1961, as críticas cresciam, vindas de todos os lados. Militares assustados, elites políticas desiludidas, sindicatos revoltados, Jânio transformou-se em uma unanimidade de insatisfação. O isolamento era total, e o presidente mostrava-se incapaz de conduzir seu governo dentro das normas democráticas. Sem sólida base partidária e política, Jânio era atacado virulentamente pelos seus antigos aliados de campanha. Carlos Lacerda, “primeiro eleitor janista”, decidiu homenagear uma das peças chaves da contra-revolução cubana, Tony Varona, em resposta à condecoração de Guevara por Jânio. O presidente era acusado de esquerdista e antiamericanista, apesar de ter concordado com o enquadramento recessivo do FMI e reprimido inúmeras greves. A ameaça de renúncia tinha sido uma constante na vida política de Jânio. Apesar de não suficientemente esclarecida, Jânio preferiu deixar no ar apenas a denúncia de forças terríveis, presume-se que a de renúncia visasse o fortalecimento de sua frágil base governamental. Logicamente, o presidente contabilizava o temor que o seu vice, João Goulart, provocava na direita. Na verdade, Jânio avaliou muito mal a geografia do poder, inaugurada com sua própria posse. A nova capital, afastada do caldeirão popular, não era o palco apropriado para performance tão ousada, como uma renúncia em tais condições. JANGO E A DEMOCRACIA Os treze dias que separaram a renúncia de Jânio e a posse de João Goulart foram marcados por novas tentativas golpistas, palavras de ordem em nome da democracia e soluções de compromisso. Os ministros militares opuseram-se a volta de Jango - em viagem à China comunista - porém não obtinham maioria no círculo militar (o que não se repetiria em 1964), uma vez que o comandante do III Exército, general Machado Lopes, apoiava a normalidade constitucional. Leonel Brizola (cunhado de Jango ), governador do Rio Grande do Sul, transformou-se em um dos mais destacados ativistas pelo cumprimento da Constituição articulando uma cadeia de rádio contra a conspiração, a famosa Rede da Legalidade. Uma mobilização democrática de peso pedia a normalização constitucional - governadores, sindicatos, personalidades eclesiásticas, organizações estudantis, imprensa - fazendo esmorecer o golpismo dos militares. O impasse, entretanto, só foi resolvido através de uma solução conciliatória, o estabelecimento do Parlamentarismo através da emenda constitucional nº 4, batizada de Ato Adicional. A experiência parlamentarista, Jornal da ABI


entretanto, só durou 14 meses. Após o plebiscito de 6 de janeiro de 1963 (o primeiro da história brasileira: 12 773 260 votos depositados e 9 467 448 a favor da volta do presidencialismo), Jango retomou os poderes conferidos ao presidente pela Constituição de 1946. As dificuldades eram imensas: administrar a crise econômica e a mobilização popular em prol de reformas sempre com a desconfiança da esquerda nacionalista e a oposição dos conservadores. Entre 1956 e 1962 o crescimento do setor industrial brasileiro fora bastante significativo - taxa de 7% ao ano - garantindo o sucesso do planejamento econômico a partir do clássico modelo de substituição das importações. Por outro lado, o afluxo de capitais externos para o país agravava uma série de problemas, notadamente o aumento da dívida externa, do custo de vida e a dependência tecnológica. As multinacionais ganharam espaço cada vez maior na economia brasileira, atuando principalmente na área de bens duráveis, representando uma ampla possibilidade de consumo para setores mais favorecidos da população. Se mais empregos foram gerados, a questão da má distribuição de renda continuava pendente - já que a inflação também crescera - e a problemática agrária cada vez mais explosiva, uma vez que a concentração regional dos pólos industriais empobrecera áreas que dependiam de exportação agrícola. Superados os obstáculos institucionais com o plebiscito, revestido do apoio popular, Jango decidiu implementar o Plano Trienal, visando superar o eterno desafio da economia brasileira: garantir a retomada do crescimento econômico sem gerar, paralelamente, uma onda recessiva. Tal dilema era ainda mais agravante diante das contradições do populismo. Afinal, o sistema não tinha condições de afastar-se

Marca dos 100 anos

A VIDA DE BARBOSA... André Motta Lima: Quando ele volta para morar no Rio de Janeiro (inclusive a casa da Rua Assunção estava alugada e eles tiveram que buscar outra casa), ele acaba se colocando na Prefeitura do Distrito Federal como procurador interino. Consegue isso, além dos artigos que ele não deixa de escrever durante todo o período de governo, os artigos no Jornal do Brasil, que também são publicados em Pernambuco... José Augusto Ribeiro: Mas nunca usou esse espaço do Jornal do Brasil para defender o Governo dele, sempre eram Especial - Barbosa Lima Sobrinho

"Consciente da articulação golpista, Goulart pouco fez para evitar sua concretização."

gradativamente, uma grande frente golpista, que contava com o apoio de empresários, de amplos setores dos círculos militares, de políticos conservadores e moderados, de boa parte da imprensa, de setores da Igreja e de ampla cobertura da classe média, apavorada com a “infiltração comunista”. O famoso comício da central acentuou as hostilidades das forças reacionárias, já mobilizadas, e acelerou determinantemente a atuação golpista. Neste comício, Goulart estabeleceu o decreto do Supra e da nacionalização de refinarias particulares, anunciou a gestação de uma reforma urbana - terror da classe média -, alteração nos impostos e no sistema eleitoral, chegando a propor o voto aos analfabetos. A fala de Brizola, líder do grupo dos onze, um pouco antes de Goulart discursar, fora ainda mais radical, propondo, diante de 250 mil pessoas, a derrogação do Congresso e a convocação de uma Assembléia Constituinte. O impacto do comício seria arrasador. Afinal, sua própria localização - central do Brasil, ao lado do Ministério da Guerra, foi vista como uma provocação. Para alguns, era sinal de que muitos militares estavam sendo levados pelo presidente. Os setores golpistas conspiravam abertamente e logo passaram à ação decisiva em prol “do anticomunismo, da família e da fé”. Quanto à participação norte-americana no episódio, afirma Francisco Iglésias: “Muito se disse sobre um possível envolvimento da CIA em 1964. Como se sabe, as relações entre o governo brasileiro e o norte-americano não eram das melhores. Seguramente o grande capital estadunidense não via com bons olhos os programas aqui implementados, tão opostos aos seus. Foi dito que não foram poucas as conversações entre os inimigos de Goulart e o embaixador da

demais das massas, uma vez que o próprio fortalecimento do operariado urbano, gerado com a industrialização, criara interesses que não podiam mais ser simplesmente manipulados pelas política populista. No campo, a impaciência crescia, o que pode ser comprovado com o lema de Francisco Julião, principal nome das Ligas Camponesas: Reforma Agrária, na Lei ou na Marra. Não há dúvida que este dilema foi a questão crucial do período janguista. O isolamento era inevitável, levando o presidente a uma estratégia golpista - a decretação do estado de sítio -, imediatamente vetada pelo Congresso. Sem a possibilidade do estado de sítio, não restava alternativa, a não ser, como um bom populista, aproximar-se das bases populares. Pressionado por todos os lados, sem obter sucesso com o Plano Trienal, João Goulart lançou um programa tipicamente reformista, as Reformas de Base, acreditando poder contar com o irrestrito apoio popular através da Frente de Mobilização Popular (PTB, PCB, CGT e UNE). Na verdade, mais que dar sustentação ao presidente, as reformas contribuíram para enfraquecer ainda mais o governo, uma vez que a reação golpista foi imediata. Afinal, desde sua posse , João Goulart enfrentou uma decisiva ação das lideranças conservadoras que, associadas aos interesses externos, articulavam a desestabilização do governo constitucional. Formava-se,

Quando foi interventor no Estado Novo, determinados sujeitos que criavam problemas - delinqüentes, negocistas, sei lá -, ele mandava levar para outro lugar e dizia: “Vai, você tem o resto do Brasil para ficar; aqui não põe os pés, se puser, vai preso”. Então tinha muita coisa assim. Era chamado até para resolver briga de marido e mulher. Coisas de separação de casal chamavam o Agamenon para resolver. Mas foi um grande brasileiro. O dr. Barbosa ficou até o último dia do mandato, que foi 31 de janeiro de 51. Terminou o mandato, veio para o Rio. Aí estava sem a casa (naturalmente ela estava alugada pelo prazo que ele não ia ocupála) e desempregado - o que ele ganhava no Jornal do Brasil não dava para viver. Havia uma vaga de procurador interino, que era a vaga do dr. Lourival Fontes, nomeado chefe do Gabinete Civil da Presidência da República com a eleição do presidente Vargas. Então precisava nomear alguém e houve indicações. Ele não pleiteou. Houve indicações e ele foi nomeado. Mas também como no Instituto do Açúcar, ele não tomou isso como uma sinecura: assumiu a Procuradoria com a maior disposição, dava expediente lá o dia

outros assuntos. Os grandes temas nacionais. Depois que ele deixou de ser governador, quando surgia algum desses assuntos, como por exemplo a reforma agrária, ele dizia: “Em Angelim...”. Aí ele conta, mas depois. Enquanto era governador escrevia sobre outros assuntos. A.M.L.: Aí começa a questão da Light. Ele começa a discutir como procurador interino. É um relato interessante... J.A.R.: Ele podia ter deixado o Governo de Pernambuco meses antes e ter se candidatado a senador ou a deputado. Mas não quis fazer isso porque queria garantir a vitória do candidato do PSD, que era o Agamenon Magalhães. Não por meio de pressões exercidas com o uso da máquina do Estado. Ele assumiu uma posição de magistrado, tanto que depois o Agamenon ficou até meio magoado. O Agamenon era muito competente, mas um pouco violento, e quando voltou ao Governo - isso é curioso -, teve que se adaptar ao estilo Barbosa Lima Sobrinho, porque era o estilo que estava sendo cobrado pela sociedade.

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Casa Branca, Lincoln Gordon, ou entre o coronel Vernon Walters, adido militar da embaixada e o general Castelo Branco, um dos organizadores do golpe (...) É difícil comprovar que tenha existido ajuda direta, mas há claros indícios que tenha sido proporcionada. Além do mais, existe a tradição de intervenção dos EUA nos assuntos da América Latina. Não seria nem a primeira nem a última vez.” ( Breve Historia Contemporânea del Brasil. 1994, México, D.F, Fondo de Cultura Econômica, pág. 192.) Tinha-se o golpe como certo para concretizar-se a qualquer momento, e os incidentes de insubordinação militar foram um fator determinante para convencer boa parte das Forças Armadas que o governo Jango insuflava a quebra da hierarquia. Na verdade, Goulart, consciente da articulação golpista na ESG, por exemplo, muito pouco fez para evitar sua concretização. A inação do presidente, encoberta com a 'eterna desculpa' populista - o desejo de não derramamento de sangue -, seria fatal para os destinos políticos do país durante quase três décadas. No calor da hora, alguns setores da esquerda acenaram com a possibilidade da resistência, o que não se concretizou. O populismo chegava a seu limite, arrastando consigo a frágil democracia brasileira. Gilberto Agostino, professor de História nos cursos ADN, CEL e Miguel Couto, no Rio de Janeiro. PARA SABER MAIS D’ARAÚJO, Maria Celina Soares O Segundo Governo Vargas. 1992, São Paulo, Ática. BENEVIDES, Maria Vitória de Mesquita - A UDN e o Udenismo, Ambigüidades do Liberalismo Brasileiro (1945-1965). 1981, R J, Paz e Terra. CASTRO GOMES, Angela (Org. ) O Brasil de JK. 1991, RJ, CPDOC.

Jango sofreu pressões para estatizar a Light e outras empresas estrangeiras que viriam naturalmente para o patrimônio público. inteiro, além do trabalho que fazia em casa. E logo distribuíram a ele um dos processos relativos à Light (foi também quando ele reforçou as suas convicções nacionalistas). Por que havia esses processos? A Light era um grupo estrangeiro, com alguns testas-de-ferro brasileiros. Não sei se 900 mil ações ou 1 milhão de ações, uma quantidade assim dessa ordem de


grandeza... Havia quatro ações em poder de brasileiros, eram quatro brasileiros que eram diretores da Light e cada um tinha uma ação da Light. O polvo canadense. Pelos contratos originais, do início do século, a Light exploraria serviços de produção e distribuição de eletricidade, serviço de bondes, de ônibus (o serviço de telefones era de uma empresa, a Companhia Telefônica Brasileira, mais ou menos associada). Ela era a energia elétrica, os bondes e, subsidiariamente aos bondes, os ônibus. A Light tinha, pelo contrato, lucro garantido de 10% sobre o capital investido. Se o lucro fosse menor do que 10%, a Prefeitura era obrigada a dar um reajuste de tarifa para cobrir. Em troca, quando terminasse o contrato (agora, no início dos anos 90), ela teria que devolver à Prefeitura todos os seus bens porque já estariam pagos. A Light tinha vendido isso indiretamente à Prefeitura porque o dinheiro que pagou todos os investimentos foi o dinheiro da passagem de bonde e da conta de luz. Mas o que ela fez? Ela, de vez em quando, dizia que um determinado bem não era mais útil ou necessário para as suas operações e pedia que esse bem fosse liberado, ou seja, retirado do conjunto a ser devolvido. Por exemplo, na época dos bondes a burro, ela tinha grandes cocheiras em Copacabana, em terrenos que, com o tempo, foram valorizando. Entrou o bonde elétrico, ela argumentou “Não precisa mais. Bonde elétrico não tem cocheira, basta uma

garagem, um hangar...” e conseguia autorização da Prefeitura para retirar do conjunto dos bens chamados reversíveis, que tinham que ser devolvidos, esse terreno enorme da cocheira. Vendeu e embolsou o dinheiro. E fez isso com uma porção de outras coisas.

Nomeado procurador da Prefeitura, Barbosa começou a impedir a Light de vender e fazer negócios com bens e áreas que tinham que reverter para o patrimônio nacional no final do período de contrato. Um dos últimos bens que a Light deveria ter devolvido ao povo do Rio de Janeiro, através da Prefeitura, foi um quarteirão inteiro na Avenida Rio Branco, entre a Rio Branco e o Largo da Carioca, onde ficava a Galeria Cruzeiro (por lá passava o bonde que ia para o terminal do Largo da Carioca.

A galeria ficava junto a um bar famoso na época, o Bar da Brahma, ponto de reunião dos boêmios, dos intelectuais e dos políticos; e nos andares de cima um hotel antigo e famoso, o Hotel Avenida). Então um dia a Light alegou que os bondes não podiam passar por ali. E conseguiu que a Prefeitura desse para ela esse terreno onde está hoje o edifício Avenida Central. Quer dizer, isso foi subtraído ao patrimônio público. O dr. Barbosa entrou na briga como procurador no momento em que essas questões todas estavam sendo discutidas. E começou a estudar, com a mesma seriedade com que estudou a questão do açúcar, a questão dos seguros, se aprofundou e começou a fazer pareceres em defesa do interesse público, e dizia: “Isto tem que ser devolvido à Prefeitura, isso não pode ser doado à Light”. Muitas vezes ele foi a juízo em audiência para defender oralmente os seus pareceres. Mas notou como era poderosa a Light. Um político antigo dizia que “Todos os caminhos do poder no Brasil passam pela sede da Light na rua Larga” (Avenida Marechal Floriano atualmente; onde hoje funciona o Centro Cultural da Light). A Light tinha grande influência sobre governos de um modo geral. Houve um caso em que uma questão foi julgada numa das Câmaras Cíveis de um Tribunal de Justiça. Estavam os advogados da Light de um lado, um procurador da Prefeitura de outro e o dr. Barbosa ganhou. Houve recursos pedindo

reconsideração... isso, aquilo. Aconteciam coisas misteriosas... o juiz é inamovível, não pode ser afastado da sua judicatura, é uma garantia constitucional. Mas o juiz pode ser promovido. Então havia as manobras, de repente o processo volta àquela mesma câmara e o resultado é exatamente ao contrário. Tiveram casos em que foi preciso engavetar o caso. Esperaram anos a fio até que o juiz mais duro, mais incômodo, fosse promovido, fosse aposentado, até morresse, para a coisa poder andar. Então, pode ter sido uma luta meio inglória e até houve um parecer dele que não foi aceito por um procuradorgeral, naturalmente por pressões políticas. Dependia muito da posição do prefeito e não era fácil um prefeito do Rio de Janeiro brigar com a Light. Tanto que houve um procurador que pediu ao dr. Barbosa para retomar o assunto da Light e ele disse: “Olha, eu já fiz tantos pareceres, fiz isso, fiz aquilo e os meus pareceres foram desautorados pelo antigo procurador”. Mas o novo insistiu “Eu estou pedindo para o Sr. fazer porque eu conheço a sua opinião”. E deu força. Aí a procuradoria começou a ganhar. A Light lutava do seu lado e o desfecho de tudo isso foi rolando por aí. O desfecho de tudo foi que, depois de 1959, o Brizola encampou não a Light, que lá no Rio Grande não era Light, era Bond and Share, outro grupo estrangeiro. E também começou a ganhar na justiça. No início dos anos 60, quando o presidente João Goulart foi convidado para uma visita

VOLKS

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oficial aos EUA, o presidente Kennedy levantou o assunto com ele. A idéia do governo dos EUA, dos acionistas, da direção superior da Light, dos homens da Light no Brasil, dos homens da Bond and Share, dos homens da ITT e do embaixador Roberto Campos, que era embaixador do Brasil em Washington e foi quem teve as primeiras conversas; a idéia era “precisa estatizar tudo isso”. E vinha até uma doutrina econômica da estatização, que era a seguinte: “Esses investimentos de infra-estrutura, que são de maturação muito lenta e de rentabilidade muito baixa, devem ser assumidos pelo poder público para acelerar o desenvolvimento econômico e liberar os recursos da iniciativa privada para outros tipos de operações.”

Os americanos tentaram forçar Jango a comprar a Light com o argumento de que era preciso estatizar. A.M.L.: Engraçado... no caso da Light os bens reversíveis jamais voltaram de graça porque 4 anos antes deles voltarem o governo militar comprou a Light. E agora

venderam com o argumento de que o poder público não tem que aplicar dinheiro neste tipo de empreendimento... J.A.R.: No Governo do Jango começou isso, começaram essas pressões. Eles tomaram como uma promessa do Jango (de comprar essas empresas) a resposta que ele deu: mandaria estudar o assunto. Então, quando a gente examina as atas das reuniões do Conselho de Ministros daquele tempo - o primeiro-ministro era o dr. Tancredo Neves - vê que ele criou a Comissão de Nacionalização dos Servidores das Empresas de Serviço Público para estudar. Cumpriu a promessa de estudar. Agora, prometer estudar não é prometer comprar.

Uma das razões da hostilidade ao Jango e da desestabilização do governo do Jango, foi essa. O fato é que os governos militares foram comprando essas empresas antes que elas tivessem que devolver os bens e a que ficou na rabeira foi a Light, comprada pelo Governo Brasileiro em 1975, no fim, nas últimas semanas do Governo Geisel, sob a batuta do Ministro Shigeaki Ueki, por um dinheirão. Quer dizer, não se discutiu mais o terreno da Avenida Rio Branco , onde foi construído o edifício Avenida Central, o terreno das cocheiras de Copacabana... nada. Ainda demos, não me lembro se 300 ou 400 milhões à Light para ela fundar a Brascan e para começar a construir shoppings centers por aí e ganhar até mais do que ganhava com a exploração dos serviços de eletricidade e de transporte público.

CASO LIGHT, UMA FALSA PRIVATIZAÇÃO Um dos marcos da luta nacionalista de Barbosa Lima Sobrinho a empresa ainda hoje exemplifica o embate entre concepções antagônicas, com a ironia de ter voltado ao domínio estatal e estrangeiro Luiz Pinguelli Rosa Decisões que comprometem o futuro do país estão sendo tomadas, sob evidente pressão externa, contrariando a opinião de toda a sociedade. Vale tudo para levar adiante os projetos de privatização de empresas estatais. Sejam deficitárias ou lucrativas, eficientes ou não, estratégicas ou dispensáveis, não importa, a ordem é privatizar. Em nome da atração de investimentos externos o governo acelera o processo e a toque de caixa sai doando empresas, sob a forma de leilão. O país acaba de assistir a venda, por uma quantia irrisória - tendo em vista potencial mineral, infra-estrutura, knowhow, investimento tecnológico - da maior empresa mineradora do mundo e sua estatal mais lucrativa. Isso contrariando o desejo da sociedade, que a duras penas tentou demostrar sua indignação em relação à venda da Vale do Rio Doce. A despeito do bloqueio imposto por grande parte dos veículos de comunicação, o governo se negou ao debate público e impôs sua vontade, coibindo o poder judiciário através de medidas provisórias. Por outro lado, cobre rombos do sistema financeiro, cujas quantias superam o valor das empresas leiloadas, efetuando operações que contrariam o bom senso, gerando revolta no contribuinte. O caso dos bancos Nacional e Econômico são alguns exemplos desta absurda lógica financista, que gerou bilhões de dólares em prejuízos aos cofres públicos, demonstrando grande inoperância do Banco Central e do Ministério da Fazenda. O rombo do Banco Nacional era conhecido antes de vir a público a denúncia. Há graves acusações éticas à área econômica do governo. Não se deve confundi-la com o presidente, mas deve-se cobrar dele a moralização. Somente no ano de 95 os danos gerados pelos bancos (estimado em vários bilhões), com os juros altos pagos pelo governo para o setor privado, Especial - Barbosa Lima Sobrinho

contabilizaram um prejuízo à nação de R$ 14,9 bilhões. Mal comparando, o rombo deixado pelos anões do orçamento e pelo governo Collor foi muito menor. Isto sem citar o atual escândalo dos precatórios. A esperança fica reduzida a uma atitude do Congresso que muitas vezes deixa a desejar, negociando votos em troca de benefícios pessoais. A CPI dos bancos, por exemplo, foi aprovada no Senado no mesmo dia em que o governo perdeu na votação da emenda da Previdência Social, e ambas foram revertidas também, num mesmo dia, desfazendo a outra ilusão de um Congresso independente e ético. E o ministro Bresser Pereira ainda quer fazer com que a população acredite que o maior problema do deficit brasileiro é a despesa com os funcionários públicos. Os valores arrecadados com as privatizações, apresentadas como salvação para cobrir o deficit do governo, têm sido muito menores que os rombos: de 1985 a 89, a venda de estatais gerou US$ 533 milhões e de 1990 a 92, US$ 3,397 bilhões. Como mostrei em livro publicado ano passado, o país não lucrou com a venda da Escelsa, em 1995, pois o saldo em dinheiro não foi positivo. Na venda da Light, avaliada em R$ 3.7 bilhões, a parte podre, correspondente a Eletropaulo, ficou com o Tesouro Nacional. O valor de venda podia ser maior, como mostra um estudo feito pela UFRJ. O fluxo de caixa descontado omitiu ganhos potenciais de receita, como o de uso das torres para redes de fibras óticas. O edital de licitação e o contrato de concessão permitiram que a Light privatizada piorasse a qua-

lidade do serviço e aumentasse tarifas. Para se ter uma idéia, o índice de duração de interrupção do Grande Rio em 1994 foi 16,28, melhor do que o autorizado no contrato de venda da Light: 19,30. Se a privatização é para melhorar o serviço, por que não foi exigido o melhor índice dos últimos anos, que foi de 14,82, em 1992? O edital ainda permitiu aumentar a tarifa de pequenos consumidores para diminuir a dos grandes, bem como para compensar perdas de receita. Ironicamente, o controle da Light, cuja privatização foi tão festejada pela mídia, acabou nas mãos de uma estatal francesa, a EDF. Ou seja, saiu das mãos do governo brasi l e i r o p a r a a s mãos do governo f r a n c ê s . Já os empresários brasileiros, que se diziam tão interessados em investir no setor, mal totalizaram 10% do capital do leilão. Mas o grupo controlador estrangeiro liderado pela EDF também só comprou 34% das ações, obrigando o BNDES a autocomprar, de si mesmo, mais de 9%. Portanto, somadas as ações retidas pela União, o Estado Federal permanece sendo o acionista majoritário, com mais de 50% das ações, e é legalmente responsável pelo controle da empresa. Entretanto, renunciou de exercê-lo dando-o, de presente, à EDF. Fez tal gentileza com o que pertence de direito ao contribuinte, sem consultá-lo. A Light não era do governo, transitório, mas do Estado, uma instituição permanente, a despeito do conceito de soberania relativa esposado pelo atual governo. Desta forma, ocorreu desnacio-

"O Estado permanece sendo o acionista majoritário, com mais de 50% das ações. Mas renunciou ao controle da empresa, dando-o, de presente, à EDF."

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nalização mas não privatização, a menos que seja interpretada como relativa também. Parece que estatais européias são igualadas na A. Latina a empresas privadas pelo Banco Mundial, cujos manuais são como o livro vermelho do Mao para o neoliberalismo, tão dogmático quanto o stalinismo. Ademais os 9% da Light que o BNDES comprou do BNDES poderão agora ser vendidos pelo BNDES sem a licitação que o BNDES é obrigado a fazer, pela lei de concessões de serviços públicos. Em debate na TVE, gravado antes do leilão, a diretora de privatização do BNDES disse que a EDF ganharia a licitação. Sem extrapolar nenhuma acusação de corrupção, isto mostra que o leilão, durando 7 minutos, foi mera formalidade. O acerto prévio é comum em um negócio desta magnitude. Só os ingênuos e os espertos dizem vigorar o livre mercado na venda de empresas elétricas em leilão. Haveria se pulverizassem as ações. O contrato de licitação garante a manutenção da tarifa com correções por oito anos, fazendo com que qualquer redução de custos não beneficie o consumidor. No que se refere à qualidade, os índices de interrupção da Escelsa pioraram com a privatização(*). No caso da Light o contrato autoriza que eles também piorem; já o fizeram. (**) Em São Paulo os índices das empresas elétricas estaduais são muito melhores que os das concessionárias privadas (***). Quanto à eficiência, a Escelsa dava lucro quando est a t a l (R$ 32 milhões em 1994) e deu prejuízo (R$ 99 milhões) em 1995, o primeiro ano privatizada. O filme se repete e quem paga o prejuízo, mais uma vez, é o povo brasileiro. No caso da Light, já se perdeu a conta da sangria imposta ao público em favor do privado. Com relação a este caso, não se faz necessário dispender grande esforço para


exercitar a memória. De acordo com o contrato de concessão assinado entre o governo brasileiro e a empresa canadense, após anos de exploração a Light seria reabsorvida, sem ônus para o Estado. Para a surpresa de todos, antes de expirar o contrato de concessão, o governo, contraditoriamente, divulga a compra da empresa que, por direito, já seria sua. Uma manobra escandalosa. Atualmente governo, empresários e mídia compartilham da mesma crença de que privatização é como remédio milagroso de camelô: cura todos os males. No caso da Light o BNDES dizia que o motivo era expandir o setor elétrico. Já o governo do Rio de Janeiro queria parte da verba para ciência e tecnologia, para compensar o que cortou do orçamento e acalmar os cientistas. Enfim o governo federal irá queimar tudo para pagar dívidas, como o herdeiro viciado que vende a casa da família para saldar dívidas de jogo. Entretanto o bilhãozinho de reais apurado é uma pequena fração da dúzia de bilhões que o governo generosamente gastou com bancos falidos ou das dezenas de bilhões que paga de juros ao setor privado.

“Governo, empresários e mídia acham que privatização é como remédio milagroso de camelô: cura todos os males.” A título de reflexão: o BNDES financiou o Banco Nacional, antes de falir, para comprar de Furnas a usina de Serra da Mesa. O Nacional faliu e a usina ficou sob controle do Banco Central; voltou para o Estado! Pode-se chamar isso de privatização iô-iô ou bumerangue: vai e volta para as mãos do Estado. A da Light, controlada por uma estatal estrangeira, e com a União como acionista majoritária, pode ser chamada de privatização à moda da Batalha de Itararé, heróica mas que jamais ocorreu. (*) O índice de duração de interrupção (DEC) da Escelsa passou de 28,37 para 35,67 e o de freqüência (FEC) de 25,33 para 27,21. (**) Os melhores índices da Light nos últimos anos foram DEC 14,82 e FEC 14,64 em 1992, mas o contrato autoriza após privatizar que sejam 19,30 e 16,83 respectivamente. (***) Em São Paulo o DEC das estaduais está na faixa de 10 e o das concessionárias privadas entre 28 e 32. Luiz Pinguelli Rosa, professor titular do Programa de Planejamento Energético da UFRJ e diretor da COPPE/UFRJ.

SAMUEL WAINER, O ESTRANHO NONINHO DAGRANDE IMPRENSA Brilhante jornalista, foi combatido pela direita e também pela esquerda Moacir Werneck de Castro A colaboração que me foi solicitada para este número especial do Jornal da ABI abarca duas publicações -a revista Diretrizes e o jornal Última Hora- e dois períodos distintos da nossa história contemporânea. A revista circulou de 1938 a 1944, primeiro como mensário e depois como semanário; o jornal, fundado sob o governo constitucional de Getúlio Vargas, em 1951, sobreviveu ao desaparecimento de Getúlio e veio a expandir-se sob os governos de Juscelino Kubitschek e João Goulart, para sofrer depois um lento estrangulamento pelo regime militar e, afinal, deixar de circular em 1971. Participei da redação de ambas as publicações, a revista na fase de mensário e o jornal a partir de 1957 até o fechamento. Estas minhas notas foram pautadas dentro dos limites de um depoimento pessoal, não implicando, pois, um trabalho de pesquisa, que se estenderia do fim dos anos 30 ao começo dos anos 70, e cujo resultado exigiria grande espaço. Esta precisão é necessária para que o leitor mais exigente não se decepcione, esperando que eu falasse com a autoridade de quem tivesse participado em toda a vida dessas publicações. A uma distância considerável dos acontecimentos, entretanto, me animo a pensar que meu depoimento, mesmo de alcance parcial, pode ser útil, sobretudo aos jovens de hoje. O elo entre Diretrizes e Última Hora foi obviamente a presença em ambas do jornalista Samuel Wainer. Foi ele a alma, o motor desses empreendimentos que marcam a história da imprensa brasileira. O título de seu livro autobiográfico Minha razão de viver explica sua entrega apaixonada e absorvente ao que encarava como uma missão. Esse componente de sua personalidade altamente dinâmica de realizador não se devia a uma tendência ideológica, mas à verdadeira obsessão de criar um “império” jornalístico. O começo de Diretrizes foi humilde. Não tinha financiamento garantido, nem estrutura empresarial. Era uma iniciativa amadorística, na qual Samuel teve a cooperação de jornalistas como Octavio Malta (que o acompanharia até o fim), Jorge Amado (já um nome nacional como escritor), Rubem Braga, Carlos Lacerda, Augusto Rodrigues e eu, um principiante, além de um corpo de colaboradores conhecidos.

O Estado Novo começava a implantar a sua máquina de controle da imprensa, que adquiriria feição definitiva com a criação do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), por decreto de 30 de dezembro de 1939. Durante algum tempo, Diretrizes pôde subsistir, mal ou bem, mantendo uma posição política isenta de compromisso com a situação dominante. Nessa fase, e mais na que iria se seguir, de semanário, ela navegou em águas revoltas. A certa altura Samuel, mal visto pelo regime, foi obrigado a deixar o país. Na redação ficou o velho Malta, com a

Imprensa Popular, o jornal diário do Partido Comunista. Estive afastado de Samuel Wainer durante vários anos. Quando me liguei ao seu jornal, este ainda sofria os efeitos de uma dura perseguição, marcada pela CPI sobre a concessão de um empréstimo do Banco do Brasil, a qual buscava envolver Getúlio Vargas em favorecimento ilícito, perseguição que se agravou com a morte de Getúlio em 1954. Amainada essa turbulência, Ultima Hora prosseguiu na série de inovações técnicas, editoriais e empresariais que haviam assinalado o seu aparecimento, desenvolvendo uma rede de edições regionais. Um depoimento meu sobre o período em que trabalhei na UH está contido no livro A Última Hora de Samuel - Nos tempos de Wainer (Edições ABI/Copim, 1993). Aqui me limito a reproduzi-lo em parte, pois expressa o que me proponho neste artigo e eu não teria outra maneira de fazê-lo. Durante os anos 60 exerci as funções de redator-chefe do jornal. Trabalhei com um grupo de profissionais de valor, como Octavio Malta, Paulo Silveira, João Etcheverry, Luís Costa, Jorge de Miranda Jordão, Pinheiro Júnior, Nilson Lage, Osmar Flores, Peri Augusto, José Silveira, Armindo Blanco, Flávio de Brito, João Ribeiro. Era um tempo em que brilhavam colunistas como Nélson Rodrigues, Stanislaw Ponte Preta, Adalgisa Nery, Antônio Maria, e, entre os cartunistas, Jaguar, Nássara e Augusto Rodrigues, para só citar uns poucos. Meio mundo passou por aquela redação. Anos depois, eu iria encontrar numerosos ex-profissionais da Ultima Hora ocupando posições de destaque em jornais, revistas e televisões. Entretanto, o estigma da campanha movida pelos seus inimigos continuou marcando a UH, que nunca deixou de ser um jornal marginalizado, e Samuel Wainer um estranho no ninho da grande imprensa. Essa perseguição se acentuou novamente no fim do governo João Goulart, quando o jornal foi alvo das forças políticas, econômicas e militares empenhadas em derrubar a ordem constitucional, sob a bandeira do anticomunismo. Tratava-se de um falso pretexto, pois UH não era, certamente, um jornal comunista. Ao contrário, não tinha qualquer identificação com o PC, que a hostilizava como um órgão oportunista, dedicado a desviar as massas do caminho revolucionário.

" Diretrizes foi uma iniciativa amadorística. Última Hora, com o apoio de Getúlio Vargas, foi um acontecimento de relevo na história da imprensa brasileira. Seus profissionais ocuparam depois lugar de destaque em jornais, revistas e televisões."

