O "breque dos apps" como resistência ao neoliberalismo

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REVISTA JURÍDICA THEMIS

– 32ª EDIÇÃO (2021/2022)

CONSELHO EDITORIAL

Stephanie Mercedes Meireles Aparicio

Anna Caroline Kurten

Lívia Meireles de Oliveira

Sofia Eloá de Oliveira Souza Brighenti

Gabriel Eduardo de Andrade

Stefany de Lucas

Guilherme Soffiatti

CENTRO ACADÊMICO HUGO SIMAS

Sede: Rua Marechal Floriano Peixoto, 524

Subsede: Praça Santos Andrade, 50 – Subsolo

UFPR – Curitiba – Paraná www.cahs.org.br

Revista Jurídica Themis [recurso eletrônico] / Centro Acadêmico Hugo Simas (organizador). – nº 32 (2022) – Curitiba: Centro Acadêmico Hugo Simas, 15,5x22, 5 cm, 292 p.

Publicação periódica

Revista contendo artigos científicos escritos por acadêmicos de Direito, selecionados em concurso organizado pelo Centro Acadêmico Hugo Simas.

1. Direito – periódico – Brasil

ISSN nº 1983-2036

Editora Íthala Ltda.

Rua Pedro Nolasko Pizzatto, 70

Bairro Mercês

80.710-130 – Curitiba – PR

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Capa: Antonio Dias Revisão: Rodrigo Martins

Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos publicados na obra. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora Íthala. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº 9.610/98 e punido pelo art. 184 do Código Penal.

Revista Jurídica

THEMIS

Edição nº 32

EDITORA ÍTHALA

CURITIBA – 2022

DOCENTES DA FACULDADE DE DIREITO DA UFPR INTEGRANTES DAS BANCAS

DE AVALIAÇÃO

Prof.ª Dr.ª Eneida Desiree Salgado

Prof.ª Dr.ª Estefânia de Queiroz Barboza

Prof.ª Dr.ª Angela Cassia Costaldello

Prof.ª Dr.ª Katya Regina Isaguirre Torres

Prof.ª Dr.ª Larissa Liz Odreski Ramina

Prof.ª Dr.ª Tatyana Scheila Friedrich

Prof.ª Dr.ª Marília Pedroso Xavier

Prof.ª Dr.ª Rosalice Fidalgo Pinheiro

Prof.ª Dr.ª Priscilla Placha Sá

Prof. Dr. Rui Carlo Dissenha

Prof.ª Dr.ª Clara Maria Roman Borges

Prof. Dr. Guilherme Brenner Lucchesi

Prof. Dr. Marco Aurélio Serau Junior

Prof. Dr. Sandro Lunard Nicoladeli

Prof. Dr. Luiz Daniel Haj Mussi

Prof.ª Drª. Marcia Carla Pereira Ribeiro

Prof.ª Dr.ª Angela Couto Machado Fonseca

Prof. Dr. Sérgio Said Staut Júnior

Prof.ª Dr.ª Danielle Regina Wobeto de Araujo

Prof. Dr. Thiago Freitas Hansen

Prof. Dr. Abili Lázaro Castro de Lima

Prof. Dr. Ricardo Prestes Pazello

PROFESSORES CONVIDADOS

Prof.ª Dr.ª Gabriela Barretto de Sá

Prof. Dr. Marcos Vinícius Lustosa Queiroz

APRESENTAÇÃO

A Revista Jurídica Themis é o periódico científico do Centro Acadêmico Hugo Simas, entidade máxima de representação estudantil da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. A Revista existe desde a década de 1950 e vem saindo anualmente, via de regra, editada por um Conselho Editorial composto por membros do CAHS, do Conselho de Representantes Discentes e de membros da comunidade acadêmica. É uma oportunidade para os alunos da graduação de todo o Paraná publicarem seus trabalhos científicos e suas pesquisas.

Nesta 32ª edição, a Revista Jurídica Themis, por meio da Gestão Por Onde For (2021) do Centro Acadêmico Hugo Simas, do Partido Acadêmico Renovador, apresenta artigos de diversas matrizes teóricas e metodológicas. Cada um dos 39 artigos aprovados para publicação passou pela avaliação de pelo menos dois professores de Direito, com formação pertinente à temática de cada artigo.

Diferente das últimas edições, nesta, o Conselho Editorial intentou um ambiente de publicação que pudesse refletir sobre o contexto hodierno que circunda o tecido social, do qual, esta obra se insere. Nesse sentido, a 32ª edição da Revista Jurídica Themis incentiva arguições que, por meio de análises dialógicas, tencionam rupturas com os paradigmas ocidentocêntricos calcados nas discussões do ordenamento jurídico brasileiro.

Vistas a isso, compreendendo a necessidade de espaço acadêmico para estes debates e críticas, o Conselho Editorial adicionou além das 13 categorias já existentes, dois novos sítios de debate: a XIV (14º) e XV (15º) categoria, respectivamente abrangendo, as temáticas do Direito Anticapacitista e a Teoria Crítica da Raça. Ambas visam abordar sujeitos e epistemologias antes invisibilizadas, preteridas ou pouco fomentadas dentro do espaço acadêmico na Universidade Federal do Paraná. Incentivando e indicando, assim, no despontar do horizonte, novas ponderações para estruturar a sistemática do direito contemporâneo brasileiro. Isto posto, abre a edição da Revista Jurídica Themis as publicações articuladas pelos coletivos de pesquisa e produção de conhecimento Resistência Ativa Preta e Grupo de Estudos Tuíra Kayapó, intencionando abordar as temáticas, respectivamente, de uma educação universitária pensada a partir da raça e questionar a agenda bolsonarista em todos os reflexos do neoextrativismo colonial.

Ainda, sequencialmente, as categorias Teoria Crítica da Raça e Direito Constitucional e Teoria do Estado. Respectivamente, estes sítios discutem a análise curricular dos cursos de Direito das Instituições Públicas e a Teoria Crítica da Raça no enfrentamento ao privilégio branco, como também as temáticas de revisão do controle de constitucionalidade, sobre a

natureza dos crimes de responsabilidade do presidente da república. Já nos nichos de Direito Internacional, Direito Administrativo e Ambiental, delinearam as pautas sobre o direito à educação de crianças refugiadas desacompanhadas na pandemia atual e a discricionariedade como um espaço para avanço do legalismo autocrático.

Na categoria de Direito Civil, transcorreram-se os necessários apontamentos no que tange à autodeterminação informativa, epidermização digital e a proteção de dados de pessoas negras. Também, nos sítios de Direito Penal e Direito Processual Penal, em voga estavam as análises sobre punitivismo, omissão e o papel da criminologia midiática, as reflexões no que diz respeito ao Primeiro Comando da Capital (PCC) como detentor do monopólio de violência e considerações sobre o inquérito 4.781 do STF à luz dos princípios do sistema acusatório.

Já em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho as discussões versaram sobre o “breque dos Apps”, como um ato de resistência ao avanço neoliberal e a organização de trabalhadores contra a uberização. No nicho de Direito Empresarial, o objeto de investigação levantado foi o procedimento de exclusão extrajudicial de sócio, em sociedade limitada.

Encerrando este conjunto de estudos e pesquisas, a categoria de Filosofia do Direito que investigou no tocante ao luto público, necropolítica e a subnotificação na pandemia e, a categoria História do Direito, destrinchando uma breve biografia de um intelectual jurista fascista.

Este compilado de discussões, redigidos e articuladas pelos discentes da Universidade Federal do Paraná, publicizados nesta edição, pertencem ao ensejo de incentivo a estudos que visam excelência e não balizam, tão somente, à dogmática do direito. Incentivo para que possam, portanto, narrar experiências jurídicas em todas as mais diversas esferas e complexidades, sejam elas sociais, econômicas ou culturais.

