O salário de uma vida

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Raquel de Jesus com Ester Carvalho

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uma vida

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Ficha técnica Título: O salário de uma vida Autor: Raquel de Jesus, com Ester Carvalho Editor: Edições Novas de Alegria Av. Almirante Gago Coutinho, nº158 1700-033 Lisboa | Tel.: 218 429 190 Site: www.capu.pt www.facebook.com/LivrariaCAPU Impressão e acabamento: GRAFISOL - EDIÇÕES E PAPELARIAS, LDA. Revisão: Ana Ramalho Rosa e Samuel R. Pinheiro Design Gráfico: Adilson Morais Foto capa: © Isoga - Shutterstock 1ª Edição outubro 2014 ISBN: 978-972-580-115-4 Depósito Legal: 380834/14 Categoria: 929 Biografia/autobiografia

A tradução base usada nesta obra é a Almeida Revista e Corrigida. As restantes traduções ou paráfrases bíblicas estarão identificadas junto da respetiva citação. Esta obra respeita o novo acordo ortográfico. © Edições NA - Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em breves citações, com indicação da fonte.

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PREFÁCIO

Ao longo dos meus anos de ministério pastoral vi muita coisa, li muitas outras e ouvi ainda mais. No meu trabalho com pessoas, muitas das quais vivem à margem da sociedade, já ouvi expressões muito fortes acerca dos marginalizados tais como: “deviam ser todos colocados num barco e afundado no Tejo.” Talvez expressões como esta sejam resultado de velhos e antigos fantasmas que preenchem a nossa história.

Felizmente que a intenção, se é que o é, não passa de apenas uma expressão verbal. Felizmente, porque desses “marginais” são muitos os que na escuridão do mundo em que se encontravam perdidos “viram uma luz” que os iluminou e que lhes trouxe a promessa de uma realidade diferente daquela onde, em cada dia que passava, se afundavam cada vez mais.

Conheci pessoas, jovens, que encontrávamos nas ruas dormindo ao relento, dentro de automóveis abandonados ou em casas prestes a ruir que viviam amarrados à maldição das palavras de pessoas que, cansadas do “incómodo” causado pelos tais, os rotulavam de drogados, marginais, escória, lixo humano, e a lista continua. Quantos desses jovens se deixaram amarrar pelo rótulo que lhes foi imputado e foi 7

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assim mesmo que se passaram a ver e se deixaram afundar.

Muitos, foram convencidos a fazerem um programa de recuperação de modo a deixarem a vida de toxicodependência, alguns foram prestos na resposta e andam por aí como provas vivas de que é possível vencer, outros porque foram lentos demais em responder ao apelo, acabaram por morrer presos na ponta de uma seringa que lhes inoculou uma overdose.

A história da Raquel de Jesus, é uma dessas histórias, que do ponto de vista sociopsicológico estava desde logo condenada a um tremendo fracasso. Uma infância que não foi fácil, uma adolescência de mudanças abruptas, e mais tarde um vida de drogas e esquemas enviesados, pendências graves com a justiça, dois filhos num orfanato, etc., uma vida com uma via aparente de sentido único, a decadência completa.

Mas existe sempre um “mas”, que no caso da Raquel lhe proporcionou um final feliz.

A Raquel, quando se encontrava no fosso a que a vida e as suas escolhas a haviam levado, lembrou-se de pequenas sementes plantadas no seu coração e permitiu que essas sementes germinassem de modo a proporcionar-lhe uma nova vida. Lembrou-se que a sua mãe, crente em Jesus, estava continuamente orando por ela, lembrou‑se de algumas palavras que ouviu em passagens pela Igreja, e, na cova da aflição em que se encontrava clamou a Deus e Ele ouviu o seu clamor e veio em seu auxílio desenvolvendo nela um processo que fez dela a mulher que é hoje.

Como pastor da Raquel há mais de 10 anos posso dizer que ela é uma mulher em quem ocorreu um poderoso milagre de transformação de vida. Durante muito tempo auxiliou na área do louvor, no trabalho com outros que vivem à margem e noutras áreas. Hoje a Raquel de Jesus serve na nossa instituição “Colinho da Rute” como auxiliar de educação, e nas áreas onde se faz sentir a sua necessidade.

