Copyright © 2022 Suzani Cassiani, Patrícia Montanari Giraldi, Soraya Franzoni Conde, Roberth De-Carvalho Editor: J OSÉ R OBERTO M ARINHO Editoração Eletrônica: H ORIZON S OLUÇÕES E DITORIAIS Capa: H ORIZON S OLUÇÕES E DITORIAIS Arte da Capa: S IMONE R IBEIRO Imagem de abertura das seções: WA C HING Revisão: A S ORGANIZADORAS Texto em conformidade com as novas regras ortográficas do Acordo da Língua Portuguesa. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Resistir, (re)existir e (re)inventar II : pedagogias decoloniais em diálogo com o Sul Global / organização Suzani Cassiani... [et al.]. – 1. ed. – São Paulo : Livraria da Física, 2022. Outros organizadores : Patrícia Montanari Giraldi, Soraya Franzoni Conde, Roberth De-Carvalho. Bibliografia. ISBN 978-65-5563-216-3 DOI: doi.org/10.29327/565971 1. Educação 2. Decolonialidade 3. Interculturalidade 4. Pedagogia I. Cassiani, Suzani. II. Giraldi, Patricia Montanari. III. Conde, Soraya Franzoni. IV. De-Carvalho, Roberth. 22-113264
CDD-370.115
Índices para catálogo sistemático: 1. Decolonialidade: Educação intercultural: Educação
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Aline Graziele Benitez – Bibliotecária – CRB–1/3129 ISBN: 978-65-5563-216-3 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida sejam quais forem os meios empregados sem a permissão da Editora. Aos infratores aplicam-se as sanções previstas nos artigos 102, 104, 106 e 107 da Lei n. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Impresso no Brasil • Printed in Brazil Editora Livraria da Física Fone/Fax: +55 (11) 3459-4327 / 3936-3413 www.livrariadafisica.com.br
Sobre as artes da capa e da contracapa: “A inspiração para a ilustração é a possibilidade de resistência em conversa com estado selvagem. A (re)existência alude ao feminino, representado por uma mulher negra nutridora, que se camufla entre vegetal e animal, em um universo vivo e multiespécie, em constante conexão. As serpentes fazem referência à instalação “Entidades”, da 34ª Bienal de São Paulo, do artista Jaider Esbell, e representa o ser fantástico Îkîimî, que atravessa vários mundos e que não tem começo e nem fim; as serpentes estão dispostas a enfrentar o domínio colonial dos povos do mundo. Pertencente ao povo Macuxi, Jaider Esbell nasceu na área demarcada como Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Faleceu prematuramente, aos 41 anos, em 02/11/2021, foi um dos grandes nomes da arte indígena contemporânea.” – Da artista Simone Ribeiro.
Sobre as arqueofotografias de abertura das seções: “Arqueoafetos, ensaio fotográfico sobre uma série de estruturas antropomórficas ("bonecos") perdidas, descartadas, (re)encontradas; busca provocar a impressão perceptiva para com objetos afetivos do cotidiano, e a reflexão sobre as interações socioculturais e emocionais entre as pessoas, através da relação das mesmas, como uma estratégia de subversão criativa à política sanitária de confinamento e exclusão das interações socioafetivas (no prelo).” – Do arqueofotógrafo Wa Ching.
SUMÁRIO APRESENTAÇÃO, 17 Suzani Cassiani (Brasil), Patrícia Montanari Giraldi (Brasil), Soraya Franzoni Conde (Brasil) e Roberth De-Carvalho (Brasil)
PREFÁCIO, 23 Sandra Lúcia Escovedo Selles (Brasil)
RESISTIR Seção I - Interculturalidades e reflexões pedagógicas decoloniais Globalização, Educação Intercultural e suas proposições para Pedagogias Decoloniais, 37 Vicente Paulino (Timor-Leste)
A Plataforma YouTube Edu na Educação em Ciências e Tecnologia: colonialidade do ver, 75 Marinilde Tadeu Karat (Brasil) e Patrícia Montanari Giraldi (Brasil)
O Povo Xetá e as múltiplas influências da humanidade na natureza: reflexões a partir de uma Mostra Científica Multidisciplinar, 97 Victor Augusto Bianchetti Rodrigues (Brasil), Danielle Hiromi Nakagawa (Brasil) e Lisandra Maria Kovaliczn Nadal (Brasil)
Seção II - Dialogias Sul-Sul em perspectiva tecnocientífica Conhecimentos e práticas do Povo Maubere: sentidos sobre tecnologias na atualidade educacional Timorense, 115 Raquel Folmer Corrêa (Brasil), Irlan Von Linsingen (Brasil) e Estanislau Alves Correia (Timor-Leste)
I can’t breathe: reflexões sobre colonialidade e Covid-19 a partir da cidade de Nova Iorque, EUA, 137 Soraya Franzoni Conde (Brasil) e Suzani Cassiani (Brasil)
Da periferia do aprendizado à centralidade do que somos: diálogo BrasilMoçambique, 159 Roberth De-Carvalho (Brasil) e Adamo Devi Cuchedza (Moçambique)
(RE)EXISTIR Seção III - Por gêneros anticoloniais no Sul Global Perspectivas Africanas de e sobre mulheres, gênero e feminismos, 189 Vera Gasparetto (Brasil) e Hélder Pires Amâncio (Moçambique)
O encantamento como pedagogia feminista: rompendo a cumplicidade feminista com a colonialidade, 221 Fabiane Ramos (Queensland) e Laura Roberts (Queensland)
Reinventando a presença: nacionalismo antigênero e o campo dêitico de resistência de Marielle Franco no Brasil, 251 Daniel do Nascimento e Silva (Brasil) e Allison Dziuba (EUA)
Reflexões para uma virada epistêmica feminista no Ensino de Ciências: a decolonialidade como possibilidade, 285 Maíra Caroline Defendi Oliveira (Brasil) e Simone Ribeiro (Brasil)
(RE)INVENTAR Seção IV - Por uma outridade em Educação em Ciências no Brasil Corpos negros em videoclipes de artistas brasileiros: temas potenciais na formação de professores de Biologia, 309 Amanda Lima (Brasil), Francine Pinhão (Brasil), Geovana Rodrigues (Brasil) e Tatiana Galieta (Brasil)
Leitura, escrita e processos de argumentação: potencialidades na convergência de sentidos entre os Estudos da Ciência, Tecnologia e Sociedade (ECTS) e o Ensino de Biologia, 335 Tabatta Cristina Fritzen da Silva Lavarda (Brasil) e Patrícia Barbosa Pereira (Brasil)
Escrevivências no Ensino de Ciências: relato de uma experiência com pressupostos anticoloniais na educação popular, 361 Simone dos Santos Ribeiro (Brasil) e Alberto Lopo Montalvão (Brasil)
Seção V - Dialéticas Centro-Periferia na práxis científica Aproximações teórico-metodológicas do Processo de Bolonha: a experiência do doutorado sanduíche na Espanha, 389 Clara Martins Nascimento (Brasil)
A Arqueologia do arqueólogo: estudo da constituição do sujeito e práxis do profissional, 411 Washington Ferreira (Brasil) e Karine Sanchez Ferreira (Brasil)
POSFÁCIO, 435 Celso Sánchez (Brasil) e Bruno A. P. Monteiro (Brasil)
APRESENTAÇÃO O meu canto é ancestral A minha luta é ancestral O meu sangue é ancestral [...] Ancestralidade é o ponto de partida Na configuração biológica do sujeito e tradição Seguir existindo ÌYá mi aṣeṣe, Bàbá mi aṣeṣe Meu pai, minha mãe, minha ancestralidade (Canto Ancestral, 2022)1
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IS MAIS UM Sim! Um Sim que se edifica pela contradição e pela resistência a inúmeros Nãos que marcaram os últimos anos, no Brasil. Eis um Sim, da resistência ao Não. Exaustas do Não à vida, que se impôs, enquanto projeto conservador de uma necropolítica, amparada em uma ciência neodarwinista, sem disfarces, merece a resistência do Sim! Sim, às milhares de vidas negras, indígenas, femininas, trans, homoafetivas, infantis, migrantes. E, ele surge na confluência de tantos momentos e espaços intercontinentais… momentos em que se acirram tensões sobre as não superadas corridas armamentista e nuclear, na geopolítica do Norte Global; em que tanto se disputam ‘narrativas’, relativizando verdade, ciência, democracia, direitos humanos, gênero, racismo; em que, do Brasil, representantes políticos de ultradireita neoliberal se oportunizam do caos pandêmico e da guerra, para defenderem projetos genocidas – a exemplo da prática predatória que têm chamado de ‘mineração artesanal’, em terras indígenas; da exclusão de quase 2 milhões de meninas, de seu
Composição e interpretação da brasileira Jaque Barroso, com coautoria de Reginaldo Flores. Participações: Radiola Jamaicana e Brasílica Dubs. Disponível em: https://bit.ly/3NIs7jk. Acesso em: 10 mar. 2022.
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direito à saúde e à higiene menstrual; do corte orçamentário para fomento a pesquisas, etc. –; em que gentes negras e indígenas têm sido cada vez mais preteridas, humilhadas, perseguidas, ameaçadas, assassinadas, pelo aumento de ideologias supremacistas no mundo; enfim, é por tantas intersecções que trazemos esse Sim! aos diálogos desta obra, para que possamos, cada vez mais, Resistir, (re)Existir e (re)Inventar2 outro mundo. Um mundo que, decerto, urge. Com espírito ancestral, disputando mais este Sim!, e em que temos sustentado inter-relações de Ciência-Tecnologia-Sociedade(s), por múltiplas e profícuas epistemologias, como: Antonieta de Barros; Maria Lugones; bell hooks; Gloria Anzaldúa; Lélia Gonzalez; Gayatri Chakravorty Spivak; Maya Angelou; Toni Morrison; Aílton Krenak; Abdias do Nascimento; Clóvis Moura; Aníbal Quijano; Davi Kopenawa; Paulo Freire; Nêgo Bispo; Literaturas de Mulheres Negras Periféricas; Hiphoppers; Povos Mapuches (entre Chile e Argentina); Povos Yanomami (entre Venezuela e Brasil); Povos Makuwa, Shona, Yaos, Maraves e Makondes (em Moçambique); Povos Indígenas das Primeiras Nações, na Austrália; Povo Sámi da Lapônia (no continente europeu); Povo Maubere (em Timor-Leste); Migrantes Latino-Americanos (no Norte Global); Povos Afrodescendentes (atuais residentes, nas antigas e atuais colônias); dentre tantas Outras e tantos Outros; é que reunimos dizeres, pela práxis daquelas e daqueles que vêm, a partir de registros de pesquisa, reclamando múltiplas urgências, como: justiças racial, ambiental e cognitiva; equidades de direito, de ir-e-vir, de escolhas, de acessos e acessibilidades; por liberdades inter/trans/cisgêneros, de úteros, de raças minorizadas, de formação familiar, de Ser; por cidadanias pluralizadas; por direito à segurança alimentar; por exercícios democráticos efetivos para Todas, Todes e Todos. E, isso surge, portanto, no escopo de um projeto maior, e que 2 O título deriva do primeiro volume do livro: Resistir, (re)Existir e (re)Inventar a Educação Científica e Tecnológica, organizado por Suzani Cassiani e Irlan von Linsingen, edição 2019, pelo Núcleo de Publicações do Centro de Educação, da UFSC. Disponível em: http://cutt.ly/znCUx62. Acesso em: 12 mar. 2022.
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tem sido desafiador para os programas de pós-graduação, no âmbito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC): o Projeto Institucional de Internacionalização, criado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), mais conhecido como CapesPrInt. Com o advento desse projeto, derivou-se o Repositório de Práticas Interculturais: proposições para Pedagogias Decoloniais (REPI). Este propõe, como eixo norteador, a construção de saberes e práticas interculturais, que tratam tanto de efeitos de múltiplas colonialidades como de saídas emancipatórias para tal problemática, com vistas à construção de um repositório on-line multilíngue. Das relações entre Povos, provocando ou sofrendo perda de identidade cultural, dependência e falta de pertencimento, buscamos encontrar caminhos para contrapor tais efeitos, entendendo que parcerias entre pesquisadoras/es e instituições internacionais favorecem diálogos entre saberes e ancestralidades, como também o reconhecimento de experiências e elaborações em curso, assim como a produção de tecnologias sociais. Entre 2009 e 2016, a UFSC coordenou o Programa de Qualificação de Docentes e Ensino de Língua Portuguesa (PQLP), da Capes, que enviou missões, com até 50 professoras/es, para o Timor-Leste. Com isso, provieram resultados de experiências, vivências, interlocuções e pesquisas locais, que evidenciaram a pertinência do projeto com vistas ao respeito do patrimônio e cultura locais, dialogando com saberes ancestrais daquele povo, bem como com seus conhecimentos e tecnologias emancipadoras. Destacamos, também, que esse projeto se articula com a Cátedra da UNESCO, Language Policies for Multilingualism (2018-2022), sediada na UFSC, da qual participam 14 países, em 4 continentes, com o objetivo de compreender como as línguas e o multilinguismo são elementos-chave para o desenvolvimento sustentável de comunidades linguísticas, de povos e de nações, coadunando-se à Agenda 2030, no que tange
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aos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Organização das Nações Unidas (ONU). As ações desse projeto compreendem 6 Programas de Pós-Graduação (PPG), da UFSC, e dos quais temos a honra e a satisfação de, por múltiplas linguagens e autorias de suas sujeitas e seus sujeitos, chegar a este livro. Com isso, justificando pluralidades e interseccionalidades decoloniais que demandam esse Projeto, convidamos às leitoras e aos leitores, que clamam por justiça, que se juntem às vozes dessas autoras e desses autores que têm dialogado com e como resistências da periferia Sul Global, re-existindo, em defesa de questões anticolonialista, anticapitalista, antirracista, antisexista, antitransfóbica, anti-homofóbica, antimisógina, antinazista, antiditatorial, antiarmamentista, antibélica, antifome, antisubalternização, antiescravização, anticapacitista… anti todo pensamento e prática que não objetivem a humanização, o diálogo, a redenção do Ser. Mas… Sim! possibilitadores de existências, de inspirações, ou melhor, de libertações. Sim! De democracias efetivamente participativas e representativas, de ciência e tecnologia cidadãs, para o bem coletivo. São autoras e autores que primam por interconectar realidades, vidas, particularidades de existir e de resistir a um mundo que tem se conduzido estranhamente refratário, distópico, desconexo, soberbo, estéril, ante tantos aprofundamentos de desigualdades, exclusões e violências. Cenário agravado com a pandemia da Covid-19, fazendo-nos reforçar a urgência de termos que aprender com: os povos das florestas, das tribos, das favelas, das beira-rios, das montanhas; os nômades, ciganos; as (trans)(anti)culturas de rua, do campo; as comunidades quilombolas; as religiões, ritos e rituais de matriz africana e indígena; os que vivem da agricultura de subsistência; os sem-teto, sem-terra, sememprego; as mulheres negras, parteiras, erveiras, benzedeiras, curandeiras, feiticeiras, mães-de-santo; ou seja, escutando de suas linguagens, saberes e afetos.
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Esse exercício se revela em diálogos, em torno de variados temas, que vão desde a educação à decolonialidade, dos feminismos periféricos às pedagogias de resistência, do tecnocientífico ao político. Ou seja, por textos cujas autorias se constituem na historicidade de experiências e alteridades, e que formulam sentidos (inter)(trans)continentais: da América, de África, da Europa, da Ásia e da Oceania. Portanto, por trabalhos de pesquisas que vêm sedimentando o REPI. Nesse ensejo, agradecemos à gestão do PPG em Educação Científica e Tecnológica, que se junta a nós, compreendendo a importância do Sim!, para publicarmos essas pesquisas em livro. Manifestando, portanto, seu Sim! a diálogos com o Sul Global. Agradecemos, também, à sensibilidade da autora e artista Simone dos Santos Ribeiro, que elaborou especialmente as obras que compõem a capa e a contracapa, deste livro; assim como ao autor e fotógrafo Wa Ching (Washington Ferreira), que, gentilmente, cedeu algumas de suas ‘arqueofotografias’, para ilustrar a abertura das seções. Por: Suzani Cassiani (ORCID: http://orcid.org/0000-0001-8824-9342) Mulher, Mãe, Avó, Docente do PPGECT. Grupo de estudos e Pesquisas Discursos da Ciência e da Tecnologia na Educação . Militante antifascista e antirracista na luta por justiça social. Patrícia Montanari Giraldi (ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4283-1967) Docente do PPGECT/UFSC, pesquisadora da área de educação em ciências e grupos de pesquisa DiCiTE e Literaciências. Trabalha por uma perspectiva de mundo com mais interpretação crítica da realidade e justiça social. Soraya Franzoni Conde (ORCID: http://orcid.org/0000-0002-5271-6479) Professora do PPGE, do PPGSS e da Pedagogia/UFSC Feminista, Marxista, Comunista, Antifascista, Anticolonialista Engajada na luta pelo direito substancial e plural à infância para todas crianças Roberth De-Carvalho (ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6712-1630) Negro. Latino. Poeta. Educador. Mobilizador do 5º Elemento do Hip-hop. Do lado esquerdista da militância de grupos minorizados e periferizados do Sul Global. Atualmente, é trabalhador do IFSC e doutorando pelo PPGECT/UFSC.
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PREFÁCIO O mundo é salvo todos os dias por pequenos gestos. Diminutos, invisíveis. O mundo é salvo pelo avesso da importância. Pelo antônimo da evidência. O mundo é salvo por um olhar. Que envolve e afaga. Abarca. Resgata. Reconhece. Salva. Inclui. Eliane Brum3
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UANDO recebi o honroso convite para prefaciar este livro – Resistir, (re)Existir e (re)Inventar II: Pedagogias Decoloniais em diálogo com o Sul Global – e comecei a ler seu conteúdo, logo me reportei à sensibilidade de Eliane Brum, para nela me inspirar e espelhar a temática que o livro anuncia no seu título. Três anos após o lançamento do primeiro volume, este segundo também resulta do projeto que complementa seu título. Seus repositórios de práticas interculturais convidam a olhar a Educação em Ciências não mais com olhos azuis, mas a buscar o avesso da importância que fora garantida pela genética e pela cultura europeias quando nos forneceram um dado repositório de referências como se fosse o único e verdadeiro. Aqui não cabe tecer uma crítica inconsequente sobre o que a ciência faz, mas sobre o que ela não faz, sobre o que silencia e apaga. É para pensar sobre o que é silenciado socialmente e, muitas vezes, pelas pesquisas e pelas práticas pedagógicas no universo da Educação em Ciências que a obra nos convida a percorrer as avenidas das reflexões que reúne. O livro aborda temáticas que não são estranhas ao nosso passado e nem ao presente, inflamado pelos ecos do colonialismo, da aver-
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Eliane Brum. A vida que ninguém vê. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2006.
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são ao patriarcado e da colonização de estruturas e corpos. Essas questões são revisitadas, atualizadas e examinadas sob as lentes da decolonialidade, o que significa retirar do confinamento acadêmico as marcas de sofrimento que se escondem em nossas salas de aulas, nas ruas, nas favelas, nos gritos sofridos e abafados dos que habitam o Brasil. Afinal, por que não assumir um olhar acadêmico que, comprometido com os estudantes e docentes, seja potente para elaborar uma compreensão, conforme sugere Brum, Que envolve e afaga. Abarca. Resgata. Reconhece. Salva. Inclui? A organização do livro, talvez tenha sido a primeira particularidade que me levou a entender os propósitos da obra. A opção por estruturar as unidades por três verbos me provocou uma reflexão que perdura, enquanto alinhavo as palavras neste prefácio: as três unidades que compõem o livro orbitam em torno dos verbos: Resistir, (re)Existir e re(Inventar). Em primeiro lugar, a sedução para ler o livro se dá pela própria acepção semântica do substantivo “verbo” – noções de ação, processo ou estado. Em segundo, pela função que essas noções assumem na obra: os verbos são ação aventada para compreender sentidos da Educação em Ciências que se escondem atrás da estabilização de algumas práticas. Como palavra ou discurso, os verbos que compõem a obra são evidências da intencionalidade de suas e seus organizadores, bem como de suas e seus autores: imprimir um sentido de ação que, inspirado nos estudos decoloniais, nucleie as reflexões que as/os autoras/es pretendem provocar nas suas/seus leitoras/es. Os verbos parecem sair do papel para desalojar certezas à medida que encorajam outros entendimentos acerca de práticas consagradas e de formulações epistêmicas. Poderia dizer que a obra Resistir, (re)Existir e (re)Inventar II: Pedagogias Decoloniais em diálogo com o Sul Global se vale de verbos comprometidos com desestabilizações de lugares, de pensamentos, atitudes e intenções num mundo desgovernado por preconceito, injustiça social, violência, fome e pelo padecimento que causam nas vidas das maiorias oprimidas.