CONSELHO EDITORIAL

Stephanie Mercedes Meireles Aparicio

Anna Caroline Kurten

Lívia Meireles de Oliveira

Sofia Eloá de Oliveira Souza Brighenti

Gabriel Eduardo de Andrade

Stefany de Lucas

Guilherme Soffiatti

SUMÁRIO

A AGENDA BOLSONARISTA PARA O MEIO AMBIENTE: REFLEXOS

DO NEOEXTRATIVISMO COLONIAL ................................................................... 10

Grupo de Estudos Tuíra Kayapó - GETUK

TEORIA CRÍTICA DA RAÇA MANIFESTO POR UMA EDUCAÇÃO NEGRA ................................................. 32

R.A.P. - Resistência Ativa Preta

A TEORIA CRÍTICA DA RAÇA NO ENFRENTAMENTO AO PRIVILÉGIO BRANCO: UMA ANÁLISE DA MATRIZ CURRICULAR

DOS CURSOS DE DIREITO DAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DE ENSINO SUPERIOR DO ESTADO DO PARANÁ ............................................ 53

Gabriela Grupp

Yago Paiva Pereira

DIREITO CONSTITUCIONAL E TEORIA DO ESTADO

REVISANDO O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

OMISSIVO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:

PROPOSIÇÕES PARA O PROJETO DE LEI DO CÓDIGO DE PROCESSO CONSTITUCIONAL ............................................................................. 77

Leonardo Soares Brito

Sofia Jaworski de Sá Riechi

SOBRE A NATUREZA DOS CRIMES DE RESPONSABILIDADE DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA ................................................................................ 98

Ana Luiza Baccin Carvalho

Pedro Rodrigues Parzianello

A DISCRICIONARIEDADE COMO TERRENO PARA O AVANÇO

DO LEGALISMO AUTOCRÁTICO: A POSSIBILIDADE DO CONTROLE DE MÉRITO ............................................................................................ 111

Marcus Vinícius Passos Rosa

O DIREITO À EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE PANDEMIA: A

HIPERVULNERABILIDADE DAS CRIANÇAS REFUGIADAS

DESACOMPANHADAS ............................................................................................

129

Letícia Cattani Perroni

DIREITO CIVIL

A AUTODETERMINAÇÃO INFORMATIVA NO ÂMBITO DO

NÃO-SER: OS IMPACTOS DA EPIDERMIZAÇÃO DIGITAL NA

PROTEÇÃO DE DADOS DE PESSOAS NEGRAS ....................................... 150

Elis Regina Arévalos Soares

Gabriela Grupp

DIREITO PENAL E CRIMINOLOGIA

TRIBUNAL DO CRIME E CEMITÉRIOS CLANDESTINOS: UMA

ANÁLISE DO PCC COMO DETENTOR DO MONOPÓLIO DA

VIOLÊNCIA LETAL NAS QUEBRADAS DE SÃO PAULO ........................ 167

Ana Gabrieli Reis

Marisa de Fátima Morais

PUNITIVISMO E OMISSÃO: O PAPEL DA CRIMINOLOGIA MIDIÁTICA

NA CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE PRISIONIZADA ................. 187

Laura Yasmin Kreuz Silva

DIREITO PROCESSUAL PENAL

ANÁLISE DA LEGALIDADE DO INQUÉRITO 4.781 DO STF À LUZ

DOS PRINCÍPIOS DO SISTEMA ACUSATÓRIO ........................................... 201

Mateus Baptista de Siqueira

Rafael Junqueira de Andrade

DIREITO DO TRABALHO E PROCESSUAL DO TRABALHO

O “BREQUE DOS APPS” COMO RESISTÊNCIA AO NEOLIBERALISMO: AÇÃO COLETIVA DAS TRABALHADORAS E TRABALHADORES

CONTRA A UBERIZAÇÃO ......................................................................................

222

Fauzi Bakri Filho

Milena Cramar Lôndero

DIREITO EMPRESARIAL

O PROCEDIMENTO DE EXCLUSÃO EXTRAJUDICIAL DE SÓCIO

EM SOCIEDADE LIMITADA ...................................................................................

246

Luisa Doria de Oliveira Franco

Maria Cristina do Amaral Kroetz

TEORIA DO DIREITO E FILOSOFIA DO DIREITO

LUTO PÚBLICO E NECROPOLÍTICA: UMA ANÁLISE DAS

HISTÓRIAS SUBNOTIFICADAS NA PANDEMIA DO NOVO

CORONAVÍRUS NO BRASIL ................................................................................

270

Vitória Araujo Bilibio

HISTÓRIA DO DIREITO

GIUSEPPE BOTTAI: UMA BREVE BIOGRAFIA INTELECTUAL DE UM JURISTA FASCISTA ....................................................................................

282

Lorenzo Ribeiro Tkatch

Marcos Antonio Viana de Oliveira

Pedro Henrique Lima Primo

Rafael Rauta Buiar

Rafael Tadeu Machado de Miranda

Raul Nicolas Dombek Coelho

O “BREQUE DOS APPS” COMO RESISTÊNCIA

AO NEOLIBERALISMO: AÇÃO COLETIVA

DAS TRABALHADORAS E TRABALHADORES

CONTRA A UBERIZAÇÃO

RESUMO

O presente artigo objetiva compreender as paralisações dos entregadores e das entregadoras de aplicativos de delivery, ocorridas em julho de 2020, a partir da análise do fenômeno do neoliberalismo, baseando-se no conceito desenvolvido pela teórica política Wendy Brown. O “Breque dos Apps”, como ficou conhecido, foi uma mobilização de alcance nacional que denunciou as degradantes condições de trabalho dessa categoria, as quais foram agravadas pela pandemia. Essa modalidade de trabalho se insere dentro de um grupo mais amplo de novas relações laborais, que tem sido chamado pela literatura de “uberização do trabalho”, cujo reconhecimento pelo ordenamento jurídico é ainda controverso. Trata-se de um modelo originado sob a égide do capitalismo neoliberal, tendo encontrado, na crise do Covid-19, suas condições ideais de expansão. Buscaremos entender, por meio de análise bibliográfica, a greve desses trabalhadores e trabalhadoras como uma resistência ao desmantelamento da sociedade promovido pela racionalidade neoliberal e como isso pode alimentar uma disputa na produção do direito, em favor de uma lógica coletiva e social.

Palavras-chave: neoliberalismo; uberização; empreendedorização; precarização; breque dos apps.

1. INTRODUÇÃO

Este artigo procura investigar o que representou o movimento das e dos entregadores de aplicativo, intitulado “Breque dos Apps”, sob o prisma de uma resistência aos desdobramentos do neoliberalismo, procurando recepcionar a dimensão coletiva das lutas dessas e desses trabalhadores para transformar o direito.

Para compreender isso, iremos, na primeira parte, apresentar a concepção de neoliberalismo defendida por Wendy Brown, de modo a oferecer uma explicação que dê conta da complexidade do fenômeno e nos forneça as condições de apreender suas consequências. Em seguida, examinaremos detalhadamente uma dessas consequências, que é a emergência do fenômeno da uberização, bem como isso é tratado dentro da esfera jurídica.

Por último, ao observarmos a realidade brasileira, vamos aplicar esses conceitos para entender quais as dimensões políticas, sociais, econômicas e jurídicas das manifestações das e dos trabalhadores uberizados, de modo a perceber os impactos desses acontecimentos enquanto resposta à lógica neoliberal. Assim, pretendemos que esse ímpeto de resistência coletiva se contraponha à visão “economicizada”, individualista e despolitizada que tem invadido o direito por influência do neoliberalismo.

2. O NEOLIBERALISMO E O DESMANTELAMENTO DO SOCIAL

Desde seu aparecimento em 1938, durante o Colóquio Walter Lippmann, a palavra “neoliberalismo” tem suscitado diversos debates e estudos a partir de diferentes análises. A profusão de investigações sobre o fenômeno não significou, no entanto, seu esgotamento; muito longe disso. Trata-se, até hoje, de um conceito pouco compreendido em sua complexidade e profundidade, bem como em sua natureza e implicações.

Para além do universo acadêmico, permanecem visões muito distorcidas e simplórias do neoliberalismo, o que tem dificultado o planejamento de uma ação política de contraposição e resistência. Em regra, o neoliberalismo é entendido como um mero conjunto de políticas econômicas, dentre os quais está a privatização de serviços públicos, a desregulamentação do trabalho e o desmonte do Estado social (BROWN, 2019). Argumentaremos, neste capítulo, pela relevância de um entendimento mais abrangente e completo do neoliberalismo que possibilite não só a correta apreensão da conjuntura atual, mas também o seu enfrentamento.