A sua história é uma história de vida impactante e reveladora de

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que independentemente do lugar e da condição em que possamos estar, ainda há Esperança. Somente precisamos de ouvir o convite daquele que pode transformar completamente a nossa vida, Jesus que convidou: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei.” A Raquel respondeu positivamente ao convite de Jesus e hoje é uma mulher completamente diferente, uma mulher que viu o milagre da mudança acontecer a na sua vida que foi restaurada em todas as áreas.

Por tudo isto convido o leitor a sentar-se confortavelmente, respirar fundo, pegar no livro da Raquel e acompanhá-la nesta viagem, cujo final é um final feliz.

António Gonçalves

Pastor evangélico – Benfica Diretor executivo – CAPU|CPAD Livraria Cristã

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NOTA INTRODUTÓRIA

Há já alguns anos que convivo com grandes mulheres, que desejam muito reescrever as suas histórias. Cada história é única, regada de amores e desamores, de esperança e tragédia, de decepções e ilusões, de sonhos e vazios, de perdas e encontros.

Algumas demonstram uma força invencível, coragem e ousadia desmedidas. Outras mostram-se, tantas vezes, frágeis, assustadas e perdidas. Mas, em todas elas há algo em comum: o dom da Vida.

E, porque possuem este dom maravilhoso, a sua história pode ser reescrita.

Nestas páginas está a história de uma mulher persistente e decidida, que luta e ousa acreditar no impossível, e que se deixa envolver nas mãos do Eterno, para que a sua vida seja transformada. É o relato de vida de alguém que trilhou o seu caminho e reescreveu a sua história, que usou a sua liberdade para juntar a sua família, e a sua nova identidade para engrandecer o Autor da Vida.

Ler este livro trouxe à minha memória os momentos vividos com a Raquel; quando entre lágrimas, riso, dor e por vezes tanta angústia, ouvia cada página da sua história, muitas vezes sem saber o que dizer, 11

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ou quando, depois de todo o acompanhamento possível, a única verdadeira esperança era orar ao Deus que tudo pode…

Raquel, a tua vida é uma inspiração! Obrigado pelo privilégio que tenho de fazer parte dela. Não há recompensa maior…

“Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes.” (1 Coríntios 1:27) Rute Morais Conselheira Desafio Jovem

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ÍNDICE Prefácio

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Nota introdutória

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Introdução Quem sou e porque escrevo

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Capítulo 1 Raízes

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Capítulo 2 Abusos

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Capítulo 3 A grande mudança

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Capítulo 4 A sorte grande

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Capítulo 5 O nascimento dos filhos

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Capítulo 6 Padres e freiras

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Capítulo 7 Recuperações frustradas

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Capítulo 8 Quem eram eles?

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Capítulo 9 O resgate

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Capítulo 10 Entrada no Centro de reabilitação do Desafio Jovem

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Capítulo 11 Experiências no Centro

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Capítulo 12 Integração, casamento e voluntariado

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Capítulo 13 Gente que me marcou

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Capítulo 14 O regresso do Daniel... e outros desafios

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Capítulo 15 O meu presente

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Capítulo 16 “Basta a cada dia o seu mal”

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Conclusão Contando as bênçãos

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CAPÍTULO

02

ABUSOS

Este foi um capítulo da minha vida que ficou escondido e muito bem guardado durante anos dentro de mim. Fez uma grande mossa interior e por sua causa construí uma muralha para ocultar os meus sentimentos.

Era uma criança pequena, muito pequena. Este episódio terá durado talvez até aos meus 6 ou 7 anos. Não sei quando terá começado, mas sei que terá terminado nessa altura. A história que milhares de crianças vivem diariamente, o abuso por parte de um familiar. Esse familiar era uma pessoa mais velha, claro, completamente de confiança e nunca ninguém soube o que nos bastidores dos relacionamentos familiares acontecia.

Talvez para algumas pessoas isso não fosse assim tão grave, visto o ato sexual em si nunca ter sido concluído. Mas para mim, que não sabia o que estava a acontecer, aprendi a primeira e a pior lição sobre sexualidade. Foi um muito mau princípio sobre o assunto que viria a viver durante décadas.