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O primeiro verbo eleito para provocar tamanhas elaborações de ordem epistêmica e de valores humanitários é resistir. Resistir parece ser o verbo reservado aos inconformados e assombrados pelos desmandos de um mundo guiado por um capitalismo insensível. Resistir é ação, é núcleo do predicado representado pelos sujeitos marginalizados e subalternizados no vasto mundo de ilusões do ganho e da distribuição desigual. Os que habitam as escolas vão buscar nos docentes que as universidades formam o significado de resistência como modo de entender o mundo e de reconhecer que têm direito a viver e a existir. Vão buscar um conhecimento que não parece destinado a eles. Daí, vale perguntar: com quantas letras se escreve a resistência na Educação em Ciências? Na obra, resistência é escrita por Interculturalidades e reflexões pedagógicas decoloniais nas quais a pluralidade dessas pedagogias são as que interpelam a homogeneidade, falsa assertiva de igualdade trazida pela globalização, mas que não soluciona os problemas criados pela opressão capitalista. Ao escrever resistir com essas letras, o livro parece perguntar como a Educação em Ciências se posiciona acerca das interculturalidades apagadas em um currículo centralizado e dirigido a todas as escolas brasileiras como a BNCC, negligenciando diferenças para servir ao funcionamento de um sistema nacional de avaliação, como “controle político do conhecimento”4? Ou como essas letras podem estar em recomendações de pesquisa que subalternizam os docentes?5 Ao aproximar territórios e sujeitos, a resistência afirma um outro pertencimento que lhes fora negado. Resistir também se escreve com letras que destacam a necessidade de ampliar as dialogias Sul-Sul
Conforme afirmação de Michael Apple em: Apple, M. A política do conhecimento oficial: faz sentido a ideia de um currículo nacional? In: Moreira, A. F. B.; Silva, T. T. Currículo, Cultura e Sociedade. São Paulo (SP): Cortez, 1994. p. 59-91. 5 Discuto esse processo de subalternização docente, considerando-o um processo de colonização exercido pelas políticas públicas e pela pesquisa. Selles, S. E. Quando as políticas curriculares e a pesquisa educacional mandam: reflexões sobre a colonização do trabalho docente. Boletim GEPEM (Online), n. 67, 2015. p. 100-117. 4
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em perspectiva tecnocientífica, amplificando as vozes dos timorenses e deixando que se ouçam as do povo Maubere ou do povo Xetá. Na obra, a dialogia Sul-Sul inclui os esquecidos da metrópole nova-iorquina em tempos pandêmicos – os negros assassinados pela política estadunidense ou pela incidência da mortalidade de corpos negros e latinos6 – como os interlocutores legítimos para enunciar práticas antirracistas. Resistir também se enlaça às vozes que ressoam nas terras moçambicanas, cujos negros – após o suplício da colonização – se tornaram invisíveis e descartados do interesse mundial7. O segundo verbo se refere a uma ação que não cabe apenas na existência, mas na sua reelaboração. (re)Existir engendra uma posição que se nega ao determinismo de uma vida não escolhida ou rejeita viver em descompasso com a esperança de pertencer ao mundo, sem pedir licença para ser (re)conhecido. Afinal, as maiorias não são (des)conhecidas, são presença negada que as estatísticas exibem em tristes números. re(Existir), portanto, é uma exigência de ação que projeta um predicado humano obscurecido pela amplificação desses números. É ação que não se conforma, é desejo de poder fazer escolhas para reconstruir um caminho que parecia conduzir à invisibilidade. Desse modo, a obra se pergunta com quantas letras se escreve a (re) existência na Educação em Ciências? A resposta se dirige às diferentes existências negadas, as que se escondem em corpos sobre os quais a imposição de gênero os faz fugir para a clandestinidade. É na existência de um território vilipendiado pela ação colonial, que o verbo Re(existir) se faz ação que reabilita, que se contrapõe e tece críticas potentes para reivindicar lugares, espaços, territórios, conhecimentos e existências sequestrados pela avidez colonial, pelo patriarcado que impõe sofrimento e morte às mulheres.
https://www.unidosus.org/publications/2164-special-advance-fact-sheet-deaths-of-people-of-color-by-law-enforcement-are-severely-under-counted/. Acesso em 18/03/2022. 7 Um exemplo emblemático é a pouca atenção ocidental após o ciclone que devastou Moçambique em 2019. https://bit.ly/38UW69c. Acesso em 18/03/2022. 6
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(re)Existir é resistir no curso de vidas, forjando lutas feministas e identitárias em perspectivas africanas, em gêneros anticoloniais no Sul Global, que rompe com a cumplicidade feminista com a colonialidade, ou que aviva a luta pelo legado de Marielle Franco, a revelação das causas de seu assassinato e dos mandantes de seu crime. O último verbo que estrutura a obra conversa com os anteriores e incide sobre propostas de ações que as conjuguem criativamente. (re) Inventar é a ação que repousa na esperança, em um futuro a ser construído. (re)Inventar se confunde com o esperançar, como diz Paulo Freire, pois movimenta experiências e as transforma em possibilidades outras, mobiliza a história como possibilidade e entende que conhecer é sempre atravessado pelas subjetividades. Aproxima-se, assim, da Pedagogia das Possibilidades como foi proposta por Henry Giroux8. (re)Inventar é ação que recebe o sopro da esperança de frente e abre caminho em formas de caminhar e de resistir para reexistir. É imprescindível conjugar esses verbos juntos pois eles se tocam em ações que insinuam novos mundos, novas estratégias de luta para encontrar possibilidades de ser feliz. E essa luta não é a romantização de um encontro entre culturas, sem virá-las pelo avesso, ou entre histórias que falam da impossibilidade posta pelo nascimento. Essa luta é imersão nos mundos vividos pelos excluídos que chegam às instituições educativas para se comprometer com outro mundo possível. Reinventar compõe uma ciência sensível às necessidades, recria possibilidades que desviam as rotas normativas para a formação docente e aponta outros horizontes educacionais, outros futuros para professores e estudantes. As letras com que a (re)invenção é escrita vêm de um léxico militante que busca incessantemente a outridade silenciada em corpos que nas escolas brasileiras – e não unicamente nelas – desa-
Giroux, Henry. Os professores como intelectuais. Rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 1997.
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fiam os cânones de um ensino de ciências eurocentrado. Onde encontrar a esperança atuante em um mundo em descompasso para se traduzir em ação, em luta em reflexão operante? Desde que foi eleito, o governo Bolsonaro tem insistido em excluir temas como a violência contra a mulher, o racismo, as culturas indígenas e africanas, as questões de gênero e os direitos humanos, bem como vem solapando a integridade da cobertura florestal do país e entregando terras indígenas a garimpeiros. Vivemos um mundo em guerras que se prolongam na África e no Oriente Médio há décadas, provocando milhares de mortes e violações dos direitos humanos9, mas somente quando os mísseis atingem pessoas brancas de olhos azuis é que o interesse internacional – rendendo prolongados noticiários e inúmeras postagens em redes sociais – parece enxergar o sofrimento humano. Essas são questões agudas que atravessam milhões de vidas e colocam incertezas sobre nosso futuro social. A enunciação bolsonarista e as manifestações privadas e públicas – enviesadas pela identificação com os traços do sofrimento de certos corpos brancos e não dos demais – não tornam apenas essas questões atuais, mas também mostram como se cronificaram e se naturalizaram. Elas demandam estudos que aprofundem seus antepassados históricos, esses que forjaram uma dada ordenação cultural que provoca descaso e exacerba as desigualdades sociais. Que respostas a Educação em Ciência vem produzindo acerca delas? A julgar pelos capítulos deste livro, os estudos decoloniais se articulam a outras vertentes teóricas para enfrentá-las e produzir respostas que, mesmo não pretendendo ser exatas, provocam possibilidades de transformação. Assim, o livro fala sobre o potencial de transformação da ordem social por meio dessa resistência que se torna verbo na perspectiva da decolonialidade. Ainda que o compromisso com a transformação social
https://g1.globo.com/mundo/noticia/iemen-somalia-sudao-do-sul-conheca-guerras-esquecidasque-causam-desastres-humanitarios-pelo-mundo.ghtml. Acesso em 17/03/2022. 9
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não seja prerrogativa de uma perspectiva teórica, e sabendo que os estudos decoloniais não estão sozinhos na análise dessas problemáticas, o lugar que as questões socioculturais neles ocupam é indiscutivelmente uma contribuição que ressoa na comunidade acadêmica, haja vista os trabalhos de tantos e tantas que se tornam referências para examinar essas problemáticas. Recusando uma abordagem determinista que nos vê como produtos inertes das conjunturas econômicas, os estudos decoloniais flexionam outros verbos para interpelar a força do capital e de seu projeto excludente. Conjugando a crítica aos efeitos da coesão entre capitalismo e expropriação colonial, essa perspectiva teórica declina de aceitar a cultura como derivada de uma condição de existência que sua classe social delimitou. É desse lugar inquieto que a cultura transpõe o lugar de classe, sem negar que há estruturas opressoras na sociedade, herdeiras de nossos passados coloniais e das engrenagens capitalistas que regulam corpos e comportamentos, instituem preconceitos e posicionam os sujeitos em funções sociais subalternizadas. Os estudos decoloniais reavivam essas problemáticas expondo, como fala Rita von Hunty, a ferida colonial.10 Ao advertir sobre suas implicações para o projeto educacional, esses estudos constroem quadros analíticos que apontem alternativas para esse projeto. Isso implica negar os acordos naturalizados que não questionam o currículo de Ciências como se ele já fora designado pelos conhecimentos científicos ou por técnicas e métodos que repetem modelos de ensino fracassado, ao não desencastelar finalidades acordadas nas diretrizes do Norte Global. Tal empreendimento epistêmico já anuncia que a análise decolonial não se conforma com o desígnio de tal dominação e traz um elemento singular para as pesquisas em Educação em Ciências, ao mostrar os contornos vivos dos objetos que precisam ser incluídos na agenda investigativa e nas ações educativas. A insistência em 10
Ver: https://www.youtube.com/watch?v=EErd3sPhzm4. Acesso em 17/03/2022.
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recortar objetos de pesquisa e ignorar os sujeitos de forma desenraizada dessas opressões imobiliza as ações de transformação da ordem social vigente. Cabe dizer que os estudos decoloniais não se contentam com a denúncia, mas avançam sobre possibilidades de delinear programas educativos e pesquisas engajadas nos temas sensíveis que ela anuncia, pois, como afirma Freire11: “Não há utopia verdadeira fora da tensão entre a denúncia de um presente tornando-se cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser criado, construído, política, estética e eticamente, por nós, mulheres e homens.” Se a denúncia é uma parte integrante das análises, é com ela que enfrenta os efeitos da dominação europeia sobre os corpos que violentou e sobre as terras que invadiu, retirando dos povos originários seu sustento e suas referências. Não custa repetir que carregar o crucifixo junto ao peito e pronunciar palavras desconhecidas, negando suas próprias línguas, foi uma violência que levou muitos povos a camuflar deuses e orixás. Apesar de parecer que essas violências são parte de um passado colonial, diariamente elas reverberam por diversos modos em uma sociedade como a brasileira, suscitando contestações por parte dos educadores. É possível pensar que é um choro contido em iorubá, provocado por tanta crueldade dos olhos tão azuis, como diz a canção12, que a educação precisa ouvir, pois ele continua a ecoar em salas de aula, em casas sem reboco, em vidas vividas sob a insalubridade e o preconceito. Não se pode deixar de repetir que sob os ditames da necropolítica13 as pessoas negras são tratadas fora dos parâmetros da condição humana. Trazem em seus corpos as marcas que a branquitude rejeita, pois “a cor clara é, desde o nascimento, uma vantagem patrimonial que, na ótica dos beneficiários, não deve ser deslocada", como afirma Muniz Sodré14. Freire, Paulo. Pedagogia da esperança. São Paulo: Paz e Terra, 1992, p. 91-92. (grifo meu). Chico Buarque e João Bosco, Sinhá, 2011. 13 Mbembe, Achille. Necropolítica – Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 edições, 2020. 14 https://bit.ly/3ttAwQb. Acesso em 18/03/2022. 11
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A Educação em geral, e a Educação em Ciências em particular, não podem se distrair dessas temáticas ou se entreter com perspectivas de pesquisa que falam acerca de um mundo sem outridade. Descobrir, como diz Gonzaguinha, que “Toda pessoa sempre é as marcas/Das lições diárias de outras tantas pessoas/ E é tão bonito quando a gente entende/Que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá”15, é abrir-se para o outro no complexo empreendimento educativo. Os estudos decoloniais parecem dispostos a seguir uma agenda que incessantemente se reporta ao passado colonial, pois ele insiste em continuar sacralizando determinadas práticas, algumas vezes de forma sutil, na maioria das vezes de forma estruturada e institucionalizada. Ao mesmo tempo, como também fazem outras perspectivas teóricas, os estudos decoloniais remetem a uma pedagogia possível, afirmam arranjos educativos alternativos e projetam outros futuros sociais. Seguindo pela denúncia e o anúncio, como fala Freire, formula uma pedagogia que autorize os docentes a conjugar os verbos que estruturam esta obra - Resistir, (re)Existir e re(Inventar) – nas aulas de Ciências, para agirem em defesa de uma ordem social democrática com mais justiça e equidade. Talvez, esse livro nos diga que é possível reparar o passado com pesquisas e docências engajadas e legítimas. Que o mundo é salvo pelo avesso da importância consagrada pela unicidade do conhecimento hegemônico. Por: Sandra Lúcia Escovedo Selles (ORCID: http://orcid.org/0000-0002-7921-0478) É Cientista do Nosso Estado (CNE), pelo Rio de Janeiro, contemplada pelo edital da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Foi presidente da Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (ABRAPEC), entre 2013-2017, e da Associação Brasileira de Ensino de Biologia (SBEnBio), entre 2007-2011. Representou o Sudeste na ABRAPEC (2017 a 2019).
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Gonzaguinha, Caminhos do coração, 1982.
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Resistir
[...] E esse país vai deixando todo mundo preto E o cabelo esticado Mas mesmo assim ainda guarda o direito De algum antepassado da cor Brigar sutilmente por respeito Brigar bravamente por respeito Brigar por justiça e por respeito (Pode acreditar) De algum antepassado da cor Brigar, brigar, brigar, brigar, brigar Se liga aí A carne mais barata do mercado é a carne negra (Na cara dura, só cego que não vê) A carne mais barata do mercado é a carne negra [...]
Trecho da música “A carne” Composição de Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti (de 1998).
Bonecos de tecido, representando mãe e filho, de um coletivo de mulheres africanas (do distrito de Kyebando, da capital Kampala, em Uganda). (Arqueofotografia de: Wa Ching).
Seção I : Interculturalidades e reflexões pedagógicas decoloniais
A estrutura colonial, ao tempo que silencia, apaga, gera imanências, desencontros, refluxos de algo indigesto… isso sussurra, persiste, resiste. Por isso, vale relembrarmos de tantas lutas anticoloniais in memorian... às mais de 200.000 “vítimas que não valem a pena”, como atribuiu o linguista norte-americano Noam Chomsky ao povo Timorense, em um artigo publicado pela revista da Associação de Docentes da Universidade de São Paulo-Adusp (em outubro de 1999), por tantos descasos e investimentos do Ocidente, a todo massacre cometido por milicianos da Indonésia, durante a massacrante ditadura, entre os anos 1975 e 1998. à nação Xetá, a partir de 1953, no distrito de Serra dos Dourados, pela colonização empresariada pela Companhia Melhoramentos Norte do Paraná. Em menos de 10 anos, resistem pouquíssimos remanescentes, no município de Umuarama, Paraná (Brasil), que sobreviveram ao genocídio de seu Povo.
DOI: doi.org/10.29327/565971.1-1
Globalização, Educação Intercultural e suas Proposições para Pedagogias Decoloniais Globalization, Intercultural Education and its Propositions for Decolonial Pedagogies Vicente Paulino1 1 Professor convidado da Universidade Nacional Timor Lorosa (UNTL). Diretor e pesquisador do Centro de Estudos de Cultura e Artes CECA, da UNTL. Investigador colaborador do Centro de Estudos de Migração e Relações Interculturais (CEMRI), da Universidade Aberta de Lisboa. Colaborador do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL), da Faculdade de Letras, da Universidade de Lisboa. Email: vicentepaulino123@gmail.com / ORCID: https://orcid.org/0000-0003-02159712.
Introdução
A
EDUCAÇÃO intercultural é conceituada na compreensão e no respeito aos valores de diversas tradições culturais. A educação intercultural é conceituada, também, nos desafios associados à distribuição desigual de recursos e oportunidades educacionais, entre grupos sociais (MARGINSON; SAWIR, 2012). Nesse sentido, a educação intercultural incorpora noções como alfabetização crítica e educação culturalmente responsiva, para combater a marginalidade e a discriminação social, no sentido de construir uma educação igualitária. Assim, educadores que adotam uma orientação de educação intercultural estão empenhados em contrapor relações coercitivas de poder em seus ambientes escolares (CUMMINS, 2015). Desse modo, é preciso pensar em um novo mundo que possa, pelo menos, acomodar as diferentes sociedades, em um princípio de humanização do viver e das relações sociais nos espaços escolares. Por isso, é importante pensarmos em caminhar no sentido do mundo dos outros, ou seja, ao mundo das sociedades A e B, para que conheçamos seu modo de viver socialmente
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e o seu modo de contato com a educação formal. Vale a pena realçar, ainda, que a compreensão mútua, a tolerância e a paz também são fundamentais para conhecer e entender o mundo dos outros. O mais importante é promover diálogos inter-religioso e intercultural em todos os espaços escolares, e esses diálogos devem figurar em todos os currículos escolares (KEAST, 2007). Atualmente, o sistema educativo de cada país confronta-se com a necessidade de responder de forma adequada, tanto em termos de materiais educativos como no que se refere a valores culturais e atitudes. Portanto, quando se pensa em “educação para todos”, é certo que leva as pessoas a pensarem moralmente sobre a importância que a educação tem para a sociedade. Por isso, é urgente que se construa uma ação educativa intercultural dentro e fora da escola. De fato, a educação é um processo dinâmico que envolve toda a comunidade na construção de uma sociedade justa e humana, através do diálogo e da ação orientada pelos valores éticos e pela interação de diferentes sujeitos que atuam em um espaço escolar, e fora dele. A intensificação das relações sociais à escala mundial é resultado do próprio processo de globalização. A intensificação das relações sociais da Humanidade, neste novo milênio, só pode ser concebida/pensada com base na diversidade cultural. Todas as nações no mundo têm suas preferências na condução do seu sistema educativo, mesmo assim todas elas começam a apostar na educação intercultural. Colocando o diálogo como ideia base do desenvolvimento de uma educação intercultural. Exemplo disto é que, nos últimos anos, as instituições escolares dos países da América têm desenvolvido um sistema de educação sustentado nos princípios de interculturalidade, logo, a escola em si mostra e afirma sua identidade como uma entidade educativa intercultural. Pois, em um contexto de globalização, fica o desafio de se promover, no nível de pesquisa e de serviço social à comunidade, incluindo prestar as práticas educacionais, a construção de identidades particulares e, ao mesmo tempo, fazer abertura ao espírito de respeito à diferença.
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Partindo desses pressupostos, procura-se abordar os fundamentos conceituais da relação entre a cultura e a educação, a globalização e a educação intercultural, incluindo suas proposições para pedagogias decoloniais. A educação intercultural e as pedagogias decoloniais são a chave para a consolidação das visões associadas à cidadania democrática, à mediação e ao diálogo, no processo de autoformação e de aprendizagens. Coloca o diálogo e a cidadania democrática como ideias base na construção do conceito da educação intercultural, e, também, os considera como proposições para pedagogias decoloniais.
Cultura e Educação: qual relação? A relação entre cultura e educação constitui uma área de grande importância na atualidade científica, uma área interdependente entre si, pois torna a ser de relevância social e de importante incidência, no domínio das políticas públicas educacionais e das culturas educativas. No âmbito dos estudos da cultura e da educação, cada vez maior consideração é atribuída à formação do caráter, à formação intelectual e à formação cultural dos cidadãos. A relação entre a cultura e a educação não responde a um esquema fixo e universal, mas aparece em formulações diferentes, ao longo da história e nos diferentes contextos que definem a relação da cultura com a educação, e/ou a relação da educação com a cultura. Deste modo, pode dizer-se que são duas áreas interdependentes, e para se desenvolver essas áreas precisam uma da outra. Sem a cultura, a educação não pode afirmar-se como uma ação exercida. Talvez se encontre aqui uma concepção antropológica de cultura, pois, cada espécie humana tem suas próprias práticas culturais carregadas pelas regras de convivência sociais. Tais regras são ensinadas de geração a geração, portanto, esses “ensinamentos” já são uma
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ação exercida dentro de uma sociedade culturalmente constituída. Assim, a cultura consagrada e transmitida pela escola dá especial destaque às normas do viver da sociedade. Se associar o conceito de cultura à educação, de certeza, que se definirá pela “cultura das letras” e “cultura das artes”. Essas figurações conceituadas são encontradas nas colunas dos periódicos do século XVIII e até dos anos 50, do século XX. Assim, a cultura passou a significar “formação” e a “Educação do espírito” (ALVES; ROCHA, 2019), porque aprender algo é uma cultura, conhecido por cultura de aprendizagem, que tem por missão ensinar e aprender para transformar o mundo. É por isso que em 1798, particularmente na percepção da ideologia Iluminista, o termo cultura foi associado às ideias de progresso, de evolução e de razão. Deste modo, a cultura é definida como uma “soma dos saberes acumulados e transmitidos pela humanidade, considerando sua totalidade ao longo da história” (CUCHE, 2002, p. 21). Além disso, segundo Bauman (2013), o termo “cultura” é usado para pôr a missão de educar as pessoas, sem diminuir os valores morais constatados nos seus costumes. É uma forma de aproximar o povo, pois ela é a base da sociedade hegemônica. Assim, A cultura manifestava-se, acima de tudo, como um dispositivo útil, consciente, destinado a assinalar as diferenças de classe e salvaguardá-las: como uma tecnologia inventada para a criação e proteção das divisões de classe e das hierarquias sociais (BAUMAN, 2013, p. 10).