Para isso, tomaremos como marco teórico a noção de neoliberalismo desenvolvida pela teórica política estadunidense Wendy Brown. Partindo da teoria de Michel Foucault, desenvolvida em seu curso no Collège de France, entende-se o neoliberalismo como uma ordem normativa da razão, a qual se transforma em racionalidade. Mesmo derivando dessa análise, Brown reconhece suas limitações, buscando acomodar a tese foucaultiana com a de tradição neomarxista:

Este livro se baseia tanto na abordagem neomarxista quanto na foucaultiana do neoliberalismo, e também expande ambas para saldar sua negligência mútua do aspecto moral do projeto neoliberal. [...] A abordagem neomarxista tende a se concentrar

nas instituições, políticas, relações e efeitos econômicos, negligenciando os efeitos de longo alcance do neoliberalismo como forma de governar a razão política e a produção de sujeitos. A abordagem foucaultiana enfoca os princípios que orientam, orquestram e relacionam o Estado, a sociedade e os sujeitos, e acima de tudo, o novo registro de valor e valores do neoliberalismo, mas pouco atenta aos novos e espetaculares poderes do capital global que o neoliberalismo anuncia e edifica (BROWN, 2019, p. 32).

Dessa forma, entende-se que, mais do que uma cartilha de políticas econômicas pré-determinadas, o neoliberalismo inaugura uma concepção que muda radicalmente como as relações entre Estado, economia, sociedade e sujeito passam a ser vistas (BROWN, 2015). Há uma frase de Margaret Thatcher, ex-primeira-ministra britânica e ferrenha embaixadora da doutrina neoliberal, que resume bem o que se pretende argumentar: “Economia é o método. O objetivo é mudar o coração e a alma.” (THATCHER, 1981, n.p.)

A análise foucaultiana toma o neoliberalismo como uma reprogramação da governamentalidade liberal clássica, a qual se encontrava em crise devido à ascensão de doutrinas econômicas intervencionistas, como o fascismo e o comunismo, mas também o keynesianismo e a social-democracia (BROWN, 2015).

É esse o fundamento pelo qual a doutrina neoliberal é construída, a partir do Colóquio Walter Lippmann e da Sociedade Mont Pèlerin. Nesses eventos, participaram economistas de diferentes escolas, destacando-se os ordoliberais alemães e a vertente austro-americana – que formará a Escola de Chicago (DARDOT; LAVAL, 2016).

O ponto de partida do neoliberalismo será fazer prevalecer o que Friedrich Hayek, possivelmente o autor neoliberal de maior influência, chama de “ordem espontânea”, formada pelo mercado e pela moralidade tradicional, em detrimento de qualquer tipo de intervencionismo, planificação ou engenharia social (BROWN, 2019). Como pontua Wendy Brown (2019, p. 22-23), “para Hayek, o mercado e a moral, juntos, são o fundamento da liberdade, da ordem e do desenvolvimento da civilização”.

Apesar de parecer uma mera atualização do pensamento liberal clássico, há uma diferença fundamental na maneira pela qual isso deve ser implementado; o que é essencial para compreender os desdobramentos do neoliberalismo. Para os liberais clássicos, as leis de mercado prevaleceriam naturalmente, bastando o Estado não intervir na economia. No neoliberalismo, por outro lado, não se trata de simples laissez-faire, mas de um Estado forte, que atue como propagador da racionalidade neoliberal (SAFATLE; SILVA JUNIOR; DUNKER, 2021). Além disso, há a substituição da troca pela concorrência como essência e bem básico do mercado, fato que, como veremos adiante, terá grande relevância na estruturação da razão neoliberal (BROWN, 2015).

Para atingir seu objetivo, o neoliberalismo pretende que tudo seja “economicizado”, isto é, todas as esferas precisam ser regidas pelos princípios de mercado e pela concorrência (BROWN, 2015). Como argumentam Dardot e Laval (2016, p. 32-33), “o neoliberalismo é precisamente o desenvolvimento da lógica do mercado como lógica normativa generalizada, desde o Estado até o mais íntimo da subjetividade”. Assim sendo, enquanto racionalidade, o neoliberalismo não irá apenas regular a ação estatal, mas a conduta de cada indivíduo: “A racionalidade neoliberal tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 16).

Isso, no entanto, não é suficiente para a efetivação da “ordem espontânea”; faz-se necessário que se combata tudo aquilo que perturbe seu avanço. Em resumo,

mais que um projeto de ampliação da esfera da competição e valoração de mercado [...], o neoliberalismo hayekiano é um projeto político-moral que visa proteger as hierarquias tradicionais negando a própria ideia do social e restringindo radicalmente o alcance do poder político democrático nos Estados-nação (BROWN, 2019, p. 23).

Esses dois pontos, o “destronamento da política” e o “desmantelamento do social” (BROWN, 2019), serão analisados aqui.

Quanto ao primeiro aspecto, segundo Brown (2019), na visão dos autores neoliberais, a democracia representativa exercida em grandes Estados-nação e baseada no sufrágio universal seria constantemente uma ameaça às normas comunitárias organicamente evoluídas – mercado e moral tradicional. Isso porque, para eles, a soberania popular ilimitada traria como consequência o fato de que sempre a classe numericamente maior teria o controle, tornando-se inevitável o triunfo de algum tipo de Estado social, o que fatalmente levaria ao totalitarismo.

Dessa forma, é preciso que a soberania popular seja severamente limitada. Para isso, a solução é fazer com que o caráter político da democracia seja esvaziado, retirando os conflitos, as deliberações, as reivindicações e as contestações que dão substância à democracia enquanto governo do povo. Tudo para impedir que a política intervenha na autonomia do econômico. O único princípio que resta, portanto, é a liberdade individual, entendida aqui puramente como ausência de coerção pelo poder político e como exercício livre da propriedade. Por conseguinte,

o ataque do neoliberalismo à democracia [...] envolve alterar os significados da democracia, reduzindo-a a um “método” de estabelecer regras em vez de uma forma de governo, restringindo seu escopo ou apartando-a do governar. O sufocamento da democracia foi fundamental, e não incidental, para o programa neoliberal mais am-

plo. As energias democráticas, acreditavam os neoliberais, entopem inerentemente o político, o que ameaça a liberdade, a ordem espontânea e o desenvolvimento - e, no extremo, produzem o despotismo ou o totalitarismo de Estado (BROWN, 2019, p. 76).

Fundamenta-se a governança, a forma administrativa do neoliberalismo (BROWN, 2015). Como consequência, tem-se um governo tecnocrático e despolitizado, que rejeita “a participação cidadã ou o compartilhamento do poder democrático” (BROWN, 2019, p. 98).

Indo além, “toda a reflexão sobre a administração pública adquire um caráter técnico, em detrimento das considerações políticas e sociais que permitiriam evidenciar tanto o contexto da ação pública como a pluralidade das opções possíveis” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 380).

Ainda assim, não basta apenas despolitizar a sociedade, é preciso a desmantelar, isto é, atacar sua própria existência. Em uma frase que não poderia melhor resumir esse pensamento, Thatcher disse o seguinte: “Não existe tal coisa como a sociedade. Existem apenas indivíduos e suas famílias” (THE GUARDIAN, 2013, n.p.).

Em suas teorizações, Hayek argumenta que a ideia de sociedade não passa de uma “ilusão fatal”, dado que exprimiria a maneira como os seres humanos se organizavam no passado, quando em pequenos e íntimos grupos, mas não como hoje, em Estados-nação (BROWN, 2019).

Para o autor, na Modernidade, a interdependência entre as pessoas existe em razão de estas seguirem as mesmas regras, que emanam dos mercados e da moral, e não de um sentimento comunitário. Daí provém a radical oposição dos neoliberais a qualquer medida de justiça social: se não há sociedade e os indivíduos são regidos pela “ordem espontânea”, qualquer ação que busque remediar as desigualdades não passa de um desejo de ordenar racionalmente o mundo e, portanto, de uma agressão às leis morais e de mercado. Além disso, a própria ideia de uma preocupação com a igualdade não faz sentido em um ambiente de concorrência, cujo fundamento é a desigualdade, que se normaliza e se reproduz. Indo adiante, uma vez que não há o espaço social, não há opressões de classe, de raça e de gênero (BROWN, 2019).