" UH não foi fechada por um ato formal da ditadura: foi estrangulada aos poucos." colaboração de uma excelente equipe da qual faziam parte Joel Silveira, Dalcídio Jurandir, Alceu Marinho Rego, Francisco de Assis Barbosa entre outros. Fechada Diretrizes, Wainer andou pelo exterior como repórter. Cobriu o julgamento dos criminosos de guerra nazistas em Nuremberg, e, trabalhando para os Diários Associados, de Assis Chateaubriand, aproximou-se de Getúlio Vargas, no retiro deste em São Borja. Eleito presidente da República, Vargas assegurou ao jornalista seu amigo os recursos necessários para lançar na então capital da República um jornal que o defendesse. A fundação de Última Hora foi um acontecimento de relevo na história da imprensa brasileira. Eu não participei da “revolução gráfica” da UH, como alguém disse: era naquela época redator da

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Jornal da ABI


"Barbosa me ajudou com vários editoriais, feitos com habilidade, a dizer o essencial sem desencadear as fúrias do poder militar." Na realidade, a UH poderia ser qualificada como nacional-reformista. Apoiava as reformas de base propostas por Jango, que representavam uma via não revolucionária. Sua diretriz ideológica, se assim se pode chamar, era próxima à socialdemocracia, com elementos de populismo, ou seja, da participação popular sem um comprometimento partidário definido. Procurava influenciar Jango a não se envolver com os setores de extrema esquerda que o apoiavam, com as direções

sindicais ligadas ao PC e com a Frente Parlamentar Nacionalista. Ainda assim, o conservadorismo lhe era hostil. O Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), através do Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) - entidades criadas pelo setor mais conservador e reacionário do empresariado, sob a inspiração da chamada doutrina de segurança nacional e representando interesses do capital estrangeiro, com respaldo da CIA - moveram forte campanha contra o jornal, chegando a elaborar uma lista negra de firmas que nele anunciavam, “ajudando os comunistas a manter Última Hora”. (Ver, a propósito, o verbete Última Hora, do Dicionário político-biográfico brasileiro,1930-1983, ed. FGV - Forense Universitária, 1984.) Implantado o regime militar em abril de 1964, a UH passou por uma fase muito difícil, enfrentando pressões cada vez mais fortes. Samuel Wainer exilou-se e, a partir de janeiro de 1965, a direção da empresa e do jornal coube a Danton Jobim, um notável jornalista, prudente e experimentado, cuja contribuição foi

importante para manter a UH circulando. (Mais tarde, Danton Jobim seria eleito presidente da ABI.) Em meados de 1964, na qualidade de redator-chefe, eu passava por sérias dificuldades em meu trabalho. Um dia tive a feliz idéia de pedir ajuda a Barbosa Lima Sobrinho, o íntegro e prestigioso jornalista, que eu pouco conhecia, mas de quem pude me aproximar por intermédio de meu irmão mais velho Luís Werneck de Castro, seu amigo e também jornalista. Fui procurar Barbosa Lima, sigilosamente, em sua casa da rua Assunção, e expus-lhe o meu problema. Dessa conversa surgiu uma colaboração que caiu do céu. Ele me ajudou com vários editoriais, de rigorosa análise política, feitos com grande habilidade, para dizer o essencial sem desencadear as fúrias do poder militar. Com argumentos jurídicos lapidares, mestre Barbosa mostrava o caráter arbitrário dos Atos Institucionais, que se mascaravam de democracia. Detinha-se em particular na exposição dos abusos dos IPMs, cuja rede começava a se estender, abrindo caminho à institucionalização da

violência e da tortura. Eu próprio ia buscar aqueles editoriais, que poucos na redação sabiam de onde vinham. É sempre com alegria e emoção que registro essa contribuição de Barbosa Lima, discreta e pouco conhecida, à luta pelas liberdades democráticas em nosso país. Com o AI-5 a situação do jornal piorou. Oficiais do Exército instalaramse na redação como censores. O fim não poderia tardar muito. Samuel Wainer, que voltara ao país em 1967, tentou tudo para salvar o seu jornal. Em vão. A Última Hora não foi fechada por um ato formal da ditadura: foi estrangulada aos poucos. Resistiu enquanto pôde, com um grande esforço da sua redação, até que a empresa faliu e o título foi vendido. Quanto a mim, enquanto durou o regime militar, fiquei com o estigma dos meus antecedentes de "subversivo” e da minha estreita ligação com a Última Hora.

Moacir Werneck de Castro, jornalista, escritor e conselheiro da ABI.

"SAI DUTRA ENTRA GOES" (DUAS DE 10 NA PRIMEIRA E O LEAD SURGINDO NO BRASIL) O testemunho de quem ouviu a história de Pompeu de Souza, que importou essa técnica de jornal Evandro Carlos de Andrade As ditaduras no Brasil (talvez em toda parte) tiveram uma relação curiosa com os profissionais de imprensa. No primeiro movimento, tentavam conquistar sua simpatia, distribuiam empregos públicos, convidavam para viagens, financiavam a perder de vista a aquisição de moradias. Muitos recebiam os favores e retribuiam com permanente gratidão; outros os aceitavam mas não se consideravam subornados, achavam que fazia parte do jogo, não se achavam palmatórias do mundo e era assim que a sociedade estava organizada; outros ainda, infelizmente a minoria, rejeitavam os benefícios e não se curvavam - e sofriam por isso. De certa maneira, a introdução do lead na imprensa brasileira deveu-se à relação promíscua da imprensa com o regime autoritário. Pompeu de Souza, Roberto Pompeu de Souza Brasil, que este era o seu nome completo, se situava entre o segundo e o terceiro daqueles segmentos. Ele era editor de assuntos internacionais no Diário Carioca e nessa posição aproveitava o noticiário político externo para fustigar a ditadura de Getúlio Vargas, com referências freqüentes às virtudes dos regimes democráticos que àquela altura se batiam na Europa e no Pacífico contra o nazi-fascismo de Hitler e Mussolini e o militarismo imperialista de Japão. Especial - Barbosa Lima Sobrinho

"O diretor do DIP convidou Pompeu para trabalhar na Voz da América. Encantado com a objetividade daquele jornalismo, ele regressou propondo a reforma editorial do Diário Carioca. De certa maneira, a introdução do lead no Brasil deveu-se à relação promíscua da imprensa com o regime autoritário." Como as relações do Diário Carioca eram naquele momento de razoável convivência com o regime autoritário, o diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda, Lourival Fontes, convidou Pompeu para ir trabalhar na Voz da América, o programa radiofônico de propaganda dos aliados que era produzido em Nova York e de lá transmitido para os países da América Latina. Pompeu ficou lotado no departamento de língua portuguesa e ali travou contato direto com a moderna imprensa americana. Encantado com a objetividade daquele jornalismo, Pompeu, ao regressar ao Brasil nos estertores da ditadura, propôs a Horácio de Carvalho (Horácio Gomes Leite de Carvalho Júnior), o proprietário do Diário Carioca, a reforma editorial do jornal. Um título na primeira página marca historicamente a introdução do lead em

nossa imprensa: “Sai Dutra entra Goes” Era a substituição no Ministério da Guerra (hoje Ministério do Exército) do general Eurico Dutra, que concorreria à Presidência da República como candidato do Partido Social Democrático, pelo general Aurélio Goes Monteiro, até então chefe do Estado Maior. E acompanhado do título, o texto em que o primeiro parágrafo compilava, sem o clássico “nariz de cera” (uma espécie de conversa mole que precedia a informação), os dáblius da imprensa americana (what, when, who, where, why). E sem aquele tratamento excessivamente cerimonioso com que até então se tratavam as pessoas, sobretudo se ocupavam cargos públicos de relevo. Até porque o espírito oposicionista e rebelde de Pompeu se completava com um bom-humor que se refletia nas páginas do jornal através de permanente irreverência. Pompeu, temperamento inquieto,

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ainda submeteria o jornal a outras fases, como a parentética, em que não se fazia um título sem que nele se abrissem parêntesis para explicações quase discursivas. O jornal era influente, mas pequeno e pobre, e portanto receptivo a novas idéias, mesmo que alguns casos não se sustentassem por longo tempo. Mas isso não aconteceu com o lead. Este se consagrou, ao preço até de mediocrizarse a apresentação geral das notícias, embora Pompeu garimpasse exaustivamente talentos capazes de apresentar leads bem escritos e criativos. Nessa busca, houve tempo em que o corpo de copidesques (copy desk também foi expressão importada pelo Pompeu e consagrada no que se chamou style book do Diário Carioca) reunia Luiz Edgar de Andrade, José Carlos de Oliveira, Ferreira Gullar, Hermano Alves e Nilson Laje, precedidos no tempo por Armando Nogueira, Otávio Bonfim, José Ramos e o autor destas linhas. Cabe dizer que este relato se baseia no que à época foi contado pelo próprio Pompeu e por Carlos Castello Branco, que respondia desde a Constituinte de 46 pelo noticiário político e pela coluna “Diário de Um Repórter” do Diário Carioca. Sujeito, portanto, a conter equívocos, quando nada resultantes de falhas de memória, pois para elaborá-lo não houve consulta a arquivos. Evandro Carlos de Andrade, diretor da Central Globo de Jornalismo.


FIM DO PERÍODO JURÁSSICO NA IMPRENSA De como um jovem estudante de jornalismo ouviu os depoimentos sobre a implantação do lide André Modenesi Souza Reinavam os dinossauros. Pesados e barrocos, os sáurios dominavam o ambiente. Repletos de anacronismos e formas sem função, eram só o que se via. Eram antigos, ultrapassados e, acima de tudo, muito feios. Mas um impacto portentoso fez-se sentir e modificou de tal forma o ambiente que os dinossauros não puderam mais viver. Em seu lugar seres mais leves e melhor distribuídos tiveram sua vez. Mais elegantes e racionais, desanuviaram o ambiente. Seres muito mais bonitos, enfim, sobrevieram ao impacto das reformas da imprensa brasileira a partir dos anos 50. Para alguém habituado à overdose de informação videoclipada do mundo atual (como os estudantes de Comunicação) é surpreendente descobrir que, até os anos 50, informação não era o que mais importava em um jornal. Herdeiros do jornalismo de opinião e panfletário do século XIX, os jornais eram ocupados por jornalistas “amadores”, pessoas com veleidades literárias que, em geral, tinham alguma outra profissão e era mestres em narizes-de-cera. Nariz-de-cera, para aqueles que ainda não ouviram a expressão, era uma longa, rebuscada e inútil introdução, em geral com um pé no barroco e outro no

parnasianismo, que “ambientava” o leitor. A informação propriamente dita vinha no final, quando sobrava espaço. Espaço era, por sinal, um outro problema. A diagramação, quando havia, engatinhava

"E a imprensa ficou toda igual. Vão-se já cinqüuenta anos que nos deram a norma e reduziram, com danos, a fôrmas a forma." e havia jornais em que as matérias simplesmente não eram diagramadas. Foi quando Pompeu de Souza, que fizera cursos nos EUA, voltou e introduziu o lead no Diário Carioca. Antes que alguém pense que vou cair na ladainha do lead-responde-as-cinco-perguntasbásicas-quem-o quê-quando-onde-como(por quê) esperem-me prosseguir. O lide, que é hoje dogma nas faculdades, foi uma inovação combatida pelo pessoal da velha guarda. Velha guarda, entenda-se bem, nos

anos 50, pois os jovens audaciosos que introduziram o lide são hoje a velha guarda da imprensa. Esses jornalistas formaram-se principalmente em dois pequenos jornais do Rio de Janeiro: o Diário Carioca e a Tribuna da Imprensa. No Diário Carioca militavam Pompeu de Souza, o pai da criança, e Luís Paulistano, um chefe de redação extremamente rigoroso com a qualidade dos textos publicados no jornal. Na Tribuna da Imprensa já estava Carlos Lacerda, que acrescentou às cinco indefectíveis perguntas do lide outra: “e daí ?” Esta deveria ser sempre uma pergunta a martelar na cabeça do jornalista, para que ele sinalizasse ao leitor as conseqüências do fato expresso nas também indefectíveis cinco linhas do lide. Esses dois jornais, principalmente o Diário Carioca, começaram a inovar o jornalismo. Mas os dois eram jornais pequenos, sendo o Diário o jornal dos intelectuais e a Tribuna o jornal de vendagem pequena carregado de adjetivos e pontos de exclamação. Foram celeiros de bons jornalistas, mas não repercutiram suas inovações. Foi preciso a reforma do Jornal do Brasil para que o novo modelo de jornalismo se espalhasse. O JB pré-reforma era o “jornal do pequeno anúncio”, uma espécie de Balcão com editoriais. Sua primeira página,

pasmem, era composta de classificados. Havia uma pequena janela onde acavalavam-se de dez a quinze “manchetinhas”, com as principais notícias do dia. Seguiam-se uma segunda página de classificados, uma terceira de editoriais, quarta de classificados e, finalmente, quinta e sexta de noticiário principal. O jornal já contava com nomes de peso como Barbosa Lima Sobrinho e Manuel Bandeira. Mas os artigos eram totalmente imprevisíveis quanto à extensão e não eram diagramados. Não que a diagramação fosse tão ruim que praticamente não existisse, ela efetivamente não existia. O secretário de redação tomava das folhas manuscritas onde estavam os artigos - alguns eram datilografados, quando o autor possuía máquina de escrever - e marcava alguns artigos com “Inadiável”. Na oficina, o chefe das máquinas ia montando as páginas, sempre em duas colunas, e decidia ele mesmo, já que nunca cabiam na página todos os artigos marcados, o que seria e o que não seria publicado. Em suma, um jornal inacreditável para quem passa quatro anos escutando o lema “concisão, clareza e objetividade”e sendo convencido de que o leitor é um imbecil que não consegue nem mesmo entender uma construção gramatical mais

O GLOBO

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Jornal da ABI


jeitosinha do que o outro dogma: “ordem direta, evitar adversativas”. A reforma do JB durou alguns anos, é uma história controvertida e apesar da difusão do lide, nela ainda não se sabe com certeza quem fez o quê quando onde como e por quê. Em depoimentos ao Centro de Memória do Jornalismo da ABI (cujo acervo hoje está no MIS, no Projeto Memória do Jornalismo Brasileiro) em 1977, Odylo Costa Filho, Jânio de Freitas e Amilcar de Castro falam sobre suas trajetórias profissionais e sobre a reforma, da qual participaram com destaque, e discordam em alguns pontos. Mas o que importa aqui não é quem fez o quê onde como e por quê, mas sim e daí? A partir da reforma do JB o modelo de jornalismo americano, com lide, copidesque e todo esse vocabulário que Pompeu de Souza não teve nem tempo de traduzir espalhou-se pelo Brasil e moldou uma era da imprensa brasileira. E a imprensa ficou toda igual. Vãose já cinqüenta anos que nos deram a norma e reduziram, com danos, a fôrmas a forma. E foi por causa dessa reforma? Se as notícias hoje começam iguais, num modelo cristalizado e repetido ad nauseum, é culpa dela? Foi por causa dela que os redatores passaram a ter de dar a notícia em cinco linhas e depois confiar na curiosidade inata do leitor para que ele leia o resto da notícia? Não. A reforma priorizou a informação, porque num tempo em que o rádio começava e não havia TV, o leitor do jornal precisava saber o que acontecera no dia anterior. Hoje o leitor, ao abrir o jornal, já sabe das principais notícias do dia, e quer do jornal uma reflexão, uma idéia de em quê aquela massa de informação interfere na sua vida. E isso alguns jornais do passado souberam fazer. No JB, exemplo mais badalado, a chamada primeira página era um “super lide”, onde o redator tinha dez linhas para despertar a curiosidade do leitor. Evidentemente ele informava o leitor dos pontos mais importantes da notícia, mas não se esgotava nisso. Não bastava que a notícia estivesse clara, objetiva e concisa, era preciso que o leitor gostasse de lê-la. É um tanto triste para mim, estudante de Comunicação que nem entrou ainda no mercado de trabalho soar tão saudosista. Não me creio, entretanto, um real saudosista. Se assim pareço é porque estamos num momento em que o paradigma do jornalismo praticado há 50 anos dá evidentes mostras de esgotamento. Seu período áureo, por definição, há que sair ganhando em qualquer confronto. Se hoje nem o jornalismo nem a faculdade parecem estar perfeitamente adaptados aos tempos não é culpa nossa, mas é a nós que compete mudar a situação. A história dessa revolução da imprensa serve para mostrar, entre outras coisas, que não há nada que não possa ser mudado, desde que por algo melhor. Que algo é esse eu ainda não sei, mas cabe à nossa geração descobri-lo e implantá-lo. Mãos à obra, portanto. André Modenesi Souza tem 22 anos e cursa o 5º período de Comunicação na UFRJ. Especial - Barbosa Lima Sobrinho

UMENIGMAADECIFRAR:MUDOU ATELEVISÃOOUMUDAMOSNÓS? A televisão trouxe para o Brasil a sociedade das imagens e do consumo Sérgio Capparelli Desde que os primeiros sinais da televisão Tupi foram ao ar em 1950, muito se discutiu no Brasil sobre as influências desse meio de comunicação na sociedade. Houve os que acreditaram que os males do país se deviam à televisão. Outros disseram que ela era parte da modernização tão esperada. Houve ainda os que a acusaram de ser um instrumento de manipulação por parte de grupos de interesse e os que defenderam a idéia de que os telespectadores têm muitos recursos culturais espontâneos para fazer qualquer coisa com o fast-food da grade de programação. Mas as discussões não param aí. Com as novas tecnologias de cabo e de satélite e a possibilidade de um dublê de computador e televisão, há quem anuncie uma nova fase de desenvolvimento desse meio no Brasil. E também quem anteveja seu próximo fim. A televisão foi um dos motores do modelo econômico brasileiro a partir dos anos 60. Por um lado, serviu para a expansão da indústria eletro-eletrônica e para a expansão das indústrias culturais. E serviu também como um acelerador do processo produtivo em geral, a publicidade veiculada por ela incentivou o consumo e divulgou produtos culturais ou não culturais. É o meio de comunicação hegemônico do país, recebendo mais de 50 por cento dos investimentos publicitários. Essa televisão, porém, mudou muito nesse quase meio século de existência. Os sinais da Tupi, de São Paulo, atingindo algumas dezenas de aparelhos receptores de televisão espalhados pela cidade são muito diferentes dos milhões e milhões de receptores ligados de norte ao sul do país. E as mudanças não são apenas quantitativas. São outras tecnologias, outras linguagens, outros programas e outro telespectador. Mudou o país. Nessa relação de influência mútua, é impossível se dizer o quanto a televisão influenciou a sociedade brasileira. O país experimentou profundas mudanças políticas nesse meio século. Do desenvolvimentismo de Juscelino à crise do populismo, das ditaduras militares ao modelo neoliberal. Nesse tempo todo, a televisão agiu como um poderoso instrumento de mobilização da opinião pública para que prevalecesse o pacto de interesses ou imposição de uma parte deles sobre a sociedade. A televisão não foi o único agente da manutenção desse pacto junto da opinião pública mas foi um dos mais importantes. Aquele que soube melhor se adaptar aos regimes instalados e se aproveitar deles em benefício próprio. Porque ela, nesse período de mudanças, constituiu-se num espelho e num agente dessas transformações. As grandes redes de televisão souberam se adaptar aos regimes políticos instalados, extraindo deles o máximo de

benefícios. Expandiram-se durante os governos militares, cresceram na etapa da redemocratização e procuraram extrair favores no período em que estamos vivendo. Em alguns momentos da vida nacional, esse modelo de televisão esteve perfeitamente harmonizado com os objetivos políticos dos governantes, como

“A televisão foi um dos motores do modelo econômico brasileiro a partir dos anos 60.” nos anos 60, ao se enfraquecer com o escândalo Globo-Time-Life e ao se deparar com o poder militar. Durante a redemocratização, entrou em descompasso com o sentimento político dominante no país e foi levada de arrastão pelas Diretas. Alinhou-se decididamente contra as novas forças políticas nas eleições de Collor. Com o impeachment, acordou tarde para o que acontecia. Mas, em todos esses momentos, soube se readaptar com perfeição e recuperar o tempo perdido. Nos anos 60 e início dos 70, grande parte dos estudos sobre televisão falava de seu papel ideológico e político na cena brasileira. No fim dos anos 70, as atenções voltam-se para suas relações com a

“A televisão por assinatura mostra um novo caminho para a televisão.” cultura. Em resumo, de que forma a televisão teve impacto sobre a cultura brasileira, de que maneira foi influenciada por ela. Num primeiro momento, com uma tradição de apreciações ancoradas em idéias da Escola de Frankfurt, disseminouse a certeza de que a televisão era predatória em relação à cultura nacional. Essas análises tinham uma vertente interna, questionando o papel da televisão como integradora dos valores culturais nacionais e a força de uma televisão centralizada no Rio de Janeiro e São Paulo, agindo sobre essas culturas regionais. Já na vertente externa, procuravam estabelecer uma linha direta entre os grandes centros

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internacionais que exportavam programas de televisão para o Brasil, de séries a filmes, de talk-shows a desenhos animados. Prevaleceram durante muito tempo as idéias sobre uma televisão dominada pelos valores culturais norte-americanos. Essas certezas se esboroam nos anos 80 e nos anos 90. Estudos mostram que a cultura é uma instância complexa e que mais complexa ainda é sua relação com a televisão. Tornando-se a cultura o centro das atenções, a Antropologia e outros campos do conhecimento vão se interessar por suas relações com a televisão. As concepções enrijecidas de cultura, que a localizavam no campo culto e no campo popular, tornam-se mais flexíveis, substituídas por uma circularidade, isto é, os valores culturais como vasos comunicantes, ou na imagem de um tear onde fios se agrupam no tecido cultural. Se antes se falava na televisão como uma conformadora da cultura, em que os telespectadores brasileiros seriam uma espécie de tábua rasa, prontos para serem dirigidos, os estudos de recepção procuram desmentir essa idéia passiva do telespectador. Os produtos da cultura televisiva adquirem status, as raízes da telenovela são buscadas na cultura popular e entram para a academia como uma expressão cultural genuína. Os telespectadores não são mais manipulados mas negociam os sentidos dos produtos culturais com os produtores através da linguagem. Um extremo dessa última tendência pode ser encontrado entre os pósmodernistas, neopopulistas e neoliberais de mercado, por acreditarem que os pobres têm tantos recursos culturais que podem fazer literalmente qualquer coisa com o fastfood televisivo (Sarlo, 1994:8). Concluindo, mudou a televisão nas últimas décadas mas mudaram também as apreciações a respeito de sua influência sobre a cultura brasileira. Nos últimos 30 anos, especialmente, a televisão brasileira, a publicidade e, claro, as grandes empresas de brinquedos ou de alimentos, procuraram fazer emergir a criança enquanto consumidor no Brasil. Eles não queriam que as crianças que viviam nos 30% de lares com certo poder de consumo fossem apenas filhos de consumidores mas se transformassem, elas próprias, num deles. Para que isso acontecesse, a programação infantil passou dos programas importados de Hanna-Barbera ou Disney dos anos 60 para O Sítio do Pica-Pau Amarelo ou Vila Sésamo. Junto com essas iniciativas, mulheres de aspecto infantilizado tomaram conta do vídeo como apresentadoras; crianças se transformaram em artistas vendendo milhões de discos; centenas de produtos foram etiquetados com o nome das novas stars infantis, vendendo bilhões de reais. Ao lado desses canais exclusivamente comerciais, canais públicos, como a TV Cultura de São Paulo


e a Funtevê do Rio, esmeraram-se em programas destinados às crianças, obtendo um reconhecimento internacional. Nos Estados Unidos, a televisão massiva começou a se esgotar enquanto modelo de acumulação já no fim dos anos 70. Foi porém nos anos 80 e 90 que essas tendências se tornaram mais claras. A televisão massiva passou a perder espectadores e investimentos publicitários. Ao mesmo tempo, essa televisão sofreu a competição da televisão fragmentada, que procurava atender a públicos especializados. No Brasil, a televisão por assinatura (cabo ou satélite) tem três ou quatro anos de existência. Esse novo modelo mostra um novo caminho para a televisão, com diferenças em relação aos outros países: aqui, ainda havia possibilidades de crescimento da televisão massiva; a maior parte dos investimentos publicitários dirigiam-se à televisão, especialmente à Rede Globo; a Globo (e a mexicana Televisa) mostrava ser possível uma grande rede independente da televisão norte-americana. No entanto, esse novo modelo de televisão foi implantado por constituir um modelo de transição para a cibertelevisão ou para a post-televisão, esse dublê de computador e de televisão do futuro que não está tão longe como se pensa. A verdade é que a convergência das novas tecnologias, principalmente as que operam com fibra ótica ou por satélite, permite aos empresários de telecomunicações se interessarem pelos conteúdos da programação - e não apenas com o transporte de sinais - e aos empresários de televisão se preocuparem com o transporte de sinais - e não apenas com conteúdo. Dentro desse contexto explica-se os investimentos da Globo e Abril em satélites, da RBS em telefonia, e dos gigantes das telecomunicações norte-americanos ou europeus no sistema de televisão por assinatura no Brasil. E explica, igualmente, a desregulamentação da televisão e das telecomunicações brasileiras, onde o Estado deixa de ser operador para se transformar em um pálido regulador. Sérgio Capparelli, coordenador de mestrado em Comunicação da UFRS. PARA SABER MAIS SARLO, Beatriz - Escenas de la vida posmoderna. 1994, Buenos Aires, Ariel. CAPPARELLI, Sérgio - Televisão e capitalismo no Brasil. 1983, Porto Alegre, L&PM. COSTA, A. H.; SIMÕES, Inima Ferreira e KEHL, Maria Rita - Um país no ar. História da TV brasileira em 3 canais. 1986, São Paulo, Brasiliense/Funarte. HERZ, Daniel - A história secreta da Rede Globo. 1987, Porto Alegre, Tchê. MARQUES DE MELLO, José - As telenovelas. Produção, exportação. 1988, São Paulo, Summus. MATELLART, Armand e MATELLART, Michelle - O carnaval das imagens. 1986, São Paulo, Brasiliense. ORTIZ, Renato e outros - Telenovela: história e produção. 1991, São Paulo, Brasiliense. ORTIZ, Renato - A moderna tradição brasileira. 1994, São Paulo, Brasiliense.

DÉCADA DE OURO DA IMPRENSA Nos anos 60 a criatividade marca época até enfrentar o início da censura J. S. Faro Barbosa Lima Sobrinho é um dos pioneiros da análise do papel da imprensa na sociedade contemporânea. A contribuição que tem dado nesse sentido é variada e ressurge a cada momento de sua reflexão sobre o jornalismo como exercício de crítica e de construção da dinâmica social. No entanto, há um aspecto de seu pensamento que ocupa lugar privilegiado na relação que estabelece entre o desenvolvimento da imprensa e a feição da sociedade democrática: o momento em que, para o presidente da ABI, graças ao “progresso da opinião pública”, a imprensa se emancipa das restrições oficiais e absolutistas do Antigo Regime e passa a influenciar “na luta dos partidos políticos e na direção da coisa pública, invadindo a esfera do governo (...) sujeitando-o ao controle da censura pública.” (1) Vista de agora, com todo o desenvolvimento que os estudos sobre o jornalismo sofreram, a idéia de que no processo da Revolução Burguesa do século XVIII a dimensão política da imprensa passa a ter precedência sobre suas dimensões técnicas e econômicas, é uma reflexão elementar. Mas Barbosa Lima Sobrinho fez isso na década de 20, quando sequer o próprio jornalismo era visto como alguma coisa muito diferente do exercício de uma literatura descompromissada, espaço onde se confundiam pendores políticos com rebuscamento de estilos. Não que o jornalismo fosse isso efetivamente, mas era visto assim, em que se pese toda a tradição panfletária e militante que nossa imprensa havia herdado do século XIX. E, no entanto, por mais elementar e antiga que essa reflexão possa parecer, ela não tem sido vista com toda a sua pertinência e desdobramento quando são estudados os vários momentos da história do nosso jornalismo. Quando isso ocorre, quer dizer, quando o eixo da análise é essa precedência política da imprensa, invariavelmente a constatação seguinte é a de que o jornalismo brasileiro foi tanto mais rico, profundo, polêmico e mobilizador quanto mais seus agentes seus produtores, os jornalistasentenderam que não estavam diante de um fenômeno qualquer, ou inseridos num universo autônomo de produção intelectual, mas localizados num processo que guarda uma extraordinária intimidade com os movimentos sociais que o cercam. Se é possível uma periodização da história da imprensa no Brasil (abstrata, como qualquer periodização), o critério dos recortes a serem feitos esbarra nessa constatação: os momentos de maior riqueza do jornalismo são os momentos de maior densidade de articulação da sociedade civil, quando naturalmente o jornalista - o elo dessa relação - se dá conta disso. A imprensa brasileira nos anos 60 pode ser vista como um exemplo disso. O que tínhamos então? Tínhamos, até meados dos 50, momentos pontuais de produ-

ção jornalística investigativa - certamente o gênero que conduz a imprensa a essa interação com o político -, que podem ser explicados mais pelo brilhantismo de alguns escritores (seriam repórteres, já?) do que pela existência de uma tendência da imprensa. A redação - entendida como a forma orgânica que a imprensa jornalística dá ao trabalho de seus profissionais - era coisa de 10 anos, e só depois da II Guerra é que começa a apresentar seus primeiros resultados modernos, isto é, a informação e a investigação como atividade cotidiana e especializada, fruto da “organização de talentos”, como Alberto Dines definiu esse espaço de atuação do jornalista. (2) A partir daí, todos os elementos do beletrismo na imprensa brasileira foram sendo progressivamente liquidados, e ainda que isso possa ter significado a submissão do profissional à lógica da empresa de comunicação, o fato é que o jornalista não perdeu seu papel de agente intelectual por excelência de uma atividade que sintetiza permanentemente a cultura. (3) E se isso é verdade, as redações passaram a ser uma espécie de espaço de convergência dos conflitos que se situavam fora dela, uma volta às origens de sua natureza, como se deduz da contribuição de Barbosa Lima Sobrinho. Ora, a sociedade brasileira que emerge do pós-guerra é um verdadeiro laboratório de experiências que estimulam a inserção da imprensa em seus conflitos. Sob o gênero da reportagem, revistas e jornais editados nos grandes centros urbanos irão repercutir a polarização que, gradativamente, toma conta do movimento social, inovando no estilo textual, revelando nomes, conduzindo e sendo conduzida pela vida política e cultural do país. Um passeio sobre as páginas de O Cruzeiro, Diretrizes, o Diário Carioca, a Última Hora, seria suficiente para apreender a dimensão do que estava acontecendo com o nosso jornalismo. A imprensa brasileira dos anos 60 herdou esse quadro. É impossível falar de algumas de suas experiências sem o entendimento do que significou essa marca do pós-guerra. A modernização que se processa em vários veículos, seu aggiornamento com padrões internacionais gráficos e de construção de textos, o sentido esponjoso que adquire em relação aos movimentos de contestação cultural daqui e do exterior, todo esse conjunto revela uma produção jornalística atinada com o seu tempo. Não é um caso

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para exageros, mas pode-se dizer que, através dessas características, a imprensa brasileira viveu uma época de ouro, antes que sua riqueza multifacética fosse interrompida pela construção do Estado autoritário de 1968. Tanto que as referências feitas às publicações desse período tornaram-se clássicas, não apenas em função do período, mas em função da própria imprensa brasileira em geral, isto é, referências que marcaram época, fixaram limites e que são, ainda hoje, vistas e estudadas como modelos de um jornalismo inquieto e revelador. O investigador que se dispusesse a reconstruir esse momento teria pela frente uma variedade significativa de veículos na área dos jornais diários e na área das revistas. No primeiro caso, a reconstrução apontaria para as mudanças ocorridas no Jornal do Brasil, para a linha editorial do Correio da Manhã e para essa transformação gráfica e textual provocada pelo Jornal da Tarde a partir de 1966. No segundo caso, a reconstrução passaria pelo jornalismo mineiro com Alterosas, dissecaria o que foi a experiência carioca com Senhor e inevitavelmente se deteria em Realidade, também na São Paulo de 1966. O percurso de um estudo dessa natureza revelaria, nesses exemplos citados, o surgimento de uma idade diferenciada na produção jornalística brasileira. Em níveis diferentes, respondendo a uma diversidade grande de causas e de efeitos diversos, essas publicações e seus jornalistas trouxeram para suas páginas os significados de uma época, desde a transgressão dos padrões de comportamento, fixados por uma sociedade que se urbanizava aceleradamente, até o impulso democrático-liberal que arregimentou o segmento da classe média intelectualizada contra os militares nos quatro primeiros anos que se seguiram ao golpe de 1964. No depoimento de Woile Guimarães sobre a experiência de Realidade, tomado aqui como um exemplo do clima vivido pela geração de profissionais que fez a publicação da Editora Abril, “a redação soube entender sua época, percebeu que em 66, 67 e até fins de 68 era possível fazer Jornalismo. Era possível ousar. E a ousadia foi outro traço característico do sucesso da revista.” (4) “A redação soube entender sua época...” É a frase emblemática de Woile Guimarães que nos dá o perfil da imprensa brasileira nos anos 60. Um período em que ocorre na produção jornalística uma

“Foram referências que fixaram limites e que ainda hoje são vistas e estudadas como modelos de um jornalismo inquieto e revelador.”

“Os momentos mais ricos do jornalismo são os momentos de maior densidade na sociedade civil.”

Jornal da ABI


extraordinária coincidência de fatores que a impulsionaram tanto para a verticalização com que abordava seus assuntos, como para a busca do texto que escapasse do convencionalismo do simples jornalismo informativo. O resultado foi uma produção absolutamente rica e inovadora, que levou a imprensa brasileira àquele momento identificado por Barbosa Lima Sobrinho na reflexão que deu início a este texto: o da invasão da esfera do governo e o de sua sujeição à censura pública. Em alguns casos, foi uma imprensa de plenitudes. Zuenir Ventura nos ensina que 1968 não terminou. Talvez fosse o caso de se dizer, em relação aos anos 60, que se tratou de uma década interrompida. Só pela coerção e pelo fechamento institucional, com o AI-5, é que essas

Marca dos 100 anos

A VIDA DE BARBOSA... André Motta Lima: Depois desse período ele volta à política, eleito em 58, pelo PSB, deputado federal por Pernambuco mais uma vez. José Augusto Ribeiro: Em 54 ele não foi candidato. Podia até ter sido candidato ao governo de Pernambuco - e o nome dele foi lembrado pelo presidente Getúlio Vargas mas o PSD de Pernambuco estava controlado pelo dr. Etelvino Lins (o Agamenon é de 50, assumiu em 51 e morreu em 52, em 24 de agosto de 52, dois anos antes do suicídio do Getúlio). O Etelvino era vice-governador, assumiu a chefia do PSD e meteu na cabeça uma idéia que era diabólica: entregar o Governo de Pernambuco, com apoio do PSD, ao General Cordeiro Faria. Como primeiro passo, isso seria em 54; para em 55 o PSD lançar a candidatura do General Juarez Távora, que era um homem ligado à UDN. O Etelvino, homem do PSD, queria que o candidato do PSD fosse recrutado não no PSD, mas na UDN. O dr. Barbosa então divergiu. Ele, o senador Jarbas Maranhão e outros líderes do PSD divergiram, se afastaram do PSD. Quando surgia qualquer nome bom do PSD, o Etelvino dizia “Não, de jeito nenhum”. O dr. Barbosa ficou marginalizado nessa eleição de 54. E em 58 não podia concorrer pelo PSD porque em Pernambuco o PSD era comandado pelo General Cordeiro de Farias, o homem da UDN. Então ele aceitou uma candidatura pelo partido socialista, era uma coligação de partidos. O PTB, o Partido Socialista e alguns outros pequenos partidos. Em caso de coligação de legendas em eleição proporcional, em que o sujeito é eleito com os seus próprios Especial - Barbosa Lima Sobrinho

experiências jornalísticas foram abortadas, o que não quer dizer que se perderam ou que não tenham sobrevivido. Os anos 70 mostraram novos desafios e para eles surgiram novas perspectivas, mas essa é uma outra história. REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS: (1) BARBOSA LIMA SOBRINHO, Alexandre José - O Problema da Imprensa. 1988, São Paulo, Clássicos do Jornalismo Brasileiro, COM-ARTE/ECA-USP. (2) DINES, Alberto - O Papel do Jornal. Rio de Janeiro, 1974, Artenova. (3) “...o destino de um jornal não concerne apenas aos seus proprietários, mas à sociedade que representa (...) A imprensa não é o instrumento arbitrário daqueles que nominalmente detêm a

votos e também com votos dados a outros candidatos, a lei exigia que, ao assumir o mandato, o eleito optasse por um dos partidos daquela coligação. A tendência natural dele seria o PTB, que era o partido fundado pelo Getúlio, já que o PSD para ele estava fechado. Mas o PTB na época, em Pernambuco, estava controlado por um grupo muito conservador e ele optou pelo Partido Socialista. Foi deputado pelo Partido Socialista e já de saída enfrentou uma crise que rachou o partido em duas metades. O Partido Socialista tinha dez deputados no Brasil inteiro e a tendência natural do Partido Socialista era a de apoiar a candidatura do General Lott na sucessão do Juscelino. Mas a outra metade, que eram 5 deputados em São Paulo, foi envolvida pelo Jânio. Então deu um racha no partido, metade de um lado, metade do outro. Ele apoiou o Lott e o Jânio ganhou. Ele ficou na oposição desde o primeiro dia, na oposição ao Jânio e à política econômica do Jânio. Quando veio a renúncia do Jânio em agosto ele escreveu um artigo muito lúcido (“Saiu para voltar”). Embora fosse parlamentarista, votou contra o parlamentarismo porque era um imposição militar. Votou contra. Tem um discurso dele dizendo isso e ele até recebeu uns apartes meio malcriados e respondeu com muita firmeza. Não apoiou o Governo do Jango. Embora amigo pessoal do primeiroministro, Tancredo Neves, fez oposição, era um dos interpelantes mais incômodos, porque conhecia bem economia. Em 64, embora fizesse oposição ao Jango, ficou com Jango contra o golpe porque ele era um homem da legalidade.

posse dos veículos. Acima do número de ações (...) quem dirige o jornal tem compromissos com a opinião pública”. DINES, Alberto, op. cit., pág. 108 e 109. (4) Depoimento dado ao jornal Unidade, ano I, nº 8. Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, março de 1976. José Salvador Faro, doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP e professor do programa de pós-graduação em Comunicação Social do Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo, São Paulo. PARA SABER MAIS ANDRADE, Jeferson de - Um Jornal Assassinado -A última batalha do Correio

esses outros estudos. Não encontrei registro desse projeto pessoal dele, mas ele participou daquilo tudo e ficou muito desapontado porque o Jango nem sancionou nem vetou. A.M.L.: Mesmo assim, no Golpe de 64, ele ainda acaba recebendo algumas visitas dentro de casa...