O agressor cobria o meu pequeno corpinho com o seu e simulava as relações mesmo por cima das roupas. Não faço ideia se chegava a saciar-se por completo, pois umas vezes aquilo nunca mais acabava, 23

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outras era muito rápido. Tocava-me com as mãos dentro da roupa, devassando assim o meu corpinho que quase tinha acabado de nascer.

E como se isso não chegasse, levava-me para o grupo de amigos onde, fechados numa casa, todos tinham ordem de explorar o meu corpo com as mãos da mesma maneira, dando risadas e dizendo coisas que eu não percebia, só sei que me sentia muito envergonhada e humilhada, mesmo muito…

Talvez ele se sentisse o maior por poder proporcionar esses momentos aos amigos. Talvez até isso acontecesse a troco de algo, não faço ideia.

Apenas ficou a vergonha e a humilhação esculpida nas tábuas do meu interior. Assim vivi suja e sem valor algum, com a minha pequenita autoestima destruída em segredo, sem que ninguém soubesse. Parecia que tinha sido eu a fazer alguma coisa de mal, tal como se sentem as crianças que passam por algo semelhante.

Talvez esses acontecimentos pudessem estar na origem da história que durante a vida vim a viver. Mas nunca culpei essas pessoas por isso.

Culpei, talvez mais no meu interior, quem me podia proteger e não o fazia, e continuava a carregar o peso desse fardo. Até que um dia, já com 36 ou 37 anos, ouvi alguém contar a história de abuso que sofreu.

Comecei a escavar no meu interior o que de tão escondido estava e senti necessidade de confessá-lo, para poder deixar que esta ferida aberta há tantos anos, fosse finalmente tratada da sua infeção.

Partilhei este segredo numa formação chamada “Ponto de Viragem”, dirigida pelo pastor Álvaro Ladeira, no Desafio Jovem, direcionada aos voluntários que trabalhavam nas prisões. Neste pequeno grupo espantei este fantasma da minha vida e perdoei de todo o coração as pessoas que me prejudicaram. Mas as consequências permaneceram dentro de mim. Debati-me a vida inteira por não ter valor suficiente, por não me sentir amada, mesmo quando na verdade até o seria.

Deus muda muita coisa em nós com um estalar de dedos, mas outras teremos que aprender a viver com elas, são como traços de personalidade que carregamos.

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Durante a minha adolescência o assunto do sexo era tabu, não se falava sobre isso. Eu não me importava com esta atitude. Com tudo o que vivera até desejava que assim se mantivesse. Como resultado disto, não tive informação nenhuma, ao ponto de não saber o que estava a acontecer quando menstruei pela primeira vez.

Mais tarde uma vida dividida com vários parceiros terminaria por me fazer sentir ainda mais suja.

A história que milhares de crianças vivem diariamente, o abuso por parte de um familiar

Graças a Deus que quando “nasci de novo” e tive oportunidade de confessar os meus pecados e mágoas, Deus me tornou numa mulher limpa, novamente pura e de um homem só.

Este foi mais um milagre que Deus fez em mim e que tenho a certeza que só aconteceu quando ultrapassei a grande dificuldade de Lhe entregar o que tinha… que era apenas lixo guardado, tal como fazem os acumuladores compulsivos, que o guardam como se algo de valor se tratasse. Desta maneira mais uma página deste livro, que estava a ser escrito dentro de mim, foi virada.

Com Deus tudo é possível. Não há mágoa ou sofrimento maior que Ele não apague. Ele coloca pessoas que são ferramentas para “aparafusar” a nossa vida na hora certa. Deus é maior que todas as coisas, quer sejam boas ou más!

Temos um grande Deus!

Li uma vez num livro sobre milagres, escrito pelo pastor Hugo Pinto, o seguinte: “Só há uma coisa que é comum a todos os milagres de Deus, que é a primeira condição para que o milagre ocorra – é o problema, cada milagre começa com um problema. O milagre é operado por Deus 25

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para resolver o problema humano. Se tens um problema pequeno, experimentarás um milagre pequeno, se tens um problema médio, experimentarás um milagre médio; e se tens um grande problema, experimentarás um milagre grande”.