Em outra linha de pensamento, esta de origem ordoliberal, o capitalismo promoveria, inevitavelmente, uma população que cada vez mais se comporta como massa: “uma força social desindividualizada e até mesmo desterritorializada, propensa a se revoltar contra ele brandindo demandas por um Estado social ou uma revolução socialista” (BROWN, 2019, p, 49).

Desse modo, era essencial a construção de uma estratégia que se opusesse às preocupações mencionadas. Tal ataque ao social se realizará por diversas maneiras:

Epistemologicamente, o desmantelamento da sociedade envolve a negação de sua existência, como Thatcher fez nos anos 1980, ou a rejeição a preocupação com a desigualdade como “política da inveja” [...] Politicamente, envolve o desmantelamento ou a privatização do Estado social - seguridade social, educação, parques, saúde e serviços de todos os tipos. Legalmente, envolve o manejo de reivindicações de liberdade para contestar a igualdade e o secularismo, bem como as proteções ambientais, de saúde, de segurança, laborais e ao consumidor. Eticamente, envolve a contestação da justiça social por meio da autoridade natural dos valores tradicionais. Culturalmente, implica uma versão do que os ordoliberais chamaram de “desmassificação”, escorando os indivíduos e famílias contra as forças do capitalismo que os ameaçam. (BROWN, 2019, p. 48-49)

É justamente esse último ponto, a “desmassificação”, que nos servirá de base para estudar o fenômeno da uberização. A racionalidade neoliberal, como já foi exposto, transforma a conduta individual e promove uma radical alteração na subjetividade, fazendo com que nasça o sujeito-empresa. Isso incita os indivíduos “a ‘cuidar deles mesmos’, a não contar mais com a solidariedade coletiva e a calcular e maximizar seus interesses, perseguindo lógicas mais individuais num contexto de concorrência mais radical entre eles” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 239).

Dessa forma, cada indivíduo vê a si mesmo como uma empresa, submetido às mesmas normas que regulam o mercado, que “deve maximizar seus resultados, expondo-se a riscos e assumindo inteira responsabilidade por eventuais fracassos” (DARDOT; LAVAL, 2016 p. 329). O sujeito se torna, consequentemente, capital humano, necessitando de autovalorização constante e submetido à lógica da mercadoria.

Ocorre, dessa forma,

uma individualização radical que faz com que todas as formas de crise social sejam percebidas como crises individuais, todas as desigualdades sejam atribuídas a uma responsabilidade individual. A maquinaria instaurada transforma as causas externas em responsabilidades individuais e os problemas ligados ao sistema em fracassos pessoais (DARDOT; LAVAL, p. 347).

Essa destruição das esferas coletivas de existência viabilizada pelo neoliberalismo acometerá profundamente o mundo do trabalho, o que será mais detalhado adiante. Porém, deve-se desde já entender que os trabalhadores, promovidos a “empreendedores de si mesmos”, deixam de ser ver como parte de uma mesma classe social, ficando à mercê das flutuações do mercado e tendo que arcar com o próprio risco (DARDOT; LAVAL, 2016). Concomitantemente, ao se enfraquecer a democracia, retira-lhe a capacidade de uma luta

política por seus direitos, desestruturando-se o Estado social e transferindo tudo que por este era proporcionado aos indivíduos e às famílias. Inversamente, o Estado neoliberal irá

bloquear principalmente um tipo específico de conflito, a saber, aquele que coloca em questão a gramática de regulação da vida social. Isso significava, concretamente, retirar toda a pressão de instâncias, associações, instituições e sindicatos que visassem questionar tal noção de liberdade a partir da consciência da natureza fundadora da luta de classe (SAFATLE; SILVA JUNIOR; DUNKER, 2021, p. 18).

Cabe aqui, no entanto, retomar a ressalva feita ainda no início da argumentação. As alterações promovidas nas relações laborais, assim como em toda a sociedade, não decorrem apenas de uma transformação de racionalidade. É também o poder do capital, como nos lembram os marxistas, que ocasionou o desmonte do Estado social, o enfraquecimento dos direitos trabalhistas, a perda do emprego assalariado e sindicalizado e a criação de novas modalidades de trabalho precarizadas e sem garantias, em meio à constante ameaça do desemprego (BROWN, 2019). De nenhuma maneira se pode desprezar, como argumenta David Harvey (2008, p. 27), a neoliberalização como “um projeto político de restabelecimento das condições de acumulação do capital e de restauração do poder das elites econômicas.”

O que foi argumentado até aqui é um modelo generalizado de como atua a estratégia neoliberal. É impossível, no entanto, tratar das implicações do neoliberalismo no Brasil, sem situá-lo espacialmente. Por aqui, assim como em todo o Sul global, nunca houve de fato uma estrutura de bem-estar social consolidada, apenas sopros frágeis e esporádicos (HONESKO, 2020).

Ademais, no Brasil, dada sua longeva e persistente herança escravista, não se pode desconsiderar o “horizonte de recepção ainda mais naturalizado” que encontra o neoliberalismo, uma vez que “a luta diária por condições elementares de subsistência já é uma constante secular” (HONESKO, 2020, p. 54-55).

Tendo isso em mente, analisaremos com mais cuidado os meandros da influência neoliberal no Brasil e as decorrentes transformações da sociedade e do mundo do trabalho, bem como a maneira pela qual o direito lidará com essas mudanças.

3. A UBERIZAÇÃO COMO MANIFESTAÇÃO DO NEOLIBERALISMO

O objeto do presente capítulo é a análise das novas modalidades de trabalho em relação a como opera a racionalidade neoliberal na sociedade, em especial a brasileira. Primeiramente, faz-se necessária uma diferenciação das concepções de “trabalho”.

Partindo de uma perspectiva marxista, o trabalho, ontologicamente falando, é marca central na caracterização do ser humano, sendo componente medular de várias das diferentes possibilidades nas quais o social se apresenta. Nesse sentido, Karl Marx vai dizer que o trabalho é “uma condição de existência do homem, independente de todas as formas sociais, [é uma] eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida humana” (MARX, 2013, p. 115). Ou seja, o trabalho seria algo inerente ao homem e diretamente atrelado ao social. Contudo, diversos foram os fatores que induziram uma mutação na relação da classe trabalhadora com o trabalho em si.

O jurista Renan Kalil (2019) coloca como um dos marcos da linha do tempo das transformações das relações laborais a chamada “Era de Ouro”, compreendida entre meados da década de 1940 até por volta de 1970, período que possui como aspectos basilares a organização da produção por meio do taylorismo-fordismo, a influência de políticas econômicas keynesianas, a enfática intervenção estatal na economia e a construção de um Estado de bem-estar social.

A partir disso, sistematiza-se o controle sobre todas as ações dos operários de uma forma racionalizada, de modo que Ricardo Antunes, a partir da perspectiva de György Lukács, diz que esse sistema “penetrava até a ‘alma do trabalhador’, alicerçando os fundamentos da coisificação, numa complexa articulação entre materialidade e subjetividade operária” (ANTUNES, 2018, p. 91).

Porém, o pensamento neoliberal passa a suplantar o modelo prevalecente da Era de Ouro, principalmente a partir da obra de Friedrich Hayek. Este argumenta que “os esforços para promover um planejamento centralizado e criar procedimentos sociais padronizáveis acabavam por restringir o espírito humano e o comportamento social” (KALIL, 2019, p. 57).

As críticas de Hayek, embebidas no viés econômico, compreendem como inaceitável um grupo pequeno pretender e acreditar ter condições de prever racionalmente o funcionamento da economia, pois, como já argumentamos, isso seria uma violação da “ordem espontânea” (BROWN, 2019). Sob essa análise,

o planejamento tenderia ao fracasso, uma vez que os responsáveis por sua realização não teriam a totalidade de informações necessárias para se assegurar que os atores econômicos se comportariam da forma prevista e desejada, além de o ente estatal acabar por impor um controle autoritário sobre o que as pessoas poderiam fazer. Esse quadro demonstraria a necessidade de se abrir espaço ao livre mercado, que daria as condições necessárias para a tomada de decisões apropriadas sobre a alocação de recursos da maneira mais eficiente e guiadas pelo interesse individual do ator econômico racional (KALIL, 2019, p.57).