Não apoiou Jango porque achava que ele cedia na remessa de lucros. Mas foi contra o golpe: é um homem da legalidade. Envolvido em inquéritos, teve a casa invadida e enquadrou o milico: "isso não é papel para um oficial do Exército".

A.M.L.: Ele criticava muito o Jango por causa já daquelas tendências de compra de empresas estrangeiras. J.A.R.: Sim, porque depois que terminou, depois do fim do parlamentarismo, o Jango foi ficando mais fraco e nessa de compra das empresas ele começou a ceder. E também começou a ceder na questão da lei de remessas de lucros que foi votada . Logo que foi eleito deputado, o dr. Barbosa anunciou numa entrevista ao Última Hora que estava elaborando um projeto de lei de remessas de lucros, mas já havia outros estudos em andamento. Ele se associou a

J.A.R.: Antes ainda do golpe de 64. Ele foi um dos relatores do Código Nacional de Telecomunicações. Eram vários relatores. Tinha o Nicolau Tuma, que era um deputado de São Paulo, da UDN, mas era um profissional de rádio e conhecia profundamente a questão. Um sujeito decente, patriota, que não ia nesses

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da Manhã. RJ, José Olympio Editora. BUARQUE DE HOLLANDA, Heloísa - Impressões de Viagem. CPC. Vanguarda e Desbunde: 1960/1970. 1980, SP, Brasiliense. CASTAÑEDA, Jorge G. - Utopia Desarmada. Intrigas, dilemas e promessas da esquerda latino-americana. 1994, SP, Companhia das Letras. CHAGAS, Carmo e outros - Os Bastidores da Imprensa Brasileira. 1992, SP, Editora Best Seller. FARO, J. S - Realidade, 1966-1968. Tempo da Reportagem na Imprensa Brasileira. 1996, Tese de Doutorado Escola de Comunicações e Arte/USP. PEREIRA LIMA, Edvaldo - Páginas Ampliadas. O Livro-Reportagem como Extensão do Jornalismo e da Literatura. 1993,SP, UNICAMP.

arrastões ideológicos. Quando depois se falou no milagre das telecomunicações produzido pelo ciclo dos governos militares. Faltou dizer que o fez esse milagre foi o código de comunicações, votado no Congresso pelos grupos nacionalistas, aí com apoio do Jango. Quando executaram essa lei, que receberam pronta, e aí, de fato, com a criação da Embratel, os recursos permitiram o salto que o Brasil deu em matéria de telecomunicações, que foi uma coisa realmente notável. Mas começou lá. A.M.L.: Embora fosse um projeto também de unificação de consumo, era um projeto da própria ditadura militar e do desenvolvimento capitalista de então. Mas o fato é que em 64 acaba tendo três IPMs (Inquérito Policial Militar). J.A.R.: Invadiram a casa dele para procurar livros e material subversivo. Ele até teve que ajudar, porque os sujeitos não conseguiam achar os livros marxistas nem os livros anti-marxistas. Os livros marxistas estão nessas prateleiras, os outros nessa. Remexeram nos documentos dele... uma vergonha. Remexeram nos documentos pessoais de um homem como ele. Quando saíram - eram agentes de polícia, mas junto tinha um oficial do Exército - ele virou para esse oficial e disse: “O que eu lamento não é o que os senhores fizeram aqui, é um oficial da Forças Armadas estar rebaixado a um papel que não pode caber a um oficial das Forças Armadas”. E o sujeito bateu continência e foi embora. Depois ele foi até chamado num desses IPMs. Ele era acusado - não sei se o episódio entrou no famoso festival de besteiras que assola o país, do Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta - de ter sido indicado (nem nomeado) para um cargo no conselho curador do ISEB, Instituto Superior de Estudos Brasileiros, instituto dirigido pelo nosso companheiro Roland Corbisier e que fazia estudos econômicos, sociais, estatísticos, sociológicos, de ciência política, até de história sobre a realidade brasileira e os caminhos do desenvolvimento brasileiro, e era o grande formulador das idéias nacionalistas naquele tempo. Houve uma vaga no Conselho Curador e alguém lembrou o nome dele e o Ministro


da Educação, que era o professor Júlio Sambaqui, aceitou. O ISEB era vinculado ao Ministério da Educação. Não foi criado pelo governo comunista do presidente João Goulart , nem pelo governo do presidente Juscelino Kubistchek , nem pelo governo do presidente Getúlio Vargas. Esse Instituto subversivo foi criado no governo do presidente Café Filho, o homem que quis impedir a posse do Juscelino. O Café Filho tinha como Ministro da Educação um grande brasileiro, Cândido Mota Filho, que era até talvez um conservador, mas um nacionalista. Ele criou esse instituto porque

achava indispensável naquele momento que se estudasse a realidade brasileira e foi quem nomeou o Roland Corbisier. Portanto, não foi nada de comunista, foi essa banda aí da UDN que criou o Instituto e nomeou o Corbusier. Era um projeto de raiva porque todos os projetos entreguistas esbarravam naquela trincheira brilhante de estudos que era o Instituto. Não dava para tapear a opinião pública como se fazia antes e como se voltou a fazer e se faz até hoje. Então o dr. Barbosa foi acusado de ter sido indicado. Aí ele disse “Eu nem sabia disso”. O ministro Sambaqui, quando recebeu a

indicação, mandou datilografar uma portaria. E talvez fosse ainda consultar o Corbisier ou o presidente João Goulart. Mas isso foi encontrado entre papéis não assinados na mesa do ministro Júlio Sambaqui e o dr. Barbosa foi acusado então num IPM de ter sido indicado para um cargo para o qual não foi nomeado e que era apenas de membro de um conselho consultivo. O conselho consultivo incluía algumas das flores mais expressivas do pensamento democrático e anticomunista de então. Acho que até o embaixador Roberto Campos era do conselho, não ia

lá, mas nunca pediu demissão. Se não era ele, tinha um pessoal que pensava como ele, porque a idéia era que esse Instituto fosse plural. Acontece que se estabeleceu lá uma maioria nacionalista. E o pessoal que não concordava com essa linha nacionalista, ao invés de pedir demissão, simplesmente não comparecia. Tanto que o Roberto Campos continuou embaixador do João Goulart quase até o fim do governo, exercendo um cargo de confiança, e não fizeram nenhum IPM em cima dele. Ao contrário, ele foi nomeado primeiro ministro do primeiro governo militar.

EXÍLIO: NA CORDA BAMBA SEM SOMBRINHA As muitas reviravoltas do irmão do Henfil e a obrigatória perda de uma visão brasilocêntrica Betinho Profissão: cientista político. Crime: líder estudantil, integrante da Ação Popular. Então, veio o golpe. E, com ele, meu primeiro exílio. Mas, para mim, o exílio começou antes do Golpe de 64. Dentro ou fora, você está exilado do sistema. O Uruguai foi cenário para um reencontro. Ali estava toda a liderança do movimento popular. A realidade brasileira passou a ficar distante, como um espetáculo em que estávamos proibidos de atuar. Mesmo assim, participávamos das reuniões da Frente de Mobilização Popular, esperançosos e cheios de ilusões. “Nós, representando cinco milhões de operários brasileiros, sargentos das Forças Armadas Brasileiras, oficiais nacionalistas.” Não conseguíamos aceitar a realidade. Pensávamos na reconquista. O objetivo era a união, desde o Rio Grande do Sul, passando por Goiás e chegando ao Nordeste. O clima era de expectativa. A estratégia era de insurreição, feita a partir da região Sul. O problema era que não havia uma série de fatores. A colônia brasileira, entre 1964/65, utilizava o território uruguaio para pensar, discutir politicamente o Brasil. Chegamos a estimular estudantes uruguaios a fundar algo parecido. Sentíamos que iria ocorrer o mesmo processo no Uruguai. Os sintomas eram bem evidentes: bancos quebrados, altos índices de inflação. Os uruguaios alegavam que não possuiam Exército e que o Corpo de Bombeiros e a Polícia eram suficientemente fortes. A nossa resposta era simples: “basta ser criado”. Então, veio o inevitável: a comparação entre Uruguai e Brasil. Foi quando percebi a real dimensão política. “Não temos nada a fazer aqui, onde temos que fazer alguma coisa é no Brasil.” Voltei. O que havia era uma ditadura militar. A política tradicional desapareceu. Não adiantava mais ser governador, exgovernador, deputado, ex-deputado. O que existia era um comando militar. E a massa estava contra ele. A única alternativa era promover o aparecimento da luta armada. Assim, a massa vai se somar a este processo. Assim, haveria uma rebelião nacional generalizada e o fim da ditadura.

Foi com esse propósito que retornamos ao Brasil. Poucos voltaram. Alguns, em situação de paz, desistiram; outros ficaram no Uruguai, ou porque não aceitavam a situação, ou por simples falta de condições de retornar. A proposta era que o movimento estudantil e a massa ganhassem as ruas. Fora isso, só existia o governo Castelo Branco. Antes, havia tanques do Exército. Essa fase foi a mais perigosa, já que encarar

"Cheguei a trabalhar como operário em uma fábrica de cerâmica. Um purgatório ideológico, em que a tentativa era aplicar os dogmas políticos em uma classe operária. O exílio dentro do Brasil." o inimigo era enfrentá-lo sem armas, só com idéias. Para mim, uma época difícil. Fui operado em um hospital clandestino por causa de uma úlcera. Descobriram onde eu estava. Não fui torturado. Tinham medo de torturar um hemofílico. Passei um mês no interior do Rio de Janeiro, com um casal de velhos. Sofri de uma hemorragia renal. Os encontros com a família eram cada vez mais espaçados. Cheguei a trabalhar como operário em uma fábrica de cerâmica. Um purgatório ideológico, em que a tentativa era aplicar os dogmas políticos em uma classe operária. O exílio dentro do Brasil. Depois desse purgatório prático, comecei a racionalizar a idéia da morte. Tinha que permanecer no Brasil, mas se fosse preso, não sobreviveria. Foi então o

começo do processo de saída, o refúgio político. Fui até o Paraguai, passei pela Argentina e cheguei ao Chile. Para sair do Brasil, usei uma carteira. Era a identificação de um homem dez anos mais velho do que eu. Só me perguntaram pela documentação verdadeira em território chileno. Voltei a ser eu mesmo. Andava pelas ruas, bares e praças, com a tranqüilidade de quem não precisava olhar para os lados para verificar se estava sendo vigiado. Foi quando descobri o que era política em situações extremas. O Chile era então o país mais politizado da América Latina. O peso da conjuntura era medido pelas decisões políticas. Descobri o que era liderança, massa, luta de classes, partido. Participei de manifestações em Santiago que chegaram a reunir 1 milhão de pessoas: mulheres, crianças, soldados, todos no burburinho da luta de classes. Então, concluí que a Ação Popular, da qual fiz parte no Brasil, tinha acabado. Continuava revolucionário, mas sem instrumento político no Brasil para expressar minhas opiniões. Desapareceu a idéia de formação de partidos. Se eu pudesse voltar, trabalharia com estratégias diferentes, esperando o momento em que fossem dadas condições para a militância política. Terminei o processo brasileiro no Chile. A experiência política chilena era explosiva: muitos partidos, massa popular de milhões. Mas, mesmo o Chile nessas condições não chegava lá. Os elementos se perdiam. Não bastava só partidos e massa. Revolução não é automática, é algo que reúne todos os imponderáveis, é o passado acumulado. Quem podia usar armas no Chile era o Exército. A Unidade Popular sabia disso, mas não por experiência. A experiência da UP era a mesma de todos os chilenos: parlamentar, institucional, eleitoral. Quando Miguel Enríquez, líder do MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria), foi cercado pelo Exército, houve uma prova de como as resoluções eram parlamentares. Ele tentou confundir os soldados, alegando que havia uma pessoa ferida. Os líderes políticos chilenos, mesmo sabendo que morreriam,

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ultrapassavam os limites da percepção racional, política e teórica. Para mim, foi um momento de reflexão. Compreendi o processo revolucionário, a política e sobre como analisar a situação brasileira. O mais importante foi que, depois de ter sido no Brasil José Pedro, enfim, várias pessoas clandestinas, eu era simplesmente Herbert. Até então parecia o que não era, mudava de história, lugar e vida. Naquele momento, entretanto, tinha uma história, era profissional, sociólogo, cidadão comum. Comecei a trabalhar na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais como pesquisador. Conduzi um seminário na Universidade Católica para um grupo de 20 alunos na Escola de Sociologia. Depois, fui trabalhar para a Odeplan, Oficina de Planificação da Presidência da República, como assessor do Allende. Foi um dos períodos mais gratificantes. Era como se tivesse um novo sentido na minha vida. A situação correspondia à realidade social. No Chile, havia muitos refugiados políticos. Cada amigo que encontrava me ajudava a resgatar uma parte de minha história. É aí que você percebe como a clandestinidade o isola, despersonaliza, divide. Tornei-me uma pessoa sem continuidade. Nesses reencontros, é como se representasse vários papéis, em diferentes momentos. Eram mil Betinhos, mil pedaços. Um processo difícil e complexo. Fiz uma revisão crítica do processo político brasileiro. Os erros cometidos tornaram-se óbvios. No Chile, tinha de sobreviver, não podia mais viver como clandestino. Por outro lado, não abandonei a experiência brasileira. Resolvi aprender, aproveitar a oportunidade e buscar soluções. Transmitia experiências por meio de erros cometidos. Dessa forma adaptei-me no Chile. Enfim, o exílio no Chile me mostrou como o sistema reage, quais as forças e mecanismos utilizados. A ameaça de conflito no Chile era maior do que na Argentina, onde o peronismo nunca representou uma possibilidade profunda. No Chile, tentou-se uma ruptura radical. No Brasil, quando as tendências políticas começaram a mexer com o país, o capital Jornal da ABI


internacional aliou-se diretamente ao Estado e passou a convergir para o país. Então, novamente tive que sair do Chile. O assassinato de Allende, o silenciamento da imprensa, a invasão de tropas militares, os tiroteios ininterruptos, o pânico. Significava a derrota de milhões de pessoas. Para mim, foi tão grave quanto o golpe de 64. Passei dez dias em um apartamento, com minha mulher Maria e mais outras pessoas. Sabíamos do terror que acontecia lá fora, no Estádio Nacional. Então resolvemos recorrer a uma embaixada. No caso, uma das últimas, a do Panamá. Fiquei quase todo o tempo deitado, por causa da hemofilia. Eram 200 pessoas revezando-se para dormir em um espaço minúsculo. Depois, fomos para uma casa maior, com biblioteca, recepção de notícias. Chegamos até a fazer uma horta. O governo panamenho nos recebeu como refugiados políticos, mas não tinha condições econômicas de manter toda aquela gente. Era a época de negociação do Canal do Panamá. O clima era tenso e havia pressão para que fôssemos expulsos para não atrapalhar as negociações. A proposta da embaixada era conseguir asilo político em outros países. Mas não queria sair correndo e cair como refugiado político em outro país. Até que veio a oportunidade de ir para o Canadá. Percebi que o mundo é composto de nações e documentos. O momento era de “salve-se quem puder e embarque para onde possa”. Havia o boato de golpe no Panamá. Saí do Brasil, vim do Chile e estava no Panamá, com a mesma ameaça. Quatro famílias brasileiras resolveram fazer uma viagem aventurosa, como os antigos navegadores. Passamos pelas mãos da Igreja, pela Jamaica e chegamos ao aeroporto com um grupo do outro lado da Imigração, para evitar a nossa deportação. Abarrotados de restos de coisas que podíamos carregar, sem falar inglês. Sob fiança de um líder da Igreja, fomos soltos. Depois de um ano e três meses, recebemos o visto de imigrante. Já em território canadense, encomendaram-me um trabalho sobre o Panamá. Tomei consciência da importância incrível do Panamá em relação aos Estados Unidos e à América Latina. Sem que tivesse planejado, fiz uma das primeira análises políticas. Eu não sofri por estar no Canadá. Foi um intervalo, momento em que pude refletir, estudar, produzir. Não fiquei angustiado ou tenso como nos outros países. As conseqüências do exílio mostram o quanto fui extremamente brasileiro. O Brasil começava e acabava dentro de nossas fronteiras. O exílio abre caminhos para a percepção de um entendimento internacionalista, o que muda a compreensão do Brasil. Perde-se a visão brasilocêntrica. Do ponto de vista político, uma mudança fundamental. Sair e na volta trazer todas essas experiências foi uma espécie de calvário obrigatório. Fomos boomerang em potencial Herbert de Souza (Betinho), sociólogo, jornalista e diretor do Ibase. Especial - Barbosa Lima Sobrinho

CENSURA E RESISTÊNCIA NOS JORNAIS OPINIÃO E MOVIMENTO Critérios jornalísticos garantiam credibilidade e superavam as ideologias Luiz Marcos Gomes A história dos semanários Opinião e Movimento é essencialmente uma história de luta pelo direito à informação, que se expressou, durante a maior parte do tempo em que eles circularam, numa prolongada resistência dos jornalistas e colaboradores que fizeram estes jornais às diversas formas de censura impostas pelo regime militar. Opinião começou a circular em novembro de 1972, durante o período do general Médici, e conviveu com a censura desde sua edição de número 9, até seu fechamento, em abril de 77. Por seu lado, Movimento já nasceu com a marca da censura e seu número zero, aparecido em julho de 1975, foi apreendido. Ele circulou até novembro de 1981, tendo resistido à censura desde sua fundação a junho de 1978. Movimento e o jornal O São Paulo, da Arquidiocese da cidade de São Paulo, foram os últimos jornais que deixaram de ser censurados no país, fato ocorrido no período do general Geisel. Vistos agora à distância, o que impressiona na trajetória destes jornais foi sua capacidade de resistência por período tão prolongado, de vez que a censura a eles imposta, na maior parte do tempo, foi uma censura drástica de cortes, feita à distância, que não admitia negociação e que interferia profundamente na sua carga informativa e no seu processo de fechamento e de produção industrial. Outros jornais e revistas sofreram com a censura, porém o que distinguiu a experiência de Opinião e Movimento é que ambos foram, marcadamente, jornais de circulação nacional de oposição ao regime militar e que denunciaram, sistematicamente, a chamada doutrina da segurança nacional , a repressão política e as bases do milagre econômico brasileiro, tão decantado pela ditadura. Para se ter uma idéia da violência da censura, um levantamento feito na penúltima edição de Opinião, de 1º. de abril de 1977, revelou que, nos quatro anos e meio de sua existência, foram preparadas para ser publicadas 10.548 páginas (em formato tablóide), das quais 4.752 (45% do total) foram censuradas. Isso sem falar no aspecto qualitativo das matérias vetadas, pois evidentemente a censura procurava sempre cortar o que era mais quente e atual, a fim de caracterizar os jornais como ultrapassados e chatos. A censura também apelava para expedientes extremos: Movimento, por exemplo, teve cinco edições apreendidas na gráfica ou já impressas, na boca da máquina, o que acarretava enormes prejuízos. Lembre-se que estes jornais também não conseguiam publicidade e nem crédito bancário para simples desconto de duplicatas, em virtude do cerco do regime militar, que procurava, paralelamente à ação

da censura, estrangulá-los financeiramente. Sua receita vinha das vendas diretas, em bancas ou fora delas (feitas por apoiadores militantes), e das assinaturas, fato inédito na prática normal da imprensa. Alguns aspectos essenciais devem ser destacados na experiência destes jornais, já que, obviamente, o curioso a ser estudado não é tanto o fato de eles terem acabado, mas exatamente o contrário, entender porque conseguiram sobreviver em circunstâncias adversas e por um período tão prolongado estes dois jornais, somados seus tempos de existência, cicularam por quase dez anos, de novembro de 1972 a novembro de 1981. Opinião e Movimento expressaram, cada um à sua maneira, a mobilização e o amadurecimento de vários setores sociais que resistiram ao regime militar e que consideravam importante conquistar terreno também no plano institucional, apesar da asfixia geral provocada pela repressão da ditadura militar. Jogaram papel destacado nestes projetos desde segmentos empresariais, passando por um amplo grupo de jornalistas, de intelectuais independentes e até de partidos políticos postos na clandestinidade, cuja militância sempre atuou decisivamente no sentido de disseminar e divulgar estes jornais por métodos não convencionais. Aspecto fundamental a ser destacado é que, de uma maneira geral, Opinião e Movimento sempre procuraram se pautar, basicamente, por critérios jornalísticos, e não doutrinários, em que pese o grande número de intelectuais por eles abrigados. Seguindo estes critérios, e apesar da censura, eles furaram diversas vezes a grande imprensa, o que lhes granjeou enorme credibilidade. Assim, Opinião, desde o início, cutucou a repressão e os “acidentes” por ela criados para justificar a morte e o desaparecimento de opositores e presos políticos, por meio de sucessivas notas publicadas nos números 2, 9, 12, 13, 14, 15 etc, procurando, dentro de seus limites, mostrar como os fatos se repetiam e se ligavam, o que a grande imprensa em geral não fazia. Na edição de número 22, Opinião foi o único jornal que noticiou a missa realizada na Catedral da Sé, oficiada por

Dom Paulo Evaristo Arns, em São Paulo, que reuniu mais de três mil pessoas no final de março de 1973, por motivo da morte do estudante de Geologia da USP, Alexandre Vanucchi Leme, assassinado pela repressão política. Por este fato pagou um alto preço: a censura, que até então era feita na redação, passou para Brasílía, piorando extremamente as condições de trabalho no jornal. Na edição 23, a redação de Opinião, em pequena nota na penúltima página, a título de retificação da idade do general Ernesto Geisel, driblou novamente a censura e deu novo furo divulgando os nomes dos generais envolvidos na disputa sucessória de Médici, entre os quais o próprio Ernesto Geisel e seu irmão Orlando Geisel, além dos generais Adalberto Pereira dos Santos, Carlos Alberto Fontoura, Artur Candal da Fonseca e Rodrigo Otávio Jordão Ramos. Este era um assunto considerado como “tabu” na imprensa brasileira. A “sucessão” dos generais era tema proibido. Sabe-se que a frente política que sustentava Opinião foi abalada exatamente no decorrer do processo sucessório do general Médici, quando se definiu que seu substituto seria o então presidente da Petrobrás, general Ernesto Geisel. Este realizou diversas manobras políticas tentando quebrar o crescente isolamento do regime militar, acenando com a famosa “abertura lenta, gradual e segura”. Acirrouse a luta pela definição da linha do jornal, tendo a posição diante do novo governo como pano de fundo (Geisel tomou posse em março de 1974). Com a decisão, adotada pelo proprietário de Opinião, de demitir seu editor, Raimundo Pereira, em caráter irrevogável, a maioria da redação também demitiu-se e resolveu fundar um novo semanário cujo controle ficasse nas mãos dos jornalistas diretamente envolvidos na feitura do jornal, além de prosseguir numa linha de oposição ao regime militar. Nasceu, então, no primeiro semestre de 1975, o jornal Movimento, financiado por fundos coletados numa campanha de âmbito nacional e cujo controle acionário era detido por um conselho de redação, escolhido entre aqueles diretamente ligados à confecção do jornal nos seus

Em quatro anos e meio de vida, Opinião teve 45% das matérias censuradas... quase sempre dando furos na grande imprensa.

A distribuição por métodos não convencionais ajudou a garantir a sobrevivência.

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diversos setores (redação, produção, administração, vendas). Movimento circulou de julho de 1975 a novembro de 1981, sendo censurado desde sua primeira edição até junho de 1978. Adotou linha editorial mais militante do que Opinião, levantando abertamente as campanhas pela anistia e pela constituinte. Inaugurou uma seção que fez época, a chamada cena brasileira, que se propunha a descrever, em cores vivas e realistas, as condições de vida dos trabalhadores brasileiros. Manteve, para tal, repórteres especiais viajando por todo o país a fim de retratar a diversidade das condições de vida e trabalho da gente brasileira. Mas procurou sempre definir sua pauta por critérios jornalísticos, de atualidade. Não tendo atingido, inicialmente, circulação tão expressiva como a de Opinião, devido à ação pronta da censura, procurou compensar com uma grande campanha nacional de assinaturas e com uma distribuição militante, que ia além das bancas em que era exposto. Movimento conseguiu montar uma razoável rede nacional de vendedores, que apanhavam o jornal nas rodoviárias e aeroportos e que vendiam diretamente o jornal mediante comissão. Isso ampliava o alcance do jornal extraordinariamente, levando-o para bairros populares e periferias de inúmeras cidades. A redação de Movimento chegou a desenvolver uma nova experiência, a de produzir outro jornal, fora da ação da censura e distribuído por sua rede direta de vendedores, voltado quase que exclusivamente para um público popular: o semanário Assuntos, numa tentativa do que na época se chamou de “popularização da informação”. Movimento também publicou matérias de grande repercussão. Ainda no governo Geisel, na edição 171 (outubro de 1978), produziu um levantamento completo dos casos de corrupção no país, sob o título Geisel num mar de lama (antes já havia feito um número especial: Mar de lama do entreguismo). A edição foi apreendida, mas a redação resolveu ampliar o dossiê e um mês depois divulgou a matéria em forma de verbetes, o que elevou as vendas para cerca de 20 mil exemplares. Movimento ainda furou a grande imprensa ao ser o único a fornecer, no primeiro semestre de 77, em primeira mão, detalhes de uma grande operação montada por grupos financeiros e monopolistas brasileiros para adquirir a Light, então controlada pelo grupo canadense Brascan. Estes empresários pretendiam assumir a Light por meio de empréstimo que seria concedido por órgãos oficiais de crédito, isto é, uma grande negociata financiada com dinheiro público. Com a repercussão havida, a operação foi abortada. Movimento deixou de circular em fins de 1981, após uma onda de atentados terroristas contra bancas de jornal que vendiam jornais democráticos, de oposição ao regime militar.

Luiz Marcos Gomes, jornalista, exeditor de economia de Opinião e Movimento.

“CENSURA BURRA NÃO RESISTE” Depoimento no Projeto Memória (ABI/MIS) revela total falta de critérios M. F. Nascimento Brito Segundo Nascimento Brito não havia censura durante o governo do general Humberto de Alencar Castelo Branco. Havia muitas reclamações a manchetes e ao teor de algumas reportagens, mas os militares não censuravam nada do que saía publicado pela imprensa: “O Castelo era um homens muito difícil, porém muito correto e eu fiz a campanha para a prorrogação do mandato dele pela imprensa. O que quase resultou numa briga entre ele e o jornal. Um belo dia o Castelo virou pra mim e disse que o Costa e Silva era candidato. E disse também que seria o início de um período militar no país. Eu soube do AI-2 pelo Castelo Branco e muita gente que hoje em dia fala contra o Ato Institucional nº 2 foi vista por mim em situação muito suspeita na ocasião. Quando começou o AI-2 o Castelo me deu um telefonema pessoal e disse: ‘Foi criado um instrumento de uma gravidade enorme e com uma pressão armada da qual nem eu pude resistir.’ Era mais um golpe militar dentro do próprio golpe”. Quando Costa e Silva assumiu o poder, começaram as pressões. Pediu-se o afastamento de Alceu Amoroso Lima do Jornal do Brasil: “As pressões eram muito grandes e a grande maioria por meras bobagens. O Antônio Callado escreveu

uma série de críticas aos militares e acabou sendo processado. Queriam que o tirasse do jornal e eu mandei a minha resposta: ‘Manda um general para cá, tomem o jornal e ponham o Callado e quem mais vocês quiserem para fora daqui. Agora, também vão ter que tomar conta da receita do jornal’. O Callado foi processado, preso e logo depois foi liberado”. O JB ainda não havia passado por dificuldades, muito pelo contrário. “Era uma máquina de fazer dinheiro. O governo acreditava na força do jornal e pensava muito no que a imprensa estrangeira iria pensar do país. O Rio de Janeiro era uma vitrine do Brasil para o resto do mundo”. Com o AI-5, a edição do dia 14 de dezembro de 1968 já estava censurada. Sua manchete principal foi Governo baixa Ato Institucional e coloca Congresso em recesso por tempo ilimitado. “Neste dia o Carlos Lemos fez aquela edição antológica”. No canto superior esquerdo, logo ao lado do título, onde se localiza a previsão do tempo, havia uma das várias indicações de que o jornal estava sendo censurado. 'Tempo: negro. Temperatura: sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes vento. Máx: 38 em Brasília. Mín: 5 em Laranjeiras'. No canto superior direto, uma pequena chamada para uma matéria inexistente: Ontem foi o

O inspetor queria saber quem tinha sido a fonte que forneceu a lista dos presos políticos a serem libertados no sequestro do embaixador suíço. Tinha sido o ministro da Justiça, Armando Falcão.

Dia dos Cegos (pág. 12). O Jornal do Brasil não seria publicado nos dias 15 e 16 de dezembro de 1968, correndo inclusive o risco de ser empastelado, como conseqüência das tentativas de burlar a censura: “No dia seguinte o general Montagna me chamou e falou: ‘Pois é, o senhor pensa que nós somos tolos, mas o senhor está enganado, nós percebemos muito bem. Agora o senhor não vai fazer mais isso.' O jornal ficou sob censura durante 20 dias e vários repórteres e editores foram presos. O JB, então, tomou a única posição cabível no momento: o silêncio. Para se ver como eram falhos os critérios de censura, uma outra vez nós publicamos uma lista de presos políticos, que seriam pretensamente libertados durante o seqüestro do embaixador da Suíça, na edição de domingo. Na segunda pela manhã eu fui chamado para ir até a Polícia Federal. Lá, após muita espera, me perguntaram quem tinha sido a fonte da lista que publicamos. Eu, lógico, não revelei. O tal inspetor Senna então me disse que eu ficaria no xadrez. Eu disse novamente que não entregaria minha fonte, que ficaria preso o tempo que fosse e que, ao sair, telefonaria para a tal pessoa para dizer que estive preso porque não queria dizer o seu nome. Não fui preso e minha fonte era o próprio ministro da Justiça, o Armando Falcão. Por isso eu sempre dizia que a censura neste país era tão burra que acabaria consigo própria”. [Resumo de depoimento feito em 24/10/95, dentro do Projeto Memória do Jornalismo Brasileiro, um convênio da ABI com o Museu da Imagem e do Som.] M. F. Nascimento Brito, presidente do Conselho Editorial do Jornal do Brasil.