Além disso, a cultura é, embora fonte de conflitos e de incompreensão, uma das bases do diálogo, da compreensão e da comunicação entre os povos. Ninguém vive sem cultura, todo ser humano vive com cultura e com ela afirma sua origem. Natália Ramos (2001) adverte que “a integração social e cultural do ser humano pode enquadrar-se numa dupla apropriação que se aproximam entre si, pois toda ela associa-se às estruturas simbólicas de relações: a apropriação do indivíduo pelo conjunto das estruturas simbólicas de um contexto social e cultural particular […]; a
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apropriação pelo indivíduo das estruturas simbólicas, do código cultural do contexto sociocultural no qual se desenvolve na sociedade por meio da educação.” (p. 162, grifo nosso). Já que A educação é, antes de mais nada, desenvolvimento de potencialidades e a apropriação de ‘saber social’, (ligados a um conjunto de conhecimento e habilidades, atitudes e valores que são produzidos pelas classes, em uma situação histórica dada de relações para dar conta de seus interesses e necessidades). Trata-se de buscar, na educação, conhecimento e habilidades que permitam uma melhor compreensão da realidade e envolva a capacidade de fazer valer os próprios interesses econômicos, políticos e culturais. (GRYBOWSKI apud FRIGOTTO, 1995, p. 13).
Vê-se aqui que a educação se apresenta como uma condicionante, e por isso que a cultura é, muitas das vezes, usada como se pertencesse apenas a pessoas que têm uma educação formal e estatuto social privilegiados. Na atualidade, geralmente, se reconhece que a cultura não é apenas o que um grupo de elite de pessoas pode fazer em tempo livre, mas a cultura é um conjunto de regras e de práticas sociais que conduz a vivência da sociedade. Enquanto a educação é alicerçada pelos princípios éticos e pelas práticas culturais que, de todo modo, é “um processo essencialmente coletivo no qual a aprendizagem e a construção do conhecimento se efetivam através da inter-relação entre os sujeitos e entre esses com o todo da vida.” (AHLERT, 2007, p. 93). A cultura e a educação são áreas diferentes, mas complementares, porque, muitas vezes, as práticas educativas se transformam em práticas culturais e isso permite identificar uma larga possibilidade de ações desenvolvidas pela escola. O esforço de um indivíduo no estudo para alcançar os objetivos desejados já é, em si mesmo, uma cultura de transformação da vontade. Enquanto, a relação do papel da educação, diante da cultura, há sempre uma discrepância no entendimento de possibilidades da ação da escola sobre a cultura e a vida em sociedade. Através da educação, um indivíduo tem necessidade de perceber sua
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cultura, e torna-se parte dela, quando a ideia de aprendizagem social favorece seu processo de preparação para o desempenho de papéis sociais. Embora a ideia de uma escola que tem a capacidade de reconstruir o mundo humano, de modificar costumes, padrões de comportamento da sociedade, não consegue confirmar a prática cotidiana associada à prática escolar. A cultura e a educação são áreas que têm relações profundas, e, por isso, precisam ser consideradas na escola, particularmente, na realização do processo de aprendizagem. Uma escola, enquanto verdadeiro lugar da educação, tem que fazer penetrar a sua missão de “educar” e “ensinar” na criança, influenciando-a em conformidade com a imagem ideal da educação oferecida, para que possa cumprir a natureza da missão escolar. Deste modo, a socialização da educação é uma ação exercida por pessoas que fazem parte de determinada sociedade (ERNY, 1982; DURKHEIM, 2011; WEBER, 1982), tornando-as portadoras de uma visão de mundo com sua cultura. Portanto, usando a cultura como luz de sua visão, para compreender o mundo parcialmente ou em seu todo. Na teoria sociológica de reprodução, Pierre Bourdieu (2007a) defende que não é apenas dinheiro, ou capital econômico, que determina a posição da estrutura social de uma pessoa, mas o mais importante é o que ele chamou de capital social e capital cultural. O capital social é feito com obrigações sociais e redes que são conversíveis em economias, capital; ou seja, o capital social é o conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de inter-reconhecimento (BOURDIEU, 2007b, p. 67). Enquanto o capital cultural pode ser definido com os gostos, desporto lúdico, valores, línguas e dialetos adquiridos, ou as qualificações educacionais que marcam uma pessoa como pertencente a uma classe social e cultural privilegiada. O sistema de ensino reproduz tanto melhor a estrutura de distribuição do capital
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cultural entre as frações de classes sociais quanto a cultura que transmite, quando se encontra mais próximo da cultura dominante; porque o sistema escolar só garante, completamente, o valor de reprodução do capital cultural e da reprodução do capital social, quando o capital econômico está bem direcionado à educação das crianças. O capital econômico é investido na educação, significa fazer um “investimento racional”, tanto no plano econômico como no plano educacional (BOURDIEU, 2007a, p. 324). A escola é uma instituição cultural, e sua relação com a cultura é concebida como dois polos interdependentes, porque, através da escola, se desenvolve também a cultura, sobretudo nos estudos acadêmicos e nos eventos escolares. Já que “a função do ensino se baseia na transmissão, não do simples saber, mas de uma cultura que possibilite o entendimento acerca da nossa condição que nos auxilie a viver e seja, ao mesmo tempo, favorável a uma forma de pensar mais aberta e livre” (MORIN, 2014, p. 11). Neste caso, a educação atua espontaneamente no homem e esse homem é aquele que representa agregação biossocial, a partir da noção de relação dialógica, cujo desenvolvimento é possível quando se configura numa relação dialética com a sociedade, ou seja, o homem cresce e é formado culturalmente pelo ambiente que o cerca (VYGOTSKY, 1978). Ao considerar a escola e a cultura como uma relação intimamente ligada ao universo educacional, então, cabe indagar sobre as práticas educativas em todo o processo de aprendizagem. Assim, a escola assume a função de conservação social, usando a pedagogia para despertar, como dizia Max Weber, “os ‘dons adormecidos’ em alguns indivíduos” (BOURDIEU, 2007b, p. 53), querendo dizer que a educação não forma o homem a partir do nada, como ditavam John Locke e Helvétius, mas se aplica às disposições que já se encontram na criança (DURKHEIM, 2011, p. 65). A escola é um lugar de transmissão do capital cultural, e, em sendo lugar de prática cultural, tanto no nível da família
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quanto social, produz o êxito de criação da confiança. Pois, “a ação no meio familiar sobre o êxito escolar é exclusivamente cultural (...). Ainda que o êxito escolar pareça ligado igualmente ao nível cultural do pai ou da mãe” (BOURDIEU, 2007b, p. 42). Fazer educação (e.g. BRUNER, 1990; VYGOTSKY, 1978), na sociedade como um fato social, tem de se elevar dentro da cultura, em uma abordagem de padrão baseada na visão humanística e social, porque a educação é desenvolvida em uma relação dialógica (BAKHTIN, 1986), para dar resposta ao que o destinatário pretende saber, como também é algo eminentemente social, como dizia Émile Durkheim (2011): A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre aquelas que ainda não estão maduras para a vida social. Ela tem como objetivo suscitar e desenvolver na criança um certo número de estados físicos, intelectuais e morais exigidos tanto pelo conjunto da sociedade política quanto pelo meio específico a que a criança particularmente se destine. Em suma, pode concluir-se que a educação é uma socialização metódica das novas gerações. (p. 53-54).
Assim, a educação é um instrumento tão importante que configura todo o processo de adaptação dos indivíduos à sociedade, e, além disso, a educação tem uma função primordial para dar garantia à interiorização das normas, pensamentos e padrões de comportamento na convivência social. Se a educação é uma socialização metódica, então, todo o processo de aprendizagem é desenvolvido em uma cultura de padrão do conhecimento. E, se a cultura for abordada como padrão, então a educação pode ser vista como uma coisa aberta e socializa-se na comunidade de prática cultural (MATUSOV; MARJAVONIC-SHANE, 2012, 2017; LAVE; WENGER, 1991). Aqui, compreende-se que a socialização da educação é baseada em padrões de reconhecimento da cultura, em que, na abordagem educacional, reconhecer os erros é uma tarefa da aprendizagem.
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Globalização e Educação Intercultural A sociedade contemporânea é dominada e controlada pela tecnologia e pela mercadorização global, como diria Bauman (1999), a noção de tempo e de distância modificou profundamente a movimentação de pessoas ao redor do mundo. A maior mudança na educação começou nas décadas de 60 e 70 do século XX, era uma mudança identificada pela ideia de “reproduções” no capital econômico, social e cultural (BOURDIEU, 2007a; BOURDIEU; PASSERON, 1978). Pois a educação daquela época foi pensada numa lógica econômica e na estratificação do estatuto social da sociedade. Atualmente, a mudança na educação é simbolizada pela globalização com a abertura das fronteiras e a constituição de blocos regionais, como a União Europeia, o NAFTA (Canadá, México, Estados Unidos), o Mercosul, o Pacto Andino, a APEC (Ásia-Pacífico), a CPLP e a ASEAN. Para os europeus, a constituição da União Europeia teve, até agora, mais consequências na área da educação do que a própria globalização, impulsionada pela OMC (Organização Mundial de Comércio). Para os países falantes do português, a constituição da CPLP teve origem nos laços históricos e culturais herdados pela colonização portuguesa, o mais marcante é a religião católica e a língua portuguesa; enquanto, para o sudeste asiático, a constituição da ASEAN foi impulsionada não pela razão cultural da região, mas pelo desenvolvimento econômico e da segurança da região. É bom perceber que os pensadores progressistas definem a educação para todos, mesmo assim a solidarização entre os membros da espécie humana continua a ser um desafio, porque a globalização não tem apenas um efeito positivo, mas também tem seus aspetos negativos. Por isso que a globalização é um termo apropriado para definir a mudança com uma percepção de interdependência entre os seres humanos, pondo em evidência a solidariedade entre os membros da soci-
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edade humana e coloca o universo da terra como um lugar do bem-comum. Portanto a abertura das fronteiras não é propriamente um problema para a soberania de um povo e de uma nação, mas o problema está na lógica do dinheiro e dos países mais fortes no capital econômico e no capital cultural dominante. O problema, nesse raciocínio, não é a globalização, mas sim, o próprio neoliberalismo. Sabendo que a educação no mundo neoliberalmente globalizado está, cada vez mais, baseando-se na economia política internacional, a mudança de natureza da economia capitalista mundial é encarada como uma força da globalização e procura ultrapassar os seus efeitos a partir do local (DALE, 2004). Por isso que Boaventura Sousa Santos (2004), em sua reflexão teórica e crítica, afirma que para definir a globalização há que compreender primeiro o seu sentido epistêmico, talvez contraditório, entre globalização e localização, entre Estado Nação e o não Estado transnacional, e entre a natureza político-ideológica. À luz destas três identificações, talvez definidas contrariamente, é muito claro perceber o processo de globalização em diferentes relações sociais, diferentes fenômenos globais e diferentes áreas de estudo. Assim, não existe estritamente uma entidade única chamada globalização no sentido singular, mas globalizações no sentido plural (SANTOS, 2004). Toda a interação humana é figurada na interculturalidade, pois as fronteiras geográficas de cada país estão praticamente ligadas por redes de tecnologia. É o resultado da globalização marcada por “um conjunto de relações sociais que se traduzem na intensificação das interações transnacionais, sejam elas práticas interestatais, práticas capitalistas globais ou práticas sociais e culturais transnacionais” (SOUSA, 2001, p. 63). Na educação, segundo António Teodoro (2003, p. 61), “a mediação obrigatória dos Estados nacionais na formulação das respectivas políticas, condicionada em geral por fortes movimentos sociais internos”, que ainda está em um possível paradigma por uma “globalização de baixa intensidade” (SANTOS, 2001, p. 93).
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A globalização é um processo que se desenvolve em termos de transversalidade temática, exigindo uma metodologia transdisciplinar interativa e aglutinadora das diferentes áreas do conhecimento científico (SANTOS, 2002). O processo globalizante da globalização também está na base de gênese dos estudos teórico-conceituais, estruturados pela realidade do ambiente transformacional dos relacionamentos transnacionais de origem no localismo, e ao mesmo tempo, operacionalmente voltado à uma realidade societal que é manifestada pela própria mudança. Pois, segundo Anthony Giddens (1990), “a intensificação das relações sociais no plano mundial que ligam localidades distantes de tal forma que os acontecimentos locais são moldados por acontecimentos que ocorrem a muitas milhas de distância e vice-versa”. Se o fenômeno da globalização é uma concretização de tendências identificadas na longa duração sócio-histórica, então, o termo da globalização, em si, é, segundo Victor Marques dos Santos (2002, p. 55), constituída por um processo de mudança essencialmente qualitativa, porque se liga ao aumento da diversificação do número de atores envolvidos na intensificação das interações; fazer crescer a convergência interativa de processos econômicos, políticos, sociais e culturais, científicos e tecnológicos; alteração decisiva das condições de produção e aplicação de conhecimentos adquiridos com uma política de renovação epistemológica que se projeta em todos os processos inerentes ao fenômeno globalizante. Nesse mundo globalizado e tecnologizado, o termo interculturalidade começa a ser aplicado nos sistemas econômicos e nos negócios de grande dimensão, nas tecnologias e comunicação de informação, incluindo nas relações políticas internacionais, e até que as questões interculturais ocupam também o lugar nos estudos comunicacionais e organizacionais, a sociologia política e até a própria economia e educação (CANCLINI, 2009). Além disso, pode considerar a interculturalidade
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como expressão que abre novo horizonte das pessoas em relação ao capital social e capital cultural. Já que na mediação cultural e no diálogo, como elementos necessários para darem resposta aos problemas básicos da sociedade global, residem a certeza de que é através da educação que se desenvolve o diálogo mais aprofundado, no intuito de conduzir a sociedade para uma sociedade intercultural e multicultural. Alguns pesquisadores, como Candau (2000, 2009) e Fleuri (2002, 2003), afirmam que educação intercultural pode acontecer no sistema educativo e na sociedade, quando o professor vivencia ativamente a diversidade dos diferentes grupos sociais. Porque, segundo Candau (2009, p. 170): [...] a educação intercultural não pode ser reduzida a algumas situações e/ou atividades realizadas em momentos específicos, nem focalizar sua atenção exclusivamente em determinados grupos sociais. Trata-se de um enfoque global que deve afetar todos os atores e todas as dimensões do processo educativo, assim como os diferentes âmbitos em que ele se desenvolve. No que diz respeito à escola, afeta a seleção curricular, a organização escolar, as linguagens, as práticas didáticas, as atividades extraclasse, o papel do/a professor/a, a relação com a comunidade etc.
São aspectos que colocam a educação como um meio que possibilita a convivência de diferentes sujeitos de culturas diferentes, dentro da escola. Os diferentes sujeitos que estão dentro da escola, como parte integrante das relações interpessoais e das práticas pedagógicas, na realização do processo de aprendizagem, e de ações educativas, devem seguir esse caminho, porque a perspetiva intercultural da educação promove a formação de relações dialógicas que orientam a vida das pessoas (FLEURI, 2002, p. 11). A educação intercultural deve contribuir para ultrapassar o etnocentrismo sociocultural, tendo em consideração na pedagogia global, as situações multilíngues e pluriculturais, proporcionando um melhor desempenho escolar aos
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filhos de trabalhadores imigrantes (sobretudo de meios desfavorecidos), correspondendo às suas necessidades específicas. Levar os jovens a conhecer e conviver com a diferença, valorizar capacidades específicas e talentos diversificados, sem requerer de todos exatamente o mesmo, preparar para desempenhos múltiplos, gerir a resolução de problemas e de conflitos, ressalvando valores consensuais das diferentes culturas e promover o conhecimento mútuo, a estima responsável e a cordialidade cívica, são os principais objetivos da educação intercultural. (ARAÚJO, 2008, p. 59).
É por isso que é imprescindível, no âmbito escolar, a discussão em torno da ação do diálogo e das práticas pedagógicas interculturais, que deve ser voltada sempre aos temas relativos às diferenças inerentes às culturas no mundo contemporâneo e globalizado (TANCINI, 2012). Nesse sentido, o intercultural é uma prática considerada como “uma opção sociológica global” (ABDALLAH-PRETCEILLE, 1986, p. 177), em uma racionalidade compreensiva. Talvez se encontre aqui uma concepção sociológica da educação que possa justificar sobre o campo de atuação da educação nesta era globalizada dominada pelo poder neoliberal, pelas novas tecnologias de informação e de comunicação. Esperando-se que a educação se ajuste às prioridades mais amplas, há que levar sua ação transformadora para garantir um mundo melhor, o bemestar da sociedade, porém, não parece nada fácil, “considerando que as instituições educativas estão entre as vítimas da dinâmica da própria globalização” (SACRISTÁN, 2007, p. 38).
O Diálogo como Conceito da Educação Intercultural O homem tem uma inteligência que é capaz de produzir pensamentos sobre algo a significar, interpretando com claros argumentos para poder provar a sua verdade existencial. A cultura é, nesse sentido, organizada pelo veículo cognitivo do ser humano que é a linguagem, definida como alma do diálogo social, pois é o capital cognitivo coletivo
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dos conhecimentos adquiridos, das experiências vividas, da memória histórica, das crenças míticas de uma sociedade, fundamentados nas consciências coletivas e no imaginário coletivo (MORIN, 2014). A educação “cria no homem um novo ser” (DURKHEIM, 2011), pela relação dialógica e troca simbólica da experiência. O ser novo pelo diálogo, pela concreta ação coletiva e por meio da educação, edifica o verdadeiro ser do homem, e em todo o caso, só no homem vive uma sociedade e só na sociedade vive o homem. O ser humano é um ser dialógico. É um ser que partilha sempre as suas ideias através do diálogo com o seu outro ser. O homem nasce para se dialogar com o outro, o diálogo faz o homem se comunicar com outro, o diálogo é sempre acionado pelos homens nos seus discursos políticos, sociais e culturais, anunciando o sentido social “vamos dialogar” e com o diálogo resolve as diferenças. O diálogo conduz o homem a encontrar o significado do seu verdadeiro ser como humano, por isso, o diálogo é uma condição existencial do ser humano no seu viver social. Ser dialógico significa ser-crítico que sabe-fazer e sabe-transformar algo para o bem comum. O diálogo é em grego “dialogein” que pode significar uma conversa durante a qual os interlocutores manifestam entre um com o outro, trocando argumentos com intuito de chegar a um acordo fundamentado. Isto quer dizer que o objetivo do diálogo é encontrar um “acordo’ ou um “entendimento” sobre o que está sendo debatido. Tratase de uma condição dialógica que prevalece mediante uma conversa efetuada entre duas ou três pessoas, para chegar a uma conclusão em busca da verdade. No diálogo se estabelece um conjunto de ideias para construir e implementar uma concreta ação associada ao bem comum. Por exemplo, falar na área da educação e sua respectiva socialização precisa mesmo de um diálogo permanente, para que a educação possa chegar a
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todo o cidadão. Para tal, define a “educação como uma prática da liberdade” (FREIRE, 1980) e seria bom que fosse fundamentada por uma “pedagogia da pergunta” (FREIRE; FAUNDEZ, 1985). A educação requer uma resposta imediata sobre a mudança da sociedade e do mundo, por isso, atualmente, fala-se muitas vezes da aplicação da educação intercultural nas escolas e nas sociedades educativas institucionalizadas. A base fundamental da educação intercultural é o diálogo, relações dialógicas entre professores, entre professores e alunos, entre alunos e alunos, entre professores e os pais dos alunos. Qual é o motivo de dizer que o diálogo é importante e colocá-lo como um conceito da educação intercultural? Porque o diálogo requer perguntas e respostas curtas que são submetidas a um exame racional. Pela troca de argumentações e objeções, o diálogo permite, a cada um, escapar da particularidade de sua opinião e ascender ao saber. Partindo do pressuposto de que a educação intercultural é, num certo sentido, acessível a todos aqueles que já possuem alguma experiência de vida no banco da escola, transmitindo um ao outro um conjunto de valores sobre a forma como se valorize a diferença através das relações dialógicas. Portanto, uma educação intercultural sustentada na base do diálogo é de certeza que revela respectivamente um posicionamento epistemológico, ético e social. Se olha-se para o resultado, qualquer que seja o ser humano, desde muito jovem já tem alguma visão epistemológica sobre o que é uma relação dialógica entre A e B, como também alguma ética social de se representar na sociedade. Todos os homens têm opiniões sobre o diálogo na interculturalidade. Nesse sentido, todos os homens são parte integrante daquilo que se chama “serdialógico” e “ser-intercultural”. Este fato justifica que seja possível colocar o diálogo como um conceito da educação intercultural. O diálogo na educação intercultural procura tornar mais exigente e consciente o processo da educação pelo qual se encontra nas escolas, em conformidade com um conjunto de ideias partilhadas entre
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diferentes sujeitos racionais. O diálogo intercultural é experimentado por toda a gente de qualquer idade e nível acadêmico. O mais fundamental é colocar o diálogo intercultural como algo que tem valor acrescentado quando, por exemplo, na sala de aula, os professores e os alunos se comunicam ativamente no compartilhamento do conhecimento. Para isso, propor que o professor comece o diálogo, no início de apresentação do programa da disciplina, para ouvir as ideias e os argumentos dos alunos sobre cada tópico da matéria. Pois a verdadeira relação só se constrói na “síntese cultural dialógica”. Isto é, (a) O educador é o que educa; os educandos, os que são educados; (b) o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem; (c) o educador é o que pensa; os educandos, os pensados; (d) o educador é o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam docilmente; (e) o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados; (f) o educador é o que opta e prescreve a sua opção; os educandos, os que seguem a prescrição; (g) o educador é o que atua; os educandos, os que têm a ilusão de que atuam, na atuação do educador; (h) o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais são ouvidos nesta escolha, acomodam-se a ele; (i) o educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, que se opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes devem adaptar-se às determinações daquele; (j) o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, meros objetos. (FREIRE, 1987, p. 34).