“Entregue todas as suas preocupações ao Senhor. Ele levará o peso dos seus problemas. Deus nunca deixa o justo tropeçar e cair!” (Salmo 55:22, Bíblia Viva)

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CAPÍTULO

09

O RESGATE

Já em franca recuperação, a caminhar devagar com a ajuda das canadianas e com o companheiro preso pela Polícia Judiciária, vi nisto uma boa razão para mergulhar de cabeça na cocaína. Sabia que isso não amenizava a minha dor e solidão, mas o meu corpo apelava ao consumo. Tinha que aprender a sobreviver sozinha e a arranjar o dinheiro que precisava para os consumos.

Pensei que dedicar-me ao tráfico seria o caminho mais fácil, visto morar naquele que foi considerado o maior mercado de drogas da Europa, o Casal Ventoso. O projeto de demolição do bairro já tinha começado, mas a minha casa, situada na rua Maria Pia, perto da Meia Laranja, foi uma das casas que ficou de pé.

A droga entrava pela porta e saía pela janela, que dava para o interior do bairro. Mesmo quando a presença da polícia se fazia sentir na Meia Laranja, mais pela noitinha em que todos os gatos são pardos, arriscava, quase debaixo do seu nariz, a passar tijolos de heroína e de cocaína embrulhados em panos para não fazerem barulho ao caírem lá em baixo, onde alguém rapidamente os escondia. Eu ganhava por este trabalho uma boa percentagem em material para consumo. Mas para os vizinhos não saberem como adquiria o meu sustento e para evitar 69

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alguma denúncia, eu trabalhava também durante o dia como vigia na minha própria janela. Cooperava com o homem da bolsa, enviava-lhe mais material quando acabava, todos os trocos davam jeito.

Foi num dia de junho de manhã, que como tantas outras vezes, sabíamos, por fuga de informação na esquadra, que iria haver uma rusga, apenas não sabíamos onde. Eu tinha ido beber um café ao acordar e… não é que a rusga era na minha própria casa? Tive dificuldade nos primeiros minutos em acreditar. Tinha lá cerca de 700 quartas que tinham sobrado do dia anterior de um dos fulanos com quem trabalhava.

Precisava fugir, rapidamente, e apenas com a roupa que tinha no corpo, sem dinheiro, drogas, etc.. O mais importante agora era a liberdade, como se não indo presa eu conseguisse ser livre. Era tudo o que me restava, pensava eu, e sob mandato de captura deambulei sem saber para onde ir até outubro de 1999, quando dei entrada no centro do Desafio Jovem. Por vezes alugando um quarto onde não me pediam identificação (pois não a tinha), outras vezes em qualquer canto fumando base a noite inteira.

O RESGATE Era uma noite muito fria, como muitas outras que passei na rua (quando estou dentro da minha cama quentinha lembro-me muitas vezes daqueles que estão ao relento). Umas vezes consumindo até a dose acabar, outras compartilhando um colchão abandonado com um “outro mendigo” que estava por perto.

Era um setembro mais fresco do que estava acostumada, o calor fora embora, o vento, juntamente com as fracas defesas físicas e os poucos trapos que vestia, soprava forte em mim. Escondi-me no canto da entrada de um balneário que não funcionava e que já tinha sido refúgio para muitos consumos. O espírito da miséria e da solidão estavam sobre mim!

Durante o dia carregava um grande saco de plástico com o único

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cobertor que possuía, alguns haveres que não passavam de lixo e o respetivo material para o consumo. Fraca, muito debilitada fisicamente, e mentalmente muito alucinada, escondi-me no vão da escada para passar mais uma noite. Nesse momento qual “Filho pródigo” chorei e troquei, mentalmente, palavras sinceras com Deus: SE tu AINDA existes e SE É POSSIVEL, faz alguma coisa por mim.

Precisava fugir, rapidamente, e apenas com a roupa que tinha no corpo, sem dinheiro, drogas, etc.

As minhas poucas forças tinham chegado ao fim, não estava sequer em condições de fazer algo por mim, quanto mais continuar a lutar contra Deus como tinha feito até aqui. Na manhã seguinte dirigi-me a uma cabine telefónica com a intenção de finalmente ligar aos meus pais, pedindo ajuda mais uma vez.