O ASSASSINATO DOS JORNAIS Métodos para calar a imprensa, do empastelamento à pressão econômica Rubim Santos Leão de Aquino A primeiro de abril de 1964 a sociedade brasileira passou a viver, durante 21 anos, a longa noite dos generais, também denominada de anos de chumbo. Já no dia primeiro de abril começou a repressão à imprensa escrita: tropas ocuparam sedes de jornais; jornais foram empastelados, como Última Hora, no Rio de Janeiro; outros acabaram fechados de imediato, como O Semanário, O Binômio, Brasil Urgente, Novos Rumos, Panfleto, Política Operária, A Classe Operária, Movimento ( mensal da UNE), além das revistas Cadernos do Povo Brasileiro, Brasiliense e Estudos Sociais. Jornalistas tiveram de se exilar, sendo José Maria Rabelo, precursor da imprensa alternativa, um dos primeiros. Prisões e

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cassações de direitos políticos de jornalistas começaram a ocorrer. Com o tempo, ao lado dos jornalistas presos, exilados e cassados, houve também os mortos e desaparecidos, como Orlando Bonfim, Mário Alves, Jaime Miranda, Luís Maranhão Filho, Vladimir Herzog, David Capistrano, Carlos Nicolau Danielli, Hiram de Lima Pereira, Walter de Souza Ribeiro, Joaquim Câmara Ferreira, Pedro Pomar, Maurício Grabois e Luiz Eduardo Merlino. O controle da imprensa recorria ainda a pressões para os jornais não publicarem determinadas notícias. Era a chamada censura branca que dominou até o fim do governo Castelo Branco (1967). A progressiva consolidação da ditadura militar, a evidente complacência

"Considero a década de 70 o pior momento da imprensa desde o início do século." (Barbosa Lima Sobrinho, Boletim da ABI, 1980) da grande imprensa e até conivência, como a de O Globo que se tornou uma espécie de porta-voz oficial do regime, estimularam focos de resistência à censura e à repressão crescentes. Jornal da ABI


Dentre outras medidas repressivas que levaram ao arrocho da imprensa, destacou-se “a Lei de Imprensa, de fevereiro de 1967, que proibia a liberdade de informação, sujeitando os profissionais de imprensa a processos onde determinadas autoridades criticadas eram consideradas imunes à exceção da verdade das acusações que lhes tivessem sido dirigidas. Em outras palavras, não era dado ao jornalista o direito de provar que sua afirmação correspondia à verdade.” (1) A Lei de Segurança Nacional e o Ato Institucional nº 5, de dezembro de 1968, reforçaram mais ainda o amordaçamento e o assassinato de inúmeros órgãos da imprensa. O sempre jovem Barbosa Lima Sobrinho assim resumiu seu pensamento sobre a década de 1970: “Poderia até dizer que considero a década de setenta o pior momento vivido e sofrido pela imprensa brasileira durante um longo período de tempo, desde o início do século, para não ir mais adiante.” (Boletim da ABI, fevereiromarço de 1980.) A repressão no governo Médici chegou ao ponto de se valer do decreto-lei 69534, de 11 de novembro de 1971, mais conhecido como decreto-lei secreto, que autorizava o Poder Executivo a promulgar legislação cujo texto não seria divulgado em qualquer publicação, oficial ou não. Foi então que a censura tornou-se violenta, sendo exercida de várias maneiras. A censura direta proibiu a divulgação de questões e matérias previamente vetadas. Segundo Argemiro Ferreira, jornalista e ex-vice-presidente do Sindicato dos Jornalistas, em artigo publicado no Jornal do País, de 22 a 29 de maio de 1984, além das restrições especiais impostas a cada dia, existiram 10 regras gerais estabelecendo as proibições básicas. Inconformidade com a censura de livros, periódicos, jornais e diversões. Campanhas visando à revogação dos Atos Institucionais, nomeadamente o Ato Institucional nº 5. Contestação ao regime vigente (difere de oposição, que é legal). Notícias sensacionalistas que prejudicam a imagem do Brasil, e tendentes a desnaturar as vitórias conquistadas pelo Brasil. Campanha de descrédito da política habitacional, mercado de capitais e outros assuntos de vital importância para o governo. Assaltos a estabelecimentos de crédito e comerciais, acompanhado de abundante noticiário, instrutivo e exemplificativo, em sentido negativo. Tensão entre a Igreja Católica e o Estado e agitação nos meios sindicais e estudantis. Ampla publicidade sobre nações comunistas e pessoas do mundo comunista. Críticas contundentes aos governadores estaduais, procurando demonstrar o desacerto da escolha pelo governo federal. Exaltação da imoralidade, com notícias sobre homossexualismo, prostituição e tóxicos. Às 10 regras gerais acrescente-se mais uma: a proibição de noticiar a existência da censura. Chegou-se até a vetar a divulgação do discurso de Felinto Muller, líder do governo no Senado, em Especial - Barbosa Lima Sobrinho

"É expressamente proibido:1. Notícias, comentários, entrevistas, de quaisquer natureza sobre abertura política e democratização ou assuntos correlatos. 2. Anistia de cassados ou revisão parcial de suas penas e processos. 3. Críticas, comentários, ou editoriais desfavoráveis sobre a situação econômico-financeira. 4. Problemas sucessórios e suas implicações. 5. Qualquer noticiário, sobre qualquer assunto, partido da Amnesty International ou a ela referente que aborde problemas brasileiros. As ordens acima atingem a quaisquer pessoas, inclusive as que foram ministro de Estado ou ocuparam altas funções em qualquer atividade pública.”

que o parlamentar negava existir censura no Brasil! Em sua edição de 9 de junho de 1978, o Jornal do Brasil noticiou que “No dia 15 de setembro de 1972, o inspetor Costa Sena, por ordem expressa do sr. ministro da Justiça Alfredo Buzaid, comunicou aos jornais que deviam respeitar uma lista de cinco itens”. Com esse bilhete, enviado um dia depois da proibição da entrevista do marechal Cordeiro de Farias, a censura à imprensa adquiria seu aspecto normativo. O texto era o seguinte: “É expressamente proibido: 1. Notícias, comentários, entrevistas, de quaisquer natureza sobre abertura política e democratização ou assuntos correlatos; 2. Anistia de cassados ou revisão parcial de suas penas e processos; 3. Críticas, comentários, ou editoriais desfavoráveis sobre a situação econômico-financeira; 4. Problemas sucessórios e suas implicações; 5. Qualquer noticiário, sobre qualquer assunto, partido da Amnesty International ou a ela referente que aborde problemas brasileiros. As ordens acima atingem a quaisquer pessoas, inclusive as que foram ministro de Estado ou ocuparam altas funções em qualquer atividade pública.” A censura também se fazia mediante telefonemas, memorandos, comunicados, mensagens, bilhetinhos e avisos, aos jornais e revistas. Muitas vezes o responsável pela proibição nem se identificava! O jornalista Alberto Dines chegou a registrar 298 proibições enviadas ao Jornal do Brasil entre 1972 e 1975. Assim é que se proibiu qualquer referência contra ou a favor de D. Helder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife. Proibiu-se até noticiar as causas da demissão de Cirne Lima, ministro da Agricultura do governo Médici. Mais ridículas foram as proibições de publicar notícias relacionadas a atividades da filha e da esposa do presidente Ernesto Geisel. Vetou-se revista cuja capa tinha uma foto de Mao TséTung, alegando-se tratar de propaganda política comunista. A censura chegou ao ponto de instalar agentes da ditadura nas redações de jornais e revistas. Todos os artigos, anúncios e classificados ficavam submetidos ao pente-fino do censor, tendo este o poder de veto sobre qualquer

assunto considerado inconveniente. Essa modalidade ocorreu porque O Estado de São Paulo publicou trechos de Os Lusíadas e receitas de bolo em substituição a artigos vetados. Outro método da famigerada censura foi imposto a órgãos da imprensa identificados como críticos intimoratos da ditadura militar. Esse método implicava gastos e prejuízos crescentes a jornais e revistas atingidos, muitos dos quais fecharam suas portas, assassinados pela impiedosa política ditatorial. Exigia-se que todo o material a ser editado fosse enviado à Polícia Federal em Brasília. Os semanários Pasquim e Movimento tiveram muitos textos e ilustrações inutilizados pelo pilot do censor federal. Além do mais, ocorreram várias formas de censura a posteriori. Uma delas

A ditadura inventou o decreto lei secreto. O texto não era publicado nem no Diário Oficial. foi a apreensão da edição do jornal ou da revista, ainda que o material publicado já tivesse passado pelo crivo da censura, mas desagradasse a alguma autoridade. A aplicação dessa punição acarretava prejuízos econômicos e sua sistematização acabava assassinando o órgão da imprensa atingido, sem esquecer de eventuais(?) prisões do editor, do jornalista e do proprietário do jornal ou da revista. Em 1970, diversos jornalistas de O Pasquim foram levados presos para a Vila Militar, permanecendo nas celas do DOI-CODI durante oito semanas. Outra forma de censura a posteriori se deu com a suspensão, por vezes permanente, da

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publicação sob a acusação de desrespeitar proibição da censura prévia. Tudo isso sem esquecer a pressão econômica do governo sobre os anunciantes, forçando-os a romper contratos de publicidade com órgãos da grande imprensa e da imprensa alternativa. A imprensa alternativa, também denominada de imprensa nanica e de minhoca press, teve importante papel na luta contra a ditadura militar. “A palavra nanica, inspirada no formato tablóide adotado pela maioria dos jornais alternativos, foi disseminada principalmente por publicitários, em um curto período em que eles se deixaram cativar por esses jornais. Enfatizava uma pequenez atribuída pelo sistema a partir de sua escala de valores e não dos valores intrínsecos à imprensa alternativa. Ainda sugeria imaturidade e promessas de tratamento paternal. Já o radical de alternativa contém quatro dos significados essenciais dessa imprensa: o de algo que não está ligado a políticas dominantes; o de opção entre duas coisas reciprocamente excludentes; o de única saída para uma situação difícil e, finalmente, o do desejo das gerações dos anos 60 e 70 de protagonizar as transformações sociais que pregavam.” (2) Menos conhecida é a denominação minhoca press empregada com o sentido de imprensa nativa em oposição à estrangeira, e também porque essas publicações procuravam atuar quase que de maneira subterrânea. “Foi preciso que o humorista Millôr Fernandes perdesse o seu espaço na grande imprensa para surgir o primeiro jornal alternativo pós-64. Tido pelos demais como mestre, Millôr tornou-se nacionalmente conhecido ao criar a seção Pif-Paf, na revista O Cruzeiro, quando da queda do Estado Novo e da sua censura, o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda). O Cruzeiro, da qual Millôr havia sido um dos principais editores, chegou a vender 750 mil exemplares. Em 1950, após uma disputa salarial, saiu da empresa, mas continuou produzindo PifPaf como colaborador.” (3) Posteriormente, Millôr entrou em conflito com a direção de O Cruzeiro e resolveu criar o tablóide mensal Pif-Paf, tendo o primeiro número saído em maio de 1964. Mediante charges e matérias ridicularizando os detentores do poder ditatorial, o Pif-Paf acabou assassinado ao ter seu oitavo número apreendido pela repressão. Nesse número publicou-se uma das maiores críticas satirizando a ditadura militar. Ei-la: “ Quem avisa amigo é: se o governo continuar deixando que certos jornalista falem em eleições; se o governo continuar deixando que certos jornais façam restrições à sua política financeira; se o governo continuar deixando que alguns políticos teimem em manter suas candidaturas; se o governo continuar deixando que algumas pessoas pensem


por sua própria cabeça; e, sobretudo, se o governo continuar deixando que circule esta revista, com toda sua irreverência e crítica, dentro em breve estaremos caindo em uma democracia.” Não podemos esquecer da imprensa clandestina ou semiclandestina, muitas vezes suas publicações sendo editadas em mimeógrafos e estando vinculadas a organizações políticas fora da lei. Dentre outros jornais e revistas, mencionamos: O Guerrilheiro (ALN), Luta Operária e Resistência (MR-8), Voz Operária (PCB), PRISMA (RAN), União Operária (VAR-PALMARES), Libertação (AP), Voz Guerrilheira (MRT), Política Operária (POLOP), Nova Luta e Primeiro de Maio (MEP). Com a crise da ditadura militar, o governo Geisel adotou a política da distensão lenta, gradual e restrita. “Os censores foram afastados de dois dos maiores jornais do país, O Estado de São Paulo e a Folha de São Paulo. Inicialmente, foram mantidos em todos os demais jornais, mas vieram a ser gradualmente removidos até mesmo dos menores jornais de oposição e dos da Igreja Católica. "Em 1977, o assessor de imprensa Toledo Camargo fixou a nova política do governo: os veículos impressos não seriam submetidos à censura direta, embora permanecessem em vigor os controles previstos na Lei de Segurança Nacional. ( ... ) Em 1977, a meio caminho do

programa de liberalização controlada, relaxaram-se os rigores da censura, mas foi introduzido novo controle sobre a informação. O ministro da Justiça Armando Falcão baixou decreto-lei estabelecendo que livros, revistas e jornais procedentes do exterior também seriam submetidos à censura.” (4) Sentinela da Liberdade, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) teve destacado papel na luta pelas liberdades públicas e individuais, pelo fim da ditadura e pela restauração da democracia. “Durante a primeira fase de institucionalização do Estado de Segurança Nacional, o papel da ABI limitou-se à coordenação das atividades dos jornalistas, à defesa dos profissionais ameaçados e à promoção de debates educativos, conferências e sessões de estudo. Como até 1969 a imprensa não estava submetida à censura prévia direta, o papel da Associação era basicamente educativo. Naquela época, nós costumávamos organizar, na ABI, conferências, reuniões, e cursos sobre questões básicas que interessavam não só aos jornalistas como à sociedade em geral. Te-

nho para mim que uma das mais importantes iniciativas da ABI neste período foi a impressão e distribuição da Declaração dos Direitos do Homem das Nações Unidas. Preparamos várias edições, pois era fundamental que todos a conhecessem. As pessoas falavam muito de direitos humanos, mas poucas conheciam realmente a declaração daONU. Éramos uma grande universidade em que as pessoas podiam debater questões como eleições, controles, representação e liberdade de expressão. A ABI era um centro de debates e de liberdade para a expressão de diferentes pontos de vista.” [Barbosa Lima Sobrinho, então presidente da Associação Brasileira de Imprensa, entrevista a 16 de março de 1978.] (5) Em 1975, foi suspensa a censura direta aos órgãos da grande imprensa e, já nos estertores do governo Geisel, também se suspendeu a censura prévia à imprensa nanica. “Com a suspensão da censura prévia, a imprensa assumiu importante papel na ampliação do tímido processo de liberalização. Os principais veículos passaram a publicar artigos

Publicar a Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, foi uma iniciativa da ABI que ajudou a combater a ditadura.

criticando o modelo econômico e denunciando a corrupção de altos funcionários governamentais. Mais importante ainda, no entanto, foi o rompimento da cultura do medo, pela eliminação do silêncio: a cada denúncia de casos de tortura, a imprensa oferecia ampla cobertura, exigindo investigações e o fim da violência.” (6) Afinal, sem liberdade de imprensa não há liberdade pública, nem individual e, muito menos, democracia.

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS: (1) Projeto Brasil Nunca Mais Perfil dos Atingidos. Petrópolis, Edit. Vozes, pág. 216. (2) KUCINSKI, Bernardo Jornalistas e Revolucionários nos Tempos da Imprensa Alternativa. 1991, São Paulo, Scritta Editorial, pág. XIII. (3) KUCINSKI, Bernardo, op. cit., pág. 15. (4) MOREIRA ALVES, Maria Helena - Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis, Editora Vozes, pág. 214 e 215. (5) MOREIRA ALVES, Maria Helena, op. cit., pág. 216. (6) MOREIRA ALVES, Maria Helena, op. cit., pág. 217. Rubim Santos Leão de Aquino, professor de História do Liceu Franco-Brasileiro (RJ).

O DIA

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Jornal da ABI


“NA BOCA, O CHOQUE SUFOCA E PROVOCA DOR INTENSA, COMO SE O MAXILAR ESTIVESSE SENDO ESTRAÇALHADO. NOS OUVIDOS, PARECE QUE OS DENTES DESPENCAM. O INFAME PERCORRE CADA PARTE: COSTAS, PEITO, ÂNUS, PERNAS, PÊNIS, ESCROTOS, ATÉ ‘DESCOBRIR’ AS QUE MAIS FAZEM SOFRER.” Fred Pessoa Passados 22 anos, é muito dolorosa a lembrança dos fatos que se seguiram à minha prisão em 15 de outubro de 1975. A pedido da ABI, relato experiência que não foi a mais grave, diante dos crimes praticados naqueles anos. Outras pessoas sofreram mais nas garras da repressão política. Naqueles meses foram assassinados o herói da Guerra Civil Espanhola e da Resistência Francesa David Capistrano da Costa, o líder dos estudantes técnico-industriais José Montenegro de Lima, o ator e diretor teatral Hiram de Lima Pereira, o operário Itair José Veloso, os jornalistas Orlando Bonfim e Jaime Miranda, o ex-deputado João Massena de Melo, o tenente PM Alexandre, Élcio Costa e outros. A ‘prisão’ ocorreu na empresa onde trabalhava, por volta das nove e meia da manhã, quando dois sujeitos interromperam uma reunião de trabalho dizendo-se oficiais do Exército. Vladimir, o diretor, pediu que se identificassem, anotando nome e patente do oficial que me “convidava” a comparecer ao comando do II Exército. O ‘convite’ era um seqüestro. Antes da partida, o oficial chamou (pelo rádio) o “centro cirúrgico” para confirmar o destino inicial (“hotel” qualquer coisa), diante da não programada identificação. Tomou uma bronca. Veio a ordem. Direto para o “centro cirúrgico”: o DOI-CODI, centro de torturas do II Exército, que funcionava numa delegacia policial. Capuz preto na cabeça. Mandaram tirar a roupa. Ante a recusa, passei a ser espancado. Levaramme para uma sala, onde ‘selaram’ meus olhos com sal grosso e uma máscara de borracha. Cadeiras arrastadas, pedido de algemas e cordas, junto com a ameaça de “vamos pendurar o abusado pra aprender a obedecer” indicavam ‘pau-de-arara’. Alguém diz: “não vai dar”. A voz se aproxima e seu dono examina minhas varizes. O sujeito (médico?) fala em voz baixa com os outros. Um deles grita: “Vai sentar na cadeira do dragão!” Sou amarrado numa cadeira forrada com chapas metálicas. Seguem-se horas de choques elétricos, socos no estômago e na cabeça, Especial - Barbosa Lima Sobrinho

espancamento nas solas dos pés e mãos com um pedaço de madeira, perguntas, gritos, e ofensas. Urino e vomito sem controle. O torturador reclama da “sujeira” e manda jogar um balde d’água. O capuz já sumiu. Ficou a máscara. Recomeçam as agressões. Vem o primeiro desmaio, interrompido com amônia no nariz. Saem

"Começou a tortura. Com as mãos parcialmente atadas pela intervenção do general, os algozes se desdobraram nas ‘técnicas’ que não deixam marcas." "Mais tortura ‘científica’, que não deixa marcas visíveis (outras carrego até hoje). Algemas, borracha, sal grosso, um short ..." para o almoço. Outros chegam para continuar o “trabalho”. As dores cedem. O corpo parece adormecido, a cabeça é um zumbido. Os outros retornam do almoço em menor número. Antes, tive a impressão de serem quatro ou cinco. Agora são dois. O ‘chefe’, um negro alto e forte que me parecia drogado. Outro, ‘auxiliar’, branco e magro, se dedicava à máquina de choques, “regulando” a intensidade das descargas. Já não gritam, raramente batem e apenas disparam perguntas seguidas de choques. Nas mãos e nos pés, a descarga é aplicada através de fios que me prendem à cadeira. No resto do corpo, usa um metal. Na boca, o choque sufoca e provoca dor intensa, como se o maxilar estivesse sendo estraçalhado. Nos ouvidos, parece que os dentes despencam. O infame

percorre cada parte: costas, peito, ânus, pernas, pênis, escrotos até ‘descobrir’ as que mais fazem sofrer. O desespero aumenta com a tortura de outros presos trazidos a sala para “me convencer” a falar. É noite e ameaçam prender e torturar minha mulher. A ameaça se concretiza. Vladmir Herzog é assassinado e o chefe dos torturadores reúne os jornalistas. Pede uma declaração negando a tortura. Não consegue. Depois veio o DOPS. Mais um mês, apenas como refém do DOI-CODI. No final de dezembro, Presídio do Hipódromo, ‘livre’, dos torturadores. Negam-nos (também estavam presos os jornalistas Marco Antônio Coelho, Milton Coelho da Graça, Renato Guimarães, Renato Mota e Sérgio Gomes) o direito de trabalhar. O juiz proibiu a entrada de uma subversiva máquina de datilografia. Naquele presídio não havia tortura de presos políticos, como em outros. Mas, nos primeiros meses, eram freqüentes os gritos de dor e desespero dos presos comuns. Gente humilde, muitos sem condenação, culpados de pequenos delitos. A cada semana uma dupla expectativa. Uma alegre, o contato com os familiares, nas tardes de domingo, horário das visitas. Outra, a possibilidade de ser arrancado do ‘conforto’ do presídio para algum destino ignorado. O domingo era ‘escolhido’ para a dificultar a denúncia do fato. Em condições normais, era grande a chance do seqüestro só chegar ao conhecimento externo na próxima visita, dentro de oito dias. Já era madrugada de segunda-feira quando o carcereiro informou que eu deveria juntar minhas coisas e preparar a mala. Para onde? Nem ele sabia. Uma escolta esperava. Estava a uns 100 metros de distância. Uma Veraneio (militar, pela pintura de camuflagem), com homens armados e um tanque extra de gasolina. Para não parar em nenhum ponto onde eu

pudesse ser visto ou reconhecido. Desconfiei que o destino seria o Rio de Janeiro, onde estudei e militei. Já era dia quando chegamos. Estávamos na Tijuca, bairro de andanças e namoros adolescentes: estudei na Escola Técnica Federal Celso Suckow da Fonseca. O destino era o quartel da Polícia do Exército (PE), na Barão de Mesquita, tristemente famoso por sediar o centro de torturas que ceifou a vida do ex-deputado Rubens Paiva. Ao contrário de outros lugares, onde os comandantes militares escondiam os antros de tortura em estabelecimentos da Polícia Civil, no Rio o horror morava em importantes unidades militares. Prudente de Morais, neto, presidente da ABI frustrou os planos do DOI-CODI. Já na chegada percebi algo incomum: fui despido para uma inusitada sessão de fotografias de corpo inteiro. Concluí que alguém queria conhecer minhas condições físicas antes de qualquer interrogatório. Meses depois soube o que aconteceu, entre minha saída do presídio, em São Paulo, e a entrada no centro de torturas do Exército, no Rio. Um funcionário do presídio, mal esperou minha saída para ligar de um orelhão, informando meus familiares. Quem é ele e como soube que o Rio era o destino, desconheço até hoje. Mas a informação chegou ao conhecimento do presidente da ABI, amigo de Pedro Américo, pai do então comandante do I Exército, Reynaldo de Almeida Melo. Prudente acordou o general com a notícia do seqüestro e exigiu respeito à minha integridade física. Surpreso, o general deu sua palavra de honra que eu não seria torturado. É certo que tentou honrá-la, transmitindo ordens expressas e cobrando o registro fotográfico das condições em que cheguei e sairia do DOICODI/RJ. Mas os senhores da tortura

“Prudente de Morais,neto (presidente da ABI) frustrou os planos do DOICODI... acordou o general com a notícia do seqüestro e exigiu respeito à minha integridade física.”

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ignoravam ‘hierarquia militar’, cuja quebra foi pretexto para o golpe de 1964. Fui torturado e isso custou ao general o rompimento da longa amizade com Prudente. O desprezo dos torturadores pela hierarquia acabou provocando a antecipação de meu retorno a São Paulo. Após as fotos começou a tortura. Com as mãos parcialmente atadas pela intervenção do general, os algozes se desdobraram nas ‘técnicas’ que não deixam marcas. Primeiro, ameaças. A ‘conversa’ de um dos torturadores, supostamente meu “eleitor e admirador” na Escola Técnica. Mostrou conhecer o que eu e minha mulher passamos em São Paulo, ‘relatou’ o que ocorria nas outras celas e, 'abriu' a intenção de seus superiores: prender meus familiares e torturá-los na minha frente. Mais tortura ‘científica’, que não deixa marcas visíveis (outras carrego até hoje). Algemas, borracha, sal grosso, um short curto e fino, foi o vestuário. Sala de interrogatório: uma sala com um frio desesperador e uma cadeira de dentista (daquelas antigas), onde permanecia acorrentado. Um refletor, forte o suficiente para incomodar, apesar da venda.Sem respostas, interrupção da sessão e transferência para uma primeira ‘cela’. Um cubículo fechado, sem janelas ou grades (com ‘porta’ de frigorífico), pequena e baixa o suficiente para impedir que uma pessoa de pequena estatura (tenho apenas 1,69 m) permanecesse de pé ou estirado no chão. Este de cimento, liso e, aparentemente, limpo. Calor, muito calor e sons ensurdecedores. Gritos, gemidos, barulho de motor, e o som do que podia ser uma caixa d’água enchendo. Passado algum tempo (minutos ou horas, não sei precisar), a volta para o ‘frigorífico’. No ‘caminho’, a escolta de um homem que me empurrava com uma arma, encostando seu cano ora na cabeça, ora nas costas. Novo ‘insucesso’ e segunda ‘cela’. Igual à primeira, exceto no chão, forrado com um material pegajoso e meio mole. Talvez asfalto. Som mais alto (intercalado de silêncios absolutos), apenas com gritos e gemidos de dor. Vozes misturadas, de mulher e criança, implorando para não sofrer. Sofro tentando identificar as vozes. Abre a porta do frigorífico e alguém empurra um prato de metal, dizendo que é “hora de comer”. O fato se repete muitas vezes, a intervalos irregulares. Tudo é feito para liquidar as referências de tempo, espaço, noite, dia, calor, frio etc. Novamente sala de interrogatório, seguida de uma terceira ‘cela’, igual às anteriores, com a ‘diferença’ sempre no chão: este é podre, cheira mal, parece coberto de dejetos humanos (sangue, fezes, vômito). A seqüência de celas muda sem qualquer ‘ordem’. O contato com suas paredes e chão agride e humilha. A porta se abre: “Hora de cagar!” “Hora de mijar!” Muitas vezes. O escolta me empurra até um banheiro sem portas, sempre com a arma na minha cabeça. Frigorífico, interrogatório, celas, banheiro...tudo se alterna e repete em intervalos cada vez menos distinguíveis,

durante alguns dias (só soube depois) que pareceram semanas. Não consegui comer, dormir, descansar, pensar, defecar ou urinar. Só é possível sentir horror, pois não há com quem trocar palavra. Exceto os interrogadores. A seqüência foi interrompida com a retirada da ‘cela’ de

o café da manhã. Não lembro o que, pois não olhei para a comida. Veio um oficial, aparentando uns 35 anos, que me deu papel e lápis para que escrevesse “um bom arrependimento: mostre o jornalista que os jornais dizem que você é.” Opa! A imprensa está

"Antes de sair do carro, o terror aumenta quando mandam tirar o capuz. Era uma espécie de recado cifrado: 'não fará diferença ver as nossas caras, pois daqui não sairá em condições de identificar ninguém'. ...estava convencido que era o fim da linha, para mim. Deitei e chorei, silenciosamente, repassando meus 27 anos. Tentava evitar pensar na família e nos amigos, para não antecipar o sentimento de perda e não desesperar. Imaginava morrer com a dignidade possível..." modo ‘diferente’. Não tem o homem da arma. Uma outra voz, se esforça para ser ‘natural’ e até ‘gentil’, informa que vou “sair”. Não cheguei a perguntar “para onde?” Nova sessão de fotos. Devolvem roupas, documentos, dinheiro e trocam as algemas ( não perguntem por quê, pois não sei). Para minha surpresa e terror, alguém com ‘ares’ de chefe diz que, naquele momento, eu seria “libertado”. Saio para o pátio do quartel acompanhado de três homens e uma mulher. Me enfiam num pequeno automóvel (um fusca?). Dois na frente, eu e mais dois atrás. Deitado entre os bancos dianteiros e traseiros, tenho as botas de um na cabeça, junto ao assoalho do carro. Não fomos longe e subimos ladeiras até entrar na garagem de uma casa (Alto da Boa Vista?). Antes de sair do carro, o terror aumenta quando mandam tirar o capuz. Era uma espécie de recado cifrado: 'não fará diferença ver as nossas caras, pois daqui não sairá em condições de identificar ninguém'. Subimos pela garagem, para a parte superior da casa. A mulher que imaginei estar no carro sumiu. Com muito medo, olhei: três homens. Sou alojado numa pequena suíte, sem janelas. Cama, lençol limpo, banheiro, toalha, sabonete e ambiente fresco o que me convence de vez que estou no Alto da Boa Vista. Sugeriram que eu tomasse banho (“pois estava fedendo”), jantasse (logo veio a comida) e deitasse para “descansar, dormir”. Não vi nenhum instrumento de tortura, mas estava convencido que era o fim da linha para mim. Deitei e chorei, silenciosamente, repassando meus 27 anos. Tentava evitar pensar na família e nos amigos, para não antecipar o sentimento de perda e não desesperar. Imaginava morrer com a dignidade possível naquelas condições. Adormeci e fui despertado, já dia, por um jovem com

conseguindo denunciar! Peguei o papel e escrevi uma carta à família, despedindome, declarando meu amor e reafirmando minhas convicções políticas e ideológicas. Destilei meu ódio contra a ditadura, a miséria, a injustiça e as desigualdades sociais. Disse que faria tudo de novo se pudesse viver outra vez. Acabei e pensei em rasgar o papel, com medo da reação.

"Nelson Guimarães, juiz da III Auditoria Militar de São Paulo, ordenou minha entrega aos torturadores." Não deu tempo: o tal oficial me espiava de algum lugar. Entrou e arrancou o texto de minha mão. Deu uma olhada, balançou a cabeça e murmurou: “você não tem jeito!” Tremendo de medo, saboreei sua decepção. Seguiu-se um tempo enorme. Me alternava entre momentos de relativa tranqüilidade com a inexorabilidade do ‘desaparecimento’ e medo e desespero com o que aconteceria antes. A porta voltou a abrir, o capuz recolocado. Fui jogado num camburão. Saltei no pátio do DOPS, da Polícia do Rio. Na carceragem do DOPS deveria permanecer na solitária “por ordem dos homens” - explicou um simpático carcereiro que só esperou os militares darem as costas para me acomodar numa cela melhor, comprar leite, frutas, cigarros e jornal ( “O Estadão”, que eu havia pedido, “de jeito nenhum doutor, o delegado vai desconfiar, pois aqui a gente só compra O Dia” ) com o

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dinheiro que trouxe de São Paulo. A pressão da ABI e de Prudente de Morais, neto, me arrancou do DOICODI. Até hoje não conheço todos os detalhes. O general Reynaldo teria (disse ao presidente da ABI) ordenado minha volta a São Paulo. Insubordinado, o braço clandestino da repressão (como se isso fosse possível, já que toda ela era ilegal e criminosa) me seqüestrou para aquela casa do Alto da Boa Vista, mas já sem força para fazer o que gostariam. Tentaram a ‘última cartada’: criar um ‘arrependido’ para desmoralizar a pressão da ABI. Furou também. Sob pressão do comando, foram obrigados a mudar o rumo (e eu de cadeia) levando-me ao DOPS do Rio, na esperança de manter-me ao alcance. Mas não era o que o general Reinaldo exigia e prometia ao presidente da ABI. O caldo entornou naquele dia, uma sexta-feira, quando recebi a visita de minha mãe na sala do titular do DOPS. Eu estava de costas para sua mesa, relatando o ocorrido, quando fui interrompido por sua voz: “Contando mentira hein!” Um impacto: a voz pertencia a um dos interrogadores do ‘frigorífico’. Me virei e, sem me controlar, explodi ali mesmo que ele era um dos torturadores, pois reconheci sua voz. Ele negou, saiu da sala, criou-se um enorme mal-estar e a visita se encerrou logo. De volta à carceragem, não sem antes contar a mamãe que eles me levariam de volta ao DOI-CODI naquela mesma noite, conforme me confidenciou um carcereiro. Na sala de Prudente, na ABI, mamãe contou o que ouviu. Revoltado, Prudente teria ligado para o pai do general comunicando o rompimento por conta da palavra não honrada. A repressão perdeu a queda de braço com o general. Não voltei para a PE e, dias depois fui levado de volta para São Paulo. O juiz auditor permitiu que me levassem ao DOI-CODI/SP, mas a pressão era muita e não conseguiram me segurar mais que algumas horas, com interrogatórios, mas sem torturas. Fingindo surpresa e reprovação pelo que aconteceu no Rio, o juiz ordenou meu retorno ao presídio, passando antes em sua sala para que ele se “inteirasse” dos fatos. Cinismo puro: ele, Nelson Guimarães, juiz auditor da III Auditoria Militar de São Paulo, ordenou minha retirada do presídio (onde permanecia, há seis meses, sem julgamento, à sua disposição) e entrega aos torturadores da Polícia do Exército no Rio de Janeiro. Tudo denunciado nos autos da farsa do julgamento que me condenou a 30 meses de prisão por suposto crime contra a ‘segurança nacional’. O crime de, desarmado, resistir à ditadura e lutar por um mundo que eu acreditava melhor e mais justo. Fred Pessoa, jornalista. Jornal da ABI


TORTURA, FERA ACUADA, RESISTE NO MUNDO Em 1975, nos subterrâneos da ditadura militar, conheci a tortura - talvez a pior das fraturas da alma humana. Naqueles tempos, multiplicavam-se os regimes autoritários na América Latina. Hoje, felizmente conquistamos a democracia e vivemos em liberdade. Embora a prática da tortura persista em muitos países, crescem as pressões da opinião pública mundial em defesa dos Direitos Humanos, como parte de uma nova cultura planetária que está surgindo.

Rodolfo Konder Diante do torturador, olhamo-nos num implacável espelho. Nossa própria imagem se parte, fragmenta-se em mil pedaços. Isso não nos deixa mais espaço, por exemplo, para qualquer crença ingênua na bondade intrínseca dos seres humanos. A experiência da tortura torna as pessoas mais solitárias, deixa seqüelas quase insuperáveis. Sugere inclusive uma “síndrome do torturado”, semelhante à “síndrome do prisioneiro de guerra”. No mundo inteiro, jornalistas como eu têm sido detidos e torturados por defenderem pacificamente suas opiniões. Eles são vítimas da opressão oficial, como milhares de dissidentes políticos, artistas, intelectuais, menores e mulheres. Na Turquia, nas Filipinas, em El Salvador, na Síria, na Índia, na Etiópia, Marrocos, temos inúmeros registros de mulheres torturadas, sexualmente humilhadas pelos agentes da lei e da ordem. Mesmo enfrentando graves dificuldades para denunciar as violações dos seus direitos, enfermeiras, professoras, advogadas, juízas, assistentes sociais, estudantes, jornalistas, religiosas, militantes e parentes de pessoas perseguidas têm revelado os abusos estarrecedores cometidos contra elas pelas autoridades. Os governos - cumpre lembrar - são responsáveis pelo respeito às normas internacionais de proteção aos Direitos Humanos. São os governos, portanto, que as vem estuprando, em dezenas de países. Nos porões, nas masmorras do mundo todo, porém, os torturadores hoje

estão de sobreaviso. Alguma coisa ameaça a rotina perversa do seu trabalho de fragmentar, humilhar, estilhaçar, desintegrar - e, freqüentemente, eliminar - seres humanos, a serviço de uma ordem, de uma estrutura de poder que depende do medo e da violência para se manter, para conservar seus ensangüentados privilégios. O quê vem tirando o sono dos torturadores? Uma convenção, aprovada por consenso pela Assembléia Geral da ONU a 10 de dezembro de 1984. O documento consagra o princípio de jurisdição universal obrigatória sobre os torturadores. Isso quer dizer que um torturador, a menos que seja extraditado para sofrer processo em outro país, será processado em qualquer nação onde se encontre. Além disso, a convenção impede o repatriamento forçado ou a extradição de pessoas que corram o risco de ser torturadas. Mais: exclui a “obediência a ordens superiores” como defesa contra uma acusação de tortura. Obriga ainda os Estados a investigar quaisquer informações sobre a prática de tortura e de outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. E cria um Comitê contra a tortura, que examina informes, investiga denúncias, busca esclarecimento, acolhe reclamações. Para as inúmeras vítimas de tortura, que vivem num campo minado pela memória de horrores muitas vezes indescritíveis, a convenção representa um certo alívio. Digo “ certo alívio” porque há aqui outra questão envolvida. Há cura para a tortura? Podemos - e devemos punir duramente os torturadores. Mas, e os torturados?

O Canadian Center for Investigation and Prevention of Tortura (Centro Canadense para Investigação e Combate à Tortura), de Toronto, e o Rehabilitation Center for Torture Victims (Centro de Reabilitação das Vítimas da Tortura), em Copenhague, são as únicas instituições que se dedicam, hoje, à questão da tortura e suas seqüelas, como objeto precípuo de suas atividades. A organização canadense funciona desde 1984; a dinamarquesa, desde 1982. Em ambos os casos, há estudos perturbadores, conclusões chocantes, que envolvem inclusive a configuração de uma “síndrome do torturado”. A vítima carrega pesada carga do passado, sofre uma espécie de inversão moral (vê nas outras pessoas propósitos perversos, intuitos cruéis e posturas mentirosas), convive com um atormentador sentimento de culpa, sofre de depressões freqüentes, sente-se perdida, desorientada, perde o sono ou tem insistente pesadelos. Sua crença mais profunda no ser humano lhe foi retirada ou, no mínimo, rudemente golpeada. Relatório recente da Anistia Internacional revela que a tortura ainda é praticada com regularidade em “mais de noventa países”. Irã , Paquistão, Turquia e Líbia encabeçam a longa lista. Assim, a convenção aprovada pela Assembléia Geral da ONU é iniciativa mais do que necessária. Trata-se da criação de um instrumento reclamado não apenas pelas vítimas diretas da tortura no mundo, mas também por todos os democratas, por todos os homens de boa vontade. Rodolfo Konder, jornalista e secretário municipal de Cultura de S. Paulo.

MORTE DE VLADO, O LONGO DIA DO TERROR Audálio Dantas O dia 25 de outubro de 1975 - o mais longo e atribulado de minha vida - começou cinco meses antes, em maio, quando tomou posse a nova diretoria do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, por mim presidida. A sociedade, amordaçada durante os onze anos de ditadura militar, começava a esboçar os primeiros sinais de reação. E foi nesse contexto que se desenvolveu o processo que levaria à vitória da oposição no Sindicato dos Jornalistas. Os sindicatos, como as demais organizações da sociedade civil, eram mantidos sob rígido controle do governo. Os sindicatos, principalmente. Havia um grande silêncio diante das imposições da ditadura. De repente, o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo passou a discutir algumas questões proibidas. Por exemplo, a de que sindicato não devia se meter em política. E meter-se em política, naqueles tempos, era discutir assuntos como a política salarial imposta pelo governo. Ou, Especial - Barbosa Lima Sobrinho

mesmo timidamente, debater o problema da censura aos meios de comunicação. Essas pequenas ousadias, grandes para o momento que se vivia, foram tomadas pela nova diretoria do Sindicato dos Jornalistas, enquanto no interior do regime começavam a se esboçar movimentos de abertura, sob controle, de modo a que se pudesse manter o terreno conquistado. Mas nos porões, nos cantos mais escuros de onde os gritos dos torturados não chegavam aos ouvidos da Nação, os monstros criados em muitos anos de iniqüidade estavam dispostos a resistir. Nascia, naquele momento, o que mais tarde se chamaria Operação Jakarta, um plano de extermínio armado pelos setores da ultra-direita, inspirado na matança ocorrida na Indonésia, após a deposição do presidente Sukarno. O dia 25 de outubro estava nascendo - um dia triste, denso, doloroso, de pranto. Contudo, um marco na história recente do País.