Nestes enunciados, percebe-se que a educação deve e pode funcionar através do diálogo, em que professores e alunos são pais e filhos no espaço escolar e caracterizam a si mesmos como “sujeitos aprendizados”, no agir de “ensinar” e “aprender”. Destaca-se as palavras de Paulo Freire (1987, p. 68), que dizia: “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. É absoluta verdade, pois, os professores não ensinam a simesmo, ensinam os alunos ou ensinam os outros, os alunos não com-
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preendem sozinhos algo se não há explicação de outros, fundamentalmente seus professores; portanto, precisam um do outro para se complementam entre si. O diálogo é a matéria-prima daqueles que pensam com ideias, pensam em contribuir alguma coisa com ideias, pensam em respeitar as ideias dos outros. A essência do diálogo é pensar e dar a solução ao problema sobre o que se está a pensar. Portanto, o pensar é fazer-nos dialogar, dialogar com o pensamento e procura entender o pensamento sobre nós como um ser-social e um ser-intercultural. Na educação intercultural aplica-se (também em outras áreas, como na sociologia, na antropologia, na medicina) o saber social que se emerge no “diálogo de saberes, no encontro de seres diferenciados pela diversidade cultural, orientando o conhecimento para a formação de uma sustentabilidade partilhada. (...) O diálogo de saberes se produz no encontro de identidades” (LEFF, 2009, p. 19), e também no encontro dos conhecimentos literários, pelo qual Max Weber descreve em seguinte forma: Houve uma época em que se aprendia a escrever discursos latinos e versos gregos para se poder ser conselheiro político de um príncipe e, principalmente, para ser memorialista. Foi a época do primeiro florescimento das escolas humanistas e das fundações principescas para professores de “poética”. Para nós, foi uma época transitória, que teve influência bastante persistente em nosso sistema educacional, sem maiores resultados políticos, porém no Leste da Ásia, foi diferente. (WEBER, 1982, p. 113).
Vê-se aqui claramente uma justificação associada à importância do diálogo em “aprender a escrever” sobre o que se passa em poesia. É necessário um diálogo permanente para perceber o que se passa noutro mundo além do mundo ocidental, por exemplo, O mandarim chinês é, ou antes foi originalmente, quase o mesmo que o humanista do nosso período da Renascença: um letrado treinado humanisticamente e testado nos monumentos linguísticos do passado remoto. Quando lemos os
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diários de Li Hung Chang vemos que seus maiores motivos de orgulho são seus poemas e o fato de ser um bom calígrafo. Esta camada, com suas convenções desenvolvidas e modeladas pela Antiguidade chinesa, determinou todo o destino da China; e talvez nosso destino tivesse sido semelhante se os humanistas, em sua época, tivessem a menor possibilidade de conseguir influência semelhante. (WEBER, 1982, p. 114).
Nesse sentido, o diálogo com outras culturas, através da cultura de leitura, é tão importante para ter uma cultura geral sobre o que se passou à época, antes do nosso tempo. Isto é, olha-se que no processo da educação chinesa e da Grécia antiga, o diálogo era essencialmente estabelecido nos conhecimentos literários e toda a forma do diálogo estava voltada à experiência contemplativa, fundamentada na compreensão de racionalidade (WEBER, 2004, 2005).
Que proposições da Educação Intercultural para Pedagogias Decoloniais? O termo intercultural foi usado pelo Conselho Europeu, desde o início dos anos 80, do século XX, e o seu uso foi adotado pelos estadosmembros nos seus documentos ministeriais, quando se decidiu enfrentar a questão da inserção dos estrangeiros nas escolas. Por isso que esse termo foi adotado como uma nova proposta alternativa para abrir o horizonte de convivência social, fundamentalmente na educação. Ou seja, como uma proposta de unificação de diferentes ideias e de diferentes pessoas de diferentes culturas, para dar o novo rumo ao sistema de educação, quanto à proposição do uso terminológico intercultural ou interculturalidade na educação. O uso terminológico intercultural ou interculturalidade é apontado para um projeto de proposta alternativa que, no plano educacional, procura intervir nas mudanças induzidas pelo contato com as diversidades, cujo objetivo é promover atitudes abertas ao confronto e conduzir os processos aculturadores a uma integração entre culturas, para que não discriminem umas às outras. Pois, segundo
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Paola Falteri (1998, p. 39), “a perspectiva intercultural, de fato, começa somente quando se criam as condições para a troca, quando se estabelece uma relação de reciprocidade, quando, reconhecer o ‘outro’, nos tornamos conscientes da nossa própria cultura”. Assim, na percepção da pedagogia decolonial, pode-se colocar o uso do termo intercultural ou interculturalidade, como sendo um poderoso motor de renovação do pensar e do agir sobre a educação para todos. Além disso, há de perceber que Num sentido figurativo, a escola fundamental e média torna-se um imenso parque de estacionamento, onde se encontram jovens com as mais heterogêneas origens sociais, étnicas ou culturais e os mais díspares projetos de vida e aspirações pessoais. Sobre esse imenso parque, onde potencialmente se encontram todos os jovens até aos 18 anos de idade, acentuar-se-ão, do lado do social as pressões para que a escola seja dominantemente uma instância socializadora, sobretudo numa época marcada pela perda de influência, em determinados grupos e contextos sociais, de outras instituições básicas, como a família e as igrejas, e a emergência da comunicação social de massas como a mais influente instância socializadora. (TEODORO, 2003, p. 95).
Portanto, o parque de estacionamento aqui pode ser definido da seguinte forma: parque pode significar uma escola e estacionamento pode significar um lugar onde se pode realizar a ação. Logo, o parque de estacionamento é metaforicamente definido como um espaço escolar onde os diferentes sujeitos de diferentes origens sociais, étnicas ou culturais se movimentam e se unem para realizar o processo de aprendizagem. A interculturalidade presente nesse no espaço escolar, metaforicamente conhecido por parque de estacionamento do conhecimento, apresenta uma nova forma de partilhar conhecimentos produzidos de “modo outro” (WALSH, 2009). De “modo outro” aqui refere-se, pelo menos, à transmissão do conhecimento que se constrói a partir do diálogo e da troca de experiências vividas e faladas, ligadas fundamentalmente no
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modo de dizer, “isto é conhecimento”, e de fazer, “como pôr em prática o conhecimento”. Por isso que a teoria da pedagogia decolonial aposta sempre na humanização dos saberes (WALSH, 2014, p. 23). Isto é, a educação é, na teoria de Hannah Arendt (2011), uma ação essencialmente conservadora que “conserva a herança de saber e de experiência recebida do passado e transmiti-la às novas gerações” (CANIVEZ, 1991, p. 141). É preciso tomar o passado como modelo, para estabelecer a figura de um educador que possa representar e mediar a velha geração e a nova geração, colocando a educação como ponto em que um educador desempenha a sua função, e assumir a sua responsabilidade mediante de uma inevitável mudança que se realize com a vinda dos novos e jovens (ARENDT, 2011). Diante destas considerações, pode compreender proposições da educação intercultural, para pedagogias decoloniais, nos seguintes aspectos: • valorização do ser, isto é, valorizar a memória, o corpo e a natureza, o pensamento e as ações que envolvem o sujeito humano enquanto ser-político, ser-social, ser-pensador e ser-inovador; • inter-relação do ser na família, na escola e no trabalho: manter uma relação recíproca com o lar, não podendo deixar o lar como lugar estranho, mas considerando-o como espaço de vivência e de união dos membros da família, constituída culturalmente. Atuação em espaços como a escola e o local de trabalho pode ser movida pela participação ativa dos diferentes intervenientes, valorizando a diferença, e colocando essa diferença como ponto de partida do sucesso; • Conscientização dos cidadãos sobre os seus direitos e deveres associados à educação, conduzindo-os para uma aprendizagem individual ao coletivo para a formação de uma justiça social;
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•
O estado de pertencimento pode ser destacado como “pertencer a um lugar”, ou fazer parte de um lugar”, significa que cada ser humano faz parte ou pertence ao lugar onde viveram seus antepassados;
Nessas considerações, percebe-se que o respeito, o dizer e o fazer de “modo outro” têm um papel fundamental na constituição de sujeitos diferentes, ao direito de obter a educação. O mais importante é não afastar o “outro sujeito”, além de “nós”, nos espaços de aprendizagem, procurando humanizá-lo na conquista de saberes diversos. Não podendo considerar “a revitalização, revalorização e aplicação dos saberes ancestrais” como algo ligado apenas “a uma localidade e temporalidade do passado, mas sim como conhecimentos que têm contemporaneidade para criticamente ler o mundo, e para compreender, (re)aprender e atuar no presente” (WALSH, 2014, p. 24). Porque, “numa sociedade dependente” (FREIRE, 1987), é preciso pensar em valorizar a diferença e considerar o “outro sujeito” como algo a significar, para que o “nós” também seja respeitado como algo valioso no olhar desse “outro sujeito”; pois, parte de um princípio de que Um ser humano (...) não tem apenas uma mão [escola clássica] e um coração [escola das relações humanas]. Tem também uma cabeça, o que significa que é livre para decidir e para jogar o seu próprio jogo, embora precise do outro para dar o seu ponto de vista sobre a forma como se decide e se faz o jogo. (CROZIER, 1964, p. 149 apud LIMA, 2012, p. 20, grifo nosso).
Pelo fato, no sistema social, cada pessoa humana é considerada agente livre que pode discutir seus problemas e fazer negociações sobre o que está em sua posse, enfatizando o processo de integração e de adaptação. É necessário tomar uma atitude que pensa na cultura local e procura preservá-la, sem esquecer de acompanhar os acontecimentos
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ligados ao mundo global. Não se esqueça de treinar também os aprendentes com certas habilidades necessárias, para se adaptarem à real mudança que acontece no quotidiano, e educar os aprendentes com certas ideias possíveis para a sua produção ou a sua construção (FREIRE, 2011). Humanizar a ciência e o conhecimento é para responder o interesse comum da humanidade, isto é, o bem-estar da sociedade. O ser humano é intrinsecamente limitado e não tem o dom de adivinhar o futuro, pois quem decide o futuro é aquele que criou o mundo. Porém, o ser humano pode preparar-se para o futuro próximo através da educação e procura aprender com outros nas escolas e em outras instituições sociais estruturadas. Mas, antes de tudo, o ser humano deve primeiramente viver o presente, isto é, aprender o que precisa aprender no presente, e, depois, que se prepare para o futuro próximo. Essa expressão “se prepare” é um processo que vai ser seguido com várias realizações nas escolas ou nas instituições educativas, para alcançar aquilo que se pretende alcançar. Assim, segundo John Dewey (1979), a educação é um processo de vida que se prepare para o futuro, e não uma preparação para a vida futura. A escola deve representar a vida presente e não a vida futura. É nesse sentido que A educação do futuro deverá ser o ensino primeiro e universal, centrado na condição humana. Estamos na era planetária; uma aventura comum conduz os seres humanos, onde quer que se encontrem. Estes devem reconhecer-se em sua humanidade comum e ao mesmo tempo reconhecer a diversidade cultural inerente a tudo que é humano. (MORIN, 2000, p. 47).
Tudo o que é humano, fazer parte do sentimento de pertença e a cultura afirma essa tal pertença. Pois, a cultura é a base de afirmação da cidadania de um indivíduo ou de um grupo social. Por isso, a necessidade de reforçar um ambiente cultural em casa e na escola, com os valores democráticos e humanísticos. Assim, que se prepare para o futuro, pelo fato de estarmos diante de um presente aberto ao futuro.
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Educação para a cidadania democrática O termo “cidadania” está sempre presente de uma forma transversal a todas as disciplinas, e existem conteúdos que se adequam mais à educação da cidadania democrática. Significa que as áreas sócio-humanísticas prestam-se mais à educação para a cidadania democrática. Aliás, a cidadania é uma área muito abrangente, que pode ser ensinada em todas as disciplinas, tais como a história, a geografia, o português, as línguas e mesmo as artes. Quando se pergunta sobre a educação para a cidadania democrática, entende-se que também é uma questão da política e da ética do conhecimento na afirmação do ser cidadão. O conceito de cidadania/democracia é ensinado nas escolas públicas, através do currículo de ciências sociais, tal qual encontrado no texto de padrões de estudos sociais e livros escolares selecionados. Na teoria da pedagogia crítica, os currículos escolares são criados na formação do estudante-cidadão, pois, o estabelecimento do conhecimento público faz parte do processo social democrático e o ensino é a base fundamental de um processo de formação para a cidadania. No âmbito da valorização do ser humano na ciência e/ou humanização da ciência, o ensino é definido como um eixo estratégico para promover o desenvolvimento humano e social. É um fluxo contínuo que evolui para o reconhecimento e o fomento da ciência, da tecnologia e da Inovação. Saber-pensar e sentir-se pertencente a um lugar – uma família, uma origem, uma escola, uma comunidade – significa reconhecer o nosso papel como um ser-cidadão. Para isso, precisa aprender e se desenvolver com referências que possam construir a identidade do nosso próprio ser e conduzir a nossa participação na vida social. Somente por meio do reconhecimento mútuo, que dá a importância recíproca entre indivíduo e grupo, para que estes desenvolvam as ligações entre a vida
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individual e comunitária na sociedade. Portanto, o verdadeiro sentido da cidadania numa sociedade democrática está nessa relação recíproca. É preciso ter uma formação moral para construir uma cidadania democrática na educação. Embora, dizia Émile Durkheim (2008, p. 59) “A disciplina moral não serve apenas para a vida moral propriamente dita; sua ação tem um alcance mais amplo. Ela desempenha um papel considerável na formação do caráter e da personalidade em geral.” Vê-se, aqui, um pressuposto psicológico durkheimiano, em relação aparentemente a aquilo que realiza no grupo, que, em termos éticos, reflete a primazia da sociedade em relação a um ideal coletivo que é considerado de forma particular como um ideal humano (DURKHEIM, 2008). Nesse sentido, o papel da escola é estimular a inteligência e a razão humana com vista a possibilitar uma adesão a ideias claramente associadas às normas coletivas na criação da cidadania democrática, em aspectos morais e de desenvolvimento do conhecimento. A cidadania é construída na base da ideia de autodeterminação, que segundo Habermas (1997), é sustentada por uma fonte de legitimação das ordens jurídicas, e os cidadãos podem conceber-se, a todo o momento, com a participação social numa governação democrática. Nesse contexto, “o sistema de educação escolar pode afirmar-se como um lugar central de afirmação da cidadania numa sociedade comunicacional gerida de um modo dialógico” (TEODORO, 2003, p. 64). Talvez, por isso, é que a educação intercultural seja construída na base de uma educação democrática, enformada pela participação e emancipação de todo o cidadão. No âmbito deste que a educação para a cidadania exige a coerência entre os conteúdos abordados, as estratégias metodológicas adotadas e a organização dos contextos onde ela se desenvolve. Para tal, entende que educação para a cidadania democrática
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não se resume à aprendizagem dos direitos e deveres dos cidadãos mas passa essencialmente pela construção da escola democrática onde seja possível vivenciar situações de mútuo (re)conhecimento, valorização e respeito, que assumam um caráter formativo e potencializador dessa formação nos vários contextos de vida dos indivíduos. (ARAÚJO, 2008, p. 79).
Não se ensina a cidadania, mas aprende-se na cidadania, porque “a educação para a cidadania não é um conteúdo escolar ou um conjunto de atividades: é uma finalidade essencial das políticas educativas” (FIGUEIREDO, 2002, p. 54), que promovem a civilidade do caráter dos cidadãos. Assim, a educação para a cidadania pode ser entendida como uma disciplina que pode oferecer aos estudantes-cidadãos e aos cidadãos em geral: a) para adquirir conhecimentos sobre direitos humanos; b) para refletir sobre problemas de cidadania e de democracia; c) para a resolução pacífica e democrática de conflitos. Nesse sentido, classifica a educação para a cidadania como sendo uma disciplina fundamental para promover a democracia da instituição escolar. A instituição escolar tem obrigação de contemplar no seu projeto educacional a vontade e a intenção de conduzir a escola, desenvolvendo ideias de cidadania no currículo, para que possa transmiti-la aos aprendentes. É fundamental que desenvolva escolas democráticas com base na educação intercultural, onde todos os sujeitos de diferentes culturas participem ativamente de forma consciente e responsável, no próprio processo de desenvolvimento do caráter e do conhecimento. O mais importante ainda é que a instituição escolar desenvolva ações em uma e outra área que, talvez, não tem força para mobilizar ou realizar de forma autônoma o projeto de uma escola cidadã. Pois, “a educação não é apenas uma preparação para a vida mas para a própria vida.” (BEANE; APPLE, 2000, p. 16).
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Uma educação igualitária e solidária Na contemporaneidade, a educação igualitária e solidária é direcionada para promover e fortificar um genuíno espírito democrático, com os princípios basilares da democracia, tais como: a liberdade crítica de expressão; a aceitação do princípio de alternância de poder; compreender o poder como mandato e não como um direito prerrogativo do chefe; a cultura de responsabilização social; o primado da lei; a promoção da justiça e igualdade sociais; o respeito pelos direitos fundamentais, pelo bem-comum e pela tolerância. Para tal, a escola é desafiada a adaptar os seus métodos e planos curriculares às novas e rápidas mudanças que ocorrem um pouco por todo o mundo, sugerindo novas atitudes sociais e novas reflexões para a prosperidade dos estados e sobrevivência do gênero humano. A escola é considerada de referência do povo, significa que a sua atuação é basear-se na noção de uma educação igualitária e solidária. Descentralizar o sistema educacional é para garantir que a educação é para todos, isto é, dar a formação de forma igual a todo o cidadão com espírito solidário. Assim, reafirmo que a educação é a base daquele que se preocupa com a pessoa humana e sem isso, é quase impossível formar uma pessoa capaz de pensar na família e na sociedade. É necessário conscientizar o verdadeiro processo de aprendizagem, evidenciando o valor básico da pessoa humana, indicando-lhe o seu direito pela vida e o seu dever para com os outros. Diante do exposto, a educação é um instrumento que norteia a vida de cada pessoa humana. É um processo que favorece a aquisição de uma nova postura frente aos problemas enfrentados, favorece também a igualdade de acesso aos meios básicos de vida e manutenção da mesma, através de políticas públicas mais igualitárias. Para tanto, é necessário que a efetiva mudança aconteça quando todos os meios da sociedade estão a promover o processo de canalização da igualdade social por meio da educação.
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É preciso socializar a educação igualitária e solidária para combater os estereótipos e os preconceitos dos indivíduos e da sociedade. É preciso formalizar a educação igualitária e solidária como uma arma, para combater expressões preconceituosas e estereotipadas, lançadas por alguns indivíduos irresponsáveis. De algum modo, os estereótipos e os preconceitos podem constituir obstáculos à comunicação intercultural e à educação intercultural, porque são elementos desmoralizantes e que provocam uma situação desagradável na construção das relações sociais, isto é, quando escondem a realidade, as características dos indivíduos ou dos grupos de outras culturas ou subculturas através de generalizações abusivas, porque impedem as mensagens de serem bem recebidas ou emitidas e podem influenciar as percepções. (RAMOS, 2001, p. 168-169, grifo nosso).
Educação igualitária e solidária é também parte da definição da educação intercultural. A natureza ensina o homem que todos são iguais e são diferentes, por isso, não pode conhecer o “outro” apenas pela sua língua, mas pela sua cultura. Deste modo, na educação igualitária e solidária, aprende-se a reconhecer a presença da diversidade de pensamento das diferentes culturas. Todo cidadão tem responsabilidade moral e social pelo desenvolvimento da escola igualitária e solidária. Uma escola é considerada igualitária e solidária quando a sua atuação se manifesta nas seguintes atividades: a) promove um relacionamento aberto e dialógico entre alunos, professores, funcionários e comunidade; b) desenvolve projetos educativos ligados ao serviço social; c) trabalha com responsabilidade e rigor e organiza os serviços acadêmicos e administrativos escolares na base da gestão democrática; d) promove a cidadania ativa no desenvolvimento da educação;
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e) oferece o espaço escolar para a realização das atividades comunitárias; f) integra em suas disciplinas os conteúdos relativos ao meio ambiente, cidadania, direitos humanos, consumo consciente, sustentabilidade; g) desenvolve uma educação para a paz e para a diversidade cultural como espaço de aprendizagem; h) faz parte de uma rede de escolas que fortifica a troca de experiências e o espírito de solidariedade; i) cruza a teoria e a prática em projetos escolares desenvolvidos pelos professores e alunos. Nestes pressupostos, percebe-se que todo o processo de elevação do estatuto do ser cidadão através da educação, fundamentalmente capacitado no ensino com pedagogia crítica-teórica e pedagogia prática, é para tornar o cidadão responsável, dialógico, trabalhador, cultural e social. Em suma, a escola e o trabalho pedagógico podem ser compreendidos quando estão relacionados ao sistema das relações dialógicas entre as classes sociais, dando valor aos princípios da educação igualitária e solidária, para que educação escolar seja emancipadora e que possa dialogar com os diversos tipos de conhecimentos, sejam eles científicos ou interculturais. A escola, nesse sentido, é uma instituição a serviço das classes sociais desfavorecidas.
A tolerância e a solidariedade como outro conceito de Educação Intercultural A tolerância à diferença e a solidariedade aparecem como o cimento que une os movimentos sociais em uma rede planetária, pela qual promove a igualdade com respeito às diferenças culturais, assim como a luta contra os processos crescentes de exclusão social inerentes à globalização. Por isso que a educação deve ser perspectivada para a
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noção de interculturalidade, orientada para a construção da sociedade democrática, plural e humana. A respeito disso, Catherine Walsh (2001, p. 10-11) define interculturalidade, como: um processo dinâmico e permanente de relação, comunicação e aprendizagem entre culturas em condições de respeito, legitimidade mútua, simetria e igualdade. Um intercâmbio que se constrói entre pessoas, conhecimentos, saberes e práticas culturalmente diferentes, buscando desenvolver um novo sentido entre elas na sua diferença. Um espaço de negociação e de tradução onde as desigualdades sociais, econômicas e políticas, e as relações e os conflitos de poder da sociedade não são mantidos ocultos e sim reconhecidos e confrontados. Uma tarefa social e política que interpela o conjunto da sociedade, que parte de práticas e ações sociais concretas e conscientes e tenta criar modos de responsabilidade e solidariedade.