Assim, o sistema capitalista vivencia uma remodelação de enormes proporções, com alterações no processo de produção e de trabalho (ANTUNES, 2018). Busca-se um mecanismo mais flexível, que acarrete em efeitos que atinjam a subjetividade do e da trabalhadora. Isso contribui para o processo de individualização das esferas sociais, afastando cada vez mais a classe trabalhadora da concepção natural e humanizada de trabalho, retirando o pensar e deixando apenas o executar.

É por isso que, hoje, nenhuma fábrica ou empresa usa, em sua terminologia gerencial, denominações como “operários”, “trabalhadores”, optando por recorrer à apologética presente na ideologia dos “colaboradores”, “parceiros”, “consultores” ou denominações assemelhadas (ANTUNES, 2018, p. 92).

Sobre esse olhar acerca das práticas laborais, Ricardo Antunes (2019) comenta que perde espaço a ideia do operário industrial, consolidada no modelo taylorista-fordista, ao mesmo passo que, tendo como princípio base a flexibilidade, novas modalidades de trabalho precarizado conquistam cada vez mais terreno. Para ele, “as trabalhadoras de telemarketing e call center, os motoboys que morrem nas ruas e avenidas, os digitalizadores que laboram (e se lesionam) nos bancos, os assalariados do fast-food” são exemplos dessa nova variante (ANTUNES, 2019, p. 54-55). Expandindo-se essa análise, origina-se uma “‘reação em cadeia’, produzindo ‘sujeitos empreendedores’ que, por sua vez, reproduzirão, ampliarão e reforçarão as relações de competição entre eles, o que exigirá [...] que eles se adaptem subjetivamente às condições cada vez mais duras que eles mesmos produziram” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 330).

Nesse ponto, é fundamental entender como essa transformação nos sentidos do trabalho opera como parte do que temos chamado de desmantelamento da sociedade. A “empreendorização”, ao submeter todos à competição constante e à luta diária pela sobrevivência, retira o horizonte de unidade na ação política dos trabalhadores, ao “desarticular os mecanismos de interação social e de resistência coletiva” (DELGADO; CARVALHO, 2020, n.p.). Isso porque estes deixam de ver a si mesmos como parte de uma mesma classe para se enxergarem como potenciais concorrentes, desbancando o fenômeno da “proletarização”, que tanto preocupava os ordoliberais (BROWN, 2019).

Observando mais a fundo as transformações no mundo do trabalho, Safatle, Silva Junior e Dunker (2021) consideram o neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico do trabalhador. Sob essa visão, a razão neoliberal

descobriu que se pode extrair mais produção e mais gozo do próprio sofrimento. Encontrar o melhor aproveitamento do sofrimento no trabalho, extraindo o máximo de cansaço com o mínimo de risco jurídico, o máximo de engajamento no projeto com o

mínimo de fidelização recíproca da empresa, torna-se regra espontânea de uma vida na qual cada relação deve apresentar um balanço e uma métrica (SAFATLE; SILVA JUNIOR; DUNKER, 2021, p. 7).

Um marco recente a ser considerado quando se pensa em investigar essa nova modalidade de exploração diz respeito à “uberização”, termo em referência à empresa Uber e que vem sendo utilizado para expor a relação entre as novas inovações tecnológicas e a intensificação da precarização. A uberização faz parte das transformações recentes na relação ser humano/trabalho presentes no atual capitalismo.

Por ser um termo ainda recente, diversas expressões sinônimas podem ser encontradas fazendo referência ao mesmo fenômeno, variando de acordo com a perspectiva escolhida como base da investigação. Assim, termos como economia de compartilhamento, economia de bico, capitalismo de plataforma e economia sob demanda são algumas das outras possibilidades de denominações (KALIL, 2019). Para este artigo, a escolha foi pela expressão supramencionada: uberização.

Independentemente do termo utilizado, o que se observa é a transformação da força de trabalho em uma mercadoria que tem por objetivo criar ainda mais mercadorias, portanto, ela transfigura-se em um meio, deixando de ser uma necessidade básica de ação humana relacionada ao seu espírito (ANTUNES, 2018). As novas modalidades presentes no mundo do trabalho colocam o indivíduo em situações cada vez mais precarizadas – sem contar as taxas descomunais de desemprego:

A corrosão progressiva dos direitos ligados ao status de trabalhador, a insegurança instilada pouco a pouco em todos os assalariados pelas “novas formas de emprego” precárias, provisórias e temporárias, as facilidades cada vez maiores para demitir e a diminuição do poder de compra até o empobrecimento de frações inteiras das classes populares são elementos que produziram um aumento considerável do grau de dependência dos trabalhadores com relação aos empregadores. [...] Nesse sentido, a “naturalização” do risco no discurso neoliberal e a exposição cada vez mais direta dos assalariados às flutuações do mercado, pela diminuição das proteções e das solidariedades coletivas, são apenas duas faces de uma mesma moeda. Transferindo os riscos para os assalariados, produzindo o aumento da sensação de risco, as empresas puderam exigir deles disponibilidade e comprometimento muito maiores (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 330).

Dentro dessa linha de raciocínio, Ludmila Costek Abílio (2017), uma das principais referências no estudo da uberização, parte da concepção de que essa é uma nova fase de exploração capitalista que funciona de forma catalisadora na consolidação da ideia de sujeito-empresa. Isso corrobora o entendimento de que o atual modelo econômico não é

simplesmente um sistema de produção de riquezas, mas também essa racionalidade que atua na edificação de novos sujeitos (DARDOT; LAVAL, 2016).

Como mencionado, é difícil definir com precisão esse processo, porém existem algumas características comuns como a necessidade de permanente disponibilidade para o trabalho, a execução de tarefas seguindo com exatidão as determinações feitas pelas plataformas e a escassa quantidade de garantias mínimas às e aos trabalhadores (ABÍLIO, 2017; KALIL, 2019). Como relata Wendy Brown (2019, p. 50-51):

os trabalhadores desproletarizados e dessindicalizados de hoje entram na economia do “compartilhamento” e da terceirização, na qual transformam suas posses, tempo, conexões e eus em fontes de capitalização. Arrendando quartos no Airbnb, dirigindo para o Lyft ou Uber, trabalhando para o Task Rabbit como freelancers, compartilhando bicicletas, ferramentas e carros ou simplesmente gerenciando uma variedade de fontes de renda de tempo parcial e de curto prazo (“bicos”), indivíduos e famílias visam sobreviver aos cortes e às recessões econômicos.

Ainda, os e as trabalhadoras enfrentam a imposição de contratos de curta duração, muitas vezes sendo “alugados” por uma mísera quantidade de horas diárias. Em resumo, Podemos entender a uberização como um futuro possível para empresas em geral, que se tornam responsáveis por prover a infraestrutura para que seus ‘parceiros’ executem seu trabalho; não é difícil imaginar que hospitais, universidades, empresas dos mais diversos ramos adotem esse modelo [...] Este parece ser um futuro provável e generalizável para o mundo do trabalho. Mas, se olharmos para o presente da economia digital, [...] já podemos ver o modelo funcionando em ato, assim como compreender que não se trata apenas de eliminação de vínculo empregatício: a empresa Uber deu visibilidade a um novo passo na subsunção real do trabalho, que atravessa o mercado de trabalho em uma dimensão global, envolvendo atualmente milhões de trabalhadores pelo mundo e que tem possibilidades de generalizar-se pelas relações de trabalho em diversos setores (ABÍLIO, 2017, n.p.).

Especificamente neste trabalho sob demanda por meio de aplicativos, a intermediação das relações trabalhistas é feita por meio de um gerenciamento algorítmico, acentuando a desumanização e a individualização, não permitindo que o sujeito se veja como parte de algo maior e coletivo. O algoritmo assume o papel de ditar as regras do jogo, agindo de forma “invisível, apesar de integrado em diversos aspectos do cotidiano das pessoas, torna-se uma caixa preta e é afastado do escrutínio do público, passando a ser encarado como um elemento natural” (KALIL, 2019, p. 123).