No dia 25 de outubro de 1975 morreu Vladimir Herzog. Um jornalista, um homem como muitos outros alcançados pelo braço assassino da ditadura militar implantada em

"A versão de suicídio, apresentada pelos militares, não foi aceita pelos jornalistas. Era mais um caso de assassinato contra opositores do regime." 1964. Vladimir morreu no DOI-CODI, do II Exército, em São Paulo. Ele era um dos suspeitos de participação na reorganização do Partido Comunista. Na área do II Exército

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havia 91 indiciados num inquérito que, nas mãos da ultra-direita, era um instrumento contra qualquer tentativa de abertura política. As prisões, que em sua maioria se caracterizavam como verdadeiros seqüestros, vinham sendo feitas havia semanas. Vladimir Herzog era o décimosegundo jornalista alcançado pelos chamados órgãos de segurança. Apresentara-se para depor na manhã de sábado, 25, e na tarde do mesmo dia estava morto. UMMARCODARESISTÊNCIA A versão de suicídio, apresentada pelos militares, não foi aceita pelos jornalistas. Era mais um caso de assassinato praticado contra opositores do regime. Mas não seria, como muitos outros, mais um corpo recebido em caixão lacrado e sepultado sob o silêncio e o medo. Um comunicado do Sindicato dos Jornalistas, distribuído na tarde do dia 26, pode ser considerado como a expressão da consciência nacional, que não mais


suportava a opressão. Por isso, o corpo de Vladimir Herzog não foi enterrado em silêncio, como as outras vítimas da repressão política transformada em verdadeiro terrorismo de Estado. Redigido depois da nota oficial do II Exército, afirmando que Vladimir havia cometido suicídio, após confessar sua militância no Partido Comunista, o comunicado do Sindicato responsabilizava os militares pela morte, independentemente das circunstâncias em que ela ocorrera: “Não obstante as informações oficiais fornecidas pelo II Exército, em nota distribuída à imprensa, o Sindicato dos Jornalistas deseja notar que, perante a lei, a autoridade é sempre responsável pela integridade física das pessoas que coloca sob sua guarda”. O comunicado prosseguia afirmando que o Sindicato “ainda aguarda os esclarecimentos necessários e completos” e reclamando das autoridades um fim à situação que mantém cidadãos “sujeitos ao arbítrio de órgãos de segurança, que os levam de suas casas ou de seus locais de trabalho, sempre a pretexto de que vão apenas prestar depoimento e os mantêm presos e incomunicáveis (...) em flagrante desrespeito à lei”. A partir dessa denúncia, a morte de Vladimir Herzog, que todos chorávamos, passou a ter o significado de um marco na luta de resistência à ditadura. O regime de arbítrio mantido a ferro e fogo - e à custa de tantas vidas - começava a cair efetivamente naquele momento. A história da participação do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo na luta de resistência à ditadura ainda não foi totalmente escrita. Muito antes de se iniciar a série de prisões de opositores do regime, que culminaria com o assassinato de Herzog, sua diretoria já estava na mira dos órgãos da repressão. Em junho, a tentativa de realizar um seminário sobre política salarial, com a participação de outros sindicatos, esbarrou no DOPS, então comandado pelo atual senador Romeu Tuma, a quem encontraríamos várias vezes no QG do II Exército, pois ao DOPS cabia “cuidar” dos inquéritos gerados no DOI-CODI. Em julho, o presidente do Sindicato foi “convidado”

a comparecer ao II Exército, onde ouviu de seu comandante, general Ednardo D’Avila Mello, uma preleção sobre as atividades subversivas de comunistas - os “fascistas vermelhos”, conforme ele definia infiltrados nos veículos de comunicação. As redações, dizia o general, estavam infestadas de comunistas. Ele falava como se anunciasse os dias de terror que estavam por vir.

"Mas não seria, como muitos outros, mais um corpo recebido em caixão lacrado e sepultado sob o silêncio e o medo." "A primeira manifestação veio da ABI...a participação não terminaria aí." E assim prosseguia, crescendo em intranqüilidade, o dia 25 de outubro de 1975. No dia 5 de outubro foi seqüestrado o primeiro jornalista, Sérgio Gomes da Silva. O Sindicato emitiu nota, tornando público um assunto que, na maioria das vezes, ficava restrito às famílias e aos amigos mais próximos das vítimas da repressão. Daí em diante a cada prisão se repetiria o gesto da denúncia. As autoridades faziam chegar ao Sindicato uma advertência: as denúncias eram tentativas de indispor o público contra elas, o que se configurava como crime na Lei de Segurança Nacional. O clima de medo impedia que outros setores da sociedade se manifestassem. Basta lembrar que nenhum sindicato de trabalhadores se manifestou naqueles dias em solidariedade aos jornalistas. Nem mesmo o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, que anos mais tarde, com o avanço do processo de abertura, teria papel

fundamental na reorganização do movimento sindical. Mas o silêncio seria quebrado com o assassinato de Herzog. A PARTICIPAÇÃO DA ABI O Sindicato não estava sozinho em sua luta. A solidariedade, expressa em mensagens de entidades representativas da sociedade civil, indicava que era chegado o momento de se dar um basta à ação ensandecida dos torturadores e assassinos mantidos pelos órgãos de segurança do regime. Mesmo assim, os sindicatos operários, mantidos sob severo controle, não tiveram condições de se manifestar. A primeira manifestação veio da Associação Brasileira de Imprensa, assinada por seu presidente, Prudente de Moraes, neto. A Federação e alguns sindicatos de jornalistas também se manifestaram. No dia seguinte ao sepultamento de Vlado, a ABI reuniu seu Conselho Administrativo, presidido por Barbosa Lima Sobrinho, o velho lutador das liberdades democráticas no Brasil. Essa reunião marcou a posição firme da ABI, que se declarou em sessão de vigília permanente “até que cessem as prisões e seja apurada a morte de Vladimir Herzog”. Um ofício assinado por Prudente, dirigido ao comandante do II Exército, general Ednardo d’Ávila Mello, deixava clara a disposição da ABI de cobrar explicações sobre a morte do jornalista. E cobrava, também, o acompanhamento do inquérito instaurado, pelo Ministério Público da Justiça Militar, além do acesso da imprensa “às diligências e depoimentos decorrentes das investigações”. Sobre os jornalistas que continuavam presos, dizia o comunicado: “Até o momento, a prisão desses jornalistas não foi objeto de comunicação à autoridade judiciária militar competente e todos eles continuam em regime de incomunicabilidade, apesar de alguns já terem cumprido o prazo estabelecido pela Lei de Segurança Nacional”. Como o Sindicato de São Paulo, que marcara para o dia 31, na Catedral da Sé, um culto ecumênico em memória de Herzog, a ABI decidiu realizar uma missa na igreja de Santa Luzia, no centro do Rio de Janeiro.

Por ordem do cardeal, D. Eugênio Salles, a missa foi proibida, dando lugar a uma das mais emocionantes manifestações de protesto pelo assassinato de Vlado. Ao lado de Barbosa Lima Sobrinho, Prudente de Moraes, neto abriu, na sede da ABI, o que se considerou um culto simbólico. Perante cerca de 700 pessoas, ele falou sobre a proibição da missa, dizendo que a homenagem seria silenciosa, acompanhando o culto ecumênico que, no mesmo momento, se realizava em São Paulo, com a presença de 8 mil pessoas. Durante 10 minutos todos permaneceram em silêncio só perturbado pelas sirenes da polícia, que cercava a sede da ABI. Em artigo que publicaria dias depois no Jornal do Brasil, Barbosa Lima Sobrinho descreveu a cerimônia: “ Todo o auditório de pé, foi profundo o silêncio que de instante se observou numa cerimônia sem igual, como raramente se terá visto, com a mesma unção e o mesmo respeito, dentro de qualquer templo religioso. Terminados os 10 minutos, a voz grave de Prudente de Moraes, neto convidou os presentes a que se retirassem em ordem. Se ele tivesse conhecimento da cerimônia, que naquele momento se estava ultimando em São Paulo, bem que poderia repetir as palavras do presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, Audálio Dantas: Em nome de Deus, em nome do homem, em nome do Deus homem, em nome do Deus homem morto, em nome de Vladimir, pedimos paz e em paz e silêncio devemos nos retirar deste templo”. A participação da ABI não terminaria aí. No início de novembro, o Sindicato de São Paulo, que se tornara uma referência na luta de resistência democrática, recebia a visita de Prudente de Moraes, neto. Sua presença tinha um significado muito grande naquele instante em que nos preparávamos para a contestação da versão de suicídio, mais tarde contida num histórico e corajoso documento que seria assinado por 1004 jornalistas brasileiros. Um deles era Prudente de Moraes, neto; o outro, Barbosa Lima Sobrinho, monumento vivo à dignidade. Audálio Dantas, ex-presidente da Fenaj e do Sindicato dos Jornalistas de SP.

E LÁ ESTAVA ELE, COMO ANTICANDIDATO Com Ulysses Guimarães, Barbosa corria o país para desmascarar a farsa eleitoral da ditadura militar Aluizio Alves Na Assembléia Nacional Constituinte de 1946, não tive relação mais estreita com Barbosa Lima Sobrinho. Três circunstancias me dificultaram esse prazer. A primeira, a separação partidária da bancadas. A convivência diária se fazia mais entre os próprios correligionários: a UDN sentada à esquerda da Mesa, e o PSD e o PTB à direita. A segunda, a ligação pessoal com Carlos de Lima Cavalcanti e Gilberto Freire, seus adversários na política

pernambucana, com os quais convivia todas as tardes, e também porque Barbosa, candidato ao governo estadual, logo em 1947, quando a Câmara as transformou em legislatura ordinária, com maior oportunidade para fazer amizade, ele tinha de desviar muito tempo para os interesses da campanha. Nosso reencontro mais constante poderia ter ocorrido na sua participação na campanha da anticandidatura do MDB, quando ao lado de Ulysses Guimarães, como vice-presidente, organizaram uma chapa que sabiam de inevitável derrota,

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"De ruas diferentes vinham verdadeiras procissões...naquela noite fizeram, creio, o único comício de milhares de pessoas reunidas."

mas constituia uma demostração de luta contra o regime militar. Mas, ainda aí, nossos contatos foram raros. Meus direitos políticos haviam sido casados pelo AI-5, e eu não podia vir a Natal pelas proibições da Polícia Federal. Há, todavia, um episódio que vale a pena ser relembrado. Os anticandidatos passaram a visitar as capitais dos estados e fazer seus discursos, geralmente em recintos fechados. Em Natal, seria diferente. Liderando Jornal da ABI


o MDB, Henrique Eduardo Alves, na sua primeira eleição de deputado federal, e Garibaldi Filho, deputado estadual, hoje governador, decidiram fazer um comício na praça publica. Anunciada a concentração, logo a polícia a proibiu. Quando Ulysses e Barbosa chegaram a Natal, tiveram a noticia da arbitrariedade policial, e resolveram acordar, em plena madrugada, o presidente do Superior Tribunal Eleitoral, ministro Thompson Flores. Aquela autoridade assegurou o direito dos candidatos falarem ao povo, e mandou que o MDB procurasse a Secretaria de Segurança, à qual seria transmitida, na manhã seguinte, a ordem de liberação do local e do comício. Henrique amanheceu na polícia. O chefe de polícia não apareceu durante todo o dia e a informação dos funcionários era uma só: nada chegou. Novo contato dos candidatos com o presidente do STE: o telegrama Western havia sido transmitido às 10 horas da manhã. E a polícia continuou negando, até que, supondo não haver mais tempo para convocar o povo, às 18 horas resolveu dizer que havia chegado o telegrama de STE. Imediatamente Henrique, Garibaldi, e outros companheiros, foram à rádio Cabugi e anunciaram o comício na praça Gentil Ferreira, no Alecrim, às 20 horas. A essa hora, chegavam as notícias: praticamente ninguém acorrera. Esperaram até quase 21 horas, e decidiram os dirigentes do MDB e os candidatos a fazer o comício com qualquer número de pessoas: 100, 50 ou 10. Dirigiram-se à praça e aí veio a surpresa: de ruas diferentes vinham verdadeiras procissões - homens, mulheres, jovens, crianças nos braços dos pais -, agitando, na mãos, bandeira e ramos verdes, símbolos de nossa campanha a partir de 1960. E naquela noite fizeram, creio, o único comício de milhares de pessoas reunidas. Lembro-me, apesar do tempo decorrido, da linda carta enviada por Barbosa Lima Sobrinho, ao regressar, louvando a coragem, a tenacidadde , a resistência de Henrique, Garibaldi, seus companheiros, como Iberê Ferreira de Souza e vários outros. A não ser raros contatos, durante a ditadura, quando dirigia a Tribuna da Imprensa, com Carlos Lacerda, vim rever Barbosa Lima Sobrinho, com mais de 90 anos, na luta da sociedade civil, partidos de oposição e entidades civis, que terminou com o impeachment de Collor, eu já então deputado federal num sétimo mandato. Sua posição constante e brava, deslocando-se a Brasília para cumprir a tarefa que julgava de interesse nacional e de revigoramento da Democracia. Os raros contatos foram, todavia, suficientes para dizer que Barbosa Lima Sobrinho, vivendo um século, teve o raríssimo privilégio de receber em vida o que outros só depois da morte, e às vezes nem assim: a honra e a gratidão da pátria por tê-lo como filho. Aluizio Alves, jornalista e diretor do jornal Tribuna do Norte (RN). Especial - Barbosa Lima Sobrinho

AGORA, JÁ, DIRETAS JÁ, DIZ A ABI Como foi montada com Barbosa a campanha que mobilizou nosso povo Augusto Villas-Bôas Corria o ano de 1984. O povo já começara, meses antes, a se manifestar, exigindo, ainda timidamente e quase que apenas através da imprensa, a realização de eleições diretas. Mas chegou a haver até um comício muito bem sucedido na Praça das Nações, em Bonsucesso. Organizações católicas e/ou não governamentais deram início a uma mobilidade mais efetiva, colocando-se à frente do movimento. Foi então que recebi de nosso dr. Barbosa Lima Sobrinho, presidente da ABI, a incumbência de assumir a coordenação da campanha que passou para a história do país com o nome tão expressivo quanto sintético de Diretas Já. Como tudo o que dr. Barbosa sugere, foi um sucesso inspirado por um raro senso de oportunidade: a campanha não teria momento mais adequado do que aquele para nascer - era para Já. Passamos então a nos reunir com um grupo que, no princípio, não chegava a uma dúzia de pessoas, no já célebre 7º andar da ABI - onde tudo acontece. Entre outros, começaram conosco, segundo bem me lembro, Luiz Pinguelli Rosa, hoje na direção da COPPE/UFRJ, Mª Dolores Bahia, do PC do B, o caro Malheiros, do PDT, e mais não cito para não cometer a injustiça de deixar apenas um ou dois de fora. Herman Baeta, presidente da OAB, acabara de trazer a Ordem para o movimento. Engrenamos a organização, nesse período da primeira passeata, culminando

com o comício da Cinelândia. Estávamos ainda um tanto apreensivos porque, na verdade, não tínhamos como confirmar, e nem mesmo prever, qual seria a reação popular. Guiavam este nosso grupo apenas a intuição política e a sensibilidade para detectar os anseios do povo. E veio a primeira surpresa, de fato, nem tão surpreendente assim, mas igualmente estimulante: o comparecimento foi maciço. Os menos otimistas calculavam em 100 mil pessoas o número dos que estiveram presentes a este primeiro grande ato público, realizado, salvo engano meu, enquanto recorro tão somente à memória, no mês de abril de 1984. O movimento se transformou numa empolgação geral e nosso entusiasmo não conheceu mais limites. Havia mesmo uma esperança cada vez mais forte de se ver aprovada pelo Congresso a emenda Dante de Oliveira, apresentada por este então deputado federal pelo PDT e corroborada por centenas de milhares de assinaturas populares. Nesta ocasião, Herman Baeta promoveu algumas reuniões na OAB, já então com a presença de outras inúmeras lideranças nacionais, inclusive a de Tancredo Neves, que por baixo do pano dera início à articulação de sua campanha para se tornar o último presidente a ser escolhido por eleição indireta. Num desses encontros de trabalho, chegou, em forma de boato, a informação de que a emenda estaria praticamente aprovada no Congresso. Tancredo, virtual candidato a presidente indireto mas ainda não confirmado como nome a ser lançado depois do sucesso das Diretas Já, ficou

lívido. No entanto, sua aflição durou pouco: logo veio a confirmação de suas suspeitas - a notícia era apenas fruto do otimismo de alguns companheiros que acompanhavam o andamento da campanha no Congresso. A essa altura, o então governador Leonel Brizola convocou uma reunião no Palácio Guanabara na tentativa, já vã, como iremos verificar, de assumir a liderança da tão bem sucedida campanha. Sua primeira iniciativa foi tentar adiar a realização daquele que veio a ser o grande comício pelas Diretas Já na Candelária, encerrando a passeata que teve início na Av. Presidente Vargas e acabou por arregimentar quase um milhão de pessoas. Lembro-me que o Pinguelli, nesse momento, comentou ter sido exigida toda a nossa dignidade para impedirmos que a iniciativa do dr. Barbosa viesse a ser atropelada por outros interesses. Realizamos o comício na data prevista, sem adiamentos. E foi o que se viu. Tivemos o apoio dos sindicatos, associações de bairros e de favelas, do povo, enfim, que se sentiu respaldado em seu desejo de ver retornar a democracia e aderiu incondicionalmente ao movimento. As conseqüências: com a morte de Tancredo, assumiu Sarney e foi, sim, necessário que tolerássemos ainda um presidente escolhido por cima, numa concessão de chapa da pior qualidade. Pelo menos, não tinha sido indicado pelo alto comando militar. Augusto Villas-Bôas, jornalista, conselheiro e subtesoureiro da ABI.

DE 64 A 97, A HISTÓRIA RECENTE Um resumo de tudo o que aconteceu no Brasil, do golpe até hoje em dia Fernando Antonio da Costa Vieira Em 31 de março de 1964 o governo João Goulart é derrubado; instalou-se uma ditadura militar que persistiria por 21 anos. O golpe foi o resultado final de uma crise que se alongava por décadas no interior do Estado brasileiro O processo de esgotamento do modelo populista no correr dos anos 50 foi acentuado pelo processo de industrialização da economia nacional, iniciado por Juscelino Kubitschek em seu mandato presidencial (1955-1960). A nova inserção do Brasil no mercado mundial demandou a restruturação da ordem política brasileira, quebrando o papel mediador do Estado nas questões trabalhistas, o que significava anular a participação dos sindicatos na vida política, e, ao mesmo tempo, tornar o Estado um eficiente gerenciador de recursos, capacitando-o a financiar e incrementar modernização da economia. O populismo, apesar de procurar

absorver em seu interior as reivindicações das classes trabalhadoras, era obrigado a conviver com o aumento da politização dos trabalhadores, forçando o Estado a abandonar sua postura de ligação entre capital e trabalho. No governo de João Goulart (19611964), a classe trabalhadora cobrava a radicalização do projeto de reformas, as chamadas reformas de base, fortalecendo o esvaziamento do governo que, de um lado, não conseguia se comprometer com as reformas, e de outro, não se apresentava como um interlocutor fiel para o capital num momento em que os conflitos sociais se intensificavam. Desde 1962 as articulações conservadoras giravam em torno de um golpe militar que depusesse o governo João Goulart. Uma das principais tarefas realizadas por esses setores foi “fazer passar à opinião pública a idéia de que a democracia era indissociável da ordem e da estabilidade” (1), isto é, o oposto do que ocorria no governo Jango.

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À medida que a sociedade brasileira radicalizava suas posições, polarizada em torno do apoio ou recusa às reformas, o governo de Jango não conseguiu uma efetiva articulação parlamentar que criasse alternativas políticas para preservar a ordem institucional. Fragilizado no Congresso, acuado pelos militares, isolado das massas trabalhadoras e sofrendo a franca oposição da burguesia, Jango acabou sendo derrubado pelos militares que, saindo de Minas e do Rio de Janeiro, não encontraram nenhuma força governista capaz de impedir seu avanço até Brasília. Externamente, os golpistas contaram com uma conjuntura plenamente favorável, caracterizada por um quadro de conflitos entre as duas grandes potências nucleares, os Estados Unidos e a União Soviética. Interessados em impedir a possibilidade da emergência de governos simpáticos aos soviéticos, os norte-americanos apoiaram abertamente o movimento golpista, sinalizando com o apoio logístico aos


militares brasileiros, caso houvesse prolongada resistência. Conquistado o poder, os militares iniciaram um processo de institucionalização da ditadura através de Atos Institucionais que passariam a regulamentar a sociedade civil. O AI-5 representou o espírito inquisitorial do novo governo ao suspender e cassar os direitos políticos de brasileiros que eram ligados ao governo deposto. A posse do marechal Castelo Branco (1964-1967) como o novo presidente do Brasil representou a afirmação de que os militares projetavam assumir a direção do Estado, conduzindo sob suas rédeas um projeto de modernização econômica que elevaria o Brasil ao status de grande potência mundial. Buscando construir uma fachada institucional, o governo Castelo Branco manteve as eleições legislativas e para os governos estaduais de 1965. Acreditava o governo que com as depurações realizadas pelo AI1, as eleições seriam um referendo à manutenção da nova realidade política nacional. Na prática, a eleição tornou-se um significativo aviso de que a sociedade desejava um governo civil no comando, uma vez que a oposição fora vitoriosa no pleito, elegendo os governos no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Diante disso, o governo Castelo decretou o AI-2, fechando o Congresso e reorganizando a vida política brasileira ao extingüir os partidos existentes, instalar o bipartidarismo, além de instituir um colégio eleitoral para a eleição do presidente da República. Nessa nova realidade, seriam permitidos unicamente dois partidos: o do governo, a Arena (Aliança Renovadora Nacional) e o de uma oposição consentida, o MDB (Movimento Democrático Brasileiro) que serviria para conferir ao regime uma fachada democrática. Controlando o Congresso, os militares iniciaram a construção de um projeto desenvolvimentista baseado na modernização da produção (mediante o avanço da industrialização), na integração regional (através da expansão das telecomunicações), na abertura do mercado nacional ao capital estrangeiro (formando grandes monopólios fabris), na contenção das lutas dos trabalhadores (utilizando a Lei de Segurança Nacional para reprimir os trabalhadores) e numa forte intervenção do setor público junto aos agentes econômicos - construindo infra-estrutura, como por exemplo, rodovias e hidrelétricas; criando incentivos fiscais para o capital internacional investir no Brasil e captando recursos externos para investir no mercado interno, o que resultou no endividamento externo do país. Após 1968, durante o curto governo de Costa e Silva (1967-1968), a tensão

política tornou-se mais presente no cotidiano do país. Torturas, prisões arbitrárias, fechamento do Congresso Nacional, cassações, censura, repressões contra manifestações públicas e contra lideranças sindicais foram legitimadas com o aval da LSN e do AI-5. A oposição encontrou dois caminhos para lutar contra a ditadura militar: a organização de grupos guerrilheiros que empregaram a luta armada como estratégia para derrubar o regime e a luta parlamentar, ainda que sob limites rigidamente controlados pelos militares. Da luta armada, sonho quimérico de revolução popular, restaram o assassinato sob tortura e o desaparecimento de inúmeros membros das organizações de guerrilha, uma das facetas mais cruéis da ditadura militar. Jovens como Rui Frazão, lideranças expressivas como Carlos Marighella ou Carlos Lamarca, idealistas como Frei Tito são lembranças que o país não pode esquecer sob o risco de ver a repetição da mesma tragédia. O outro caminho foi o trilhado pelo MDB. Apesar das limitações impostas pelo governo, o MDB procurou utilizar os espaços mínimos existentes para denunciar a ditadura militar. Um exemplo foi a anticandidatura com a chapa Ulysses Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho na eleição de 1970. Muito mais do que disputar a eleição, ganha pelo candidato oficial, o general Emílio Garrastazu Médici (1970-1974), a anticandidatura permitiu à oposição denunciar o autoritarismo e defender o retorno da normalidade democrática ao país. Além da campanha ao lado de Ulysses, Barbosa Lima Sobrinho notabilizou-se no período pelos artigos que escrevia nos jornais, especialmente o Jornal do Brasil, contra a ditadura e em defesa do regime democrático. A crise do petróleo em 1973 apontou o esgotamento do modelo econômico brasileiro, à medida que resultou na elevação do juros interno, ampliou o montante da dívida externa e reduziu a capacidade de investimento do Estado na economia devido à diminuição de recursos externos. Temerosos diante da real possibilidade de fracasso do projeto econômico, os militares iniciaram um processo de ampliação da circulação de moeda no mercado, o que resultou no crescimento da inflação. Aos trabalhadores o preço pago foi a ampliação do arrocho salarial. A tese de que seria preciso esperar o bolo crescer para depois reparti-lo foi a estratégia que norteou a tecnocracia civil-militar no poder. Na prática, os trabalhadores continuam a esperar a fatia do bolo. A década de 80 assistiu o processo

"A oposição encontrou dois caminhos para lutar contra a ditadura militar: grupos guerrilheiros que empregaram a luta armada e a luta parlamentar, ainda que sob limites rigidamente controlados pelos militares."

de decomposição final do regime autoritário. No principal cinturão industrial do país, o ABC, os operários se levantaram contra a lei salarial que transferia para a esfera do Estado a concessão de aumentos salariais, o que implicava uma política de arrocho para o trabalhador. As greves do ABC, iniciadas em 1979, provocaram um surto grevista em todo o país, destacando-se entre outras, as dos bancários e a dos professores da rede privada do Rio de Janeiro. O descontentamento dos setores médios urbanos e do operário tornou-se patente. Já em 1974, o MDB vencera as eleições para o Senado levando o governo do general Ernesto Geisel (1974-1979) a decretar o Pacote de Abril de 1977, após fechar o Congresso, que, entre outras medidas, criava o senador biônico (eleito indiretamente), além da aprovação da Lei Falcão que impunha limites para a propaganda eleitoral no rádio e na televisão. Apesar disso, o Geisel iniciou o processo de desmilitarização do país diante da percepção de que a manutenção da crise econômica esgotaria a capacidade de sobrevivência dos militares no centro do poder político. A continuidade do projeto econômico demandava uma nova articulação política entre as elites do país, de forma a criar válvulas de escape para as tensões sociais. Diante desse quadro de tensões, o regime procurou comandar o processo de

"A grande batalha travada pela sociedade brasileira foi interrompida por um arranjo político conservador, em que eles dão 'marcha à ré, recolhem os militares ao quartel e interrompem a contra-revolução.' É claro que as pressões das massas e das classes trabalhadoras estão na base do malogro e do recuo." redemocratização do país. Era a chamada abertura que deveria ser gradual, lenta e segura. Com isso, acreditavam garantir a manutenção do modelo econômico, além de preservar a integridade dos militares que participaram de torturas e assassinatos na chamada guerra suja. A extinção do bipartidarismo, a campanha da anistia e as eleições estaduais de 1982 se inseriram nesse contexto de quebra da ditadura. Iniciada por Geisel, a abertura foi idealizada por Petrônio Portela (ministro da Justiça) e pelo ideólogo do regime, o general Golbery do Couto e Silva. O sucessor de Geisel, o

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general Figueiredo (1979-1984) continuou os rumos da abertura, ignorando no possível os anseios democráticos da sociedade brasileira. As pressões dos militares de linhadura contra a redemocratização se consubstanciaram em uma série de atentados, entre os quais o na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e o contra o Riocentro. Apesar disso, Figueiredo, por controlar a comunidade de informações (militares que trabalhavam nos serviços secretos e nos órgãos de repressão), conseguiu atenuar a oposição interna ao processo. No entanto, a sociedade brasileira não se conformava com os rumos do processo de redemocratização. Contra o projeto de anistia restrita pregado por Figueiredo, lutou-se pela anistia ampla, geral e irrestrita. Comícios, como o realizado no campus da PUC no Rio de Janeiro e artigos em periódicos, destacando-se os de Barbosa Lima Sobrinho, forçaram o governo a recuar na sua proposta inicial. A vitória da oposição nos principais estados da região Sudeste (Brizola no Rio de Janeiro, Franco Montoro em São Paulo, só para citar alguns exemplos) alterou o quadro político, tornando a posição do governo Figueiredo mais fragilizada. Entretanto, a grande batalha travada pela sociedade brasileira foi interrompida por um arranjo político conservador, em que eles dão “marcha à ré, recolhem os militares ao quartel e interrompem a contrarevolução. É claro que as pressões das massas e das classes trabalhadoras estão na base do malogro e do recuo.” (2) E qual seria essa batalha que provocou o arranjo conservador? A campanha das Diretas Já, que arrastou multidões para as praças e ruas em manifestações gigantes pela defesa do direito de se eleger o sucessor de Figueiredo pelo voto direto, o que ameaçava a continuidade do projeto gradualista de saída dos militares do poder. Derrotada a emenda Dante de Oliveira, em votação na Câmara dos Deputados no ano de 1984, a qual restauraria o direito às eleições diretas, passou-se a articular uma chapa conservadora (mas de consenso) que atendesse às aspirações de parte da sociedade brasileira ansiosa por um governo que rompesse com o domínio dos militares, e que, ao mesmo tempo, mantivesse os compromissos engendrados pelos militares. Nascia a Aliança Democrática. O resultado dessa articulação foi a chapa Tancredo Neves/ José Sarney, organizada entre o PMDB (antigo MDB) e dissidentes do PDS (Partido Democrático Social, antiga Arena) que haviam fundado a FL (Frente Liberal, posteriormente transformada em partido, o PFL). Contra essa aliança conservadora lançou-se Paulo Maluf, ligado ao PDS, mesmo sem contar com a simpatia dos militares no poder. Apesar de derrotar Maluf no Colégio Eleitoral, Tancredo não chegou a presidir o país. Vitimado após uma longa doença, com a qual o Brasil também agonizou, tomou posse José Sarney, ex-líder da Arena no Congresso Nacional. O grande mérito de Sarney foi o de Jornal da ABI


eliminar os últimos entraves autoritários existentes, ao abolir a LSN (Lei de Segurança Nacional), convocar eleições para as prefeituras de capitais estaduais e áreas de segurança nacional no próprio ano de 85, além de convocar uma Assembléia Nacional Constituinte para a elaboração de uma nova Carta em substituição à elaborada pelos militares em 1967. O governo Sarney (1985-1990) também se caracterizou pela tentativa de combate ao quadro inflacionário da economia brasileira através da adoção de diversos planos econômicos, dos quais, o Plano Cruzado, tornou-se o mais famoso. No plano político, Sarney assistiu ao crescimento do PT (Partido dos Trabalhadores) que assumiu a liderança no campo das esquerdas em detrimento do PCB (Partido Comunista Brasileiro) e de lideranças dos anos 60, como por exemplo, Leonel Brizola e Miguel Arraes. Além disso, seu governo ficou marcado pelo massacre promovido por tropas federais em 1988, na cidade de Volta Redonda, quando soldados sob o comando do general Lopes da Silva invadiram a usina siderúrgica e mataram os operários William, Walmir e Barroso. A eleição presidencial de 1989 assistiu, em seu segundo turno, a polarização entre o candidato da direita,

Marca dos 100 anos

A VIDA DE BARBOSA... André Motta Lima: Com o processo de 64 e as manifestações políticas absolutamente reprimidas, não havia um interesse até de participação e ele acaba concentrando a atividade dentro da Biblioteca Nacional, quando faz o levantamento sobre o Correio Braziliense...Ele passa a ser mais um articulista, um pesquisador, e a se dedicar a esse lado histórico. Talvez a gente pudesse ressaltar esse aspecto dele, de pesquisador, e falar daquele caso com a D. Maria José, na vez em que ele foi para a Biblioteca Nacional... José Augusto Ribeiro: Desde que chegou ao Rio, em 1921, ele freqüentava muito a Biblioteca Nacional, fez muitos trabalhos históricos, mas como procurador da Prefeitura, na luta contra a Light, não tinha muito tempo, mas de vez em quando ele fazia, até porque era membro do Instituto Histórico desde 1931. Em 67 ele completou 70 anos, dia 22 de janeiro, e nesse dia deixou de ser procurador porque caiu na compulsória dos setenta anos. No dia 23 de janeiro ele terminou de almoçar, subiu para o quarto e desceu de terno e gravata com a pasta na mão. Dona Maria José, a senhora dele, disse: “ Mas Alexandre, onde Especial - Barbosa Lima Sobrinho

Fernando Collor de Melo, e o da esquerda, Luís Inácio Lula da Silva, presidente do PT. O resultado final do pleito consagrou a vitória de Collor de Melo. Seu governo foi caracterizado pela afirmação dos preceitos neoliberais (depois retomados pelo governo de Fernando Henrique) que implicavam desregulamentação do Estado (leia-se privatização), abertura do mercado à competição internacional (traduzindo: quebra da indústria nacional), arrocho salarial e contenção do meio circulante visando reduzir a inflação (o que foi expresso no Plano Collor que confiscou o meio circulante depositado em poupanças, contas bancárias e outros investimentos). As denúncias de corrupção contra seu governo encontraram eco popular, motivando pressão contra o Congresso. O processo de impeachment foi vitorioso, em parte devido à ausência de uma sólida base parlamentar do governo. Isolado e sem respaldo popular, Collor foi derrubado em 1992, assumindo seu vice, Itamar Franco (1992-1995). Itamar procurou garantir a governabilidade, ampliando seu governo para outros partidos que não o PMDB, o PFL e o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), além de

implementar um plano que visava estabilizar a economia brasileira, reduzindo a inflação através de um rígido controle das contas públicas, da adoção de uma banda cambial que controlada permitiria a valorização da moeda. Nascia o Plano Real. O sucesso do plano garantiu a eleição de Fernando Henrique Cardoso em 1994 para a Presidência da República, após vitória no primeiro turno. O governo de FHC tem sido marcado pela adoção do projeto neoliberal de Collor de Melo, centrado na privatização das empresas públicas, no arrocho salarial aos empregados públicos (buscando reduzir os gastos públicos), na tentativa de quebra dos direitos sociais dos trabalhadores, na modificação da Previdência pública, favorecendo a sua privatização, e no campo político, pelos massacres contra os trabalhadores semterra em Corumbiara e Eldorado do Sul. Além disso, notabilizou-se pelo clientelismo visando a obtenção, vitoriosa, da reeleição para si. Entretanto, o governo tem encontrado a resistência de importantes setores da sociedade brasileira que se recusam a aceitar a venda de patrimônios do país, como é o caso da Vale do Rio Doce. Entre as falas discordantes ecoa a centenária voz, plena

de coerência e dignidade, de Barbosa Lima Sobrinho, que tornou a ABI um espaço aberto ao povo brasileiro na luta pela democracia e contra a estratégia neoliberal de aniquilamento político e econômico da Nação.

é que você vai? Você não é procurador...” E ele respondeu: “Eu vou pra Biblioteca Nacional trabalhar. E nesse dia começou a pesquisar o que seria um de seus maiores livros: “A Presença de Alberto Torres”. Alberto Torres foi um grande abolicionista, republicano, parlamentar, governador do Estado do Rio, Ministro do Supremo Tribunal e um grande escritor. Foi - e é até hoje - acusado, por ter sido um grande nacionalista, de ser um homem autoritário, um homem de direita; o que não é absolutamente verdade. É que há, nessas coisas, uma combinação de preguiça e preconceito. Não vão ver o que a pessoa realmente escreveu, o que a pessoa disse, e vão repetindo uns aos outros essas coisas, então... Seria muito difícil o dr. Barbosa ter admiração pelo Alberto Torres se ele fosse um homem de direita. Ele nunca teve admiração por nacionalistas de direita, ligados ou não ao integralismo, como Plínio Salgado, Francisco Campos; mas tinha admiração pelo Alberto Torres. Por quê? Quando o Alberto Torres pregava a necessidade de um estado forte, não era um estado forte para oprimir os cidadãos, era um estado forte para enfrentar os interesses estrangeiros, que esbarravam nos interesses brasileiros. Um estado forte no sentido em que é forte o estado norteamericano. Porque quando se trata do interesse dos Estados Unidos, é capaz até de mandar invadir a Ilha de Granada, o Panamá, o Kuwait, o diabo-a-quatro. Alberto Torres era tão liberal nesse sentido de que o estado não pode oprimir o cidadão, não pode se imiscuir com a vida do cidadão que, como Ministro de Supremo Tribunal, votou, e não foi uma vez só, de acordo com uma tese do Rui Barbosa (que o Pedro Lessa, outro grande ministro do Supremo, também apoiava), que era uma tese da maior

generosidade, da maior ousadia, mas que não era muito jurídica. O habeas corpus, em toda a história do Direito, sempre serviu para garantir a liberdade de ir e vir, a liberdade física. O sujeito está preso, o habeas corpus é pra soltar o preso. Mas

hoje se chama neoliberal, comandada pelo primeiro ministro Roberto Campos. Escreveu esse livro para isso. E termina esse livro fazendo uma afirmação que depois se torna uma constante quando ele é citado. Sempre que ele é citado lembram dessa frase: “No fundo os dois grandes partidos brasileiros são o partido do Joaquim Silvério dos Reis e o partido de Tiradentes”.