O pensamento dessa autora é referenciado por vários estudiosos de ciências sociais e vários países introduzem a perspectiva intercultural nas reformas educativas, mas até agora não há ainda um consenso comum sobre os desafios encontrados na aplicação da pedagogia intercultural, nem outros elementos como “nós próprios” e “outro nós” se articulam cognitivamente. Por isso que A educação intercultural apresenta-se como um projeto educativo que valoriza a diversidade sociocultural e que, simultaneamente aposta na reanimação da cultura através da comunicação, relação, convivência e encontro entre culturas. Esta comunicação intercultural é essencial e uma pedagogia da relação intercultural deve ter como base a compreensão e a tolerância, o reconhecimento do outro e da diversidade. Esta pedagogia possibilita não só a determinação das suas próprias representações, dos modelos do seu sistema de valores, mas também a identificação das representações e dos sistemas de valores e de
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normas dos outros indivíduos e grupos, constituindo um meio de conhecimento e de aprendizagem do outro e de compreensão intercultural. (ARAÚJO, 2008, p. 61).
Na vida rural, por exemplo, a tolerância, a diferença e a solidariedade ainda estão bem preservadas e respeitadas como ícones de mútua convivência. Ainda hoje, na vida rural registra-se uma grande riqueza de valores como a tolerância, o respeito e a solidariedade que pode ser muita valia para a educação e a escola. A proximidade e a solidariedade entre famílias da comunidade apresentam uma característica do sentimento de pertencer à localidade, e pela convivência que produz união, auxiliando uns aos outros como uma forma de viver coletivo. Significa aqueles que vivem no campo caracterizam o seu território como uma porção de terra que dá o sentido de pertença e estabelece certa unidade na convivência coletiva, tanto familiar como social. Portanto, a convivência é expressada pela proximidade física e pela necessidade de cooperação (PORTO, 1999, p. 65). O reconhecimento de diferentes culturas no sentido plural permanece fundamentalmente reforçado pelas relações éticas e relações dialógicas, embora reduzido ao binômio das culturas hegemônicas versus culturas subalternas. Por isso que muitas vezes, As perspectivas pós-coloniais emergem do testemunho colonial dos países do Terceiro Mundo e dos discursos das minorias dentro das divisões geopolíticas de Leste e Oeste, Norte e Sul. Elas intervêm naqueles discursos ideológicos da modernidade que tentam dar uma normalidade hegemônica ao desenvolvimento irregular e às histórias diferenciadas de nações, raças, comunidades, povo. (BHABHA, 1998, p. 239).
Aqui, pode aplicar-se o conceito de cultura no singular de sentido e que aparece como indício de procurar uma vida melhor, ou pelo contrário, provoca o temor do nivelamento e anulação das especificidades, porque se não dobra-se à economia do mercado que faz explodir
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novas marginalidades e novos localismos. Pois, “a marginalidade, fundamentalmente, é um modo não básico de pertencer e de participar de um conjunto de elementos na estrutura geral da sociedade, e no mesmo sentido de seus membros” (QUIJANO, 1973, p. 28). E, isso cria a complexidade das culturas no plural sentido que não só de classes sociais ou grupos territoriais, mas de faixas etárias, experiências, instituições, organizações produtivas (FLEURI, 1998). Portanto, o discurso pós-colonial não é construído no binarismo nem nas formas holísticas, mas no hibridismo do pensamento e das relações sociais possivelmente manifestados em qualquer lugar. É esse fato que Hommi Bhabha (1998) chama de “transnacional” ou “transnacionalização” do espaço onde se move o pensamento e as relações sociais. Embora, por um lado, a transnacionalização seja um conceito que se associa a uma nova ordem mundial, surgida a partir da intensificação das operações de natureza globalizante da sócio-política e do econômico-social no período pósguerra, isto é, após a Segunda Guerra Mundial, onde os EUA davam o seu apoio na reconstrução da Europa com o Plano Marshall ou Plano de Recuperação da Europa pós-guerra. Além disso, o Plano Marshall possibilitou a transnacionalização do capitalismo ocidental, sendo um dos motivos para a vitória da esfera de influência dos EUA, na Guerra Fria. A transnacionalização pode ser caracterizada também especialmente pela desterritorialização, expansão capitalista em todas as camadas da sociedade, enfraquecendo o sentido de afirmação da soberania de pertença e emergência de ordenamento jurídico gerado pelo monopólio estatal. Por outro lado, a formação das ideias faz parte da construção dos interesses, das identidades e da consciência partilhada pelos agentes transnacionais, particularmente no que diz respeito à transnacionalização da transferência dos saberes diversos pela revolução das tecnologias de informação e de comunicação. A solidariedade entre as escolas é um fenômeno recente que se forja no enfrentamento com o poder público. A solidariedade se estende
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também ao que se denomina “pessoal encarregador” da educação que tem por missão sustentar a escola onde seus filhos se encontram, para frequentarem os estudos. A valorização do “pessoal encarregador” é reconhecida pela sua prontidão em atender as necessidades da escola, por exemplo, ajudar a construir o muro da escola, arranjar as carteiras escolares e etc. Na sociedade contemporânea, há vários nomes para solidariedade, tais como: solidariedade grupal, solidariedade inter-escolas e solidariedade pessoal. Essas solidariedades representam um valor importante no mundo da educação, particularmente nas escolas. Portanto, Em uma democracia, a escola deve educar cidadãos ativos. Não deve preocupar-se em ensinar aos indivíduos como defender seus interesses materiais, sociais e profissionais. Não deve também treiná-los para as lutas políticas, para a competição pelo poder, para as manobras partidárias. A propósito deste, a escola deve dar aos seus cidadãos as preferências positivas, como dar-lhes a cultura e o gosto pela discussão, que lhes permitirão compreender os problemas, as políticas pretendidas, e depois conduzi-los para fazer debates sobre isso. (CANIVEZ, 1991, p. 157, grifo nosso).
Neste contexto, “as teorias críticas da educação viram-se forçadas a incorporar um elemento de conservação, na defesa de funções e de objetivos mais tradicionais da educação” (MORROW; TORRES, 1998, p.129). Num campo de experimentação institucional, a escola se identifica como um lugar estrutural e cabe a ela conduzir as futuras gerações com novos modos de pensar e de criar um homem novo e um mundo mais justo.
Conclusão A ideia da escola abandonada e a pedagogia truncada têm despoletado uma retórica moralista sobre a intervenção apropriada a esta matéria, gerando sempre acusações morais, políticas e ideológicas aos setores da educação e dos agentes educativos. Afinal, quem abandonou
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as escolas, quem deixa a pedagogia de aprendizagem a ficar truncada? Claro que são aqueles que decidem politicamente o caminho da educação de acordo com a sua ideologia política, porque em muitos países a justiça social e a defesa pública têm-se tornado meios através dos quais um grupo na sociedade impõe os seus valores sobre os outros. Aliás, as agências de educação são maioritariamente constituídas por pessoas com dinheiro que decidem e definem a legislação sobre o funcionamento do sistema da educação. É necessário considerar a escola como um valor para todos os seres humanos, tanto para aqueles que vivem na cidade como na periferia e nos campos rurais. Basta perceber que o homem tem uma educação que pode transformar o seu ser como um ser-útil para sociedade. Há que se compreender, também, que não existe uma educação verdadeiramente igualitária, porque há uma educação que vem da cidade e outra que vem, simplesmente, dos campos, para dar um exemplo de Timor-Leste, no que diz respeito à primeira, é cheia de recursos, acompanhada de professor qualificado e com apoio do material pedagógico relativamente novo proporcionado por convênios e cooperações internacionais (BARBOSA; CASSIANI, 2015). Porém, esses materiais produzidos são insensíveis às pessoas que vivem no campo, pois eles são dificilmente compreendidos. A gente do campo pensa apenas na sua mão, que foi feita para pegar a enxada, considerando a caneta como uma coisa pesada para escrever uma letra na ponta de uma folha. Contudo, as práticas escolares no mundo atual são bastante diferentes das práticas escolares dos séculos anteriores, significa que as escolas atuais estão abertas ao mundo tecnológico e à mercadorização. Isto é, abertas à realidade concreta e à atividade produtiva (econômica, social, cultural) desenvolvida pela comunidade escolar (professores e alunos), em uma intervenção crítica e criadora, suscitando a cooperação ativa de pais, de professores e de grupos da comunidade, fazendolhes agentes responsáveis de transformação social e cultural.
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DOI: doi.org/10.29327/565971.1-2
A Plataforma YouTube Edu na Educação em Ciências e Tecnologia: colonialidade do ver The YouTube Edu platform in Science and technology education: coloniality of seeing Marinilde Tadeu Karat1 Patricia Montanari Giraldi2 1 Graduada em Ciências Biológicas, com licenciatura e bacharelado pela Universidade de São Paulo (USP). Mestra e doutora em Educação Científica e Tecnológica, pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Mídias na Educação, pela Universidade Federal do Rio Grande. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Ensino Aprendizagem. Seus interesses de estudo e pesquisa estão voltados para mídia e educação, audiovisuais no Ensino de Ciências e Linguagem, no Ensino de Ciências e Tecnologia. Atua como pesquisadora junto aos grupos de estudos e pesquisa Discursos da Ciência e da Tecnologia na Educação e Literatura e Educação em Ciências, ambos vinculados ao PPGECT/UFSC. Email: mtkarat@gmail.com / ORCID: http://orcid.org/0000-0002-9444-9241. 2 Docente do Departamento de Metodologia de Ensino, do Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Possui graduação, licenciatura plena em Ciências Biológicas, pela Universidade Federal de Santa Maria. Mestrado e doutorado em Educação Científica e Tecnológica (PPGECT/UFSC), e pós-doutorado em Educação pela Universidade de Lisboa. Atua na área de pesquisa em ensino em Educação em Ciência e Biologia, com foco nos seguintes temas: linguagem do/no/ensino de Ciências e Biologia, relações entre Literatura e Educação em Ciências. Tem experiência em projetos de cooperação e mobilidade acadêmica internacional, tendo coordenado o Programa de Pró-Mobilidade Acadêmica Internacional UFSC e Universidade Nacional de Timor Leste, entre 2015 e 2017. Atualmente, coordena o projeto de “Internacionalização Repositório de Práticas Interculturais: proposições para pedagogias decoloniais” (PRINT/CAPES, vinculado ao PPGECT/ UFSC). Está credenciada junto ao PPGECT/UFSC, orientando mestrados e doutorados. Atua como pesquisadora junto ao grupo de pesquisa Discursos da Ciência e Tecnologia na Educação-DICITE. É líder do grupo de pesquisa em LITERACIÊNCIAS, em Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: patriciamgiraldi@gmail.com / ORCID: http://orcid.org/0000-0002-4283-1967.
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UNDADO em 2005, por Chad Hurley, Steve Chen e Jawed Karim, e, mais tarde, adquirido pela Google, o YouTube é, hoje, o maior site de armazenamento e compartilhamento de vídeos da web. Além de poder hospedar e compartilhar vídeos, os usuários do site podem também fazer recomendações de vídeos, escrever comentários
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e reproduzir vídeos que podem ser incorporados a outras páginas da internet. A possibilidade de compartilhar vídeos criados pelos próprios usuários e a utilização do YouTube para distribuir conteúdo de mídia foi uma combinação de sucesso entre os usuários do site. O YouTube é uma plataforma que agrega conteúdo e “tem múltiplas funções como site de grande tráfego, plataforma de veiculação, arquivo da mídia e rede social”. (BURGESS; GREEN, 2009, p. 23). Na verdade, várias formas de valores culturais, sociais e econômicos são produzidas coletivamente em masse pelos usuários, por meio de suas atividades de consumo, avaliação e empreendedorismo. (BURGESS; GREEN, 2009, p. 23).
O YouTube faz parte do cotidiano das pessoas, com muitas possibilidades tanto de entretenimento quanto de acesso à informação, apesar do site em si não ser um produtor de conteúdo. Burgess e Green (2009, p. 23), sugerem que o site tem uma importância em termos culturais e que “na verdade, várias formas de valores culturais, sociais e econômicos são produzidas coletivamente en masse pelos usuários, por meio de suas atividades de consumo, avaliação e empreendedorismo”. Com o surgimento da Web 2.0, o YouTube ganhou ainda mais popularidade, principalmente entre o público mais jovem, segundo dados do próprio YouTube. O YouTube faz parte da mídia de massa, com mais de um bilhão de usuários atualmente, principalmente na faixa etária dos 18 aos 34 anos. O número de horas assistidas por dia no mundo chega a um bilhão e mais de 70% do tempo de exibição do YouTube vem de dispositivos móveis. (YOUTUBE, 2019). Os jovens não buscam a plataforma apenas para entretenimento e diversão, mas para aprender os conteúdos dos currículos escolares. (BURGESS; GREEN, 2009). Nesse cenário, o YouTube ganhou novas possibilidades na educação, de forma que “atualmente educadores/as, instituições de ensino e de divulgação do conhecimento estão investindo tempo e recursos financeiros na produção e divulgação de vídeos de caráter educacional no Youtube’. (SILVA; SALLES, 2015, p. 2). Muitos canais brasileiros de vídeos no YouTube que
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se dedicam à produção de vídeos educacionais fazem um enorme sucesso entre os jovens estudantes. É notável que repositórios tais como YouTube, Vimeo, Dailymotion, Metacafe, que veiculam vídeos educacionais, tem crescido de forma exponencial “porque parecem atender a uma demanda real que é a dos concursos de fim de ensino médio, seja com vistas à inserção no mercado de trabalho, seja para o ingresso no ensino superior”. (REZENDE et al., 2015, p. 8). Sabemos que as novas tecnologias de informação e comunicação (TIC) estão presentes no cotidiano de alunos e professores e “funcionam de modo desigual, real ou virtual – como agências de socialização, concorrendo com a escola e a família”. (BÉVORT; BELLONI, 2009). Pensamos que mesmo os melhores vídeos têm limitações quando pensamos no seu uso no ensino de ciências. Grande parte desses materiais audiovisuais não foram produzidos com o objetivo de ensinar algo, mas isso não impede a sua utilização, desde que o professor tenha um olhar crítico sobre essas obras audiovisuais. Dessa forma, o professor poderia estabelecer objetivos pedagógicos e construir um roteiro que combine os textos fílmicos com outros textos, como os de divulgação científica, por exemplo, de forma a poder discutir o tema sob várias perspectivas. Os canais de vídeos educativos do YouTube estão cada vez mais presentes na vida escolar dos estudantes brasileiros, sendo um fenômeno que não podemos ignorar. A popularização e a diversidade desses canais educacionais na internet e o seu enorme alcance, nos fazem pensar que é necessário entender como ocorre a circulação e uso desses produtos educativos. O que e como as pessoas estão aprendendo por meio destes canais de vídeo? Estes vídeos funcionam como uma forma de divulgação científica, cumprindo um papel de educação informal? Estes canais de vídeo estariam mais voltados a uma espécie de treinamento para exames vestibulares e para conseguir uma boa pontuação no ENEM? Ou é possível aprender da forma como defendemos, um ensino crítico que contribua para a formação de sujeitos atuantes socialmente?
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A propaganda a favor do uso destes canais de vídeo educacionais promete uma mudança de paradigma. Mas, será que estes vídeos são tão revolucionários assim? O que mudou ou irá mudar no ensino de ciências utilizando estes canais de vídeo? Não conhecemos os discursos sobre ciência e tecnologia que estão circulando nestes espaços virtuais na internet. Acreditamos que é importante investigar estas questões, de forma que os resultados destes estudos possam contribuir para a formação de professores leitores de audiovisuais, especialmente os vídeos educativos do YouTube. Apresentamos um recorte de uma pesquisa de doutorado que investiga os vídeos educativos16 na educação em ciências. Neste artigo, buscamos compreender quais são os interesses socioeconômicos e políticos envolvidos na criação da plataforma educacional YouTube Edu. Pretendemos analisar quais discursos sobre ciência e tecnologia e quais efeitos de colonialidade estão presentes nessa plataforma. Como corpus de análise, investigamos a página do YouTube Edu e cinco vídeos17 publicados na época do lançamento da plataforma, também disponíveis na página do YouTube Edu.
As empresas privadas e as intervenções nas políticas públicas educacionais: a plataforma educacional YouTube Edu A plataforma de vídeos educacionais YouTube Edu funciona como um repositório de vídeos, que são disponibilizados gratuitamente na internet. Esta plataforma foi lançada pelo Google Brasil, em parceria com a Fundação Lemann, que tem como objetivos o desenvolvimento de projetos inovadores em educação, realizar pesquisas para embasar 16 De acordo com os estudos culturais, mesmo os vídeos que não têm intenção de educar, são artefatos culturais e podem ser utilizados para nos educar sobre algo (WORTMANN, 2008). 17 Vídeos analisados: 1- YouTube/EDU. Disponível em: https://bit.ly/3wZsNf0. Acesso em: 19 ago. 2021; 2- YouTube/EDU – Conheça a história do projeto. Disponível em: https://bit.ly/3lXYiQd. Acesso em 19 ago. 2021; 3- YouTube/EDU – Episódio 1. Disponível em: https://bit.ly/3N14ZNi. Acesso em 19 ago. 2021; 4- YouTube/EDU – Episódio 2. Disponível em: https://bit.ly/3z6n3l2. Acesso em: 19 ago. 2021; 5- YouTube/EDU – Episódio 3. Disponível em: https://bit.ly/3a5IRmq. Acesso em: 19 ago. 2021.
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políticas públicas no setor e formação de professores. Para que os professores produtores de vídeo possam incluir seus canais nesta plataforma, é necessário submeter o canal para a curadoria de uma equipe de professores coordenados pela Fundação Lemann. Esta curadoria tem o papel de avaliar se o conteúdo está correto, não levando em consideração a forma como o professor ensina. Depois que o professor teve seu canal de vídeo aprovado, não precisa mais passar pela curadoria, podendo incluir livremente novos materiais na plataforma. Um dos objetivos daquele projeto, segundo seus coordenadores, é o de estimular e preparar professores para que passem a produzir conteúdo educacional de qualidade e que atualizem constantemente seus canais com novos vídeos. Na primeira fase do projeto, foram convidados 40 professores que já produziam vídeos educacionais e tinham canais no YouTube. Esses professores passaram por treinamento e receberam um certificado “Google Certified Teacher”. O Google Brasil ofereceu um workshop para que estes professores convidados recebessem orientações de como aprimorar a produção dos seus vídeos. O treinamento incluía dicas de como falar com seu público-alvo, construção de roteiros e cuidados para garantir imagem e som de qualidade. São várias as promessas desta fundação a respeito do uso dos audiovisuais da plataforma YouTube Edu: os audiovisuais passariam a ser não apenas complemento das aulas, mas principal fonte de conteúdo, disponível para todos aqueles que têm acesso à internet, poderiam ser usados como reforço de conteúdo ou para antecipação de conteúdos ainda não vistos em sala de aula, no momento que o usuário achar mais conveniente, serviriam como material extra para uso de professores; por terem uma linguagem mais lúdica estimulariam o usuário a gostar mais de ciências, entender melhor os conteúdos e tirar notas melhores. Segundo Rezende et al. (2015, p. 1), “o panorama tecnológico atual tem permitido a emergência de novas práticas de circulação livre
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e/ou comercial de conteúdos educativos de ciências e saúde”. Para Cabral et al. (2019, p. 3), as videoaulas são produtos rentáveis e competitivos, com baixo custo de produção e estratégias de marketing muito eficientes, o que justifica o alto número de canais educativos que prestam esse tipo de serviço. São canais com interesses comerciais, buscando obter recursos monetários através do número de visualizações, curtidas e a venda de pacotes de assinaturas de seus serviços. Na educação temos uma forte influência de grandes grupos privados na construção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e isso se estende para os espaços da internet como por exemplo as plataformas de vídeos educativos do YouTube Edu, criada pelo Google Brasil em parceria com a Fundação Lemann e os seus numerosos braços como Instituto Ayrton Senna, Fundação Natura, entre outros. Essas empresas estão fazendo parcerias com escolas públicas de forma que “o privado assume a direção das políticas educativas e define a produção e apropriação do conhecimento” (PERONI; CAETANO, 2015, p. 340). Um exemplo de como o privado ocupa o papel que seria do estado na política educacional é o chamado Movimento pela Base Nacional Comum, uma ONG que produz estudos e pesquisas e investiga casos de sucesso em vários países. De acordo com Peroni e Caetano (2015, p. 344), [...] esse grupo é composto de grandes instituições privadas e têm-se articulado com instituições educacionais globais, visando promover mudanças na educação dos países, especialmente no currículo e avaliação e, consequentemente, na formação docente, entre outros. São mudanças baseadas nas reformas ocorridas nos Estados Unidos, Austrália, Chile e Reino Unido.