A narrativa oferecida, e que será ferrenhamente defendida pelas plataformas, é a do algoritmo como mecanismo “impenetrável e racional para a organização da produção, indo além das capacidades gerenciais do ser humano” (KALIL, 2019, p. 124). É como se o algoritmo fosse elevado à mesma condição das leis morais e de mercado, tornando-se parte da “ordem espontânea”. Essa força teria como propósito providenciar os meios para fortalecer este novo setor do mercado e otimizar o atual processo acelerado e flexível de trabalho. O que as plataformas buscam é se eximir de suas responsabilidades atribuindo-as ao algoritmo, enquanto o gerenciamento de recursos humanos é deslocado para quem está consumindo o serviço (KALIL, 2019).

Desse modo, os trabalhadores e trabalhadoras ficam desamparados e correndo atrás de alcançarem boas avaliações, visto que as notas mais baixas são proporcionais às problemáticas em conseguir trabalho. Soma-se a isso o risco de serem suspensos da plataforma ou simplesmente não receberem tarefas. Trata-se de um sistema obscuro: geralmente os critérios para os trabalhadores alcançarem os status mais elevados não são transparentes e as motivações das sanções parecem operar de forma arbitrária e imprevisível, podendo em alguns casos ser racista ou sexista. As punições ainda podem ser aplicadas sem aviso prévio e a queda das notas ocorrem sem que os trabalhadores entendam a razão pela qual estão sendo penalizados (KALIL, 2019, p.125).

Isso se manifesta como a perfeita materialização do sujeito enquanto capital humano, precisando agregar valores e qualidades a si mesmo, como uma mercadoria (SAFATLE; SILVA JUNIOR; DUNKER, 2021). Nesse sentido, “todas as suas atividades devem assemelhar-se a uma produção, a um investimento, a um cálculo de custos” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 331).

Além das dificuldades com o algoritmo, há de se analisar a quantidade de modalidades de trabalho intermitente que se estabelece à medida que as e os trabalhadores apenas são remunerados pelas horas efetivamente laboradas. Ou seja, esse tempo gasto esperando o aplicativo redirecionar para uma demanda não é pago. Isso faz com que as e os entregadores sejam submetidos a jornadas excessivas e desumanas de trabalho, para compensar esse tempo de espera (ANTUNES; SANTANA, 2021).

Essa estratégia soma-se com uma variedade de técnicas para maximizar a exploração do trabalhador que caracterizam o trabalho contemporâneo, tais como

Dar mais serviço do que alguém pode realizar, atribuir mais controles e responsabilidades do que alguém é capaz de cumprir no horário regular de trabalho, criar metas inexequíveis para “puxar ao máximo” os esforços do trabalhador, criar políticas de

competição entre departamentos e sistemas predatórios de bônus são exemplos de como o aumento de sofrimento, segundo a racionalidade da gestão e principalmente da microgestão, extrai valor de condições precárias de trabalho, o que acaba reunindo o mundo corporativo com aqueles que já têm um relação precarizada com o labor, seja por contratos intermitentes (zero hora), seja por terceirização ou exclusão de benefícios protetivos (SAFATLE, SILVA JUNIOR, DUNKER, 2021, p. 240-241).

Expostas as transformações provocadas pelo neoliberalismo no mundo do trabalho, articuladas com a noção de desmantelamento da sociedade e das esferas coletivas da existência, partiremos para a análise de como se dá a instrumentalização do direito por essa racionalidade.

3.1 A RACIONALIDADE NEOLIBERAL APLICADA AO DIREITO FRENTE À PRECARIZAÇÃO DO MUNDO DO TRABALHO

A racionalidade neoliberal, como exposto anteriormente, não se restringe às políticas econômicas, mas se dissemina por todas as esferas. Dentre elas, tem-se o direito, que é submetido à lógica da economicização e instrumentalizado como propagador e suporte da razão neoliberal, fundamentando e protegendo o ambiente de competição em vez dos direitos (BROWN, 2015).

Sob essa perspectiva, o direito “economiciza” novas esferas e práticas, de modo que passa a ser um meio de disseminar a racionalidade neoliberal para além do econômico. Não somente assegurando a estrutura de competição, a razão jurídica neoliberal reformula os direitos, a cidadania e o campo da democracia em si sob uma perspectiva apenas econômica (BROWN, 2015).

Em sua obra, Wendy Brown (2019) analisa a jurisprudência da Suprema Corte estadunidense para identificar uma tendência de casos nos quais a razão neoliberal se manifesta. Em tais decisões, visualiza-se claramente o esforço de ampla desregulamentação em nome da liberdade, mas que favorece os interesses corporativos. Para Brown, essa incorporação ao pensamento jurídico de um “discurso de mercados desregulados” constitui “uma nova força político-legal” (BROWN, 2019, p. 152).

Partindo desse ponto, iremos nos propor a fazer algo semelhante para analisar o papel do direito brasileiro na disseminação da racionalidade neoliberal, no sentido de efetivar a subjetivação do trabalhador enquanto empresa de si mesmo e, assim, enfraquecer a ação coletiva.

Antes disso, porém, cabe analisar a trajetória de alterações da legislação trabalhista que ocorreram no passado recente do Brasil. A agenda neoliberal para o mundo do traba-

lho tem avançado nas últimas duas décadas, em especial a partir do golpe contra Dilma Rousseff em 2016. Ricardo Antunes (2018) denomina o Governo Temer como “o governo da devastação” e é nesse período que são promulgadas a Lei 13.467/2017, da Reforma Trabalhista, e a Lei n. 13.429/2017, que permite a terceirização ilimitada, irrestrita e sem qualquer regulamentação.

Essas mudanças se configuram como uma transformação da lógica positivada na Constituição de 1988, a qual, sob um viés mais social-democrata, “representava a proteção ou limitação do sofrimento do trabalhador”, enquanto que “o neoliberalismo pode ser definido como uma gestão do sofrimento” (SAFATLE; SILVA JUNIOR; DUNKER, 2021, p. 238-239).

Ainda, mais de dois anos após o início do governo Bolsonaro, o qual representa uma radicalização do modelo neoliberal sob uma plataforma política autoritária (HONESKO, 2020), um bom resumo da contribuição que este desempenhou em relação à legislação trabalhista se materializa no conteúdo manifestado na seguinte fala do atual Presidente: “O trabalhador terá que escolher entre mais direito e menos emprego, ou menos direito e mais emprego” (UMPIERES, 2018, n.p.). Uma fala que segue o mantra neoliberal de que “não há alternativa” (BROWN, 2019).

No Brasil atual é possível verificar o cumprimento prático de tal colocação, com a taxa média de desemprego sendo a maior desde 2012 (UOL, 2020) e com cada dia mais brasileiros se vendo obrigados a recorrer à informalidade para sobreviver. Nesse contexto, os juristas José Antônio Peres Gediel e Lawrence Estivalet de Mello afirmam:

Para esse contingente de cerca de 13 milhões de desempregados e 23 milhões de trabalhadores informais, a demanda por direitos inerentes ao vínculo formal de trabalho se apresenta como um “privilégio”, expressão que ganha novo sentido com a contrarreforma trabalhista, que requalifica os postulados protetivos do trabalho livre, pois com a liberdade contratual ilimitada aproxima o contrato de trabalho do que Ricardo Antunes (2018) denomina privilégio da servidão (GEDIEL; MELLO, 2020, p. 2253).

Nesse cenário, dados da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) mostram que o número de pessoas trabalhando com entregas por meio de aplicativos passou por uma crescente nos últimos anos, tendo atingido a marca de mais de 5 (cinco) milhões de indivíduos nessa situação de informalidade (DEISTER; MIRANDA, 2020).

Todavia, há de se analisar que o reconhecimento do vínculo entre o entregador e a plataforma contratante ainda não está pacificado, havendo divergências na doutrina e jurisprudência. Em suma, a maioria das decisões judiciais são contrárias aos trabalhadores e os empurram para o custoso processo de descentralização da produção, intensificando a

transferência de responsabilidades. O argumento seria a não verificação de elementos jurídicos-formais, impossibilitando a caracterização dos contratados enquanto empregados. Vide exemplo de decisão nessa linha:

IFOOD. ENTREGADOR. VÍNCULO DE EMPREGO. REQUISITOS LEGAIS. AUSÊNCIA DE PROVA. Para a configuração da relação de emprego, há mais relevo nos elementos fático-jurídicos, pessoalidade, onerosidade, não eventualidade, subordinação, alteridade - arts. 2º e 3º da CLT -, do que nos jurídico-formais, tendo em vista o princípio da materialidade, a primazia da realidade que rege o Direito do Trabalho. Ausente um desses requisitos, não há vínculo empregatício a ser declarado. Apelo da 2ª ré provido (TRT-18 - ROT: 00117404120195180008 GO 0011740-41.2019.5.18.0008, Relator: EUGENIO JOSE CESARIO ROSA, Data de Julgamento: 01/06/2020, 2ª TURMA).