Para trás ficavam muitas tentativas fracassadas e havia meses que eles não sabiam se eu estava viva ou morta, porque desde a rusga à minha casa nunca mais dei sinal de vida. Sabia que a Judiciária me procuraria na casa dos meus pais, essa era a morada que eu coloquei, durante anos, em todos os meus documentos e a polícia já me tinha procurado lá inúmeras vezes.

Mesmo sabendo que o telefone estaria sob escuta liguei, o desespero era grande. Do outro lado da linha a minha mãe chorando agradeceu instantaneamente a Deus por ouvir a minha voz. Ela disse-me que nesse mesmo dia já tinha combinado com o pastor Filipe André (evangelista da Assembleia de Deus no Cacém, em setembro de 1999) a virarem o Casal Ventoso à minha procura.

A minha mãe foi durante toda a vida uma mulher de fé, à qual Deus honrou nas suas orações pela família, na igreja ela nunca desistiu de pedir durante todos estes anos que orassem por mim e Deus moveu-Se na minha direção.

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Combinámos encontrarmo-nos às 19h e desliguei o telefone com a plena certeza de que não era uma coincidência, mas Deus a agir.

Na hora marcada lá estávamos no restaurante da “Tia Aurora”, junto às bombas das Amoreiras. Receei levá-los para dentro do Casal Ventoso para poupar mais sofrimento à minha mãe, para não ver a profunda miséria que ali se via por todo o lado, achei que poderia sentir-se mal, como se olhar para mim não fosse suficiente. Quando chegaram, vinham os meus pais, o meu filho mais velho, o Tiago, e o “tal” pastor que eu não conhecia.

Larguei o meu sacão dos haveres num canto, cumprimentámo-nos e o Filipe veio sentar-se junto de mim, à parte de todos para me falar em privado. Eu já me sentia completamente em guerra interior nesta altura, senti-me encurralada pelo pastor. Atrás de mim a parede, de lado um balcão do café, à frente as mesas e agora ele sentava-se no único sítio que eu teria para fugir. Hoje sei que essa foi a maior ilustração que podia receber de que a minha vida se encontrava num beco sem saída.

Não entendia o que se estava a passar comigo, eu queria ajuda mas não suportava esse pastor, nem tão pouco ouvir falar de Deus e do Seu amor por mim. Tudo o que desejei nesse momento era afundar-me em mais uma quarta de cada, e barafustando com ele para que me deixasse passar dirigi-me à casa de banho para o fazer.

Ele ficou andando de um lado para o outro dentro do restaurante, orando e falando línguas estranhas em alto e bom som, e até na rua o fazia, seria louco? (pensei). Todas as pessoas presentes assistiam imóveis aos acontecimentos, e eu estava estupefacta!

Injetei-me e era como se não o tivesse feito, o líquido entrara na veia mas não fazia efeito, então saí para fora e barafustei ainda mais, achando que a culpa era dele. O pastor continuava entre palavras dóceis e orações, tentando convencer-me que se fosse com eles me ajudariam.

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A raiva que sentia saía por todos os poros da minha pele, só me restava no bolso mais uma quarta de cada, e, rapidamente, voltei a entrar na casa de banho para as consumir, precisava acalmar-me.

Chorei e troquei, mentalmente, palavras sinceras com Deus: SE tu AINDA existes e SE É POSSIVEL, faz alguma coisa por mim

Levei vinte e tal anos fugindo de Deus e continuava a desejar enfrascar-me para continuar a fugir.

Mas o que é que se passa? – pensei, não é possível! Não entrou fora da veia, então como é que não faz efeito, se eu conheço tão bem “o material” e é do bom?

Não podia nem olhar para a cara desse pastor que eu nunca tinha visto antes. Com as suas orações estragou os meus dois últimos consumos, meia grama de heroína e meia de cocaína, era demais…

Foi uma grande luta espiritual que ali se viveu. Sei hoje que foram os meus últimos consumos de droga, graças a Deus. O restaurante como palco de fundo, os meus pais calados e agora muito inquietos não sabiam o que fazer ou dizer e o Tiago com mais ou menos 15 anos, muito enervado, gritava: Olhem só o que fizeram à minha mãe? (sempre em minha defesa).