No dia seguinte ao da aposentadoria, aos 70 anos, se arrumou normalmente e saiu para trabalhar... Foi para a Biblioteca Nacional e começou a pesquisa do livro A Presença de Alberto Torres. como não existia ainda o mandado de segurança, Rui, Pedro Lessa e Alberto Torres começaram a defender a aplicação do habeas corpus para casos que hoje são resolvidos pelo mandado de segurança. Como é que nós vamos dizer que era autoritário, fascista, um homem que pensava assim, que queria ampliar o habeas corpus? Então, a admiração do dr. Barbosa veio do fato de que, sendo um democrata, um liberal, Alberto Torres era também um nacionalista. E ele, em janeiro de 67, começou a pesquisar e escreveu esse livro com o qual ele pretendia contestar a onda entreguista, que

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REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS: (1) PENNA, Lincoln de Abreu. - Uma história da República, 1989, RJ, Nova Fronteira 2) FERNANDES, Florestan. - Nova República? 1985, RJ, Jorge Zahar. Fernando Antonio da Costa Vieira, mestre em História pela UFF e professor na rede privada de ensino no Rio de Janeiro. PARA SABER MAIS IGLESIAS, Francisco. Trajetória política do Brasil.1993, SP, Cia. das Letras. GORENDER, Jacob. - Combates nas Trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. 1987, SP, Ática. OLIVEIRA, Francisco de. - Collor. A falsificação da ira. 1990, RJ, Imago. SOARES, Gláucio Ary Dillon (org.) - 21 anos de regime militar. 1994, RJ, Fundação Getúlio Vargas.

A.M.L.: Uma das características desse período é a de procurar as brechas possíveis nos artigos para criticar a falta de liberdade, a falta de democracia. E sempre com maneiras sutis - até porque havia um processo rigoroso de censura - no estilo dele. Estilo dele como alguns posicionamentos, às vezes de apoio a atos do governo militar, quando representavam o interesse das causas nacionais. Isso o fez apoiar o mar de 200 milhas, o acordo nuclear... J.A.R.: A propósito desses artigos, ele me disse que a experiência dele com a censura vinha de 1922, no artigo sobre Pedro Lessa, o que já mostra a obtusidade da censura, porque a censura cortou o que não tinha problema nenhum e deixou passar o que tinha. Por exemplo, cortou uma frase que dizia assim “No Brasil o que predomina não é a vontade da lei, mas é a vontade dos homens”. Isso o censor reagiu: “ele tá metendo pau nos homi, então corta esse troço aí”. Mas, um outro parágrafo, em que ele concitava o Supremo Tribunal a seguir a lição de Pedro Lessa e ampliar o habeas corpus para soltar os presos políticos, o censor não entendeu. Sempre a truculência burra da censura. Então, no período do governo militar, ele


teve artigos censurados. A tese dele é a seguinte: “Não adianta ficar com raiva e escrever um artigo furioso, que vai ser proibido. Vamos tentar dizer alguma coisa.” Os maiores jornalistas, que enfrentaram esse problema, procederam assim. O Carlos Castelo Branco, que foi preso pelo AI-5, saiu da cadeia para retomar a coluna dele. Por que? O Castelinho conseguia também passar informações e o

"Os dois grandes partidos brasileiros são o partido de Joaquim Silvério dos Reis e o partido de Tiradentes." dr. Barbosa apoiou o nome do Castelo para a Academia Brasileira de Letras por causa disso. O dr. Barbosa não era um inimigo irracional do governo, ele era um adversário do regime, porque o regime era opressor, o regime negava os direitos humanos. Porque quando o governo, mesmo sendo um governo militar, adotou uma medida nos interesses nacionais, que foi o mar de 200 milhas, ele escreveu apoiando. Agora, apoiando, não era elogiando, ele não citava o nome dos presidentes e dos ministros, o Presidente da República, o ministro disso, o ministro daquilo. Muito mais tarde, já na fase da abertura política, quando acabou a censura à imprensa, aí ele se permitiu citar esses camaradas pelo nome. De modo que, se um pesquisador jovem que for ler os artigos dele, vai ter que recorrer ao Almanaque Abril para ver quem era o presidente de plantão naquele momento. A.M.L.: É interessante ressaltar, nesse processo dos artigos, que apenas há uma interrupção de mais ou menos três meses no período de constância dele nos artigos, quando ele vira o anticandidato. Esse episódio da anticandidatura, como é que ela surgiu? J.A.R.: Teve também um intervalo de algumas semanas no AI-5... A.M.L.: ...Ah, sim. Aí, por proibição? J.A.R.: Não, aí eu não sei como as coisas ficaram. Porque você lembra que o Alberto Dines, do Jornal do Brasil, fez uma edição talentosíssima, contornou, usou até a previsão do tempo para denunciar a noite sinistra que estava se abatendo sobre o país. Então, o Jornal do Brasil foi muito apertado, o Dines foi preso, não podia publicar nada. Mas, depois de alguma semana voltam os artigos dele e ele começa a tratar de assuntos históricos, mas está sempre dando algum recado. Eu até me lembro que o primeiro artigo dele depois do AI-5 eu tive um trabalhão para entender. Ele escreveu um artigo sobre o Barão de Penedo, mas quem era o Barão de Penedo? O Barão de Penedo foi designado

embaixador do Brasil junto à Santa Sé, na questão religiosa, durante o Império, quando o governo brasileiro, por ordem do Imperador, prendeu dois bispos, o Dom Antônio Macedo Costa, de Fortaleza, e acho que Dom Vital, de Olinda. O governo brasileiro considerava que - sendo a religião católica a religião oficial do Império - tinha autoridade até sobre nomeação de bispo, uma coisa assim. Na verdade os bispos recebiam as chamadas “prebendas”, uma espécie de salário pago pelo governo. O Dom Vital foi preso e deu um trabalho danado, porque cada vez que ele sabia que ia ser preso, se paramentava todo e o sujeito que ia lá para prender tinha que mandar um general para prender o bispo. Prendia um bispo...quer dizer, um homem de Deus. Então o Barão de Penedo foi designado para ir ao Vaticano para negociar uma solução que permitisse a libertação dos bispos. O que passou do artigo, na época, isso eu não tenho dúvida, foi “a ditadura brasileira está perseguindo os padres da mesma forma como o Império perseguiu o Dom Vital e o Dom Antônio”. Tinha mais dominicano nas cadeias que nos conventos... Então, tudo que ele escrevia tinha esse propósito. Ele escrevia no domingo, o dr. Alceu Amoroso Lima escrevia quarta ou quinta feira... A.M.L.: Creio que na quinta. J.A.R.: Teve uma semana que ele fez do artigo dele praticamente a transcrição do artigo do Tristão de Athayde, para que mais pessoas pudessem ler... e era uma denúncia ... A.M.L.: Ele até atuava por trás de alguns, não só nesse sentido, como com o que revela, aqui num dos artigos do jornal, o Moacir Werneck, que é uma coisa que me surpreendeu. As inúmeras colaborações que ele fez em relação à artigos que o Moacir escrevia na Última Hora, com argumentações jurídicas contra o AI-5. Bem, agora, talvez fosse bom marcar também a questão da anticandidatura. J.A.R.: Ele sempre foi um homem de partido, né? Em 1910, com 13 anos, ele era do Partido Civilista do Rui Barbosa contra o Marechal Hermes. Em 1919 ele era de novo do Rui contra o Epitácio Pessoa. Foi um dos fundadores do PSD, autor do programa e quem escolheu o nome do partido, Social Democrático, por causa da socialdemocracia, do socialismo reformista alemão. Tanto que o Benedito Valadares, que era muito assustado, ficou horrorizado quando soube que o nome do partido era esse e o Agamenon é que teve que segurar as pontas. Eleito pelo Partido Social Democrático em 35, foi deputado de novo pelo Partido Social Democrático em 45. E foi do Partido Socialista porque estava marginalizado no seu próprio partido. Agora, qual é a idéia que ele tem de partido? Partido é uma organização política que disputa eleições. Eu não diria que a definição dele pode ser ampliada para dizer que partido é uma organização política que disputa o poder, porque ele sempre recusou a disputa do poder pela força, sempre foi contra os movimentos armados, quaisquer que fossem.

Em 64, com a queda do Jango, o Congresso elegeu o General Castelo Branco. Até não foi candidato único, havia outros candidatos, o general Kruel, mas dr. Barbosa já não era deputado, não participou disso. Em 1967, já era bipartidarismo, mas o MDB era muito fraco, não tinha como pensar em candidato contra o Costa e Silva. Em 69, com a doença do Costa e Silva, Médici foi uma escolha militar referendada

deputado novo que estava surgindo... A.M.L.: E, afinal de contas, de Pernambuco. J.A.R.: E também de Pernambuco. Mas acharam que, já que o candidato a Presidente era um parlamentar, era melhor que o candidato a vice saísse da sociedade civil, então ele foi ser candidato a vice, e

Quando o governo militar tomou medida a favor dos interesses nacionais, como o mar de 200 milhas, escreveu apoiando. Mas não elogiava e continuava se negando a publicar o nome dos ministros e dos presidentes de plantão. Só chamou pelo nome quando acabou a censura. pelo Congresso. Na escolha do General Geisel, que foi em 74, já sabia-se, em 73, que ia ser o Geisel, embora houvesse resistências do Médici, uma briga feroz dentro do Exército. O filho do Médici, o Roberto Médici, que é um belo professor de engenharia, mas que entrou inocente na vida política, se amargurou muito e tem uma visão muito amarga das coisas. Ele disse que o pai dele, o general Médici, tinha escolhido o General Geisel para ser o sucessor como num bordel se escolhe uma prostituta para levar para o quarto. A briga era feia. O dr. Barbosa achava que o MDB, com todas as restrições do AI-5, censura, era um partido que tinha uma presença na Câmara e no Senado, nas Assembléias dos estados, tinha até o governo aqui da Guanabara. Ele achava que partido, quando tem eleição, disputa essa eleição. Seja qual for. Então, ele começou a conversar com amigos dele do MDB, especialmente do grupo autêntico do MDB. E havia conversas paralelas. Havia por exemplo, conversas em Brasília na casa do nosso colega Carlos Chagas. Tinha um grupo de deputados que iam jogar vôlei, aos sábados, na casa do Chagas e conversavam sobre isso. Pensaram, por exemplo, no dr. Júlio de Mesquita Filho, o diretor do Estadão, que já estava muito doente e não seria um candidato adequado para o MDB; e houve outras idéias assim. Um dia o dr. Barbosa foi procurado por um grupo de deputados jovens do bloco autêntico do MDB, o Marcos Freire, o Fernando Lira, de Pernambuco, o Pedro Simon, do Rio Grande do Sul, devia ter mais dois ou três. E o ponto de vista que ele defendeu foi o seguinte: “O MDB tem que ter candidato, na pior das hipóteses é uma oportunidade para dizer ‘olha aí, tá vendo, a eleição é roubada, não tem liberdade de propaganda política...’ Tem que ter candidato.” E eles aceitaram essa idéia e queriam que o dr. Barbosa fosse o candidato a Presidente, anticandidato a Presidente. Ele disse “Não, eu estou fora da política, estou sem mandato, o MDB tem um grande candidato que é o Ulysses, que é o presidente do Partido, um homem corajoso, respeitado”. E aceitaram o Ulisses. Ele queria que o vice fosse o Marcos Freire, por ser um homem do Nordeste e um

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interrompeu a colaboração no Jornal do Brasil, não sei se por iniciativa própria ou se foi uma solicitação... A.M.L.: Eu já ouvi qualquer coisa dele no sentido de que foi uma solicitação, porque ele sendo candidato não ficava bem... J.A.R.:...E até foi uma maneira de preservar o Jornal do Brasil de alguma brutalidade, o que era comum... Havia aqueles grupos, os tais bolsões sinceros, porém radicais, ou radicais, porém sinceros, que iam fazer uma barbaridade qualquer e depois ficava por isso mesmo. Ele fez a campanha e só não participou dos eventos da campanha durante uma semana, porque dona Maria José teve que fazer uma cirurgia do olho, que só podia ser feita em Miami, e ele foi com ela a Miami... A.M.L.: S e n ã o m e e n g a n o , f o i exatamente no episódio dos cachorros, em Salvador, quando soltaram os cães da PM em cima da oposição.. J.A.R.: Foi no episódio dos cachorros, em Salvador. Mas houve um outro episódio, no Rio Grande do Norte, que talvez tenha sido o maior momento de mobilização na campanha. Eles foram para Natal fazer um comício e as rádios do Aluízio Alves, que estava cassado, começaram a anunciar o comício. O comandante militar local proibiu a rádio, proibiu o comício e disse que estava tudo proibido. O Henrique Eduardo, hoje deputado, filho do Aluízio, ligou para o Thales Ramalho, em Brasília. A verdade é que, naquele momento, o governo já estava dividido... O caso clássico de poder dividido é o da União Soviética, quando, em outubro de 17, o governo oficial controla algumas coisas, mas o governo revolucionário, que está começando a tomar o poder, já controla outras. Então, no momento da anticandidatura, interessava ao grupo dos militares ligado ao general Geisel dar um mínimo de garantias ao MDB, porque o projeto político do Geisel era o projeto Jornal da ABI


da abertura, com todas aquelas linhas sinuosas, mas era o projeto da abertura. Quando o Henrique Eduardo ligou para o Thales, o Thales falou com o general Cordeiro de Farias, que era muito ligado ao Geisel, e conseguiram que o general Orlando Geisel, que era muito duro mas era irmão do candidato, mandasse uma ordem. E as ordens do general Orlando Geisel eram para se obedecer primeiro e se pensar depois. E fizeram um grande comício, que eu não sei se transmitiram pelo rádio, mas aí também era querer demais... Mas teve muita repercussão em todo o nordeste e mostrou a força do MDB, tanto que foram ao colégio eleitoral. E o curioso é que o grupo autêntico, que tinha sido o iniciador da anticandidatura, acabou não votando... A.M.L.: Marcando o protesto da... J.A.R.: É... A.M.L.: Nesse período é que ele passa cada vez mais a defender causas coerentes com o que ele vinha defendendo em artigos. E isso também na campanha das diretas, que ele apóia e participa, com os seus artigos, com suas opiniões e com o envolvimento pessoal. Mas ele assume uma posição ainda mais destacada no processo de redemocratização, na Constituinte, quando ele vai fazer parte da comissão Afonso Arinos e passa a se empenhar totalmente na defesa do monopólio da Petrobrás e nessas questões dentro da Constituinte... J.A.R.: Eu não me lembro bem da participação dele na Comissão de Estudos Constitucionais, embora eu tenha sido muito assíduo nas reuniões, mas algumas reuniões eram abertas, outras acho que não eram. A.M.L.: Mas era bom até citar, que ele acaba sendo chamado por Tancredo para comandar a primeira mesa da entrevista coletiva do Tancredo... J.A.R.: Pela participação dele na campanha das diretas. Também tem outra coisa. Quando a emenda Dante de Oliveira foi derrotada, já havia, nas oposições, o projeto de disputa no colégio eleitoral. Já havia e não era só o dr. Tancredo Neves não, era Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso, José Serra, o pessoal do PMDB de São Paulo... A.M.L.: Até o Giocondo Dias, do PCB, fez uma manifestação de apoio ao sistema de colégio eleitoral, antes mesmo da derrota, chamando a atenção de que essa poderia ser a alternativa possível... J.A.R.: Claro, não tinha cabimento. O MDB tinha feito a anticandidatura em 73, contra o Geisel, em pleno AI-5, em 78, prestes a ser revogado o AI-5, lança o general Euler Bentes contra o Figueiredo no colégio eleitoral. Quando chega em 84, que tem o racha no PDS e dá para ganhar, eles dizem: “Ah, não, no colégio eleitoral nós não vamos disputar, nós damos de presente para o dr. Paulo Maluf...” Tinha que dizer que eram as diretas ou nada até 25 de abril, Especial - Barbosa Lima Sobrinho

dia da votação da emenda. Agora, antes disso, duas semanas pelo menos, alguns jornalistas que trabalhavam em São Paulo, comentaristas políticos, inclusive eu, fomos chamados para uma conversa no Palácio dos Bandeirantes, numa manhã de sábado. Eu não me lembro quais eram todos os que estavam lá, mas me lembro que estava lá o Clóvis Rossi, o João Russo, que era secretário de imprensa do Montoro, e eu, chamado pelo Roberto Gusmão, que era o secretário de governo do Montoro. Estavam com o Gusmão o Fernando Henrique, que era senador, e o Serra, que era secretário de planejamento do governo Montoro. O Fernando Henrique estava chegando de Brasília e nos disse que tinham fechado as contas e não havia chance de aprovar a emenda das diretas e que eles estavam preocupados com o que, na época, se chamava o Day After (tinha passado aquele filme de catástrofe, o Day After, sobre uma guerra nuclear, e eles falavam muito no Day After porque podia haver quebra-quebra em São Paulo...). Eles queriam que nós,

podia garantir que a entrevista sairia, não teria os famosos cortes que a televisão faz. Ele disse não. Aí o Serra pulou e disse: “Não, o Fernando é senador, ele não pode dizer que a batalha está perdida”. E nós concordamos que ele não podia dizer e nós, jornalistas, é que fomos dizer. Pois bem, antes mesmo de votada a emenda Dante de Oliveira, o dr. Barbosa já era a favor de que, caso não passasse a emenda da direita, ir ao Colégio Eleitoral com o dr. Tancredo, e apoiou, desde o início, com a imensa autoridade moral dele. E aí, dois ou três depois da eleição, ele aceitou presidir a primeira entrevista coletiva. Eu participei da organização disso com o Mauro Salles. Inicialmente parecia meio herética a idéia de fazer no plenário da Câmara, mas a idéia era exatamente dar, conferir, grande dignidade a um ato democrático. O presidente eleito por um processo antidemocrático, porque o processo democrático tinha sido negado pela ditadura, na sede da Câmara dos Deputados, onde tinha exercido o mandato de deputado, para ser interrogado

"Antes mesmo de votada a emenda Dante de Oliveira, o dr. Barbosa já era a favor de que, caso não passasse a emenda das diretas, ir ao Colégio Eleitoral com o dr. Tancredo. E apoiou, desde o início, com a imensa autoridade moral dele. E aí, logo depois da eleição, aceitou presidir a primeira entrevista coletiva. Eu participei da organização disso com o Mauro Salles. Inicialmente parecia meio herética a idéia de fazer no plenário da Câmara, mas a idéia era exatamente conferir grande dignidade a um ato democrático." jornalistas, começássemos a preparar a opinião pública, de modo a evitar um Day After. Eles diziam assim: “A luta não termina aí, a luta continua lá, no colégio eleitoral. ” No próprio dia da votação da emenda eu almocei em Brasília com o Fernando Lira, que era o primeiro-secretário da Câmara e um dos líderes da campanha das diretas. Na saída do almoço, o restaurante estava tão cheio que tinha fila no banheiro (a fila do pipi) e estavam na fila Fernando Lyra, do PMDB; Zé Eudes, do PT; Roberto Freire, que era do MDB, mas era do Partido Comunista, e tinha um deputado do PSB. Na conversa, o Fernando Lyra disse: “Olha aqui, a emenda vota hoje à noite. Amanhã nós lançamos nossa palavra de ordem. Vamos ao Colégio Eleitoral para eleger um presidente que vai convocar a Constituinte e acabar com a eleição indireta.” Então a coisa já estava assim... e a esse apelo do Fernando Henrique eu, por exemplo, respondi sugerindo que ele desse uma entrevista na TV Bandeirantes. Eu era chefe de redação na TV Bandeirantes,

livremente pela imprensa nacional e estrangeira, numa entrevista coletiva presidida pelo presidente da ABI. A.M.L.: É também já conhecido e ele mesmo - vamos até publicar a fala dele no Conselho, quando ele pede a autorização do impeachment - considera isso mais do que só a presença ou força moral dele, o aspecto dele, sendo presidente da ABI, representar a imprensa. J.A.R.: Ele, como presidente da ABI e também como pessoa individual, como cidadão, foi chamado para defender no plenário da Constituinte a emenda do monopólio estatal do petróleo. Então ele, sem deixar de ser o combatente que sempre foi, já tinha se transformado num símbolo... E como presidente da ABI evitava sempre tomar atitudes públicas de caráter eleitoral. Ele nunca deu uma declaração pública dizendo que votou no dr. Ulysses em 89. Votou no Brizola em 94, mas nunca declarou. Em caráter particular, depois das eleições, é que ele me disse que

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votou no Brizola e disse ao Brizola depois das eleições. A.M.L.: Do Ulysses eu até lembro dele ter me dito que era uma questão de coerência partidária. J.A.R.: Claro, ele tinha sido o vice do Ulysses... Mais do que o vice do Ulysses, ele podia nem ter sido vice, mas quem sugeriu o nome do dr. Ulysses foi ele. Então, como é que o dr. Ulysses é bom para ser anticandidato e na hora que é candidato nas diretas não é bom? Que história é essa? Então, a presença na Assembléia Nacional Constituinte foi uma coisa muito marcante, porque ele já estava com mais de noventa anos. Eu não me lembro, por exemplo, de ele ter gravado alguma mensagem eleitoral para o programa do Ulysses, porque ele achava que, como presidente da ABI, isso criaria... seria desrespeitoso com os associados da ABI que tivessem outro candidato. Ainda agora na última eleição de prefeito aqui no Rio, ele recusou convites para participar de certos atos eleitorais exatamente por isso. E eu estou ressalvando essas recusas porque, mesmo nas grandes questões de princípios, ele sempre fez questão de ter endosso da diretoria e do conselho da ABI. Ele, para assinar, para encabeçar o pedido de impeachment do Collor, o convite não foi dirigido ao presidente da ABI, o convite foi dirigido ao dr. Barbosa Lima Sobrinho, na casa dele, pelo dr. Ulysses Guimarães, falando em nome oito partidos políticos. Ele disse que estava inteiramente de acordo, mas que só assinaria se tivesse aprovação da diretoria e do conselho da ABI. E só assinou depois de ter esse apoio. Ainda agora, quando a OAB resolveu entrar com uma ação no Supremo contra a venda da Vale do Rio Doce, a ABI já tinha feito até um ato público contra a venda da Vale. Não precisava explicitar o apoio a este evento que era a ação da OAB. Ele fez questão de submeter à diretoria e de submeter ao conselho, e só depois da aprovação da diretoria e do conselho, por unanimidade, foi que ele assinou um ofício da OAB dizendo que apoiava essa iniciativa da Ordem. O episódio do impeachment, que foi uma coisa angustiante - pela primeira vez em muitos anos os jovens e estudantes foram para rua no movimento dos cara-pintadas para muitos foi a primeira oportunidade de praticarem um ato de generosidade, um ato de cidadania, num país que estava entorpecido por aquele delírio do esquema Collor. Então foi um encontro do dr. Barbosa, prestes a fazer cem anos, com a juventude. Os garotos ficaram apaixonados por ele... e ele naquela idade. Ele foi à tribuna da Câmara para fazer o discurso e ainda havia um tempo que tinha que ser compartilhado, tinha que ser dividido entre ele e o presidente da OAB. Ele encurtou o discurso para dar mais tempo ao presidente da OAB. Se agente vai ler o discurso dele hoje... é uma coisa que vai ficar na história, como o discurso de Gettysburg de Lincoln. Daqui a cinqüenta anos jovens vão saber de cor aquele discurso, vai ser um paradigma de vida política e de cidadania no Brasil.


COMO BARBOSA LIMA PEDE O APOIO DA ABI PARA IMPEACHMENT DO PRESIDENTE COLLOR

Transcrição do relatório da diretoria feito pelo presidente Barbosa Lima Sobrinho em 25/08/92 “É de meu dever comunicar ao Conselho os últimos acontecimentos em que eu tenho sido envolvido e que trazem realmente a responsabilidade de um pronunciamento da ABI. Devo dizer que no último sábado houve um convite para minha casa de diversas entidades, que nos esclarecessem quanto aos aspectos jurídicos do problema do impeachment. Estiveram em minha casa, no último sábado, altas figuras de juristas brasileiros, como seria o caso dos conselheiros Clóvis Ramalhete e Raimundo Faoro, que estiveram presentes como representantes diretos da ABI. Mário Martins foi convidado também, mas por diversos motivos não pôde comparecer. Mas estavam presentes realmente em nome do Conselho da ABI Clóvis Ramalhete e Raimundo Faoro e com eles compareceram também Miguel Seabra Fagundes, Evandro Lins e Silva, o presidente do Instituto dos Advogados do Brasil, Eduardo Seabra Fagundes (meu companheiro nas reuniões em Brasília em defesa dos direitos da pessoa humana) e compareceu também a essa reunião o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados, Marcelo Laverner, que tomou parte na reunião em que foram debatidos todos os problemas que podiam ter interesse direto, numa relação direta com o próprio problema do impeachment do presidente da República. Foi de maior utilidade realmente essa reunião com esse altos juristas, essas figuras eminentes que resolveram comunicar-nos que estavam elaborando em São Paulo um documento da Ordem dos Advogados para justificar exatamente a apresentação de um pedido de impeachment contra o presidente da República, um documento da elaborado por Miguel Reale Júnior e outras figuras importantes, Manuel Tomáz por exemplo, ex-presidente também da OAB. Nessa ocasião, eu achei que não podia estar ausente da elaboração desse documento a ABI e propus então que se incluísse nessa comissão os representantes da ABI, que seriam exatamente Clóvis Ramalhete e Raimundo Faoro. Um pedido que foi imediatamente aceito, de modo que, quando houver a elaboração desse documento, os dois terão a oportunidades de cooperar exatamente com o documento que vier de São Paulo. Esse foi o primeiro, a primeira providência para nos habilitar a encarar um problema de tanta gravidade como seria de fato o requerimento do impeachment contra o presidente da República. Mas houve, posteriormente a isso, um outro acontecimento mais importante que foi, segundafeira já, a visita de Ulysses Guimarães, que em nome dos partidos políticos veio me trazer o apelo para que a ABI cooperasse exatamente nesse movimento, que tinha a preocupação sobretudo de reunir figuras extra-partidárias, que embora fosse um apelo dos partidos, eles queriam se valer exatamente de representações extra-partidárias, que dessem a perceber que a sociedade civil também se incorporava ao movimento

que estava sendo proposto pelos partidos políticos. Faziam parte aliás desse convite do PMDB, Orestes Quércia; do PSDB, Fernando Henrique Cardoso; do PT, o próprio presidente do PT, Luís Inácio Lula da Silva; pelo PCdoB, o deputado Aldo Rabelo; pelo PST, Álvaro Dias, uma grande figura, também ex-governador do Paraná; pelo PSB, Jamil Haddad, representando Miguel Arraes e o Partido Socialista do Brasil e pelo PPS, Roberto Freire. Como se vê, uma representação de alto nível dos partidos políticos que vinham trazer também ao presidente da Diretoria da ABI o apelo para que ele participasse desse movimento que se ia estabelecer em Brasília em torno do requerimento do impeachment do atual presidente da República. Eu sempre declarei a todos eles que eu não poderia tomar uma atitude definitiva a respeito desse problema sem ouvir o Conselho Administrativo da ABI. Embora já tivesse uma autorização de vários conselheiros e de vários elementos daqui da ABI que me davam poderes para participar, de certa maneira, desses entendimentos preliminares. Mas eu achava indispensável realmente uma atitude de ratificação do Conselho em torno desse problema do impeachment do presidente da República. Depois da leitura do relatório, eu confesso que não tenho nenhum motivo para deixar de trazer ao Conselho exatamente esse pronunciamento dos partidos políticos e esse apelo que será ratificado pelo presidente da OAB, que fazia questão que a primeira assinatura fosse exatamente da ABI. Essa distinção da OAB me honrou imensamente, por se tratar de um problema de natureza mais jurídica do que propriamente de qualquer outra manifestação do pensamento, a primeira assinatura deveria ser do presidente da OAB. Mas ele próprio com delegação também dos partidos políticos entendiam que cabia essa distinção à ABI, pelo muito que a imprensa vinha fazendo em favor exatamente desse movimento, no sentido do impeachment do presidente da República. Não se pode ignorar o que foi a função da

imprensa em todo esse episódio, não só de todos os jornais que lideraram propriamente o movimento nesse sentido, como das revistas que atuaram de uma maneira corajosa, como que inaugurando no Brasil aqueles processos que são comuns na imprensa americana, em que órgãos de imprensa exercem uma função quase de auxílio policial ao esclarecimento dos fatos que estão em andamento.O papel da imprensa nesse episódio foi realmente fundamental, foi essencial e eu como jornalista, e creio que todos presentes, devo sentir enorme satisfação, um sentimento quase de orgulho pela participação que teve a imprensa no esclarecimento de todos esses fatos que estão hoje reunidos e comunicados ao público em geral no relatório apresentado pela Comissão Parlamentar de Inquérito. Esse relatório aliás é uma peça extraordinária, porque eu não tenho idéia de uma Comissão Parlamentar de Inquérito que tenha entrado tão longe no levantamento de todos os fatos, de todas as circunstâncias que podiam permitir um julgamento da opinião pública, no julgamento dos órgãos julgadores como têm que ser a Câmara dos Deputados, o Senado Federal e o próprio Supremo Tribunal Federal. E o que mais me impressionou foi exatamente a leitura desse documento feita pelo senador Maurício Corrêa e depois concluída pelo senador Lando. Ele terminou o parecer comovido e a emoção de que ele estava preso se comunicou a todos que ouviam com sentimentos de interesse pelas causas da pátria e ele recordou inclusive um pensamento de Getúlio Vargas, quando Getúlio Vargas dizia que é muito difícil fugir da verdade. E esse é o sentimento que eu também estou nesse momento, é muito difícil fugir da verdade, sobretudo porque o que se fez no levantamento da ação do presidente da República e na ação do PC Farias me levaram a considerar que estávamos diante de caso de irmãos xifópagos, tão unidos, tão presos um ao outro que até a separação dos dois constituiria uma operação de alto risco, e essa operação de alto risco não será necessária. Eu estou certo , porque os fatos acumulados esclarecem perfeitamente

"Eu não poderia tomar uma atitude definitiva a respeito desse problema sem ouvir o Conselho Administrativo da ABI. Embora tivesse uma autorização já de vários conselheiros e de vários elementos daqui da ABI. Mas eu acho indispensável realmente uma atitude de ratificação do Conselho em torno desse problema do impeachment do presidente da República."

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a opinião pública. Até mesmo com auxílio do próprio presidente da República que, no momento que se defendia num dos pronunciamentos pela televisão, disse que procurava de certa maneira se amparar com a organização do novo ministério e chegou a dizer que seus adversários tinham chegado ao cúmulo de dizer que ele não satisfazia as despesas de sua casa. Um frase típica do presidente. Nós podemos dizer que ele chegou ao cúmulo da desfaçatez em usar esse argumento, porque na verdade os cheques que vieram torrencialmente, numa quantidade imensa, provaram que todas as despesas da Casa da Dinda haviam sido feitas não pelo presidente, mas por PC Farias e seus fantasmas. Eu também creio que nunca no Brasil nós tivemos, em qualquer momento, um processo que tivesse que recorrer à presença dos fantasmas e esses fantasmas chegaram a acudir com 38 milhões de dólares, por exemplo, para a esposa do presidente. Chegaram a acudir para as despesas da ex-esposa do presidente, chegaram também a fazer as despesas dos familiares do presidente e, em relação ao próprio presidente, eles deram margem para que se pudesse concluir que se estava diante de um caso de enriquecimento ilícito, enriquecimento ilícito que envolve também a própria corrupção. Como é esse enriquecimento ilícito? Com cheques que pagavam pelo menos um automóvel de sua propriedade, e podia-se dizer que era uma peça insignificante; mas esses cheques também cobriram os milhões de dólares e resultaram exatamente no melhoramento do jardim da Casa da Dinda e na construção do aeroporto que ele queria para suas viagens, nos helicópteros; além disso, esses cheques também comprovaram que através desses expedientes, que através desses fantasmas, através de todas as pessoas, eles chegaram também a uma terceira manifestação de enriquecimento ilícito, que seria a compra de um terreno vizinho da Casa da Dinda. Três provas contundentes de enriquecimento ilícito. Não somente nós estamos diante de um processo de impeachment, que começando na Câmara vai se limitar aos aspectos políticos do caso. É o primeiro, a primeira fase exatamente do julgamento que se limita ao aspecto político, esse aspecto político não entra propriamente no pormenor das despesas, no pormenor da corrupção porque a Constituição se limita apenas a falar de um a maneira geral em probidade administrativa, mas a probidade administrativa envolve naturalmente tudo isso, como envolve também tudo isso o próprio decoro do presidente da República. De modo que, diante desses aspectos, não vi possibilidade de se fugir realmente a um processo de impeachment contra o presidente da República. Como não vejo a possibilidade também de uma manifestação da sociedade civil junto ao Supremo Tribunal Federal para que uma denúncia de seu procurador- geral da República faça chegar também ao Supremo Tribunal da República todos esJornal da ABI


ses processos que mostram exatamente que o Código Penal está presente e não apenas a Constituição da República. E isso é grave porque a responsabilidade criminal é aquela que resulta do Código Penal e a responsabilidade política é aquela que resulta da própria Constituição; um presidente que está incurso nos dois aspectos está incurso nas penalidades prescritas na Constituição (o impeachment, coordenado e criado pela oposição) e está também atingido por diversos preceitos do Código Penal, como o processo da formação de quadrilha, que é o mais restrito, mas, sobretudo, como o da corrupção passiva. Aqui nesse momento não podemos fugir a essa responsabilidade de cooperar com o processo de impeachment em nome do jornalismo brasileiro, em nome da imprensa de todo país e em nome da sociedade civil que nós também representamos. E o fato de serem escolhidos os dois órgãos apenas, a ABI e a OAB, faz com que o problema do impeachment se transforme num processo extra-partidário, mas num processo extrapartidário que terá ainda maior significação com o apoio dos partidos políticos que já se manifestaram e com o apoio dos partidos políticos que ainda vão se manifestar e, sobretudo, com a certeza de que estamos na mesma com o apoio também da socieda-

"De repente chega em minha casa meu filho acompanhado de dois netos, os dois vestidos de preto e os pais também, com essa insígnia desse sentimento de revolta, mas provocado pelos filhos... e os filhos estão apenas no curso secundário... " de civil através das manifestações que têm se realizado em todas as cidades do Brasil. Não apenas no Rio de Janeiro, como em São Paulo, como em Curitiba, como em Pernambuco, como no Espírito Santo, como em todos os estados do Brasil. A sociedade civil se vem manifestando através des-

sas manifestações de rua que estão também eloqüentes como suporte para o processo de impeachment. De modo que eu gostaria também de assinalar a presença da juventude, porque parecia que o Brasil estava adormecido, que o Brasil não estava tomando conhecimento dos problemas que se apresentavam na hora presente e de repente a mocidade é que acordou. Eu digo pelos acontecimentos que cada um de nós pode testemunhar, porque de repente chega em minha casa meu filho acompanhado de dois netos, os dois vestidos de preto e os pais também, com essa insígnia desse sentimento de revolta, mas provocado pelos filhos. Os filhos é que haviam tomado a liderança desse movimento. Os filhos estão apenas no curso secundário e não no curso superior. E quando eu vi na minha casa, juntamente com o presidente da OAB, os quatro representantes das entidades estudantis do Brasil, o representante da UNE, o representante das outras entidades do ensino secundário, eu tive a impressão de que nós estávamos nesse momento inspirados por eles, dirigidos por eles para tomar uma atitude em defesa do Brasil e contra a corrupção, porque o que está em causa exatamente é isso. Os partidos que se rebelarem contra isso serão partidos que terão incorrido no crime de corrupção, se-

rão chamados de partidos de corrupção, queiram ou não aceitar essa designação, mas o próprio público se incumbirá de chamá-los dessa forma, para que eles também verifiquem que não tinham outra atitude do que a atitude que nós no momento defendemos aqui, que é o combate à corrupção, porque sem o combate à corrupção não pode se pensar no progresso do país, no desenvolvimento, na correção, no domínio da ética, dessa ética que foi defendida de maneira tão vibrante e tão eloqüente por D. Luciano Mendes de Almeida, arcebispo de Mariana. É o que eu tenho que comunicar ao Conselho da ABI para que se manifeste nesse sentido e que venha dizer se o presidente tem de fato condições para representar o Conselho Administrativo da ABI ou se terá que recusar a essa missão ou que assinar individualmente e não com o apoio, a solidariedade, do Conselho Administrativo da ABI. E eu não sei se teria coragem de assinar pessoalmente, embora convicto como estou da necessidade desse apelo, eu não sei se teria coragem de assinar o processo do impeachment sem o apoio e sem a solidariedade do Conselho Administrativo da ABI. Muito obrigado a todos.