Parcerias entre o Google Brasil, Secretarias de Educação e Universidades mostram que os grandes grupos da iniciativa privada estão avançando cada vez mais e ocupando os espaços que seriam do estado na política educacional. Um exemplo de parceria entre o público e o privado é o portal MECFLIX, plataforma online de vídeos educativos do Mi-
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nistério da Educação (MEC), voltados para conteúdo do currículo do ensino médio, cujo objetivo é preparar os estudantes para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Segundo Silva (2016, p. 22), o MEC não se responsabiliza pela produção das videoaulas deste portal, mas conta com parceiros que irão produzir esses vídeos: “As parcerias já definidas são: Khan Academy, Geekie Game, Descomplica, FGV, Kroton e QG do ENEM” e alguns desses parceiros já possuem seus próprios canais no portal YouTube Educação. Os representantes do setor privado têm operado cada vez mais por dentro do próprio governo, fazendo parte e disputando suas premissas no contexto de desenvolvimento das políticas educacionais, bem como atuando in loco, por meio de doação e da venda de produtos educacionais (GRIMM; SOSSAI; SEGABINAZZI, 2014, p. 854). Segundo Ball (2014), esse seria um novo tipo de filantropia, dentro do contexto do neoliberalismo, no qual as empresas que fazem as doações trocam doações por resultados, como por exemplo, fazer parte e interferir nas políticas públicas educacionais. O YouTube Edu18 é uma plataforma educacional online que funciona como repositório exclusivo, para vídeos educacionais produzidos por professores brasileiros: Cada um tem seu estilo e uma multidão de seguidores. Tanto sucesso merece um canal exclusivo. Apresentamos YouTube Edu. As maiores estrelas da educação, professores tradicionais e criativos. Conteúdo básico e avançado com a parceria da Fundação Lemann (YOUTUBE EDU, 2013).
A plataforma YouTube Edu19 foi criada em parceria com a Fundação Lemann, sendo que a curadoria dos vídeos é feita por professores selecionados pelo Sistema de Ensino Poliedro e coordenados pela Fundação Lemann. A plataforma funciona como um repositório de vídeos que são disponibilizados, gratuitamente, na internet. A página possui 470 mil inscritos 18 19
Vídeo de lançamento do YouTube Edu. Disponível em: https://bit.ly/3N4VzAj. Acesso em: 30 set. 2020. Vídeo de lançamento do YouTube Edu. Disponível em: https://bit.ly/3avcePc. Acesso em: 30 set. 2020.
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e 25.338.312 visualizações20. Os conteúdos curriculares disponíveis são voltados para o ensino fundamental e médio, nas seguintes disciplinas: Língua Portuguesa, Matemática, Ciências Naturais (Química, Física e Biologia), História, Geografia, Língua Espanhola e Língua Inglesa. (YOUTUBE, 2019). Atualmente, existem 96 canais hospedados nessa plataforma. Desse total, encontramos 19 canais21 que têm vídeos de Biologia22, sendo que 16 deles (84%) têm como objetivo principal preparar estudantes para as provas, em larga escala, tais como ENEM e/ou vestibulares. Os estudos de Rezende et al. (2015) mostram que a maioria dos canais de vídeo, voltados para o ensino de ciências, tem foco no ensino médio e têm relação com a realização dos exames do ENEM, vestibulares e concursos públicos. Os autores também relatam que os vídeos são produzidos segundo modelos hegemônicos, semelhantes aos que são adotados pelos cursos pré-vestibulares. Segundo Ramos (2017, p. 13), a política de avaliações de larga escala funciona como um mecanismo regulador “de currículos e de modos de interpretação aceitos em aulas de ciências”. Cabral et al. (2019, p. 7) identificaram discursos de “promessa de facilidade, rapidez e eficiência do aprendizado”, que são estratégias do pensamento neoliberal, em dois dos maiores canais de empresas privadas (Descomplica e Khan Academy). Para os autores, o leitor pode chegar à conclusão de que é possível aprender sozinho, sem a necessidade de um professor em uma aula tradicional, o que pode facilitar a venda dos pacotes de aulas online. A Fundação Lemann tem como meta que os audiovisuais sejam a principal fonte de conteúdo para todos que tiverem acesso à internet. Os youtubers que pretendem fazer parte dessa plataforma precisam submeter seus vídeos a uma curadoria, que tem o papel de avaliar se o conteúdo está correto, não levando em consideração o estilo, a forma como
Dados encontrados na página do YouTube Edu, em 18/08/2021. Canais selecionados e analisados do YouTube Edu, com aulas de Biologia: Nerdologia, Descomplica, Aulalivre, Me Salva, Biologia Total, Khan Academy, Stoodi, Aula De, UNIVESP, Kuadro, TV Oficina, Knapse, Novo Telecurso, TV Poliedro, TV Hexag, TV Escola, Pro ENEM, SAS, Scientia TV. 22 Nenhum dos canais selecionados apresentam, exclusivamente, vídeos de Biologia. 20 21
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o professor ensina. A curadoria dos vídeos é feita por professores selecionados pelo Sistema de Ensino Poliedro e coordenados pela Fundação Lemann. Depois de ter o seu canal de vídeo aprovado, o professor não precisa mais passar novamente pela curadoria, podendo incluir livremente novos materiais na plataforma. Interessante notar que o discurso de que a plataforma irá oferecer um produto de alta qualidade é recorrente, tanto na fala dos executivos responsáveis pelo projeto, como também na fala dos professores youtubers de sucesso, como podemos ver em alguns trechos de um vídeo promocional do YouTube Edu, que conta um pouco sobre a história23 do projeto (YOUTUBE EDU, 2013): [...] a plataforma YouTube Edu teria os seguintes pré-requisito “entregar um produto gratuito, de alta qualidade, curado e organizado” (Lauren Pachaly - gerente de marketing do Google Brasil). [...] “disponibilizar conteúdo de alta qualidade e criar um local onde professores e não professores possam produzir conteúdo e disponibilizar pro Brasil inteiro” (Denis Mizne - diretor executivo da Fundação Lemann). [...] “a única determinante para um vídeo entrar ou não na plataforma era a questão do conteúdo” (Adriana Cohen – coordenadora executiva). [...] “a ideia principal é aproveitar essa característica única que a internet tem, que é a diversidade de informações. Você tem aulas de diferentes tipos, aulas usando um tablet, aulas usando uma lousa, aulas usando animações. O que eu aprendi de fundamental é que cada um tem uma visão diferente. Cada um vai seguir sua trilha, vai seguir o seu caminho de como aprender melhor (Marcelo Knobel – coordenador da curadoria).
YouTube Edu: conheça a história do projeto. Disponível em: https://bit.ly/3wWxzJT. Acesso em: 30 set. 2020.
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Mas o que seria um ensino de qualidade? Quem determina o que é uma aula de qualidade? Parece haver uma ideia dominante de que os recursos tecnológicos garantem automaticamente qualidade na educação. Mas, na prática, podemos perceber que o que acaba ocorrendo é a simples “transposição, para novos meios, dos conteúdos tradicionalmente ensinados nas salas de aula” (MOREIRA; KRAMER, 2007, p. 1038). Nesse pensamento, o bom professor é aquele que domina as tecnologias, fazendo bom uso delas, ou seja, sendo capaz de produzir vídeos bem-feitos, com qualidade de imagem e de som. Dessa forma, a Google Brasil, juntamente com a Fundação Lemann oferece um treinamento aos professores que tiveram seus canais aprovados. Os professores devem passar por um treinamento, uma espécie de workshop24 oferecido pelo Google Brasil, recebendo depois um certificado, o “Google Certified Teacher''. O treinamento inclui dicas de como o professor deve falar com o seu público, orientações para a construção de roteiros e para a produção de vídeos com qualidade de imagem e de som. Mas, utilizar as novas tecnologias na sala de aula não garante qualidade na educação. Moreira e Kramer (2007, p. 1038), argumentam “que uma educação de qualidade demanda, entre outros elementos, uma visão crítica dos processos escolares e usos apropriados e criteriosos das novas tecnologias”. A ideia de que as novas tecnologias seriam a solução para democratizar o acesso ao conhecimento, fazendo com que esse conhecimento chegue ao mundo todo é predominante nas falas de professores e executivos do projeto. Podemos ver alguns exemplos extraídos dos vídeos Episódio 125 (YOUTUBE EDU, 2014a) e Episódio 2 (YOUTUBE EDU, 2014b), sobre o primeiro workshop realizado no início do projeto: YouTube Edu. Episódio 2. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3I4eL7cBCuc. Acesso em: 30 set. 2020; Episódio 3. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XPJApjl5n4Y. Acesso em: 30 set. 2020. 25 YouTube Edu. Episódio 1. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xLjge65-Qkg. Acesso em: 30 set. 2020. 24
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[...] pela primeira vez a gente tá tendo a oportunidade de entregar o mesmo produto educacional pro cara que mora nos Jardins em São Paulo e pro cara que mora no Xingú (Ivys Urquiza – Física Total). [...] eu acho que essa é a beleza do YouTube Edu, ela permite que professores bons saiam da sua sala de aula né e possam ir pro mundo, possam alcançar qualquer aluno, em qualquer parte do Brasil [...] super curioso porque às vezes você pensa que vai ser útil pro consumidor final, pro aluno, mas pro professor se modernizar, se reinventar e conseguir se expressar de uma diferente forma, é incrível para eles (Gabriela Gian – YouTube). [...] se você é de uma família que não tem condições, se você mora muito longe, não tem um professor perto, você não vai ter uma boa educação e ponto. Ponto não. Agora não é mais ponto, agora se você tiver uma internet, você vai ter o YouTube Edu (Roberto Zander – Dando a Letra Concursos). [...] e a gente acredita muito na tecnologia, na inovação como uma maneira de melhorar a educação no Brasil. E aí é assim que você consegue democratizar a educação de alta qualidade (Flávia Goulart – Fundação Lemann). [...] “a gente quer ver muito mais professores produzindo conteúdo, democratizando o acesso ao conhecimento que eles têm, impactando mais alunos, além da sala de aula deles. Eu acho que esse é um papel que a plataforma, uma missão que a plataforma tem para o próximo ano.”
Segundo Orlandi (2009), “a educação é uma educação de classe”, e essa classe é dominante no sistema capitalista. A proposta de uma educação democrática não explicita quem pode ter acesso ao que a classe média considera como conhecimento legítimo. O discurso da classe média “é adequado para a classe-média, tanto que, quando se fala na crise da escola, está-se falando sobretudo da crise da eficácia das formas institucionais do saber para esta classe” (ORLANDI, 2009, p. 208).
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Esse discurso considera apenas o saber dominante e os outros saberes não são sequer formulados. Não se trata do acesso ao conhecimento, [...] mas da apropriação do conhecimento legítimo, que lhe é necessário, em sua condição de classe. Fica à margem, toda outra forma de conhecimento, que sequer é reconhecida como tal e com a qual não se opera. Reivindicase o direito de ter o conhecimento legítimo sem discutir seus pressupostos, ou seja, não se procura transformar a relação com esse conhecimento, nem se discute sua legitimidade (legitimidade para quem?).
Não é possível falar em democratização de acesso ao conhecimento por meio das novas tecnologias quando ainda existem tantas pessoas em situação de exclusão digital no Brasil. Segundo dados do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC, 2019), 28% dos domicílios (20 milhões de domicílios) não têm acesso à internet. De acordo com dados da CETIC (2019), um a cada quatro brasileiros não usa a internet, o que corresponde a 47 milhões de não usuários (26%). O celular é o dispositivo mais usado (99%), sendo que 58% acessam a internet somente por este dispositivo. Existem diferenças também por classes sociais, sendo que as classes DE (85%) utilizam exclusivamente o telefone celular. Esses dados mostram que existem diferenças no acesso à internet de acordo com a classe social, de forma que as condições econômicas acabam por restringir o seu uso. A pandemia de Covid-19 aumentou ainda mais as desigualdades sociais e a exclusão digital no Brasil. Não é possível conceber uma educação de qualidade e democrática em uma sociedade tão desigual e excludente. Dessa forma, apesar da popularização dos celulares, o seu uso na educação se torna limitado sem que “condições concretas sejam dadas a todo e qualquer cidadão, independentemente de sua classe social e de sua capacidade de financiar esse acesso” (PRETTO, 2018, p. 272). Dados do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC, 2018), apontam que o acesso ao WIFI, nas escolas, é ainda muito restrito: 25% dos professores das escolas públicas e 31% das escolas privadas utilizaram o WIFI da escola para a realização de atividades
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pedagógicas, usando o telefone celular. O percentual de alunos que utilizaram o WIFI da escola, para atividades pedagógicas, é ainda menor: apenas 7% de alunos de escolas públicas e 10% de alunos de escolas particulares. O fato de a quase totalidade dos alunos possuírem um celular, não garante o acesso à internet, pois teriam que ter recursos para contratar planos de acesso, que nem todos poderiam suportar. Pretto (2018, p. 273) defende que não é possível haver inclusão digital “sem que as condições concretas sejam dadas para isso”. Além disso, é preciso compreender que a inclusão digital vai além do acesso e da instrumentalização às tecnologias. É necessário que ocorra a alfabetização digital, de forma a utilizar a internet de forma crítica, consciente e segura. Ser incluído digitalmente implica também cuidar com o uso de imagens, em considerar a autoria dos textos, aprender a reconhecer e não compartilhar fake News. Temos uma falsa sensação de liberdade de navegação na internet, mas os algoritmos direcionam as nossas escolhas e os meios de comunicação de massa muitas vezes manipulam a opinião pública. Isso tudo é preocupante pois sabemos que os valores e as opiniões de boa parte das pessoas são formados através das leituras que elas fazem nos meios de comunicação, principalmente, através da internet. A propagação de fake News e a formação de “bolhas” na internet têm influências na política, na educação e na ciência. Atualmente, grandes corporações como a Alphabet/Google, Amazon, Facebook e Apple (GAFA), inventaram formas de lucrar através dos dados pessoais de milhões de usuários, “através dos algoritmos, fabricam-se cálculos, estruturam-se instruções, desenham-se caminhos de pensamento que nos vão construindo: em vez de tais empresas nos servirem, elas se servem sobretudo de nós” (CARTA, 2018). Os autores da Carta de Salvador evidenciaram os “riscos para a democracia, decorrentes da dominação dos sistemas de comunicação por grandes conglomerados, movidos pelos seus interesses comerciais e objetivos de poder político”.
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Para Marcon (2020, p. 80), a “inclusão digital implica na apropriação crítica, autoral e criativa das tecnologias digitais e no exercício da cidadania na rede”. No entanto, o que observamos é que, na perspectiva da educação neoliberal, a educação através das novas tecnologias não está voltada para a formação do cidadão, mas sim para o consumidor. A educação é uma mercadoria a ser comercializada, reproduzida e consumida pelos alunos, como verificamos nesses trechos dos vídeos Episódio 126 e 2, do YouTube Edu (YOUTUBE EDU, 2014a; YOUTUBE EDU, 2014, b): [...] você tem que escolher até o nome que você vai dar pro vídeo, porque lembra que você tá competindo num shopping, que tem milhões de lojas, e aí você vai passando e a tua loja tem que tá bem clara pro teu cliente. Ele tem que bater o olho e saber o que que você tá oferecendo [...] você tem que ser além de tudo isso, uma marca, ou seja, você tem que ser lembrado de forma o mais onipresente possível (Ivys Urquiza – Física total). [...] eu acho que essa é a beleza do YouTube Edu, ela permite que professores bons saiam da sua sala de aula né e possam ir pro mundo, possam alcançar qualquer aluno, em qualquer parte do Brasil [...] super curioso porque às vezes você pensa que vai ser útil pro consumidor final, pro aluno, mas pro professor se modernizar, se reinventar e conseguir se expressar de uma diferente forma, é incrível para eles (Gabriela Gian – YouTube).
Na época do lançamento da plataforma YouTube, alguns youtubers famosos foram convidados a participar da plataforma, pois já produziam vídeos educacionais antes da criação da plataforma (YOUTUBE EDU, 2013). Na foto abaixo (figura 1), vemos esses youtubers ao lado de vários executivos responsáveis pela construção da plataforma YouTube Edu. Chama a atenção o fato de todas as pessoas serem brancas e a presença de apenas duas mulheres, igualmente brancas, o que deixa evi-
YouTube Edu. Episódio 1. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xLjge65-Qkg. Acesso em: 30 set. 2020. 26
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dente a colonialidade do poder, na qual a ideia de raça e racismo se tornou o eixo de organização que vai estruturar todas as múltiplas hierarquias do sistema-mundo (QUIJANO, 2000). A maioria dos produtores de vídeo da plataforma YouTube Edu, escolhidos como “os melhores” professores youtubers, são homens e brancos. O que observamos na plataforma YouTube Edu reflete uma herança colonial de poder. De acordo com a pesquisa de Machado e Almeida (2021, p. 12), as mulheres atuam “majoritariamente, na educação infantil e no ensino fundamental”, sendo minoria no ensino médio e superior. Apesar das mulheres serem maioria entre os que conseguem se graduar nos cursos superiores, os homens brancos dominam o mercado de trabalho na docência do ensino médio e superior. A desigualdade racial e de gênero é ainda maior na docência de educação superior, com 23,3% de homens brancos, 8,0 % de homens pretos e pardos, 5,1 % de mulheres brancas e 1,6 % de mulheres pretas e pardas (MACHADO; ALMEIDA, 2021). Percebemos um silêncio com relação a racismo e gênero, nos vídeos de Biologia, da plataforma YouTube Edu. Ao realizarmos uma busca exploratória, na plataforma YouTube Edu, utilizando as palavraschave racismo e gênero, encontramos um vídeo racismo27 e um vídeo sobre sexismo28, no canal Nerdologia. Os poucos vídeos29 encontrados na plataforma, que abordam essas questões, estão restritos às aulas de história, sociologia, redação e atualidades.
Racismo. Disponível em: https://bit.ly/3z6wnWa. Acesso em: 22 ago. 2021. Sexismo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cpnJ4psOoZc. Acesso em: 22 ago. 2021. 29 Encontramos um total de 11 vídeos que abordavam questões étnico-raciais e de gênero na plataforma YouTube Edu. 27
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Resistir, (re)Existir e (re)Inventar II: Pedagogias Decoloniais em diálogo com o Sul Global Figura 1. Lançamento do YouTube Edu. Fonte: Google lança canal de educação YouTube Edu.
Disponível em: http://glo.bo/3t3OU1e. Acesso em: 30 set. 2020.
A colonialidade do ver está presente na plataforma educacional YouTube Edu, como uma forma de “telecolonialidade visual”, que, segundo León (2012, p. 118), funcionaria através de uma “rede de dispositivos midiáticos, que se baseiam na exploração colonial de conhecimentos, representações e imaginários”, com a finalidade de reproduzir “hierarquias de classe, raciais, sexuais, de gênero, linguísticas, espirituais e geográficas da modernidade-colonialidade euro-norte americana”. León (2012, p. 120) aponta que as tecnologias da imagem teriam o papel de ajudar a “definir e hierarquizar a população” com o objetivo de “classificar, vigiar e controlar a população”. O controle sobre as informações das pessoas se ampliou com o desenvolvimento tecnológico dos algoritmos na internet. Houve uma intensificação do poder social destes algoritmos e, “portanto, de quem os controla, determina e determinará ainda mais a maneira como qualquer tipo de informação será coletada, armazenada, selecionada, ranqueada e disponibilizada” (ZUIN; ZUIN, 2018, p. 1146).
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A colonialidade do poder e do ver estão presentes na plataforma YouTube e tem a contribuição dos algoritmos para isso, que reforçam a colonialidade na plataforma. Há um direcionamento no YouTube, no qual as pessoas recebem sugestões de vídeos, através do uso de algoritmos, o que dificulta saber que tipo de conteúdo vai chegar até nossos estudantes. Conforme Kyncl e Peyvan (2019, p. 119), ter uma plataforma aberta, na qual qualquer pessoa pode postar seus conteúdos não garante uma representação igual: “[...] os algoritmos do YouTube são projetados para ser imparciais, mas as estatísticas mostram que eles ainda estão sujeitos às mesmas tendências - inconscientes, explícitas ou sistêmicas - que existem na sociedade.” (KYNCL; PEYVAN, 2019, p. 119). Existem alguns problemas que contribuem para existirem menos produtores de conteúdo que sejam negros na plataforma do YouTube. Um desses problemas é a dificuldade dos produtores negros em conseguir suprimentos adequados, como câmeras, computador e equipamentos de edição. Outro problema é a existência de uma demanda muito grande no YouTube e uma competição pelo clique do espectador, que é influenciado pela thumbnail30: Nessa competição, um vídeo recomendado de um criador negro pode ser clicado com menos frequência do que o vídeo de um criador branco. Com o tempo, essa preferência ganha importância nos algoritmos de recomendação que se concentram em fornecer aos espectadores os vídeos que eles têm mais probabilidade de assistir (KYNCL; PEYVAN, 2019, p. 120).
O preconceito com relação às youtubers negras é ainda maior, de forma que “a pele escura e o cabelo mais enrolado conduzem a uma contagem mais baixa de assinaturas e visualizações (KYNCL; PEYVAN, 2019, p. 120). Thumbnail é uma versão reduzida, em miniatura, de imagens, para facilitar o processo de busca e reconhecimento daquilo que está sendo procurado na internet (WIKIPEDIA, 2020). Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/thumbnail. Acesso em: 20 dez. 2021. 30
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Em 2018, o Jornal El País publicou uma reportagem sobre os algoritmos racistas que identificam as pessoas negras como macacos (SALAS, 2018). O ambiente de produção tecnológica também é um espaço no qual o racismo está presente, já que os artefatos digitais são construídos por pessoas. Segundo Cabral (2019, p. 6): [...] os artefatos digitais são construídos a partir da subjetividade e das relações que emergem dos corpos de homens brancos e heterossexuais, o que revela a presença de marcadores sociais da diferença, tais como raça, gênero e classe. A presença desse fluxo de marcadores sociais é materializada também em seus fazeres.
De acordo com Almeida (2016), o racismo estrutura nossa vida cotidiana, tanto na economia, quanto na política e na subjetividade. Dessa forma, é normal que ele se manifeste nas redes sociais, como, por exemplo, o YouTube. Quando se fala normal, não é o que devemos aceitar, mas é que o “racismo constitui as relações no seu padrão de normalidade”, ou seja, “é uma forma de racionalidade” (ALMEIDA, 2016, s,p.).