Nesses casos, os entregadores são enquadrados como trabalhadores autônomos. Renan Kalil (2019, p. 229) elucida que o trabalho na categoria de autônomo é visto como “antítese do trabalho subordinado e, portanto, da relação de emprego” e afirma que “trata-se de relação em que os laços entre o tomador de serviços e o trabalhador são mais fracos”. Porém, na emblemática decisão proferida pela juíza Lávia Lacerda Menendez, que aqueceu o debate a favor da classe trabalhadora, percebe-se que:

Diversa é a situação daquele trabalhador que coloca sua força de trabalho a serviço do aplicativo. Este não fixa o preço, forma de pagamento, logística, prazos, não define as condições da oferta do bem. Nesse caso, quem oferece o serviço e define suas condições é o aplicativo. Os clientes são do aplicativo, não dos entregadores. A relação do cliente se dá com o aplicativo, não com o entregador, visto que todos os entregadores fazem o mesmo serviço. O cliente não escolhe o entregador, mas pelo serviço ofertado pelo aplicativo, feito por qualquer entregador. O “bem” ofertado pela plataforma é um só: o serviço de entrega, sem distinção de preço ou qualidade. O aplicativo não é apenas o meio da realização da transação, mas seu próprio realizador, idealizador, vendedor, empreendedor. Ele estipula as regras e o prestador de serviços e o cliente final a elas aderem como num contrato de adesão: não se negocia preço ou modo de confecção ou realização (TRT-2- 8ª Vara do Trabalho de São Paulo | ACPCiv 1001058-88.2018.5.02.0008, Sentença proferida em: 06/12/2019).

O caso foi julgado no âmbito da Justiça do Trabalho de São Paulo, em dezembro de 2019, e reconheceu o vínculo empregatício entre as e os entregadores da Loggi com a empresa, conferindo multa no valor de R$30 milhões para a plataforma. A juíza argumentou que, ao considerar os trabalhadores e trabalhadoras como autônomos, feria-se direitos sociais mínimos. Ainda, a magistrada ressalta que não há como ignorar o aspecto negativo que

essa nova modalidade de trabalho apresenta, contribuindo para a precarização das relações trabalhistas (SÃO PAULO, 2019). Todavia, apesar de relevante para o debate em torno da questão aqui suscitada, a decisão não perdurou por muito tempo, tendo sido suspensa pelo Tribunal Regional do Trabalho (TRT-2), de modo que a predominância de sentenças segue sendo em benefício das gigantes plataformas (FORBES, 2019).

Destarte, nota-se provada uma das principais características da uberização, que segundo Renan Kalil (2019) se configuraria em um quadro de trabalhadores desamparados, sem regulação do trabalho que exercem, seja por meio de lei ou instrumento coletivo, inexistindo, portanto, meios de proteção aos quais recorrer. Portanto, como demonstrado pelas divergências existentes, a situação dos e das entregadoras de aplicativo se encontra em uma massa cinzenta entre a categoria de empregado e empregador, e o direito os empurra para o lado mais inseguro e menos protegido.

Por conseguinte, há uma nítida exteriorização da racionalidade neoliberal, visto que é possível traçar uma relação entre esta e o modo jurídico de pensar que está sendo exercido. Verifica-se que

Essa forma de regulação jurídica é típica das políticas neoliberais, pois o Direito apenas legitima por meio de normas as situações de fatos já existentes nas relações trabalhistas precarizadas em virtude das políticas de austeridade e do desemprego estrutural (GEDIEL; MELLO, 2020, p. 2240).

Esse panorama evidencia a utilização do direito como uma ferramenta que mantém benefícios para uma parcela em detrimento de precarizar a vida de outra. Dessa forma, o direito trata de maneira cruel os direitos sociais, principalmente nos países periféricos.

Valendo-se da análise realizada por Wendy Brown, Gediel e Mello (2020, p. 2254), categorizam os resultados da interferência dessa racionalidade no cenário jurídico brasileiro em três:

Erosão dos direitos sociais constantes da estrutura normativa estatal; a aparente valorização da autonomia dos trabalhadores e a consequente responsabilização por eventuais erros de suas escolhas, em nome de uma razão sacrificial; a promessa neoliberal de libertar a cidadania do Estado, da política e das questões sociais.

Assim sendo, fica evidente a propagação dessa racionalidade que perpassa a esfera econômica, infiltrando-se no político, jurídico e social da sociedade, propiciando a proliferação da estratégia neoliberal por meio da “economização” dos direitos, algo examinado pela socióloga Wendy Brown (2019) no contexto estadunidense, e que, nas circunstâncias

brasileiras, pretende se materializar por meio de uma sequência de disposições legislativas (GEDIEL; MELLO, 2020).

Nessa perspectiva de expansão da uberização e consequente acúmulo de riscos e obstáculos a serem vencidos, faz-se necessário debater acerca da reorganização da luta coletiva das e dos trabalhadores. Como anteriormente explanado, o histórico da classe trabalhadora está atrelado às oposições e manifestações erguidas frente à exploração do sistema capitalista, portanto, abordaremos de que modo vem sendo travada a luta coletiva das e dos uberizados, em especial os entregadores e entregadoras de aplicativos, em relação à subjetivação que a racionalidade neoliberal os impõe.

4. “BREQUE DOS APPS” COMO CONTRACONDUTA E SUA POSSÍVEL RECEPÇÃO PELO DIREITO

Isto posto, procederemos à problemática que se pretende analisar neste artigo. Ao examinar as consequências da expansão do trabalho uberizado, não se pode olvidar dos impactos da pandemia do Covid-19, que incendeia todas as nocivas centelhas que permeavam o cenário social, político e econômico brasileiro. Em meio a uma crise de nível global, as recomendações para frear a contaminação se concentraram principalmente no incentivo do isolamento social.

Muitos trabalhadores e trabalhadoras passaram para o home office (teletrabalho). De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), até o fim de 2020, cerca de 7,6 milhões de brasileiros estavam trabalhando neste regime em razão da pandemia (IPEA, 2021). Em contrapartida, a maior parte da classe trabalhadora brasileira não teve a possibilidade de trabalhar de casa, encontrando-se desprotegida ao enfrentar o dilema de não seguir as recomendações sanitárias e se arriscar para trabalhar ou permanecer em casa sem as condições necessárias para sobreviver (ANTUNES; SANTANA, 2021).

Neste contexto, a Rappi, uma das gigantes entre os serviços de entrega, revelou que, entre março e junho de 2020, o aumento no número de pedidos chegou à marca de 300%, advindos em sua maioria de supermercados, farmácias e restaurantes. Consequentemente, também subiu a quantidade de trabalhadores e trabalhadoras cadastrados nestas plataformas como contratados para atender tais demandas. Os números não são exatos, mas fala-se em um aumento de 500% no número de entregadores e entregadoras vinculados a aplicativos de delivery (LARGHI, 2021).

Porém, proporcional ao crescimento de trabalhadores desta categoria foi o número de problemáticas atreladas às atividades que estes desenvolvem. Marco Santana e Ricardo Antunes (2021, n.p.) comentam que se o panorama “já era caracterizado pela verdadeira

terra arrasada de direitos e pela desproteção social, a eclosão do Covid-19 escancarou a sua gravidade e intensificou fortemente seus impactos”.

Foi diante destas condições que o movimento “Breque dos Apps” se edificou em 2020, atingindo dimensões a nível nacional e contando com a participação de diversas associações, coletivos e grupos autônomos e novas lideranças que surgiram no processo (ANTUNES; SANTANA, 2021). O ato ficou marcado principalmente na data 1 de julho de 2020, que reuniu manifestações em diversas cidades brasileiras.