DA DESILUSÃO AO APRENDIZADO POLÍTICO: COMOAIMPRENSAPARTICIPADOPROCESSO Fernando Lattman-Weltman Recentemente, a cobertura jornalística de um novo escândalo envolvendo autoridades públicas - o endividamento brutal de estados, municípios e, por fim, da própria União, através de um esquema montado a partir de emissão de títulos públicos para pagamento de precatórios - evidenciou a atuação investigativa e de controle de uma série de agências do Estado brasileiro: o Congresso, a Polícia Federal, a Receita, os Tribunais de Contas, Assembléias Legislativas etc. Acima, ou ao lado, de todas estas instâncias oficiais situa-se a instituição de natureza privada porém de dimensão pública - que tem a prerrogativa maior, senão de direito sem dúvida de fato, de investigar e pressionar tanto os envolvidos quanto os inquiridores: a imprensa, ou num sentido mais amplo, a mídia. Não se trata de fenômeno novo, nem de exclusividade nacional. No entanto, de alguns anos para cá, notadamente após a reconstitucionalização e a volta das eleições diretas para o principal cargo público, o de presidente da República; a intervenção política e institucional dos meios de imprensa e comunicação vem ganhando uma maior visibilidade e, conseqüentemente também, ao que tudo indica, um grau maior de autoconsciência e explicitude da parte dos seus próprios agentes. Ou seja: os jornalistas brasileiros e os veículos que os empregam parecem se debruçar sobre os mandatários e responsáveis pela res Especial - Barbosa Lima Sobrinho

publica de forma cada vez mais desembaraçada, no exercício de um autêntico mandato auto-atribuído, e cuja melhor caracterização é o uso, hoje corriqueiro e sem maiores questionamentos, da expressão quarto poder. O momento histórico que melhor definiu este novo status quo de nossa imprensa em suas interações com o Estado (redesenhando assim os conteúdos positivos auto-atribuidos à identidade profissional e pública do jornalista brasileiro) foi, sem dúvida, a cobertura da chamada CPI do PC e do processo de impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, ao longo do ano de 1992. Após a inusitada, imprevisível e não esperada deposição legal e sem traumas do primeiro presidente eleito diretamente após o regime militar, a imprensa e a mídia brasileiras se deixaram embriagar - com, até certo ponto, boas doses de razão - por um clima de ufanismo e imodéstia assumindo, de bom grado, o papel de protagonistas na condução do processo, vangloriandose da ascensão a um novo patamar de qualidade jornalística (no qual aliás se comemorava o advento entre nós, afinal, de um “jornalismo investigativo”, digno dos modelos - como sempre - do “primeiro mundo” etc.). À parte os naturais exageros - fáceis de compreender diante das vicissitudes cotidianas do exercício do jornalismo em um país ainda afligido pelo analfabetismo e onde o consumo de jornais segue como hábito de uma pequena minoria ilustrada -, a euforia da imprensa se justificava pela real e decisiva intervenção de alguns dos

seus principais veículos, pela mobilização popular alcançada e pela resolução política da crise. O elemento especificamente institucional da intervenção pública dos meios privados de comunicação, ou seja, o modo como a imprensa e a mídia assumiram um papel frente às instituições

"A celebração da intervenção da imprensa parece ter ofuscado lados políticos e ideológicos da questão... a forma como o presidente chegou ao poder com o beneplácito da imprensa foi relegada a um conveniente e constrangedor esquecimento." do Estado, frente aos Poderes constituídos, como sua fiscalizadora e colaboradora, tem nesta conjuntura, de fato, uma espécie de momento inaugural ao menos de um ponto de vista simbólico. Como se pôde perceber, logo no ano seguinte, com a cobertura da “CPI do Orçamento”, e como mais uma vez estamos vendo agora, com a novela dos precatórios,

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o jornalismo brasileiro parece ter incorporado este encargo de vez e sem maiores embaraços. O aspecto efetivamente negativo daquela embriaguez, contudo, foi que a celebração da intervenção institucional da imprensa parece ter ofuscado os lados mais especificamente políticos e ideológicos da questão. Se, de fato, o cerco ao presidente envolvido num esquema de corrupção presidente que, aliás, não se encontrava comprometido com nenhum grande partido político, com nenhuma grande coalizão de poder, afora sua corte pessoal - pôde se alçar a um nível suprapartidário, de verdadeira cruzada nacional, por outro lado, a forma como este mesmo presidente chegou ao poder, também com o beneplácito da mesma imprensa, foi relegada a um conveniente e constrangedor esquecimento. À parte as óbvias circunstâncias constrangedoras que passavam a cercar o presidente e a incomodar a todos que, de um modo ou de outro, por ele se deixaram levar ou que de seu sucesso pretenderam também tirar proveito; o esquecimento destas outras dimensões da intervenção midiática, e de seu papel na criação e vitória do “fenômeno Collor”, se deve, a rigor, a razões de ordem mais perene e estrutural. E que, evidentemente, se encontram atuantes até hoje. Na eleição de Collor em 1989 os compromissos políticos dos diversos veículos de imprensa podem nos ajudar a compreender, por exemplo, a razão pela qual o então governador de Alagoas foi


incensado pela mídia nos anos que precederam à campanha de 89 (ajudandoo decisivamente na construção do mito do “caçador de marajás” ) e, logo em seguida, literalmente desprezado nos primeiros meses da campanha, enquanto candidato de um partido inexpressivo. Até que o uso do horário gratuito da televisão e as indefinições no espectro partidário mais à direita e ao centro permitiram a Collor correr por fora e se transformar na única alternativa à possível vitória da esquerda. Estes compromissos diziam (e dizem) respeito aos cálculos políticos mais ou menos circunstanciais que os órgãos de comunicação, assim como toda a elite, fazem em torno de candidaturas e alternativas políticas, visando seus interesses e objetivos particulares, de curto, médio ou longo prazo. E onde todos os fatores de cálculo se inserem de modo cada vez mais instrumental, sem maiores identificações ou lealdades partidárias. Naquela conjuntura, a análise da cobertura jornalística tornou claro o modo com que o “caçador de marajás” fora utilizado para a crítica ao governo de José Sarney e para a definição de um modelo administrativo que a mídia, de maneira geral, julgava mais adequado para o momento (utilização que, aliás, foi de grande valia para o próprio Collor). Quando, porém, inicia-se a campanha, nos primeiros meses de 1989, a sua candidatura não desperta grande entusiasmo pois que, dadas as pesquisas de opinião (inclusive com a dianteira de Brizola e Lula), os cálculos políticos mais à direita se faziam em torno dos grandes partidos e dos nomes mais palatáveis, dentro de uma lógica rigorosamente tradicional, em torno das “máquinas” e dos velhos recursos eleitorais do clientelismo. De um lado, portanto, a intervenção especificamente política da imprensa, em sua miopia - que, de resto, é freqüentemente inerente aos cálculos de qualquer ator político -, teria ajudado na construção de uma determinada imagem que, possivelmente a despeito da própria imprensa, serviu exemplarmente a Collor. De outro lado, esta mesma intervenção levou-a a desprezar inicialmente e depois a assumir, não sem um mínimo de constrangimento, a candidatura do “fenômeno” - que, como disse, correndo por fora, impôs-se como única alternativa para a direita. O desenvolvimento contemporâneo da indústria

"...falar dos comprometimentos políticos e ideológicos da cobertura jornalística constituem um verdadeiro tabu da imprensa brasileira."

de informação brasileira, hoje predominantemente empresarial - e não mais partidária ou facciosa como ainda há 40 ou 50 anos -, faz com que esses cálculos políticos, em sua circunstancialidade, se insiram, porém, no quadro de uma intervenção ideológica muito mais consistente e duradoura. Intervenção que se organiza e obtém sua coerência em função - e em reação - às novas coordenadas de sociabilidade estabelecidas durante o processo de reconstitucionalização após o regime militar (e cujo símbolo máximo é a nova Constituição, alvo principal da articulação

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ideológica das elites e, dentro delas, dos mídia). Em linhas gerais, como é notório, esta intervenção ideológica se faz na defesa de princípios neoliberais que advogam a retirada do Estado da economia, a supressão da regulação estatal das relações entre o capital e o trabalho, a privatização dos bens e recursos públicos e a generalização da lógica competitiva de mercado para a organização e legitimidade das práticas sociais, políticas e econômicas. Na verdade, falar dos comprometimentos especificamente políticos e ideológicos da cobertura jornalística constituem um verdadeiro tabu da imprensa brasileira, num fenômeno que, se não é exclusivamente nosso, possui aqui características muito especiais. De um lado, a inegável desenvoltura com que os meios de comunicação se esgrimem na defesa desta verdadeira doutrina, e de sua aplicação, se insere num movimento global - que, como de hábito, repercute aqui um pouco mais tarde do que nos seus principais centros irradiadores marcado pela falência do projeto soviético; pela crise, tanto econômica quanto ideológica do welfare state, tal como historicamente desenvolvido em algumas das mais ricas economias capitalistas do mundo; e pelo crescimento dos chamados “tigres asiáticos”, onde o capitalismo teve recentemente um desenvolvimento espetacular e sui generis (devido a trajetórias históricas e culturais totalmente distintas da nossa e obtido até sem maiores “estorvos” de caráter político-democrático). De outro lado, esta (re)articulação ideológica se faz com um aprendizado específico acerca das novas condições de confronto político e eleitoral no Brasil, onde os próprios órgãos de imprensa passaram a se constituir - vide Collor - em fatores de decisivo peso estratégico. O tabu se impõe, portanto, pela necessidade de escamotear tanto esta intervenção política direta o que poderia dar margens a contestação das condições totalmente desiguais, antidemocráticas, impunes e irresponsáveis (vide Collor) com que se manipula a agenda e as imagens públicas - quanto a mais abrangente e sistemática intervenção ideológica. Jornal da ABI


Que, como é de praxe em se tratando de puro e simples doutrinarismo, procura sempre revestir-se de uma aura de objetividade, de cientificidade e da autoridade das verdades indiscutíveis (com a consagração, inclusive, dos luminares, na ciência ou na política, que nos trazem a sua “revelação”). Para que se possa alterar um pouco este estado de coisas,

reduzindo-se o risco de que tenhamos de nos ver às voltas com outra criatura indesejável saída da fábrica anárquica da mídia, seria importante que as atuais discussões sobre o assunto deixassem um pouco de lado as necessárias - porém recorrentes e insuficientes - análises éticas e/ou tecnológicas da matéria e que encarássemos as questões

especificamente políticas e econômicas do setor. Como em tudo o mais neste país, seria interessante que deixássemos de lado um pouco as utopias moralistas e as fantasmagorias pseudo-científicas e tecnocráticas e voltássemos a fazer política propriamente dita, discutindo as implicações concretas da atual configuração de poder no campo da

mídia. Um retrato aliás irretocável dos limites e da natureza de nossa democracia real. Fernando Lattman-Weltman, pesquisador e autor do CPDOC/FGV, junto com José Alan Dias Carneiro e Plínio de Abreu Ramos, de A Imprensa Faz e Desfaz um Presidente (1994, Rio de Janeiro, Nova Fronteira).

DE SARNEY A FHC, OS CAMINHOS DA POLÍTICA DE COMUNICAÇÃO NO BRASIL Estão valendo muito mais os conceitos mercadológicos do que os interesses sociais nas rádios e tvs Graça Caldas Com a reabertura das concessões do serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens (rádio e televisão), reacende na sociedade brasileira a expectativa de democratização dos meios de comunicação de massa. Será, no entanto, que as novas formas de outorgas, agora submetidas às licitações públicas, com “critérios transparentes”, garantidos pelo Ministério das Comunicações do governo FHC, vêm realmente de encontro aos anseios populares de partilhar a propriedade dos meios de comunicação de massa (MCM) e a produção da informação com os setores tradicionais da área? Afinal, a informação é ou não um bem público? O direito à informação faz ou não parte das sociedades ditas democráticas? Embora as emissoras de rádio e televisão sejam oficialmente concessões do governo, mais parecem propriedades particulares com proveitos nitidamente mercadológicos, em detrimento do interesse social. A confusão entre o bem público e privado, descrita na Teoria da “coisa nossa” de Oliveiros Ferreira (1), infelizmente ainda permanece presente na sociedade moderna. Historicamente, a política de concessões de emissoras de rádio e televisão esteve arraigada a interesses de grupos privilegiados. A utilização dos meios de comunicação de massa como prática de manipulação do poder tem sido uma constante na sociedade brasileira. Desde a instauração do Estado Novo de Getúlio Vargas, (1937-1945), os critérios de concessões de emissoras de rádio eram eminentemente políticos. Não por acaso representavam a voz do poder. Consciente da importância estratégica do rádio para levar a cabo seu plano de governo, Vargas incentivou o aumento de emissoras, ao mesmo tempo em que instituiu decretos e portarias atribuindo-se poderes totais de controle da radiodifusão em seu primeiro período de governo (1930-1937). A comunicação de massa era controlada e vigiada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, o famoso DIP, cujas semelhanças com o Conselho Nacional de Cultura de Joseph Goebbels, o ministro de Informação e Propaganda do nazismo de Hitler, na Alemanha (1933-1945), não eram Especial - Barbosa Lima Sobrinho

meras coincidências. Desde então o rádio vem sendo usado como instrumento de poder político e econômico de grupos restritos. Com o advento da televisão, nos anos 50, a história se repete. Até o início dos anos 60 não havia uma política clara de comunicação no país. A regulamentação do Código Brasileiro de Telecomunicações em 1962, com a prerrogativa de concessão exclusiva do presidente da República, possibilitou que a mídia eletrônica continuasse sendo usada como moeda de troca dos interesses políticos e de representantes da elite.

"No Brasil urbano, o clientelismo se atualiza e se amplia com uma moeda mais forte: a mídia eletrônica." A legislação autoritária permitiu que o governo militar instalado em 1964 promovesse o desenvolvimento tecnológico nacional através da expansão das telecomunicações, área considerada estratégica para o controle político do país. Ao mesmo tempo, facultou a outorga de emissoras de rádio e de televisão aos amigos do sistema. Com isso, os proprietários da mídia eram invariavelmente empresários vinculados ao governo ou políticos acostumados à prática de clientelismo. Não por acaso as emissoras de rádio e de televisão são consideradas as principais armas eleitorais de um político. A cultura clientelista do país tem sua origem no Brasil colonial. Até os anos 60, a moeda de troca era o voto, como Nunes Leal (1947) descreve em seu trabalho Coronelismo, Enxada e Voto (2). Em sua obra, referência obrigatória, o autor retrata as relações de poder do Brasil rural relacionando o latifúndio da terra com o voto de cabresto, prática ainda comum em algumas regiões do país. N o B r a s i l urbano, o clientelismo se atualiza e se amplia com uma moeda mais forte: a mídia eletrônica. No período ditatorial do governo militar, sob as benesses do

Estado, formaram-se e consolidaramse os grandes conglomerados da mídia eletrônica. POLÍTICAS DEMOCRÁTICAS No final dos anos 70, crescem as reivindicações com vistas à redemocratização do país. Esses movimentos têm seu ponto alto com o surgimento do novo sindicalismo brasileiro, a partir das greves dos metalúrgicos do ABC paulista. Sob a liderança da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), intensifica-se também a mobilização dos jornalistas que pedem uma mudança substancial na política de concessões da mídia eletrônica. Em 1984 é criada a Frente Nacional por Políticas Democráticas de Comunicação aglutinando jornalistas, sindicalistas, parlamentares e outros segmentos da sociedade comprometidos com a causa da democracia. Com a instalação do governo Sarney (1985-1989), autodenominado de Nova República, crescem as esperanças por mudanças substanciais nas relações de poder na sociedade como um todo. Com relação à democratização dos meios de comunicação de massa, as expectativas não eram diferentes. Apesar da frustração popular com a morte de Tancredo Neves e da posse de seu vice, José Sarney, era grande o ânimo por transformações sociais depois de duas décadas de ditadura militar. No final dos anos 80, particularmente em 87 e 88, a questão da política nacional de comunicação é finalmente colocada em xeque. O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista resolve enfrentar o governo e tenta furar o bloqueio das concessões. Formaliza, no Ministério das Comunicações, um pedido oficial de outorga de rádio. Todos os requisitos técnicos são preenchidos mas a outorga não sai, sob a alegação de que o espectro de freqüência da região encontra-se saturado. A proposta dos metalúrgicos evidenciava a percepção dos trabalhadores de que não era mais possível limitar a sua voz aos folhetos e megafones dos portões das fábricas. A programação da rádio dos metalúrgicos apontava para uma revisão e releitura da história do Brasil. As notícias seriam produzidas sob a ótica e para os

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trabalhadores, em contraposição às matérias veiculadas nos principais telejornais do país. CPI E CONSTITUINTE Com o crescente movimento social em torno da democratização dos MCM, é instalada em agosto de 87, a pedido do senador Fábio Lucena (PMDB/AM), a CPI da Comunicação para apurar eventuais irregularidades no processo de concessões. Trata-se da primeira oportunidade para a averiguação dos escusos negócios da comunicação no

"Dos 513 deputados federais, 104 são sócios ou proprietários de emissoras de rádio ou televisão. Dos 81 senadores, 25...e são 10 os grupos familiares que dominam as concessões da radiodifusão no Brasil." país. Entretanto, desde sua instalação até seu encerramento, um ano depois, exatamente em agosto de 88, a CPI revelase uma farsa. O privilégio do primeiro depoimento ao representante oficial do governo, o secretário geral do Ministério das Comunicações, Rômulo Furtado, apesar de várias tentativas de adiar seu depoimento, evidencia o caráter dos trabalhos. O presidente da CPI, senador Marcondes Gadelha (PFL/PB), contribuiu com seus apartes e advertências aos que ousavam interpelar o secretário, para que o representante do governo fosse devidamente poupado. Além disso, o despreparo da maioria dos parlamentares, cujas perguntas eram baseadas em comentários do tipo “fala-se, comenta-se”,


Durante o governo militar, de 1964 a 1984 (20 anos), esse número subiu para 1.240. Já na administração Sarney, de 1985 a 1988 (quatro anos), as outorgas indicam um crescimento vertiginoso para 1.028 emissoras. Os dados são oficiais. (Ver figuras 1 e 2) O quadro das concessões dos meios de comunicação de massa evidencia a concentração do poder da informação nas mãos de poucos grupos familiares e de parlamentares. Dos 513 deputados federais, 104 são sócios ou proprietários de rádio e TV. Dos 81 senadores, 25. Além disso, como mostra o levantamento realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo (4), em setembro de 1996, 40% das emissoras de rádio e 27% das de televisão têm políticos como sócios. Entre os principais políticos (ou seus familiares) vinculados às propriedades de emissoras de rádio e televisão, destacam-se os expresidentes José Sarney e Fernando Collor. Entre os ex-ministros encontramse Aluízio Alves (PMDB/RN), José Eduardo Andrade Vieira (PTB/PR) e Antônio Carlos Magalhães (PFL/BA). Entre os ex-governadores constam João Alves Filho (PFL/SE), Carlos Santos (PP/ PA), Cícero Lucena (PMDB/PB), Geraldo Bulhões (PSC/AL), José Ribamar Fiquene (PFL/MA), Orestes Quércia (PMDB/SP), José Agripino Maia (PMDB/PA), Jader Barbalho (PMDB/PA) e Edison Lobão (PFL/MA). Além dos tradicionais grupos de familiares e políticos vinculados ao sistema, a Igreja é a única instituição brasileira a deter concessões de rádio e televisão. A Igreja Católica dispõe de quase duas centenas de emissoras de rádio espalhadas pelo país. Recentemente, associou-se ao empresário católico João Monteiro Filho, da Renovação Carismática, para criar a Rede Vida de Televisão. O Império da fé se expande para fazer frente ao crescimento da Igreja Universal Reino de Deus e sua polêmica aquisição da TV Record, sob o comando do bispo Edir Macedo. A importância que a Igreja Universal Reino de Deus atribui aos meios de comunicação de massa pode ser atestada por sua mais recente investida na mídia eletrônica. Está comprando a TV Itapoan (SBT) e a Rádio Sociedade da Bahia, consideradas as mais tradicionais do Estado. As emissoras integram o Sistema Nordeste de Comunicação. O mapeamento da mídia eletrônica mostra que são dez os grupos familiares que dominam as concessões das emissoras da radiodifusão no Brasil. Em primeiro lugar encontra-se a família Marinho (Rede Globo), que detém 17 concessões de televisão e 20 de rádio. A família Sirotsky (RBS) fica em segundo lugar, com 14 emissoras de TV e 21 de rádio, e o terceiro lugar é ocupado pela família Saad (Rede Bandeirantes), com 9 concessões de TV e 21 de rádio. A família Abravanel (SBTgrupo Sílvio Santos) vem em seguida com 9 emissoras de TV. A família Câmara (Grupo Câmara) detém 7 concessões de TV e 13 de rádio. A família Bloch (Grupo Manchete) tem 5 concessões de TV e 6 de rádio. A família Daou (TV Amazonas) é proprietária de 5 canais de

TV e 4 de rádio. A família Zahran (Grupo Zahran), conta com 4 canais de TV e 2 de rádio. Já a família Jereissati (Grupo Verdes Mares) é proprietária de uma emissora de TV e 5 de radio. O Grupo Condomínio Associados, por sua vez, detém 3 concessões de TV e 9 de rádio. Embora a distribuição dessas 74 emissoras de televisão se dê entre as dez, cinco (famílias Sirotsky, Câmara, Jereissati, Zahran e Daou) são afiliadas da Rede Globo, o que confere à família Marinho o monopólio das transmissões e das audiências. Com as afiliadas, amplia mais seu domínio e passa a operar com outras 31 repetidoras para distribuir seu sinal em todo o país. MÃOS À OBRA, BRASIL? O slogan do programa de governo de FHC em sua campanha eleitoral em 1994 já indicava claramente o rumo que tomaria

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Figura 1 - O número total de concessões de radiodifusão no período anterior ao golpe militar de 1964, durante os governos militares e durante o governo Sarney.

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sem provas documentais concretas, também colaborou para o encerramento abrupto da CPI. Nem mesmo as denúncias pontuais da deputada Cristina Tavares (PMDB/PE), sobre favorecimento de concessões, foram objeto de investigação. A CPI não deu em nada. O segundo grande momento para a alteração na regra do jogo da política de concessões da mídia eletrônica no Brasil reside na instalação da Assembléia Nacional Constituinte, em fevereiro de 1987. Era a oportunidade que se esperava para introduzir mudanças substanciais no capítulo V da Comunicação Social na nova Constituição. Mais uma vez poucos avanços foram conquistados. Verificou-se, porém, o nítido conflito de interesses entre os proprietários dos meios e os profissionais da área. Nos depoimentos da Subcomissão de C&T e Comunicação na Constituinte, observou-se as diferenças marcantes entre os discursos dos representantes das entidades patronais de rádio, televisão, jornal e revista - que freqüentemente empunham a bandeira da liberdade de imprensa-, e as propostas dos representantes das entidades dos trabalhadores dos meios de comunicação de massa. Estes sim, reivindicavam mudanças radicais na legislação da área. Enquanto os proprietários dos MCM faziam claramente a defesa da livre iniciativa do mercado e negavam a existência de monopólios no setor, os trabalhadores da mídia colocavam a relevância do aprofundamento da discussão sobre a democratização do acesso à propriedade dos meios. O ministro das Comunicações do governo Sarney, Antônio Carlos Magalhães, a quem se atribui a frase “Quem tem televisão, rádio e jornal está sempre no poder”(3), foi um dos depoentes mais incisivos da CPI. Além de ameaçar parlamentares com dossiês secretos que não chegou a apresentar, apesar do pedido de seus opositores, defendeu a manutenção do modelo do qual é um dos beneficiários diretos. Até mesmo a proposta de criação do Conselho Nacional de Comunicação Social, que originalmente previa a atribuição de poderes deliberativos a seus membros, só passou depois de muita discussão e, assim mesmo, reduzindo sua ação a um caráter meramente consultivo. Regulamentado em 1992, o Conselho, órgão auxiliar do Congresso Nacional, ainda não foi sequer instalado. DERRAME DE CONCESSÕES Enquanto se discutia na Constituinte mudanças nas formas de concessões, na prática o discurso era outro e o coronelismo eletrônico assumia a sua real face. Nos bastidores, os representantes do presidente José Sarney negociavam a prorrogação de seu mandado por mais um ano em troca de novas concessões de rádio e televisão. O salto das concessões do governo Sarney pode ser observado pela comparação das estatísticas. De 1922 a 1963 (41 anos) foram outorgadas 807 emissoras de rádio AM, FM e TV em VHF.

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Figura 2 - O número total de concessões de canais de televisão, desde o início de seu funcionamento em 1950 até 1980. Segundo o crescimento do período 1950-1980, conforme o ajuste linear mostrado, seriam projetadas cerca de 170 concessões para 1995 e não as 253 registradas ao final de 1994 (dados: Ministério das Comunicações). A diferença é claramente devida ao salto verificado no governo Sarney (1985-1988, em destaque).

as telecomunicações no país. A principal preocupação do candidato era flexibilizar o monopólio das comunicações, o que de fato ocorreu. A privatização do sistema de telecomunicações, que tem por objetivo melhorar o fluxo de informações, na verdade, está inserida na lógica do governo de FHC, que entende o setor como “peça fundamental no desenvolvimento da economia e da própria sociedade”. Não havia em seu programa de governo qualquer preocupação explícita com a democratização do acesso à propriedade dos meios e da produção da informação. Apesar disso, o decreto assinado por Fernando Henrique Cardoso e publicado no Diário Oficial da União de 26 de dezembro de 1996, estabelece que todas as concessões de rádio e televisão deveriam ser submetidas a licitações públicas. A proposta de FHC acabar definitivamente com as “doações” das concessões (e a utilização de uma das moedas de troca mais valorizadas no meio político, a mídia eletrônica), contribui para a geração de novas esperanças de democratização dos meios de comunicação de massa. Planejando operar um verdadeiro “terremoto”(5) nas comunicações, o ministro das Comunicações do governo FHC, Sérgio Motta, anunciou em grande tom as novas regras . Impedir os políticos em exercício de mandato eletivo, ou pessoas em cargo ou função pública, de participarem da direção de empresas de radiodifusão foi uma das novas normas recebidas com entusiasmo pela opinião pública. A produção cultural e noticiosa regional e a obrigatoriedade dos sócios residirem no local de instalação da emissora são outros dos critérios aplaudidos pelos que lutam pela redemocratização dos meios de comunicação de massa. Entretanto, quando a nova legislação explicita que as notas pelos critérios técnicos e o preço a ser pago - leia-se quem pagar mais - serão determinantes para a aquisição dos serviços, fica a impressão de que o fator econômico continua predominando sobre o cultural e que a democratização dos MCM ainda se constitui numa utopia. A disponibilidade para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens é de 1.400 canais. Como existem mais de 2 mil pedidos de licitação arquivados no ministério, acredita-se que, inicialmente, sejam estes os pedidos atendidos. O primeiro lote com 60 editais autorizando 122 concessões em 118 municípios de 25 estados foi publicado em 19 de fevereiro. Uma segunda rodada, com 128 concessões para 125 municípios foi divulgada no dia 25 de março último. Com o término das “doações” e o começo da venda das concessões, o governo espera arrecadar, com os dois lotes, pelo menos R$ 9 milhões aos cofres públicos. Se no passado recente as concessões eram consideradas moedas de troca de favores políticos, hoje as novas regras apontam para o uso das concessões como business. Resta saber, a partir dos julgamentos das propostas (previstos para junho deste ano), se haverá de fato uma Jornal da ABI


modificação significativa no perfil da propriedade e na distribuição de rádio e televisão no país. Se novas opções de canais noticiosos serão oferecidas à opinião pública, é o que veremos no futuro próximo. De qualquer forma, a real democratização do acesso deverá ocorrer mais pela via tecnológica, com a oferta de inúmeros canais alternativos de informação, como as TVs segmentadas e as rádios e TVs comunitárias, do que pela via política. Dessa forma, a audiência até então monopolizada pela Rede Globo (70%) deverá, também, ser pulverizada entre os múltiplos canais que surgirão. A informação deixará de ser dominada por poucos. Mantém-se assim a esperança de que a versão não seja mais importante que os fatos.

Marca dos 100 anos

A VIDA DE BARBOSA... André Motta Lima: Bem, para a gente poder encerrar, era bom realçar o aspecto do cruzamento de informações porque, além do livro do Barbosa você está pesquisando Getúlio e Tancredo, também para virar livro. Por falar nisso, qual é o nome do livro?

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS: (1) FERREIRA, Oliveiros. - A Teoria da “Coisa Nossa” ou A Visão do Público como Negócio Particular. 1986, São Paulo, Edições GRD. (2) LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. 1976, 3º edição do original de 1947, São Paulo, Editora Alfa Ômega. (3) MAGALHÃES, Antônio Carlos, citado por Bob Fernandes. In ACM dá concessões de rádio a seus “amigos” na Bahia. Folha de S. Paulo, 15/11/1988, pág. A-6. (4) OLIVEIRA, Ribamar. In Concessão de rádio e TV vai exigir licitação. O Estado de S. Paulo. Editoria de Política, 26/12/1966, pág. A-4. (5) CALDAS, Graça. - O Latifúndio do ar (Mídia e Poder na Nova República). 1995, ECA/USP. Tese de doutorado, pág. 129. Graça Caldas, jornalista, pesquisadora do Labjor/Unicamp e professora da Puccamp e do Instituto Metodista de Ensino Superior (IMS).

PARA SABER MAIS CAPARELLI, Sérgio. - Televisão e capitalismo no Brasil. 1982, Porto Alegre, L&PM. CRUZ, Dulce Márcia. - Televisão e negócio-A RBS em Santa Catarina. 1966, Florianópolis, Ed. da UFSC. HERZ, Daniel. - A deterioração das políticas de comunicação no governo FHC: a acentuação do arbítrio, da oligopolização e da exclusão. Texto apresentado no GT 26 - Políticas de Comunicação, na reunião da Intercom. 1996, Londrina. MELO, José Marques de (Org.). Populismo e Comunicação. 1981, São Paulo, Ed. Cortez.. PEROSA, Lilian Maria F. de Lima. - A hora do clique: análise do programa de rádio Voz do Brasil da Ve l h a República. 1995, Annablume:ECA/USP. Especial - Barbosa Lima Sobrinho

José Augusto Ribeiro: O nome eu sugeri, porque quem tem que dar a decisão final sobre nome de livro é a editora, porque a editora é quem entende disso e o autor não tem o direito de estragar um livro com título bobo. Então, eu sugeri, parece que a editora concorda, não sei se por delicadeza ou se por concordância mesmo: “Barbosa Lima Sobrinho, com B de Brasil”.

documentado em arquivos secretos e inacessíveis, documentado em livros... É só ler direito que a gente encontra as coisas lá. Então, necessariamente, esse livro do Getúlio ainda me exige muita pesquisa, é uma coisa talvez para trabalhar, digamos... Esse do dr. Barbosa é uma questão agora de meses. O do dr. Tancredo acho que leva pelo menos mais um ano, embora eu esteja fazendo com uma parceria privilegiada, que é com o Mauro Salles. Nós trabalhamos juntos na campanha do dr. Tancredo, ele era um assessor, ao mesmo tempo político e para a área de comunicação, e eu era um sub-assessor para a área de imprensa. Um fenômeno curioso era acharem que nós vivíamos às turras, quando na verdade nós nos entendíamos perfeitamente, tanto que houve uma grande decepção quando não houve nenhuma briga entre nós. Mas, então, eu vi algumas coisas da campanha. O Mauro viu muito mais do que eu, e o Mauro já tinha trabalhado com o dr. Tancredo como secretário do Conselho de Ministros, além de uma amizade de família,

"Com a pesquisa da obra histórica do dr. Barbosa eu passei a conhecer um Brasil que gostaria de ter conhecido antes, um Brasil que não é ensinado nas escolas... e isso me tornou mais ainda um nacionalista apaixonado."

A.M.L.: E a previsão para sair, quando é? J.A.R.: Este ano. A.M.L.: Por que não foi na data dos 100 anos? Depende de muita coisa ainda para pesquisar? J.A.R.: Depende, porque a cada dia surgem coisas novas. A.M.L.: Nesse critério de pesquisa, ao lado da pesquisa do Barbosa, você tem feito uma pesquisa para uma biografia de Tancredo Neves e um trabalho também de levantamento de Getúlio. E essas coisas, evidentemente, cruzam porque são contemporâneas ao século do dr. Barbosa. J.A.R.: Claro, muita coisa que eu tinha pesquisado a vinte anos sobre o Getúlio são úteis à biografia do dr. Barbosa. A.M.L.: São livros que vão sair antes ou depois, que dizer, por que foi o do Barbosa que saiu primeiro? Porque estava próximo da data dos cem anos? J.A.R.: Se eu estou deixando o Getúlio para o fim não é porque eu coloque o Getúlio em terceiro lugar na ordem das minhas admirações. É porque, como o dr. Barbosa teve a ventura de ser mais compreendido, de ser compreendido e aceito ainda em vida, não há muito, quer dizer, não há nenhum momento em que eu tenha que defender o dr. Barbosa. Já num trabalho sobre o Getúlio, tem que ser um trabalho muito maior porque o Getúlio foi vítima de uma falsificação histórica - é produto da paixão, de um lado, e do preconceito e da preguiça, de outro. É uma coisa de não querer mexer com que o que está documentado. E não é

porque o Mauro é filho do dr. Apolônio Salles, que foi colega de ministério do dr. Tancredo no Governo Getúlio Vargas e a família se freqüentava. Então, vamos dizer, há momentos da vida do dr. Tancredo que eu talvez tenha acompanhado um pouco mais do que o Mauro. Foi quando ele foi governador de Minas, eu estava na televisão e pelo menos duas vezes por mês eu ia a Belo Horizonte, porque Belo Horizonte era um dos pólos da vida política no Brasil. O Mauro, nesse período, tinha contatos mais de família, mais sociais, quer dizer, o Mauro não estava fazendo jornalismo, não cobriu o governo Tancredo Neves como eu cobri. Ele não cobriu como jornalista o período em que o dr. Tancredo, senador, criou o Partido Popular. Eu acho, que juntando as duas contribuições, ele com dois terços e eu com um terço, a gente tem um conjunto de pesquisas que vai permitir fazer uma boa biografia, mas também é uma coisa muito mais demorada, porque é surpreendente o que eu venho descobrindo. Eu fui, por exemplo, consultar o arquivo histórico do Itamaraty, no caso do dr.