Eu espumava ódio, estava debaixo das forças malignas e era terrível, por isso saí para fora do restaurante em grande luta interior. Eles, atrás de mim, abriram rapidamente as quatro portas do carro na esperança que num ápice caçariam a presa, mas mesmo assim eu virei-lhes as costas em direção ao Casal Ventoso e nesta altura pensei: Se eu quiser agora mesmo, irei lá abaixo a um dos meus senhores (pessoas com quem trabalhava vigiando) e trago mais um grama de cada! e nesta altura ouvi dentro de mim uma voz bem audível que me disse: Nem que tu consumas um quilo… não te irá bater (fazer efeito), porque agora não és tu quem controla, SOU EU! 73

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Sentei-me no muro da bomba da gasolina, fiquei para morrer ali mesmo, era tudo muito real, Deus não estava a brincar e eu sabia que era a minha última oportunidade.

Eles avistavam-me ao longe e continuavam com as portas do carro abertas, à espera ainda do meu arrependimento. A verdade é que me rendi, lutando muito, sempre lutando, lá fui caminhando na direção deles que me abraçaram e me levaram para casa dos meus pais.

Satanás, o nosso inimigo número um, estava a começar a perder pontos e não estava nada satisfeito com isso. A minha mente e as minhas emoções eram grandes campos de batalha.

O pastor Filipe, juntamente com uma dezena de jovens da igreja do Cacém (Filipe, Rute André, Sérgio e João Bernardo, Cátia e Daniel Santos, Rui, Cláudia, Cacilda, Sara Gomes… espero não me esquecer de ninguém, foram fantásticos), rendiam-se para ficaram ao meu lado de dia e de noite em casa dos meus pais, durante duas ou três semanas, sempre com a porta fechada à chave.

Tinham-me levado ao CAT e eu estava agora muito medicada e débil, racionavam-me os cigarros e preparavam-me assim para dar entrada na comunidade do Desafio Jovem. Oravam muito por mim de dia e de noite, impunham-me as mãos quando eu me sentia pior, oravam e Deus operava milagrosamente. Será que me deram ‘alguma mezinha’ a beber?, pensava eu no dia seguinte.

Continuavam a acontecer coisas sobrenaturais e eu estava espantada, eram ‘coisas da Fé’, diziam eles. O Rui, o primeiro da equipa a terminar o programa, falava-me com autoridade e testemunho, e eu enchia-me aos poucos de esperança. Criei um grande carinho por todos eles que viriam a ser os meus primeiros verdadeiros amigos.

Jesus Cristo estava a resgatar-me, a velha mulher estava chegando ao fim, tudo seria novo, eu não fazia ideia o que estava a acontecer.

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O Poder de Deus varreu a minha vida de uma forma espantosa, só sabia que estava num barco que não era conduzido por mim e eu deixava‑me levar ao sabor do vento. O Vento do Espírito Santo!

Durante aquelas três semanas, levaram-me ao Café-convívio de Carenque, para dar início ao Eu espumava ódio, processo de entrada no programa estava debaixo das do Desafio Jovem. Lá encontrei forças malignas uma antiga amiga da igreja, do e era terrível tempo de adolescente, que era de Queluz e estava ali a cooperar, a Milú. Quando me viu entrar e me reconheceu, ficou tão comovida que se levantou e foi para a cozinha chorar, por causa do meu estado degradado.

Lembro-me que me levaram a Fanhões a um picnic, onde no início do culto, me dirigi ao púlpito para cumprimentar o Nicha, diretor do Centro de Fanhões nessa altura e que eu conhecia das reuniões do início do Desafio Jovem, quando tinha 15 anos. Achei que podia meter uma cunha para entrar mais rapidamente. Ele disse-me que sim.

Imagino como ficou com o coração partido por ver como eu tinha dado cabo da minha vida. As reuniões dirigidas pelo Nicha eram uma autêntica terapia de paz, ele é mestre em paciência e calma, muitas vezes beneficiei desses seus dons.

Acabei por dar entrada no Centro no Lourel-Sintra, no dia 1 de outubro de 1999.

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