As reivindicações passaram pela problemática já exposta acerca do não reconhecimento do vínculo empregatício, porém também levantaram outras pautas que escancaram a situação do trabalho precarizado no Brasil. Como, Antunes e Santana (2021, n.p.) elencam algumas das pretensões do movimento:

Busca de melhores condições de trabalho, exigindo aumento das taxas de entregas e elevação da taxa mínima; exigiam o fim dos bloqueios realizados pelas empresas sem explicação; reivindicavam seguro contra acidentes e roubos, remuneração para os entregadores contaminados pela Covid-19, distribuição de equipamentos (EPIs), ainda que as pautas fossem diferenciadas e não consensuais entre os diversos grupamentos de entregadores.

Não à toa, o “Breque dos Apps” foi considerado por diversas notícias, jornalistas e relatos na mídia como o movimento mais importante realizado em meses (MARIN, 2020). Portanto, resta evidente a pertinência dessa manifestação da classe trabalhadora frente à exploração desenfreada do capitalismo neoliberal.

A partir disso, o que propomos aqui é tomar essas manifestações como uma resistência ao neoliberalismo não só no plano material, mas da subjetividade. Tal fato se configura como uma nova forma de resistência de imensa relevância. Como avaliou Brown (2019, p. 66), o neoliberalismo, em razão de sua complexidade, produziu uma desorientação geral da esquerda, de modo que “É um sinal do triunfo da razão neoliberal o fato de que, nas décadas recentes, a gramática do social [...] tenha desaparecido largamente das visões da esquerda (e não apenas da direita) para o futuro”.

A esquerda deve reconhecer a nova realidade para arquitetar uma contraposição. Não basta propor o retorno ao “compromisso social-democrata, keynesiano e fordista [...] sem se dar conta de que a dimensão dos problemas mudou, as forças presentes não são mais as mesmas e a globalização do capital destruiu até as bases de tal compromisso” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 393-394). Para Kalil (2019, p. 59), “a esquerda [...] não obteve êxito em ir além da crítica acadêmica e elaborar um projeto alternativo de sociedade que oferecesse políticas concretas”.

Logo, é fundamental que,

Se quisermos ultrapassar o neoliberalismo, abrindo uma alternativa positiva, temos de desenvolver uma capacidade coletiva que ponha a imaginação política para trabalhar a partir das experimentações e das lutas do presente. O princípio do comum que emana hoje dos movimentos, das lutas e das experiências remete a um sistema de práticas diretamente contrárias à racionalidade neoliberal e capazes de revolucionar o conjunto das relações sociais (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 10).

Em suma, para superar o neoliberalismo, é preciso que se crie uma nova razão do mundo, a partir de “formas de subjetivação alternativas ao modelo da empresa de si” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 394). Sob esse paradigma, é essencial o conceito foucaultiano de “contraconduta”. Tal formulação remete a “resistências ao poder enquanto conduta [...] uma ‘luta contra os procedimentos postos em ação para conduzir os outros”’, que deve ser “uma recusa de se conduzir em relação a si mesmo como uma empresa de si e a recusa de se conduzir em relação aos outros de acordo com a norma da concorrência” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 397-398). Para os autores,

A invenção de novas formas de vida somente pode ser uma invenção coletiva, devida à multiplicação e à intensificação das contracondutas de cooperação. A recusa coletiva de “trabalhar mais”, ainda que seja apenas local, constitui um bom exemplo de atitude que pode abrir o caminho para essas contracondutas (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 398-399).

É a partir da ótica exposta que encaramos o “Breque dos Apps”. Esse movimento, caracterizado pela ação conjunta e coletiva de sujeitos que são colocados pela razão neoliberal como indivíduos isolados e concorrentes, empresários de si mesmos, capitais humanos, afronta os alicerces desse pensamento. Quando os entregadores se unem e se entendem como parte de um mesmo grupo explorado, estão lançando as bases para uma nova racionalidade, no melhor exemplo de contraconduta. Em uma frase: “A multidão de trabalhadores uberizados se organizou, apropriando-se da potência que tem enquanto multidão” (ABÍLIO, 2020, n.p.).

Como resumem Antunes e Santana (2021, n.p.),

Foi ela que demarcou, naquele 1 de Julho de 2020, o espaço público, surgindo como novo sujeito coletivo, parte do proletariado de serviços e da classe trabalhadora, que exige aumento da remuneração e melhores condições de trabalho. E, ao assim proceder, o #brequedosapps teve singular impacto, em um universo muito mais amplo, com repercussões na chamada opinião pública, nos consumidores/as, nos partidos políticos, no meio sindical, no legislativo, no judiciário etc.. Coletivamente, saíram da

invisibilidade social, aparentemente individualizada e estranhamente anônima, para a visibilidade social, coletiva, política e de classe.

Foi um marco na luta das e dos trabalhadores, com arrimo na

Constituição brasileira, mas também nas diretrizes internacionais de proteção ao trabalho. Potente, o Breque dos APPs se difundiu de ponta a ponta, fortalecendo os laços de solidariedade, as pautas coletivas e o direito de resistência (DELGADO; CARVALHO, 2020, n.p.).

Por conseguinte, a paralisação nos mostra o caminho da superação da racionalidade neoliberal não só no âmbito da política ou da luta operária em si, mas também dentro do direito, o qual jamais deve ser tomado como uma estrutura neutra e isolada da sociedade; pelo contrário, imersa em suas contradições:

A mobilização dos entregadores de aplicativo é símbolo, portanto, da base democrática sobre a qual deve se erigir os novos arranjos de relações trabalhistas em um mundo digital, para o qual as construções jurídicas devem exercer papel fundamental, sejam como vocalizadoras de demandas, sejam como instrumentos de afirmação civilizatória de direitos (DELGADO; CARVALHO, 2020, n.p.).

Por fim, se a racionalidade disseminada pelo neoliberalismo é capaz de instrumentalizar o direito em favor dos interesses do capital, reforçando o desmantelamento do social ao negar o reconhecimento dos direitos trabalhistas dessa modalidade laboral, por que não pode essa nova racionalidade, cujos pilares foram erigidos nas paralisações dos e das entregadoras, tomar o direito para si, em prol dos interesses da classe trabalhadora?

O que defendemos é que apenas assumindo a dimensão coletiva, a qual, nesse caso, emana das lutas travadas no “Breque dos Apps”, se torna viável disputar as narrativas do direito, buscando derrotar a lógica neoliberal que propaga a farsa da empreendorização em nome da implacável exploração. Com isso, pretende-se edificar um direito orientado pela realidade social, que se permita, por sua vez, funcionar como uma ferramenta emancipadora, ainda que incapaz, por si só, de uma radical transformação da sociedade.

5. CONCLUSÃO

Expusemos uma concepção de neoliberalismo que melhor oferece as respostas às transformações que decorreram da implementação dessa racionalidade, dentre elas a “economização” de todas as esferas da vida humana, o esvaziamento do caráter político da democracia e o ataque ao social e às dimensões coletivas da existência. Tais desdobramentos

ocasionaram a criação de um novo sujeito, entendido como empresa de si mesmo e submetido à “ordem espontânea”, formada pelas leis morais e de mercado, além de expostos à lógica da concorrência.

Diante desse cenário, emerge uma nova modalidade laboral, chamada de uberização. Sob essa análise, naturaliza-se uma concepção de trabalho precarizada, sem direitos e garantias, além de submetidas a uma exploração desumana, em nome do mito da “empreendedorização”. Como um dos exemplos mais evidentes, têm-se as e os entregadores de aplicativo, que, em especial na pandemia, ganharam destaque. Na conjuntura mencionada, ficaram escancaradas as cruéis condições enfrentadas por essa categoria. Em razão dessa situação, essas e esses trabalhadores organizaram uma paralisação, que ganhou o nome de “Breque dos Apps”.

Em nossa análise, esse movimento se configura como um importante marco no enfrentamento ao neoliberalismo, pois retoma a dimensão coletiva que é atacada por essa racionalidade, ao se rejeitar a noção de empreendedor de si mesmo e organizar uma ação conjunta. Diante desse cenário, propusemos que essa resistência transborde também para a esfera do direito, o qual, se atualmente instrumentalizado pelo capitalismo neoliberal, possa agora ser colocado sob disputa, por meio da racionalidade emergente das lutas das e dos trabalhadores uberizados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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