Considerações finais A ideia de educação como mercadoria a ser comercializada está de acordo com o projeto neoliberal, que tem como estratégia transformar os valores do indivíduo, de forma que cada um se veja como um empreendedor de si mesmo, como um capital. De acordo com esses ideais, a escola pode ser eficiente e melhorar o seu desempenho através do estímulo à competição, à concorrência entre os estudantes, escolas e professores, através de provas e avaliações sistemáticas (LAVAL, 2019). A análise da plataforma educacional YouTube Edu evidenciou seu caráter mercadológico, de transformação da educação em um produto enganoso a ser vendido às massas. Segundo Laval (2019), esse tipo de modelo não leva a um melhor desempenho, mas acaba por aumentar, ainda mais, as desigualdades entre os estudantes. É possível perceber
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um silêncio sobre as questões étnico-raciais e de gênero nos vídeos educativos de biologia, na plataforma YouTube Edu. O YouTube Edu é resultado de uma parceria do Google com a Fundação Lemann, cuja pauta educacional apresenta valores pertencentes aos ideais neoliberais de educação. Para Apple (1982), existem “valores sociais e econômicos” que “já estão embutidos no projeto das instituições em que trabalhamos” (ALMEIDA; CASSIANI; OLIVEIRA, 2008, p. 26). A educação, nos moldes do capitalismo, ignora outras histórias, outros saberes e experiências, impondo um único saber, o do colonizador. Podemos reconhecer nesses vídeos a presença de uma perspectiva hegemônica do conhecimento, visto como universal e verdadeiro.
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DOI: doi.org/10.29327/565971.1-3
O povo Xetá e as múltiplas influências da humanidade na natureza: reflexões a partir de uma mostra científica multidisciplinar Xetá people and the multiple influences of humanity on nature: reflections from a multidisciplinary scientific fair Victor Augusto Bianchetti Rodrigues1 Danielle Hiromi Nakagawa2 Lisandra Maria Kovaliczn Nadal3 1 Doutorando em Educação Científica e Tecnológica pela Universidade Federal de Santa Catarina. Licenciado em Química e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor efetivo do Instituto Federal de Santa Catarina, Criciúma, Santa Catarina, Brasil, atuando nos cursos de Licenciatura em Química, Engenharia Mecatrônica, Técnico em Química e Técnico em Meio Ambiente. Foi organizador da Mostra Xetá e contribuiu na escrita deste texto. E-mail: victor.bianchetti@ifsc.edu.br / ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4144-206X. 2 Mestre em Engenharia Ambiental, Instituto Federal do Paraná, Jaguariaíva, Paraná, Brasil. Foi uma das organizadoras da Mostra Xetá e contribuiu na escrita deste texto. E-mail: danielle.nakagawa@ifpr.edu.br / ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9540-2007. 3 Graduada em Biblioteconomia (Claretiano) com especialização em Gerenciamento de Projetos (FGV). Auxiliar de biblioteca efetiva do Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Jaguariaíva, Paraná, Brasil. Foi uma das organizadoras da Mostra Xetá e contribuiu na escrita deste texto. E-mail: lisandra.nadal@ifpr.edu.br / ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1512-0745. Resumo: Este trabalho tem como objetivo relatar a experiência do desenvolvimento de uma Mostra Científica Multidisciplinar realizada no Instituto Federal do Paraná - campus Jaguariaíva. O evento, intitulado Xetá: refletindo sobre as múltiplas influências do ser humano no meio ambiente, fez referência ao povo indígena Xetá, que viveu nas terras onde hoje se delimita o estado do Paraná e que foi praticamente dizimado. Nesse sentido, a Mostra buscou evidenciar a história desses sujeitos, destacando a relação benéfica do grupo indígena com a natureza. Tradicionalmente, associamos a ação humana a problemas ambientais, como aquecimento global, chuva ácida, descarte de resíduos, entre outros. Entretanto, essa associação é fruto de uma visão antropocêntrica e silencia a ação de grupos sociais que realmente estão comprometidos com o estabelecimento de relações harmônicas com a natureza, como os povos indígenas. Durante o evento, buscamos refletir sobre essas múltiplas ações humanas no contexto do campus, com foco no estudo sobre a Floresta Nacional (FLONA) de Piraí do Sul
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- uma unidade de conservação sob responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, localizada em um município vizinho ao campus Jaguariaíva (Piraí do Sul/ PR). Foram abordados diversos temas, como: plantas nativas e invasoras; mata ciliar; qualidade da água; constelações indígenas; a história dos Xetá; Meio-Ambiente e Direitos Humanos; entre outros. Parte das produções dos estudantes constituem hoje uma sala temática na sede da FLONA, nomeada de Sala Xetá. Além disso, é possível consultar algumas das produções dos/das estudantes em sites criados por elas/eles. Acreditamos que, a partir das atividades desenvolvidas no evento, foi possível denunciar algumas formas destrutivas de ser e estar no mundo, bem como anunciar formas coerentes com o desejo de preservar a natureza. Palavras-chave: Educação ambiental. Xetá. Mostra Científica.
Introdução
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ENTRE os diversos compromissos da educação básica brasileira, se encontra a obrigatoriedade de abordar conteúdos relacionados à história afro-brasileira e indígena. Essa obrigatoriedade tem origem na Lei Federal nº 11.645, sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 10 de março de 2008. A Lei 11.645/2008 é uma importante conquista da luta de movimentos indígenas e indigenistas, mas ela, por si só, não garante o desenvolvimento das ações transversais de ensino que englobam a temática indígena (SILVA; COSTA, 2018). Nesse sentido, este trabalho tem como objetivo principal relatar uma experiência desenvolvida no campus Jaguariaíva do Instituto Federal do Paraná (IFPR). Esperamos que o relato dessa experiência possa inspirar profissionais da educação no desenvolvimento de ações de valorização da cultura e história indígenas, de maneira a implementar o que está previsto em lei no território brasileiro, indo além de atividades estereotipadoras e pontuais, no dia 19 de abril. Sendo assim, relatamos alguns aspectos da II Mostra Científica Multidisciplinar do IFPR – campus Jaguariaíva, intitulada Xetá: refletindo sobre as múltiplas influências do ser humano no meio ambiente, ocorrida em junho de 2019. O título do evento faz referência ao povo indígena
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Xetá, com o objetivo de resgatar e valorizar a história desse povo que viveu no Paraná. Ademais, o título do evento propõe uma reflexão sobre as influências antrópicas no meio ambiente. Tradicionalmente, quando a interação da humanidade com a natureza é pautada, se reproduz o pensamento da racionalidade instrumental ocidental, em que a natureza é capitalizada e vista como fonte de recursos para atender às demandas da sociedade capitalista (LEFF, 2012, 2015). Entretanto, ao considerar somente essa perspectiva, silenciamos a ação de outros atores sociais, como os povos indígenas. No Brasil, há mais de 250 etnias indígenas com especificidades culturais, como línguas – são falados mais de 150 dialetos e línguas indígenas no Brasil – e costumes. Entretanto, os diferentes povos indígenas se assemelham em alguns pontos, como a relação com o território que ocupam e a luta pelo direito de manter essa relação (KRENAK, 2019). Uma relação respeitosa, que valoriza tudo o que compõe o território. Seja vivo ou não vivo, material ou espiritual, os elementos que constituem os territórios indígenas são valorizados e preservados (BAPTISTA; BENITES; SÁNCHEZ, 2018). Em contrapartida, a racionalidade instrumental ocidental busca estratégias para exploração e capitalização da natureza, causando diversos problemas socioambientais, como: desmatamento, aquecimento global, chuva ácida, eutrofização, comprometimento da qualidade da água de recursos hídricos, produção excessiva de lixo, entre outros (LEFF, 2015). Sobre a relação entre a perspectiva hegemônica ocidental e a indígena, Ailton Krenak – liderança do povo Krenak – alerta: O que está na base da história do nosso país, que continua a ser incapaz de acolher os seus habitantes originais – sempre recorrendo a práticas desumanas para promover mudanças em formas de vida que essas populações conseguiram manter por muito tempo, mesmo sob o ataque feroz das forças coloniais, que até hoje sobrevivem na mentalidade cotidiana de muitos brasileiros –, é a ideia
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de que os índios deveriam estar contribuindo para o sucesso de um projeto de exaustão da natureza. (KRENAK, 2019, p. 41).
O trecho anterior, retirado do livro Ideias para adiar o fim do mundo, explicita a relação conflituosa entre a mentalidade ocidental e a indígena. Enquanto a primeira opera pela exploração, a última luta pelo direito de cuidar de seus territórios. Considerando esse contexto de múltiplas possibilidades de interação com o meio-ambiente, foi idealizado e realizado o evento que descrevemos a seguir.
Mostra Científica Multidisciplinar como espaço de denúncias e anúncios A ideia para o desenvolvimento da Mostra Científica Multidisciplinar (MCM) surgiu de uma aproximação do IFPR – campus Jaguariaíva com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), no âmbito da unidade de conservação da Floresta Nacional (FLONA), em Piraí do Sul. No ano de 2019, foi realizada a 5ª Caminhada Internacional na Natureza na FLONA e foi solicitado ao IFPR que desenvolvesse alguma ação de educação ambiental durante o evento. Diante da solicitação, surgiu a ideia da comunidade escolar do IFPR – campus Jaguariaíva, idealizar e produzir alguns expositores didáticos sobre educação ambiental para compor uma sala na sede da FLONA. Partindo dessa ideia, foi iniciado um movimento de refletir sobre as ações antrópicas no ambiente, sobretudo no contexto da FLONA, para inspirar a produção de expositores semelhantes aos que encontramos em museus de divulgação científica. À medida em que os autores deste capítulo conduziram as atividades de produção dos expositores, foi identificado o envolvimento da comunidade escolar e a demanda de aprofundamento do debate sobre as relações entre a humanidade e o meio-ambiente. Nesse contexto, foi
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decidido que o projeto inicial de produção de expositores seria ampliado, para um evento voltado à comunidade interna e externa do campus Jaguariaíva, do IFPR. Sendo assim, as autoras e o autor deste capítulo tomaram frente na organização da segunda edição da MCM e propuseram a temática ambiental como foco do evento. Após um momento de orientação e debates sobre a dinâmica do evento, os estudantes, que já estavam envolvidos na produção dos expositores, se organizaram e intitularam a II MCM de Xetá: refletindo sobre as múltiplas influências do ser humano no meio ambiente. O processo de preparação para o evento levou cerca de 3 meses e envolveu as turmas de Ensino Médio Integrado aos cursos técnicos de Alimentos e Biotecnologia, assim como os acadêmicos do curso superior de Tecnologia em Gestão da Qualidade, totalizando a participação de cerca de 240 estudantes. Ademais, o desenvolvimento das atividades relacionadas ao evento contou com a participação de docentes de diferentes áreas do conhecimento e de servidores técnicos administrativos em educação. O resultado das atividades preparadas ao longo do primeiro semestre de 2019 foram apresentados na II MCM no dia 13 de junho daquele ano, em um evento aberto à comunidade externa. Além dos estudantes e servidores do IFPR – campus Jaguariaíva, o evento contou com a participação de representantes de outras instituições, como: a Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG); o campus Campo Largo do IFPR; o ICMBio, a prefeitura de Jaguariaíva e o projeto Aves de Jaguariaíva. Durante o evento, foram realizadas diversas atividades, como: salas temáticas, sala de expositores de educação ambiental, palestras e apresentação cultural. A seguir, apresentamos breve descrição de cada uma dessas atividades.
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A construção de expositores para denunciar problemas ambientais da Flona Com o intuito de denunciar as consequências das influências de parte da humanidade no ambiente, os estudantes do 2º e do 3º anos, do ensino médio integrado ao curso técnico em Biotecnologia desenvolveram expositores com as seguintes temáticas: chuva ácida; preservação da fauna e flora; aquecimento global; camada de ozônio; descarte de resíduos; importância da mata ciliar; eutrofização; qualidade da água; plantas nativas e invasoras. Além dos expositores que atualmente compõem a Sala Xetá, na sede da FLONA, de Piraí do Sul/PR, os estudantes produziram sites de maneira a complementar as informações dos expositores. A Figura 1 representa uma escultura em madeira produzida pela estudante/artista Verônika Oliveira. Com o intuito de contextualizar os visitantes da sala Xetá quanto à história desse povo, há um texto explicativo ao lado da placa que está na entrada da sala Xetá, na sede FLONA, de Piraí do Sul/ PR. Figura 1. Escultura/ Placa de entrada da sala Xetá
Fonte: Repositório do Projeto de Memórias Institucionais do IFPR – campus Jaguariaíva
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Os visitantes da II MCM puderam interagir com os expositores produzidos pelos estudantes. A partir dessa interação, era possível perceber alguns dos impactos causados por ações de controle e exploração da natureza, desempenhado por parte da humanidade. Essas ações partem de uma perspectiva antropocêntrica, onde a humanidade se vê como o centro do mundo e enxerga a natureza como uma fonte de recursos, para atender as demandas do sistema produtivo vigente (SOLER; DIAS; VERÁS NETO, 2013). Como exemplo, apresentamos, na Figura 2, o expositor sobre o fenômeno de eutrofização. Os estudantes foram orientados a reaproveitar materiais para a construção dos expositores. Todos os expositores passaram por uma “auditoria de sustentabilidade”, realizada pelos acadêmicos do curso superior de Tecnologia em Gestão da Qualidade. Figura 2. Expositor sobre eutrofização
Fonte: Repositório do Projeto de Memórias Institucionais do IFPR – campus Jaguariaíva
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As salas temáticas como espaços de anúncios Os visitantes da II MCM interagiram com espaços temáticos que tinham como objetivo apresentar para a comunidade do campus Jaguariaíva outras formas de ser e estar no mundo, valorizando relações mais harmônicas com a natureza. Nesse sentido, foram idealizados e construídos dois espaços sobre o povo Xetá, uma sala sobre Direitos Humanos e Meio Ambiente; uma sala sobre o aproveitamento de resíduos alimentícios; uma sala sobre constelações indígenas; e uma sala sobre fósseis. Nas salas sobre o povo Xetá, foram abordadas questões históricas e culturais. O grupo indígena Xetá habitou o noroeste paranaense, e suas aldeias se localizavam às margens do rio Ivaí, na região da Serra dos Dourados. Após a década de 1940, com a expansão da cafeicultura, o povo Xetá foi praticamente dizimado e teve suas terras invadidas pela indústria agrícola. Após o etnocídio, poucos sobreviveram e a etnia Xetá alcançou a lamentável marca de apenas vinte remanescentes nos anos 2000 (ANDERSON, 2017; COFFACI; LIMA; PACHECO, 2017; HELM, 1993; LIMA, 2018). Considerando o histórico do povo Xetá, os estudantes do campus Jaguariaíva, sob orientação do professor de História, denunciaram o genocídio sofrido e anunciaram características da vida nas aldeias que promoviam relações com a natureza muito mais harmônicas do que as monoculturas de café que tomaram a região. Essas relações se opõem ao antropocentrismo da modernidade, ao passo que a humanidade deixa de ser dominadora da natureza e passa a integrá-la como mais um elemento diante de tantos outros. Esse pensamento vai ao encontro do conceito de Bem Viver, que se apresenta como uma possibilidade de luta contra as estruturas colonizadoras que, historicamente, dizimaram e continuam dizimando povos de diversas etnias indígenas, no território sul-americano (NUNES; GIRALDI; CASSIANI, 2021; QUIJANO, 2014).
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Além de apresentações orais, os estudantes também realizaram a exibição do documentário Xetá, produzido por Andrea Tomeleri e Nelson Settanni. Ademais, no sentido de valorizar conhecimentos de outras etnias indígenas, foram elaboradas uma sala ambiente sobre constelações indígenas e outra sobre fósseis, destacando as contribuições dos povos nativos para o desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia. Já a sala de aproveitamento de resíduos alimentícios foi elaborada pelos estudantes do ensino médio integrado ao curso técnico em Alimentos. Nesse espaço, os discentes compartilharam maneiras de aproveitar partes dos alimentos que normalmente são descartadas. Nesse sentido, foi possível estabelecer reflexões sobre ações que caminham no sentido de combater o desperdício de alimentos, a fome e a desigualdade social e de promover a nutrição e a segurança alimentar. A última sala temática, intitulada “Direitos Humanos e Meio Ambiente”, apresentou trabalhos sobre as condições civis, políticas, econômicas, sociais e culturais para o exercício da humanidade e a relação dessas condições com o meio-ambiente. Como foco de estudo, os discentes destacaram o crime ambiental cometido por mineradoras em Minas Gerais, como no caso do rompimento das barragens da Samarco em Mariana e da Vale em Brumadinho. Nesse sentido, foram discutidos os impactos da visão antropocêntrica de controle da natureza na sociedade contemporânea, sobretudo no cerceamento dos direitos humanos de uma parcela da sociedade brasileira.
Palestras como instrumento de fundamentação para a Educação Ambiental Além dos trabalhos desenvolvidos pelos estudantes, foram convidados alguns atores sociais envolvidos com a temática do evento, com o intuito de aprofundar o debate sobre as possíveis influências da humanidade na natureza. As palestras possibilitaram a percepção de que,
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em oposição ao movimento de exploração, a humanidade pode estabelecer relações mais harmônicas com a natureza. A primeira palestra foi proferida pelo professor, pesquisador e palestrante Harisson Luiz Pires Pereira, idealizador do projeto Aves de Jaguariaíva31. Harisson apresentou a palestra intitulada “A importância dos remanescentes naturais e as interações antrópicas”, e destacou a importância do projeto Aves de Jaguariaíva, que tem como objetivo a preservação da biodiversidade do município de Jaguariaíva e região, por meio de ações de educação ambiental, dentre outras estratégias. A segunda palestra foi proferida pelo professor Fábio Lucas da Cruz e pela discente Mylena Beatriz de Paula, ambos do IFPR – campus Campo Largo. Intitulada “Cultura e história Xetá: tradições e resistências”, a apresentação abordou um resgate histórico de questões indígenas no estado do Paraná, com foco na trajetória e nos saberes do povo Xetá. A terceira palestra abordou o Programa Feira Verde da prefeitura municipal de Jaguariaíva. A palestrante Marcela Bertoni de Carvalho, representante da Secretaria de Desenvolvimento Social, da Prefeitura Municipal de Jaguariaíva, explicou a dinâmica do programa, que realiza a troca de material reciclável por frutas, verduras e legumes oriundos de produtores locais. Foram apresentados dados referentes à quantidade de material arrecadado, bem como de alimentos entregues para a população. Além de estimular a reciclagem de materiais, o programa contribui para a diminuição da fome no município e estimula cooperativas de produtores locais. Por fim, recebemos a professora Jézili Dias, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), que proferiu a palestra “Conservação e restauração na FLONA de Piraí do Sul”. Jézili destacou a importância das ações do ICMBio no contexto da FLONA de Piraí do Sul, ressaltando os êxitos e as dificuldades encontradas no processo de preservação ambiental. Mais informações podem ser consultadas na página do projeto Aves de Jaguariaíva na internet: https://www.avesdejaguariaiva.com.br/
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Conforme apresentamos na Figura 3, a comunidade escolar do IFPR – campus Jaguariaíva participou em grande número das palestras do evento. Ao final de cada fala, houve espaço para debates e perguntas dos estudantes, que tiveram a oportunidade de aprofundar o conhecimento sobre educação ambiental, a partir da interlocução com especialistas. Figura 3. Audiência durante as palestras da II MCM
Fonte: Repositório do Projeto de Memórias Institucionais do IFPR – campus Jaguariaíva
Apresentação Cultural: XETÁ: Existência, Resistência, [Reticências] A performance cultural da II MCM apresentou o corpo que questiona o mundo que nos cerca. Utilizando serragem, areia, lona e bacias, e ao som de tambores, as artistas se expressaram por meio de movimentos com o objetivo de revelar o sentimento de respeito e de reconhecimento da identidade cultural presente no povo indígena Xetá, que sofreu com os impactos das ações colonizadoras sobre terras paranaenses. A idealizadora da apresentação artística, a professora Cely Kaori Hirata, escreveu como sinopse sobre a apresentação: E se fosse com você? E se fosse comigo? Se somos todos seres humanos, o problema é conosco. Com que direito alguém se apropria de minha casa, de minha cultura, de minha identidade… de mim?
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Com que direito alguém me arranca, ainda criança, dos braços de minha mãe levandome para longe de nossa ancestralidade? Com que direito, Humano?
Assim, a escolha do título Xetá: Existência, Resistência, [Reticências], com a palavra “reticências” em destaque, desafia-nos a uma reflexão sobre o futuro dos povos, que até hoje lutam por direitos que são seus. A Figura 4 é um registro da apresentação cultural que contou com os olhares atentos da comunidade escolar. Figura 4. Apresentação Cultural
Fonte: Repositório do Projeto de Memórias Institucionais do IFPR – campus Jaguariaíva
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Considerações Finais A segunda edição da Mostra Científica Multidisciplinar possibilitou a percepção de que podemos estabelecer relações mais harmônicas com o Meio Ambiente. Acreditamos que eventos como este podem produzir conhecimentos que têm potencial para transformar a trajetória de cada uma e cada um dos estudantes, e, consequentemente, transformar também a sociedade. O modelo econômico vigente impõe uma lógica de exploração da natureza, gerando relações destrutivas da humanidade em relação ao ambiente. Essa perspectiva antropocêntrica silencia, não por acaso, outras formas de ser e estar no mundo. O resgate e a valorização da história e dos saberes de etnias indígenas, como o povo Xetá, pode contribuir com um movimento de subversão das estruturas opressoras vigentes, anunciando formas alternativas e harmônicas de estabelecer relações entre a humanidade e a natureza. Nesse sentido, a realização da MCM está de acordo com uma perspectiva emancipatória da educação escolar, já que foram articulados práticas e conhecimentos com potencial de gerar diagnósticos e intervenções na realidade da comunidade do IFPR - campus Jaguariaíva. Sendo assim, a participação dos estudantes nas atividades da MCM pode ter contribuído na elaboração de repertórios necessários à transformação da sociedade, de modo a possibilitar uma formação escolar que prioriza a justiça social e ambiental.