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Barbosa não houve necessidade disso. Documentos do tempo que o dr. Tancredo era primeiro-ministro, documentos secretos que já foram liberados porque se passaram trinta anos. Então, eu pedi xerox de tudo que era documento secreto e confidencial. Depois o trabalho de ler tudo isso, anotar, juntar uma coisa com outra, conferir os documentos secretos com o que saia no noticiário, as notas taquigráficas das reuniões do Conselho de Ministros... Só o período do parlamentarismo daria um livro. No caso do dr. Barbosa, só o período dele de governador de Pernambuco daria um livro. Só o período dele de presidente do IAA daria um livro. A.M.L.: No campo das descobertas, quando a gente estava junto fazendo a pesquisa para o documentário da TVE, para o roteiro, eu tive, numa série de momentos, a sensação, ao fazer a revisão de cem anos de história do Barbosa e da história da ABI, uma sensação de estar percorrendo e me cobrando um nível de participação política, por ver na ação política do dr. Barbosa uma participação política constante e permanente. A gente se situa nos fatos históricos e se localiza em tudo isso. Para encerrar, qual é a sua sensação ao fazer essa biografia, o que ela mexe e o que mais alterou em você ao acompanhar a trajetória de cem anos de vida de Barbosa? J.A.R.: Bom, eu conheci um Brasil que eu não conhecia e que gostaria de ter conhecido antes, porque é um Brasil que não é ensinado nas escolas. Quando eu estudei, a História do Brasil que nós estudávamos era uma história ingênua, as calmarias desviaram as naus de Pedro Álvares Cabral e aí vieram e civilizaram os índios. Nós nunca estudamos a verdade sobre a História do Brasil. Com a pesquisa da obra histórica do dr. Barbosa, eu afinal comecei a conhecer o passado do meu país e, vamos dizer, isto me tornou mais ainda um nacionalista apaixonado. A obra histórica do dr. Barbosa mostra uma grande nação sendo construída desde o momento em que foi colonizada . Mostra , por exemplo, a importância de Pernambuco na história do Brasil e o preço que Pernambuco pagou por essa participação. Durante muito tempo a Inconfidência Mineira foi escondida. No tempo do Império, se dizia:” não, não pode falar nisso porque ele era contra vovó”. Vovó era Maria Louca . Coitada, não foi ela, foi o seu sistema repressivo que mandou enforcar o Tiradentes. Mas, afinal, com a República a Inconfidência passou a ser resgatada e com o governo Vargas - e seu nacionalismo mais ainda. O 21 de abril se tornou feriado, passou a haver comemorações. Nas escolas a gente passou a estudar a Inconfidência e a história de Tiradentes. Agora, quando estudei (na verdade já faz meio século), a Confederação do Equador, que foi uma grande revolução republicana que teve por sede Pernambuco, era apresentada como um movimento secessionista, divisionista, de traição ao Brasil; quando não é. E a luta pela independência do Brasil começou em Pernambuco, não começou em Minas, porque a ocupação de Pernambuco precedeu a de Minas.


Mas, já no século XVII, 1640, 1650, houve a luta contra os holandeses e foi travada por brasileiros nascidos no Brasil e por brasileiros nascidos em Portugal, ao perceberem que a Coroa portuguesa - até com a cumplicidade do Padre Antônio Vieira, que escreveu um documento justificando isso - queria entregar o nordeste brasileiro aos holandeses, em troca dos holandeses não se meterem da Bahia pra baixo. E esses brasileiros - é a primeira vez que você pode pensar em Brasil, em brasileiros, num Brasil que não era um pedaço de Portugal botaram para fora os holandeses. Em seguida, depois da revolução, da guerra contra os holandeses, a Batalha de Guararapes, em 1710, em Pernambuco, tem a Guerra dos Mascates, que era uma guerra dos agricultores brasileiros contra os agricultores que tinham como base Olinda, contra os comerciantes portugueses que tinham se instalado em Recife e desfrutavam de privilégios com os quais estavam arruinando esses brasileiros, já é uma guerra com um caráter um pouco nacional. Em 1817, durante a permanência do Dom João VI no Brasil, houve a Revolução Pernambucana, republicana, de

"Além da obra que foi e é a vida dele, se ele nos tivesse legado apenas o conjunto de seus estudos históricos, já estaria nos dando de presente um novo Brasil, muito melhor do que esse que está aí." 1817, da qual eu dataria a Independência do Brasil. Para mim a Independência do Brasil não é em 1822, já não foi um príncipe português que fez a Independência do Brasil, foram os líderes da Revolução Pernambucana, de 1817, que pagaram caríssimo. Se na Inconfidência, os tribunais

da Dona Maria I, condenaram à morte apenas um réu, o Tiradentes, na Revolução de 1817, os de Dom João VI condenaram 16 brasileiros, 16 foram executados e centenas foram para a prisão. E essa Revolução de 1817, que eu fui aprender nos livros e nos artigos do dr. Barbosa Lima Sobrinho, porque isso não me foi ensinado na escola. Essa Revolução de 1817 teve, no mundo, uma repercussão enorme, ela foi objeto de noticiário constante na imprensa dos Estados Unidos e figurou numa crônica de Stendhal, que era um dos maiores escritores europeus da época, um homem do tamanho de Balzac. Isso eu vim a conhecer agora, pesquisando o trabalho do dr. Barbosa. E também tem um outro trabalho dele mostrando que a Confederação do Equador não tinha nada de separatista, nem de traição. Dom Pedro I se deixou dominar pelo partido português, reacionário, tinha exilado o José Bonifácio e todos os nacionalistas, do início da independência. Pernambuco então se levantou, conseguiu apoio dos outros estados ali do nordeste, até o Ceará, formou a Confederação do Equador, que foi também esmagada pela força, mas que é uma revolução comparável à Revolução

Farroupilha, do Rio Grande do Sul. Os gaúchos também se separaram, mas era uma separação provisória para voltarem a se reunir, depois que as suas reivindicações fossem atendidas, tanto que na Revolução Farroupilha, quando os argentinos ou os uruguaios quiseram mandar tropa para ajudar a tropa imperial contra os farroupilhas, o general farroupilha disse: “o primeiro soldado estrangeiro que cruzar a fronteira vai dar o seu sangue para com ele nós assinarmos a paz com o Imperador”. Então, a Confederação do Equador em Pernambuco foi tão patriótica quanto a Guerra dos Farrapos. E eu fui aprender isso, nessa altura da minha vida, lendo os artigos, os livros e as conferências do dr. Barbosa. Então eu acho que, além da obra que foi e que é a vida dele, se ele nos tivesse legado apenas o conjunto de seus estudos históricos, ele nos estaria dando de presente um novo Brasil, muito melhor do que esse que está aí. (Entrevista realizada por Ana Arruda Callado e André Motta Lima, no dia 12 de março de 1997, e por André Motta Lima, em 14 de março de 1997.)

A PESQUISA SOBRE JORNALISMO NO BRASIL Estudos acadêmicos avançam na última década ampliando as opções de visões da comunicação José Marques de Melo A pesquisa sobre os fenômenos jornalísticos no Brasil remonta à segunda metade do século XIX. A preocupação inicial não está centrada nos processos noticiosos, porém nos seus meios de difusão, mais precisamente na tecnologia de impressão de livros, jornais e revista. Embora estabelecida tardiamente em território brasileiro (mais de três séculos nos separam da inovação gutenbergiana), a imprensa aqui se desenvolve a partir da chegada da corte de D. João VI, em 1808. Na verdade, os seus primeiros momentos são tímidos, porque controlados pela censura real, destinando-se a reproduzir informações e documentos do governo. As publicações que experimentam o sabor da liberdade surgem justamente no vazio jurídico instaurado em Portugal, quando as tropas napoleônicas são expulsas e os revolucionários do Porto derrubam a censura prévia. Os precursores da nossa Independência não hesitam em aplicar aquilo que contemporaneamente chamaríamos a “estratégia das brechas”, ou seja, editam jornais sem pedir licença às autoridades. (1) Mas é sem dúvida durante o II Reinado que a imprensa vive seu melhor período de liberdade, garantido pela sabedoria de Pedro II. Em meio a esse ambiente de conciliação das elites nacionais, os Institutos Históricos começam a resgatar precocemente a trajetória do nosso jornalismo. E despertam polêmicas que conquistariam os corações e mentes dos nossos intelectuais, ao enaltecer o “pioneirismo” dos

holandeses na introdução da imprensa em terras brasileiras, contrastando com o “atraso” dos portugueses, que a proíbem e reprimem. Persistia a tese de que a primeira impressora a operar no Brasil fora trazida por Nassau, da qual dava testemunho o folheto Brasilche Gelt-Sack, datado de 1645 e publicado no Recife. Os historiadores pernambucanos deixaram de lado as especulações e foram buscar evidências empíricas. As pesquisas se concentraram em arquivos brasileiros e holandeses, produzindo resultados que negariam a hipótese dominante. A iniciativa de Nassau não fora consumada, por razões fortuitas, e os impressos supostamente recifenses haviam sido reproduzidos em gráficas européias. Dão conta desses fatos ensaios escritos pelos historiadores José Higino Duarte (1883) e Alfredo de Carvalho (1899). Depois desses estudos pioneiros sobre a implantação da tipografia, os historiadores tomam gosto e ajudam a reconstituir uma história da nossa imprensa. São motivados, a seguir, por efemérides nacionais, começando pelo duplo centenário: a criação da Imprensa Régia e o lançamento do nosso primeiro jornal independente, o Correio Braziliense de Hipólito José da Costa. Em 1908, Alfredo de Carvalho publica a monografia Gênese e Progressos na Imprensa Periódica no Brasil, suplementada por um alentado catálogo dos jornais e revistas que circularam nos últimos cem anos. Trata-se de uma fonte de referência fundamental, que orientaria os passos de outros historiadores. Dentre

eles Max Fleiuss, autor de um dos primeiros state of art da pesquisa histórica sobre jornalismo, cujo texto aparece em 1922, durante as comemorações do centenário da Independência. (2) Rigorosamente, tais estudos ainda não enfocam o jornalismo como objeto definido. Eles tratam da imprensa e dos seus produtos, mencionando marginalmente os processos socio-políticos que dão

impasses enfrentados no Brasil. Seu “gancho” é o projeto de lei de imprensa do senador paulista Adolfo Gordo, tramitando no Congresso Nacional. Em torno desse “problema”, ele constrói uma análise multidisciplinar do fenômeno jornalístico na sociedade brasileira. Oferece parâmetros que se revelariam consistentes e lançaria as bases de uma nova disciplina acadêmica. O jornalismo deixava de ser simples “ofício”, reproduzindo-se pelo legado

Os estudos de Barbosa Lima sobre a imprensa, em 23, oferecem parâmetros e lançam as bases de uma nova disciplina acadêmica. O jornalismo deixava de ser simples ofício para converter-se em conhecimento socialmente utilitário, produto da observação sistemática e da reflexão crítica de produtores qualificados. fisionomia peculiar à comunicação de atualidades. Quem estabelece essa fronteira é o jovem Barbosa Lima Sobrinho, quando, em 1923, publica um livro que nasce clássico O problema da Imprensa (3). Valendo-se da experiência profissional como jornalista e da metodologia de análise aprendida no âmbito da ciência jurídica, sem deixar de recorrer também à ciência histórica, ele desempenha um perfil do desenvolvimento do jornalismo na sociedade industrial e dos

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transmitido no “batente” de geração a geração. Converte-se em “praxis”, ou melhor, em conhecimento socialmente utilitário, produto da observação sistemática e da reflexão crítica de produtores qualificados. No entanto, a imprensa e o jornalismo continuariam a despertar o interesse dos pesquisadores das humanidades (história e direito), assim como daqueles pioneiros das ciências sociais no Brasil. Gilberto Freyre, por exemplo, recorre à imprensa para Jornal da ABI


elaborar um retrato da sociedade patriarcal brasileira, buscando nos anúncios de jornais elementos suscetíveis de reflexão sociológica e antropológica. Seu livro de estréia -Casa Grande & Senzala (1933 )- representa uma inovação metodológica, ao pesquisar em fontes heterodoxas. Ao mesmo tempo, abre picadas para os estudiosos do jornalismo, descortinando as metodologias comparativas. (4) Todas essas contribuições pioneiras encontrariam ambiente fértil nas nascentes escolas de jornalismo, incorporadas à universidade brasileira no final dos anos 40. Tanto em São Paulo (Cásper Líbero) quanto no Rio de Janeiro (UFRJ) se formariam grupos de estudiosos responsáveis pelas primeiras obras que analisam sistematicamente fenômenos do jornalismo contemporâneo. Pertencem a essa geração Carlos Rizzini, Danton Jobim, Pompeu de Souza, Celso Kelly, Marcelo de Ipanema, Freitas Nobre etc. Fora do eixo Rio-São Paulo apareceria, uma década depois, uma corrente inovadora, cuja influência se ampliaria para todo o país. Trata-se da equipe aglutinada em torno de Luiz Beltrão, fundador do Instituto de Ciências da Informação da Universidade Católica de Pernambuco e da revista Comunicações & Problemas, primeiro periódico acadêmico nacional dedicado às ciências da comunicação. Do Recife, Beltrão transfere-se para a Universidade de Brasília, onde dirige a Faculdade de Comunicação idealizada por Pompeu de Souza, criando o primeiro núcleo regular de pesquisa em comunicação. As teses de doutorado e mestrado ali defendidas precocemente no final dos anos 60 constituem os primeiros produtos de uma pesquisa do jornalismo em processo de legitimação acadêmica. (5) Quase ao mesmo tempo, dois outros movimentos fortalecem a pesquisa do

jornalismo, quer nas empresas, quer nas universidades. De um lado, o Jornal do Brasil cria uma publicação especializada -Cadernos de Jornalismo- dirigida por Alberto Dines, cuja importância reside na divulgação de pesquisas jornalísticas feitas nos Estados Unidos e na Europa, além de estimular a reflexão crítica dos jornalistas da própria empresa, que sistematizam suas experiências e as submetem ao crivo da comunidade profissional. O modelo JB de jornalismo se reproduz em todo p a í s , di s s e m i n a d o pela referida revista, lida e discutida nas principais redações dos jornais regionais e pelos que estudam o jornalismo nas nossas universidades. De outro lado, a Universidade de São Paulo cria na sua Escola de Comunicações e Artes o primeiro Departamento de Jornalismo a ter uma equipe de docentes contratados em tempo integral. Desta maneira, podem se dedicar regularmente aos estudos bibliográficos, à pesquisa empírica e à experimentação em laboratórios. Emerge então o primeiro grupo de doutores em Jornalismo do país, formando equipes de pesquisa e pós-graduação que formariam a primeira geração de professores titulados na própria disciplina. Hoje eles se espalham por quase todas as universidades brasileiras e dão continuidade a estudos cujos

paradigmas se originaram na USP. Durante os anos 70 e 80, os principais cursos de Jornalismo do Brasil tomariam o padrão USP como fonte de referência pedagógica e científica. (6) Só nos anos 90 surgem espaços alternativos que disputam a hegemonia uspiana. Destacam-se a PUC-FAMECOS, em Porto Alegre, hoje considerada a melhor escola de Jornalismo do país, plenamente sintonizada com as demandas do mercado, e a UFSC, em Florianópolis, que pretende ser um núcleo de vanguarda, mais afinado com as teses do corporativismo sindical. Na PUCMinas, ressurge com força a escola que nasceu, nos anos 70, com um perfil inovador, cultivando o Jornalismo comunitário. Hoje, ela se aproxima criticamente do Jornalismo i n d u s t r i a l , experimentando formas de expressão que valorizam os atores da sociedade civil, mas dialogam com as lideranças do empresariado e do governo. Perfil semelhante pode ser atribuído à UNISANTOS, em São Paulo, que combina os procedimentos hegemônicos no mercado com as metodologias peculiares aos movimentos sociais protagonizados nas periferias urbanas. Essa pluralidade de linhas de pesquisa e de opções didático-pedagógicas converte a pesquisa brasileira sobre Jornalismo em

O inventário da produção científica em jornalismo vai ser feito em setembro de 97, em Santos, quando dos 20 anos da Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação.

atividade promissora, completando a sua legitimação acadêmica e o seu reconhecimento pelas corporações empresarial e sindical. O lugar onde vem se dando essa convergência é a reunião anual da Intercom - Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação - cujo GT de Jornalismo acolhe os mais importantes estudos e pesquisas em desenvolvimento nas universidades. Ao completar 20 anos de existência, a Intercom se propõe a inventariar a produção científica em cada uma das disciplinas que integram o seu universo acadêmico. Esse debate se dará em Santos/SP, no período de 4 a 6 de setembro de 1997. Ali teremos oportunidade de avaliar o grau de maturidade conquistado pela pesquisa dos fenômenos jornalísticos em todo o país. José Marques Melo, professor de Jornalismo e ex-diretor da ECA/USP, pesquisador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da UNICAMP e Representante da ABI em São Paulo. PARASABERMAIS MARQUES DE MELO, José Sociologia da Imprensa Brasileira. 1973, Petrópolis, Edit. Vozes. MARQUES DE MELO, José, org. Inventário da Pesquisa em Comunicação no Brasil: 1883-1983. 1984, São Paulo, Intercom. BARBOSA LIMA SOBRINHO - O Problema da Imprensa. 1988, 2ª ed., SP, EDUSP. MARQUES DE MELO, José - Estudos deJornalismoComparado.1972,SP,Pioneira. MARQUES DE MELO, José Comunicação e Modernidade - o ensino e a pesquisa nas escolas de comunicação. 1991, São Paulo, Loyola.

UM EXEMPLO ATUAL PARA FAZER POLÍTICA Vida de Barbosa nos ensina que repórter político participa da política e que basta manter a dignidade Carlos Chagas A carteira de trabalho do dr. Barbosa é um documento histórico. Tratase do repórter político mais antigo do Brasil, registrado como tal desde os anos vinte. Mudou alguma coisa, a partir do momento em que o mestre de todos nós começou a escrever sobre política, no Jornal do Brasil ? Dirão os açodados que sim, que o mundo é outro, especialmente depois da globalização, que as experiências anteriores não servem para mais nada, que foi tudo ultrapassado. Para esses pimpolhos, porque a maioria deles é constituída de meninos e meninas de nariz em pé, do tipo daqueles que sabem tudo, não haveria lugar para os repórteres políticos mais velhos. Chamam-nos de frios porque não buscamos o escândalo como ferramenta de trabalho. Somos antigo porque não partimos do pressuposto de que todo político é ladrão e todo funcionário público, no mínimo preguiçoso. Deveríamos ter ensarilhado penas, canetas, máquinas de escrever e agora computadores porque cultivamos a notícia, na forma em que acontece, e não como gostaríamos que acontecesse, Especial - Barbosa Lima Sobrinho

conforme nossas ideologias, doutrinas ou até segundo as hediondas pautas recebidas de outros tantos pimpolhos, verdadeiras reportagens já escritas, e que condicionam começo, meio e fim dos textos a serem apresentados. Essa febre sempre acaba passando, quando os mais jovens vão adquirindo experiência. Doença inevitável da juventude que melhora com os cabelos brancos. Já prevaleceu na redação de um importante jornal, tempos atrás, a máxima de que só podiam trabalhar bem aqueles que tivessem menos de trinta anos. O tempo passou, emendou-se o chavão para 35, depois para 40, hoje deve andar pelos 45, precisamente a idade de quem havia permitido tamanha bobagem. Será bom buscar na carreira de repórter político do dr. Barbosa o antídoto para essas distorções. Porque mesmo fiel aos fatos, cultivando a notícia como ela ocorre, sem travesti-la, o repórter político é participante de tudo quanto de importante acontece no país. Observa e reporta, mas, reportando observando, participa. O dr. Barbosa participou das primeiras reações ao figurino da República Velha, que não mais cabia no Brasil e gerou, de uma só

vez, o tenentismo, o sindicalismo e a reviravolta nas artes e na cultura, iniciada pela Semana de Arte Moderna. Formou, ouvindo e escrevendo, nos primórdios da Revolução de 30. Insurgiu-se contra os excessos do Estado Novo e escreveu, como ninguém, sobre personagens que se lançavam na luta pelo restabelecimento da democracia, em 1946. Mesmo dividindo o jornalismo com a política e a literatura, estava na primeira linha dos que sustentavam o monopólio do petróleo e a defesa das riquezas nacionais. Foram longos seus artigos e suas reportagens sobre o período desenvolvimentista de JK, ora apoiando, ora mostrando exageros. Dos primeiros a duvidar da sanidade de Jânio Quadros, registrou preocupações diante do nacional-sindicalismo e insurgiu-se contra a prepotência do regime militar subseqüente. De volta à ABI, que presidira em idos longínquos, ajudou a derrubar o arbítrio, como, pouco depois, tornou-se o primeiro signatário do manifesto contra a corrupção que levou um presidente da República à renuncia. Descansou? Nem pensar. Ei-lo agora denunciando as barbaridades do

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neoliberalismo e da dita globalização da economia, engodo que já viu repetir-se no passado um sem número de vezes, sempre que os privilegiados pretendem aumentar seus privilégios. Trajetória mais firme, mais coerente, mais áspera -não haverá na biografia de qualquer repórter político que tenha existido ou vá existir. E sempre pautada por um mandamento que, no jornalismo, supera todos os demais : o culto à notícia, ou seja, aos fatos. Basta seguilos, reportá-los e analisá-los. D i f i c u l d a d e s , o d r. B a r b o s a enfrentou aos montes. Como todos nós, pois não raro o radicalismo e as paixões de todos os matizes importunam-se com a notícia, ou seja, com a verdade. Gostariam que a reportagem política servisse aos seus desígnios, travestindo e distorcendo a informação. Caso qualquer um de nós continue seguindo as lições do dr. Barbosa, isso será impossível. Carlos Chagas, editor regional da Rede Manchete e representante da ABI em Brasília.


HOMENAGEM DA ABI EM TODO O PAÍS RESSALTOU A LUTA DE BARBOSA LIMA Anúncios em televisões, rádios e jornais lembravam que 22 de janeiro de 1997 era um dia especial “Há homens que lutam um dia e são bons. Há homens que lutam um ano e são melhores. Há aqueles que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam a vida toda. Estes são os imprescindíveis.” A frase de Beltold Brecht apareceu pouco a pouco, acompanhada apenas de um fundo musical, para milhões de telespectadores nos mais variados horários, inclusive o horário nobre das grandes redes nacionais de televisão, no dia 22 de janeiro de 1997. Logo depois da foto do aniversariante,nova cartela afirmava a coerência ao mostrar “Barbosa Lima Sobrinho:100 anos de luta. E vem mais aí.” No final, a assinatura da Associação Brasileira de Imprensa.

“Há homens que lutam um dia e são bons.”

Só na Rede Globo foram 3 veiculações em horário de grande público, embora a praça de Brasília tenha inserido mais duas, num total de 5 inserções. Cada rede procurou adaptar as disponibilidades do espaço publicitário para homenagear Barbosa Lima. A Band fez duas inserções nacionais e uma maior quantidade de veiculações no Rio. A CNT optou pela divulgação nacional durante o telejornal do horário nobre. A Manchete fez 5 inserções nacionais no horário nobre. SBT, Globosat e TVA também adaptaram as homenagens às disponibilidades, embora o canal ESPN Brasil tenha optado por uma semana inteira de inserções. A

“Há homens que lutam um ano e são melhores.”

rede da TV Educativa acabou sendo a que mais exibiu a peça promocional no dia 22, até mesmo como estímulo e chamada do documentário especial que exibiu à noite, com direção de Nelson Hoineff e roteiro de André Motta Lima e José Augusto Ribeiro. Entre outras, as rádios Tupi e Globo, de grande alcance nacional, também divulgaram uma homenagem semelhante à da televisão. Na imprensa escrita, 25 dos mais importantes jornais das principais cidades brasileiras publicaram uma homenagem de meia página, onde o título afirmava: “Hoje, Barbosa Lima Sobrinho faz 100 anos. Por uma questão de coerência, vamos

“Há aqueles que lutam muitos anos e são muito bons.”

comemorar o dia do jornalista antecipadamente.” Toda campanha, com a participação criativa da Agência Contemporânea, foi articulada e produzida pela Casa do Vídeo, no âmbito do contrato de comodato mantido com a ABI. Para se ter uma idéia de grandeza e do apoio dos veículos, a divulgação impressa corresponde a um espaço publicitário no valor de R$ 350.514,20. Incluindo as rádios e redes de televisão, a estimativa se aproxima da casa do milhão, considerando os custos mais elevados dos espacos nas tvs: só um anúncio no intervalo no Jornal Nacional está custando R$ 98.982,00, por atingir milhões de telespectadores de todo o país.

“Mas há os que lutam a vida toda. Estes são os imprescindíveis.” ( Bertold Brecht )

Barbosa Lima Sobrinho: 100 anos de luta. E vem mais aí.

EM BREVE ELEVAITER PLACA NO PRÉDIO Apesar das resistências do homenageado, o Conselho Administrativo aprova lembrança especial Mário Barata O Conselho Administrativo, bem como a diretoria da Associação Brasileira de Imprensa, exprimiram por diversas maneiras o seu apreço pelo significativo centésimo aniversário do jornalista, escritor e político que preside a diretoria da entidade. No tocante a algumas das formas de ação dessa espontânea homenagem, elas tiveram de levar em conta o procedimento ético e pessoal de Barbosa Lima Sobrinho no que respeita às homenagens que ele poderia receber. Exprimiu em diferentes oportunidades que a maior comemoração seria a reunião de brasileiros, na ABI, em torno das lutas nacionalistas em sua fase atual contra as privatizações e contra atentados em curso aos ideais republicanos, relativamente à condução do país. Ex-presidente da Associação Brasileira de Imprensa em mandato nos anos 20 - com luta pela unificação de três entidades de jornalistas então existentes no Rio de Janeiro - e sendo presidente, em mandatos posteriores a 1978, Barbosa Lima não tem o seu nome em nenhum espaço da casa, ao contrário de companheiros da geração de Herbert Moses, ligados à fase de planejamento e consolidação do prédio da ABI. Relembre-se aqui que Barbosa Lima lutou eficientemente para a obtenção do terreno, no Castelo, destinado à sede da entidade. O Conselho Administrativo consi-

derou, em sessões de 30 de janeiro de 1996 e de 7 de janeiro de 1997, que ao menos uma placa de bronze deveria enaltecer a ação, pela classe jornalística e pelo país, de Barbosa Lima Sobrinho. Ficou decidido que uma comissão executiva para essa finalidade se constituiria, em deliberação a ser tomada pela Diretoria, à qual - excetuada a participação do próprio homenageado - competiria indicar ou acolher os nomes de sócios para esse trabalho. Tive, em sessão do Conselho Administrativo, a ocasião de sugerir como base para exame que conduziria ao texto definitivo da placa, os seguintes dizeres: “ No centésimo aniversário de nosso presidente Barbosa Lima Sobrinho, os seus companheiros da ABI ou de órgãos de imprensa, tv e rádio e de lutas pelas liberdades democráticas e o bem do país, prestam homenagem às suas atividades em existência exemplar, assinaladas assim nesta placa, em 22 de janeiro de 1997”. O Conselho, em iniciativa urgente, aceitou a oferta de fotografias do ilustre presidente da entidade feitas pelo fotógrafo Jorge Nunes, as quais, no dia 22 de janeiro, foram colocadas, por iniciativa de Fernando Segismundo, na sala do Conselho (sala Heitor Beltrão) e, de acordo com a diretoria, também na sala de reuniões deste órgão superior da ABI.

COCA-COLA

Mário Barata, secretário da mesa do Conselho Administrativo da ABI.

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Jornal da ABI


AVERDADEÉAALMADONEGÓCIO MEMÓRIA O processo de criação da homenagem da ABI aos 100 anos de Barbosa EM VÍDEO AJUDA AS PESQUISAS João Bosco Franco

Neruda escreveu Confesso que vivi. Eu, assim que o André Motta Lima desligou o telefone do outro lado, poderia ter escrito na hora “Confesso que tremi”. Vou apertar o rewind e voltar o assunto no tempo, para você entender melhor o que aconteceu. No comecinho de janeiro, o André Motta Lima ligou, em nome da ABI, pedindo para que a agência de propaganda onde eu trabalho, a Contemporânea, criasse uma campanha publicitária para homenagear os 100 anos de Barbosa Lima Sobrinho. Tenho 43 anos, nasci em Pará de Minas, uma cidadezinha que fica a 72 Km de Belo Horizonte, e provei para a diretora do Grupo Escolar Governador Valadares, dona Orozimba, que, mesmo com 5 anos, eu podia entrar para o primeiro ano escolar. Sabe como? Levei um exemplar do Jornal do Brasil - o único que o meu pai deixava entrar lá em casa - e li as principais matérias, para o orgulho do velho Gabriel e o ar surpreso de dona Orozimba. Então, desde pequeno, além dos livros e dos cadernos, me apaixonei pelas folhas de 36 X 54 cm do JB. E foi lá, nas folhas de jornal, que me acostumei com a presença de um tal de Barbosa Lima Sobrinho. E que eu continuaria vendo novamente sempre onde eu procurasse por verdade, justiça e liberdade. Por isso, como escrevi no início deste artigo, confesso que tremi quando o André me ligou. Tremi de emoção. Tremi de alegria. Tremi com o desafio de criar um anúncio ou um filme que pudesse ser tão verdadeiro quanto um texto de Barbosa Lima Sobrinho. Porque não há nada mais importante,

fundamental mesmo, para um bom anúncio ou um bom filme do que um produto bom de verdade e que você possa dizer a verdade sobre ele. E Barbosa Lima Sobrinho foi um dos melhores produtos - desculpe chamar você de produto, Barbosa - que eu já tive nas mãos para criar. Olha o brieffing: acompanhou 23 presidentes, foi governador de Pernambuco, foi deputado federal por 3 vezes, foi o primeiro brasileiro a assinar o impeachment do Collor, foi o mais novo e o mais velho presidente da Associação Brasileira de Imprensa. E com 100 anos, sendo 80 de jornalismo. Uau! Aí, sentei-me com o André Pedroso não o Motta Lima - outro redator da Contemporânea e criamos duas peças: um filme de 30 segundos para televisão e um anúncio de jornal para o dia 22 de janeiro. Para tentar passar o que o Barbosa Lima Sobrinho representava para mim, lembrei-me do teste do Grupo Escolar Governador Valadares e de um poema que sempre me deu inveja por não ter escrito e que sempre usei quando queria fazer uma referência a alguém especial. Um poema de Bertold Brecht que diz assim: “Há homens que lutam um dia e são bons Há outros que lutam um ano e são melhores Há aqueles que lutam muitos anos e são muito bons Mas há os que lutam toda a vida: estes, são os imprescindíveis.” Obrigado, Bertold! Vou colocar você na ficha técnica do filme. Criação: João

Bosco/Bertold Brecht. Mais que especial, Barbosa Lima Sobrinho para mim e, para todos que valorizam a verdade, é isto: imprescindível. E, do “confesso que tremi”, passei ao “confesso que vibrei”. Nasceu então um filme simples, com letreiros que se sucediam, cada um com uma frase do poema, e terminava com uma foto do Barbosa Lima Sobrinho com o seguinte texto: “Barbosa Lima Sobrinho: 100 anos de luta. E vem mais aí.” Um filme simples mas muito emocionante, que a Casa do Vídeo alegremente produziu, a Mega alegremente sonorizou e, triste, nem todas as TVs exibiram. Mas problema da TV que não se envolveu neste mutirão de alegria e reverência. O André Pedroso, por sua vez, criou com o diretor de arte Pedro Utzeri um anúncio emocionante, lindo mesmo que, por uma questão de coerência, antecipava o Dia do Jornalista para o dia 22 de janeiro, aniversário dos 100 anos de Barbosa Lima Sobrinho, que os principais jornais do Brasil publicaram, com alegria. Por tudo isso, em meu nome, do André Pedroso e da Contemporânea, obrigado ABI, obrigado, André Motta Lima, pela oportunidade de ter podido fazer uma homenagem a esta unanimidade nacional chamada Barbosa Lima Sobrinho. Dizem que propaganda é a alma do negócio. Retruco: a verdade é que é a grande alma do negócio. Barbosa Lima Sobrinho está aí para provar. João Bosco Franco, redator da Contemporânea.

CAMPANHA DO BARBOSA. REDUZIR PROPORCIONALMENTE E CENTRALIZAR NO ESPAÇO

Especial - Barbosa Lima Sobrinho

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O Departamento de Intercâmbio e Divulgação da ABI, com a colaboração da Souza Cruz, empresa onde durante muitos anos atuou como diretor o ex-presidente Herbert Moses, vai distribuir mil fitas de vídeo com o registro das comemorações do centenário de Barbosa Lima Sobrinho e também com o vídeo “O Século de Barbosa Lima Sobrinho”, produzido pela TV Educativa do Rio de Janeiro e veiculado nacionalmente, inclusive pelas emissoras que retransmitem a TV Cultura de São Paulo. De acordo com a linha de atuação do Departamento, terão prioridade na distribuição os professores de jornalismo das quase 80 escolas de comunicação de todo o Brasil, a partir da mala direta já fornecida pela Intercom. A preservação da memória do jornalismo e dos profissionais, de modo a permitir o conhecimento dos mais jovens, ganha também um reforço com a incorporação dos 53 programas da série “O Quarto Poder” , da TV E, ao acervo do Projeto Memória do Jornalismo Brasileiro, uma iniciativa do Departamento de Intercâmbio e Divulgação da ABI em convênio com o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro e com a participação dos estagiários da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O Projeto Memória do Jornalismo Brasileiro já está se transformando num centro de referência para o estudo do jornalismo. Depoimentos de importantes jornalistas já falecidos - como Raul Riff e Odilo Costa,filho - integram o acervo junto com as gravações, em áudio e vídeo, que são realizadas mensalmente no MIS. No ano de 1997 a prioridade está sendo dada aos depoimentos temáticos, como a história e evolução do colunismo - que contou com a participação de Jacinto de Thormes, Ancelmo Góes e Ricardo Boechat - a reportagem policial e o trabalho dos correspondentes estrangeiros. No acervo constam três depoimentos de Barbosa Lima Sobrinho e os relatos de vida de M. F. Nascimento Brito (cujo trecho sobre a ação da censura se encontra publicado nesta edição especial), Armando Peixoto, Mário de Morais, Osny Duarte Pereira e Paulo Cabral de Araújo (centrado na evolução dos Diários Associados depois da morte de Assis Chateaubriand). Mesas temáticas com mais de um depoente registram as hitórias do Pasquim, Movimento, Opinião, Diário de Notícias, entre outros veículos. Qualquer estudante ou pesquisador pode ter acesso gratuito ao acervo do projeto, dentro das normas estabelecidas pelo Museu da Imagem e do Som. Outra intenção do trabalho desenvolvido pelo Departamento de Intercâmbio e Divulgação da ABI é estimular os estudantes de comunicação a utilizarem a memória do jornalismo nos trabalhos de final de curso.


JORNAL DA ABI ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

EDIÇÃO ESPECIAL - ANO 3 - NÚMERO 3 - 1997

R. Araújo Porto Alegre, 71/7o andar - Rio de Janeiro RJ - CEP 20030-010 - Fax (021) 262.3893

JORNAIS (Classif. ECT - DR/RJ)

Barbosa Lima Sobrinho

UM SÉCULO DE HISTÓRIAS DE IMPRENSA E BRASIL

Aos 100 anos, ele vai a todos os cursos do país dar aula de jornalismo e coerência. Professores dos quase 80 cursos de comunicação de todo o Brasil recebem, junto com esta edição especial do Jornal da ABI, um vídeo com o registro das comemorações do centenário e com o documentário “O Século de Barbosa Lima Sobrinho”, produzido pela TV Educativa do Rio de Janeiro e veiculado nacionalmente pela Rede Brasil e pelas emissoras retransmissoras da TV Cultura de São Paulo. Uma verdadeira aula de cidadania que vai chegar também a instituições e órgãos de imprensa, permitindo que os mais jovens descubram histórias de imprensa e Brasil.

APOIO

Com este exemplar, um encarte especial:

O perfil do jornalista carioca Resultados de uma pesquisa inédita da UFRJ, em convênio com a ABI, mostram quem são e como pensam aqueles que fazem jornalismo na mesma época do centenário de Barbosa Lima Sobrinho

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