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Resistir, (re)Existir e (re)Inventar II: Pedagogias Decoloniais em diálogo com o Sul Global COFFACI, E.; LIMA, D.; PACHECO, R. Povos Indígenas e Justiça de Transição : reflexões a partir do caso Xetá. ARACÊ - Direitos Humanos em Revista, v. 4, n. 5, 2017. p. 219–241. HELM, C. M. V. Os Xetá: a trajetória de um grupo tupi-guarani em extinção no Paraná. Anuário Antropológico, v. 17, n. 1, 1993. p. 105–102. KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. LEFF, E. Aventuras da epistemologia ambiental: da articulação das ciências ao diálogo de saberes. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2012. LEFF, E. Saber Ambiental. Sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. 11. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. LIMA, E. C. DE. De documentos etnográficos a documentos históricos: a segunda vida dos registros sobre os Xetá (Paraná, Brasil). Sociologia e Antropologia, v. 8, n. 2, 2018. p. 571–597. NUNES, P.; GIRALDI, P.; CASSIANI, S. Decolonialidade na educação em ciências: o conceito de bem viver como uma pedagogia decolonial. Rev. Interdisc. Sulear, n. 9, 2021. p. 199–219. QUIJANO, A. Bienvivir: entre el desarrollo y la des/colonialidad del poder. In: QUIJANO, A. (Ed.). Des/colonialidad y bien vivir: Un nuevo debate en América Latina. [s.l.]: Universidad Ricardo Palma, 2014. SILVA, G. J. da; COSTA, A. M. R. F. M. da. Histórias e culturas indígenas na educação básica. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. SOLER, A. C. P.; DIAS, E. A.; VERÁS NETO, F. Q. Breves comentários sobre marxismo e antropocentrismo em ecologia política. In: VERÁS NETO, F. Q.; SARAIVA, B. C. (Eds.). Temas Atuais de Direito Ambiental, Ecologia Política e Direitos Humanos. Rio Grande: Editora da Furg, 2013.
Imagens de gesso, representando o arquétipo das águas, nas figuras de Iemanjá e Iara (feira popular associada à festa religiosa afro-brasileira de Iemanjá, praia do Cassino, município de Rio Grande, RS). (Arqueofotografia de: Wa Ching).
Seção II: Dialogias Sul-Sul em perspectiva tecnocientífica Pela dialogicidade freireana estabelecemos elos Sul-Sul – até mesmo dentro do Norte –, para articular formas-conteúdos de uma tecnociência Outra, efetivamente nossa, autoral, autóctone, por sentidos contra-hegemônicos, que deflagrem outros modos e gestos de vivermos no mundo. Com isso, não nos esqueceremos daquelas e daqueles que estiveram aqui, e que tiveram suas vidas interrompidas pela necropolítica, pelo simples fato de lutarem por um ambiente mais justo e democrático, como o fazia(m)… até janeiro de 2022, a família de ambientalistas Zé do Lago (José Gomes, 61) e Marcia Nunes Lisboa (39), e sua filha Joane Nunes Lisboa (17), da Ilha da Cachoeira do Mucura, lugarejo a cerca de 90 quilômetros de São Félix do Xingu, no Pará (Brasil), em que desenvolviam um projeto de preservação de tartarugas e tracajás (quelônios), bem como outras atividades de defesa ambiental; até outubro de 2020, Ênio Pasqualim (48), dirigente geral do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Rio Bonito do Iguaçu, no Paraná; até dezembro de 2018, na Paraíba, no Acampamento Dom José Maria Pires, os irmãos José Bernardo da Silva (conhecido como Orlando Bernardo) e Rodrigo Celestino, ambos militantes do MST; e, até 2009, em Acauã, na Paraíba, Odilon Bernardo da Silva Filho (33), irmão de Orlando, que integrava a coordenação do Movimentos dos Atingidos por Barragens (MAB). aos milhares de populações negras, indígenas, latinas, caribenhas, asiáticas, não brancas, que são assassinadas cotidianamente, no Sul e Norte Globais, pela perversidade de um modelo capitalista cisheteropatriarcal que militariza territórios, arregimentando, na intolerância religiosa e de gênero, na expropriação de terras e espoliação de povos originários, no racismo, no sexismo, na xenofobia, sua trincheira anti-raças e anti-lutas.
DOI: doi.org/10.29327/565971.1-4
Conhecimentos e práticas do povo Maubere: sentidos sobre tecnologias na atualidade educacional timorense Knowledge and practices of the Maubere people: meanings about technologies in current Timorese education Raquel Folmer Corrêa1 Irlan von Linsingen2 Estanislau Alves Correia3 1 Bacharela e licenciada em Ciências Sociais pela UFRGS. Mestre em Sociologia pelo Programa de PósGraduação em Sociologia da UFRGS na linha de pesquisa Sociedade e Conhecimento. Doutora em Educação Científica e Tecnológica pela UFSC na linha de pesquisa Implicações Sociais da Ciência e da Tecnologia na Educação. Participa dos Grupos de Pesquisas "Discursos da Ciência e da Tecnologia na Educação" (DiCiTE-UFSC) e "Ética, Epistemologia e Formação de Professores para a Educação Profissional e Tecnológica" (PROFEPT/IFFAR). E-mail: raquel.correa@iffarroupilha.edu.br / ORCID: http:// orcid.org/0000-0001-5208-3993 2 Graduado em Engenharia Mecânica, com mestrado em Ciências Térmicas (EMC/PPGEM/UFSC), doutorado em Educação em Ciências - UFSC (2002) e pós-doutorado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Estágio Sênior CAPES - 2015). Professor Titular da UFSC, ligado ao Departamento de Engenharia Mecânica (EMC/CTC) e ao Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica (PPGECT). Atua nas linhas de pesquisa Implicações Sociais da Ciência e da Tecnologia na Educação e Linguagens e Ensino, com os seguintes temas: Ciência-Tecnologia-Sociedade, educação tecnológica, educação CTS, aspectos da linguagem na educação científica e tecnológica, articulações entre Estudos CTS, Educação CTS e Tecnologias Sociais. Líder do Grupo e Pesquisa Discursos da Ciência e da Tecnologia na Educação - DICITE. Participou da Coordenação Acadêmica do Programa de Qualificação de Docentes e Língua Portuguesa - PQLP, no âmbito do Acordo de Cooperação Educacional entre Brasil e Timor-Leste. Foi Diretor Acadêmico do campus da Universidade Federal de Santa Catarina/Blumenau. E-mail: irlan.von@gmail.com / ORCID: https://orcid.org/00000001-5887-6070 3 Licenciatura em Ensino de Biologia, pela Universidade Nacional Timor Lorosa'e - UNTL, em Dili, Timor-Leste. Mestrado em Ciência e Tecnologia do Ambiente, pela Universidade do Porto. Atua como docente do quadro permanente do Departamento de Formação de Professores do Ensino Básico, na Faculdade de Educação, Artes e Humanidades, da UNTL. E-mail: estanislaualvescorreia@gmail.com / ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8599-1821
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Resumo: No ano de 1975, com o início da ocupação violenta por parte da Indonésia, a sociedade timorense passou a viver um período de transições sociopolíticas relevantes, que se estendeu até o final do século XX. Com os processos de restauração da independência do país, e das primeiras eleições presidenciais, em 2002, foram firmados acordos internacionais em diferentes áreas, como a educacional. A partir do ano de 2005, o Brasil enviou professores/as brasileiros/as para trabalhar em Timor-Leste, com o objetivo de colaborar na formação, em Língua Portuguesa, de docentes timorenses em diferentes níveis de ensino. Nesse contexto, passamos a realizar investigações colaborativas com a coletividade acadêmica timorense, cooperante com o Brasil em temas sobre educação, ciências e tecnologias. Os debates gerados nessa cooperação confirmaram algumas percepções iniciais de que tanto educação quanto tecnologias são comumente entendidas genericamente, de modo linear e determinista do incremento econômico e social, nos dois países. Em Timor-Leste, cujo lema fundamental pós-conflito era “paz e desenvolvimento”, surgiram demandas sobre possibilidades e limites nas articulações entre a produção de conhecimentos tradicionais do povo Maubere e produções científicas e tecnológicas atuais. Tendo em vista uma perspectiva educacional crítica dos estudos CTS latino-americanos, apontamos um caminho possível para estabelecer tais articulações, que problematize a inclusão social, considere a cidadania sociotécnica, contemple um exame crítico sobre tecnologias sociais e mobilize para a autoria em ambientes educacionais. Palavras-chave: Determinismo tecnológico. Tecnologias sociais. Educação CTS. Autoria. Timor-Leste.
“Com suas lutas, os povos e nacionalidades demandam o exercício pleno da democracia, a construção de cidadanias coletivas, o respeito à multiculturalidade e a prática da interculturalidade, das liberdades e das oportunidades, sem exclusões.” Alberto Acosta (2016, p. 156).
A cooperação educacional entre Timor-Leste e Brasil
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REPÚBLICA Democrática de Timor Lorosa’e se localiza no Sudeste Asiático, junto a outras ilhas da Indonésia. Está situada ao norte da Austrália e ocupa a parte oriental da Ilha de Timor, em uma região de limite entre o Oceano Índico e o Pacífico. TimorLeste, cuja capital é o distrito de Díli, é menor que o estado brasileiro de
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Sergipe, possui 14.954 km2, incluindo o enclave de Oécussi-Ambeno (815 km²), a Ilha de Ataúro (144 km²) e o ilhéu de Jaco (8 km²). O país tem cerca de 1.183.643 habitantes, segundo o censo de 2015 (CORREIA, 2018), que são, em sua maioria, de religião católica. Ainda que existam 36 grupos étnicos e linguísticos no país, suas línguas oficiais são a Língua Tétum e a Língua Portuguesa (CARVALHO, 2015) e os principais produtos de exportação são o petróleo, o gás natural e o café. O país está classificado entre as 10 nações com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do planeta, sendo a nação mais economicamente empobrecida da Ásia (SILVA, 2015; PEREIRA; CASSIANI; LINSINGEN, 2015). Timor-Leste é um dos países que teve a sua independência mais recentemente, após uma longa história de conflitos, resistências e conquistas. Na historiografia32, encontramos relatos de que invasores portugueses ocuparam territórios timorenses desde o século XVI, sendo que Timor-Leste foi colônia de Portugal oficialmente até o ano de 197533. Em 28 de novembro daquele ano, a FRETILIN (Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente), após disputas com outros dois principais grupos políticos (APODETI: Associação Popular Democrática Timorense, pró-integração com a Indonésia e UDT: União Democrática Timorense, pró-manutenção portuguesa), declarou a independência de Timor-Leste. Contudo, poucos dias depois, em 07 de dezembro do mesmo ano, a Indonésia invadiu o país (CARVALHO, 2015). Muitas informações aqui apresentadas sobre Timor-Leste (“terra do sol nascente”, em língua local) provêm de nossas experiências no país com docentes (e como docentes, no caso do autor Estanislau Alves Correia) e discentes timorenses e são fruto de nossos diários de campo. Por isso, não apresentamos rigorosamente referências bibliográficas para esses dados. 33 Para além do contexto local, da divulgação de descoberta de petróleo, em Timor-Leste, no ano de 1974, lembremos da geopolítica internacional, naquele período. Na Europa, em Portugal, houve a Revolução dos Cravos, em abril do mesmo ano, que, ao buscar depor o regime ditatorial vigente, tinha, entre seus objetivos, o lema “democratizar, descolonizar, desenvolver”, que, de certo modo, pode ser visto como propício à independência de Timor-Leste. Na Ásia, a formação de partidos ditos com viés comunista, na região do Sudeste Asiático, com forte influência chinesa e vietnamita na região (o Vietnã venceu a guerra contra os EUA no ano de 1975), estaria relacionada com a ocupação de Timor-Leste, para evitar um possível avanço comunista. 32
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O período indonésio em Timor-Leste (1975-1999) foi marcado por genocídios em série e tentativas ostensivas de imposição da cultura e história daqueles sobre esses. Houve proibição de utilização da Língua Portuguesa, a Língua Indonésia (Bahasa Indonesia) tornou-se oficial no território timorense e estabeleceu-se uma política sistemática que ignorava as especificidades timorenses (PEREIRA, 2014). Estima-se que tenham ocorrido cerca de 350 mil mortes (mais de um terço da população timorense), devido à ocupação. Desses assassinatos, aproximadamente 50 mil teriam acontecido apenas nos três primeiros meses de invasão. Depois, uma grande concentração de homicídios ocorreu nos anos de 1979, 1984 e 1999 (CHOMSKY, 1999). Nos anos 1990, relatos de violações de Direitos Humanos em Timor-Leste ganharam destaque nas mídias internacionais (idem). O que gerou pressão para um posicionamento do governo indonésio em relação à ocupação e, também, chamou a atenção de Portugal para a situação do país. Em 1999, após mais de vinte anos de ocupação violenta por parte da Indonésia e resistência timorense, ocorreu o referendo no qual mais de 78% da população de Timor-Leste decidiu pela independência do país. Entre os anos de 1999 e 2002, a Organização das Nações Unidas (ONU) administrou um governo de transição, e em 20 de maio de 2002 foi restaurada a independência (PEREIRA, 2014). Naquele ano, o povo Maubere34 foi pela primeira vez às urnas para eleger o presidente da nação. Timor-Leste é parlamentarista. O Brasil, já no ano de 2002, firmou acordos de cooperação internacional com Timor-Leste, pois desenvolvia uma estratégia geopolítica internacional com vistas a manifestar soberania por meio de uma política robusta de relações internacionais, obter uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU e efetivar contratos comerciais (PEREIRA; CASSIANI; LINSINGEN, 2015). O acordo de interesse aqui é o Programa de Qualificação de Docente e Ensino de Língua Portuguesa De modo geral, Maubere se refere ao povo timorense e ao seu sentimento de orgulho frente a lutas e resistências contra os mais variados ataques indonésios (URBAN, 2020).
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no Timor-Leste (PQLP), materializado pelo Decreto Nº 5.274, de 18 de novembro de 2004, e gerido pelo Ministério da Educação (MEC) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) (idem). A partir do ano de 2005, o PQLP enviou, anualmente, até 50 professores/as brasileiros/as, para trabalharem em Timor-Leste, em diferentes áreas do sistema educacional timorense. Os objetivos do programa buscavam contemplar desde a cooperação na formação inicial e contínua de docentes, passando pelo fomento ao ensino da Língua Portuguesa, até o apoio ao ensino superior e a promoção linguístico-cultural (idem). Conforme dados do relatório anual do PQLP, de novembro de 201435, as ações desenvolvidas nesses três objetivos do programa abrangeram, naquele ano, mais de 4.700 timorenses (idem). Pereira (2014) e Pereira, Cassiani e Linsingen (2015) examinaram dados36 segundo os quais o PQLP representou 37% dos recursos para bolsas de estudos de estrangeiros oferecidas pela CAPES, entre os anos de 2005 e 2009. Para além de estudos sobre o trabalho desses/as docentes brasileiros/as em Timor-Leste, nossas reflexões, nesse momento, envolvem a investigação que realizamos naquele país, no ano de 2014. A saber, examinamos sentidos sobre educação, ciências e tecnologias na coletividade acadêmica timorense, cooperante com o Brasil. Nessa inserção, convivemos com docentes e discentes timorenses, especificamente da Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL). Contexto no qual os debates realizados, especificamente sobre produção de conhecimentos e tecnologias sociais, mostraram que, assim como no Brasil, tanto educação quanto tecnologias são comumente
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Disponível em: http://www.pqlp.pro.br. Do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e da Agência Brasileira de Cooperação (ABC).
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entendidas genericamente, de modo linear e determinista do desenvolvimento econômico e social do país37. Mesmo que intelectuais timorenses apresentem importantes contrapontos a tal perspectiva, como se evidencia na fala do professor Antero Benedito da Silva, quando destaca que “os líderes timorenses estão conscientes sobre a necessidade de desenvolver a educação como fundamento do progresso nas áreas sociais e econômicas; contudo, a educação é um setor que vem enfrentando enormes dificuldades”. (SILVA, 2015, p. 121). Tendo em vista a conjuntura educacional timorense pós-conflito, ou, pós-colonial (SILVA, 2015), a seguir, consideramos alguns aspectos sobre o determinismo tecnológico e suas relações com processos educacionais. Em seguida, discutimos sobre possibilidades e limites de uma ecologia de saberes (SANTOS, 2007; MENESES, 2014), entre conhecimentos tradicionais, científicos e tecnológicos por meio de articulações entre tecnologias sociais, cidadania sociotécnica e autoria sob um viés crítico.
Leituras sobre Determinismo Tecnológico e para além Debates sobre determinismo tecnológico estão regularmente presentes em discussões sobre relações entre tecnologias e sociedade. Mesmo que o desenvolvimento dessas ideias tenha acontecido desde a chamada modernidade, juntamente com a perspectiva de progresso, diferentes estudos38 têm mostrado que o determinismo tecnológico se
Um exemplo que pode ilustrar essa nossa percepção é a fala do Primeiro-Ministro timorense, Rui Maria Araújo, durante a I Reunião Extraordinária de Ministros da Educação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), realizada em abril do ano de 2015, em Díli. Ocasião na qual ele destacou que a educação “é uma prioridade para todos e encerra em si, pelo seu potencial, a promessa de progresso e inclusão para todas as sociedades. (...) Ela é tanto uma condição essencial se de fato se aspira a um progresso que beneficie a todos quanto um elemento estratégico potencializador de valor econômico para os países. (...) A educação é essencial para a emergência de setores privados mais inovadores e empreendedores, capazes de se adaptarem aos desafios do mundo globalizado”. Informações disponíveis em: http://cutt.ly/1GjkaCJ. 38 Ver, por exemplo, Bimber (1994), Chandler (1995), Corrêa (2010), Dagnino (2008) e Wyatt (2008). 37
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refere a linhas de pensamento ainda influentes em diferentes sociedades. Ellul (1964) destaca a origem do termo em obras do sociólogo e economista americano Thorstein Veblen, no início do século XX, em textos nos quais Veblen trata de relações entre automatismo técnico e mercados capitalistas. Nas perspectivas deterministas sobre tecnologias, busca-se explicar fenômenos sociais e históricos de acordo com um fator principal: a tecnologia. Considera-se que o desenvolvimento tecnológico condicionaria essencialmente as mudanças e as estruturas sociais. Conforme Chandler (1995), esse tipo de pensamento considera que as tecnologias afetariam inexoravelmente todos os âmbitos sociais. Feenberg (1991) aponta que o determinismo se baseia na suposição de que as tecnologias teriam uma lógica funcional autônoma que poderia ser explicada sem se fazer referência à sociedade. Concepções deterministas sobre tecnologias consideram as relações entre tecnologias e sociedade como unidirecionais (das tecnologias com “impacto” na sociedade, ou seja, como algo fora dessa) e sustentam que o desenvolvimento social, em seus aspectos econômicos, políticos e culturais, seja uma consequência direta e linear do desenvolvimento tecnológico. Assim, as tecnologias seguiriam um curso particular, como se fossem um fenômeno natural, que responderia aos seus próprios princípios (CHANDLER, 1995; FEENBERG, 1991). Críticas que realizamos a perspectivas deterministas sobre tecnologias, já enunciadas em estudos anteriores, pretendem chamar a atenção para o fato de que esse tipo de pensamento pode representar uma visão redutora dos relacionamentos entre o desenvolvimento social e tecnológico. Supor que as tecnologias, por si mesmas, são capazes de determinar os comportamentos dos sujeitos, seus hábitos e instituições, pode encobrir as possibilidades de resistências e transformações
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de contingências históricas e de modos com que as coletividades se relacionam cotidianamente com as tecnologias (CORRÊA, 2010; LINSINGEN; CORRÊA, 2015). A questão do determinismo tecnológico pode ser examinada sob diversos olhares. Destacamos que há uma dimensão cultural significativa que pode ser considerada nesse debate. Os sociólogos Trevor Pinch e Wiebe Bijker, por exemplo, têm defendido uma orientação contrária à perspectiva determinista, qual seja, a da Construção Social da Tecnologia (CST)39. Esses autores trabalham com a ideia de que as forças sociais e culturais também determinam a mudança técnica. Em múltiplos estudos, eles têm mostrado como a tecnologia é uma construção social e, para isso, Pinch e Bijker (2008), desenvolvem o conceito de marco tecnológico40. O foco de nosso debate tem sido problemas envolvidos com o determinismo tecnológico, tendo em vista processos educacionais. Para isso, além de dimensões culturais, consideramos possibilidades de superar esse tipo de visão, que interpretamos como limitadora dos entendimentos sobre as inter-relações entre diversos conhecimentos, técnicas e coletivos. Compreendemos que uma percepção crítica dessas inter-relações é algo fundamental para a elaboração e execução de processos educativos emancipatórios que contemplem uma formação humana crítica, integral, solidária e permanente. Tal percepção tem estado presente nos Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (ECTS) latino-americanos. em perspectiva educacional crítica (Educação CTS), nos últimos anos. Ao considerarmos tal viés educacional CTS, propomos a crítica em relação à colonização epistemológica etnocêntrica do chamado Norte global, e destacamos a relevância dos conhecimentos situados, costumeiros, ancestrais e tácitos.
Do inglês, Social Construction of Technology, também conhecida como SCOT. Tal conceito se centra nos significados que os grupos sociais atribuem a um artefato, e na gramática que se desenvolve ao redor desses, para explicar como o ambiente social estrutura o desenho de um artefato. 39
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Compreendemos que metodologias que pretendam descolonizar conhecimentos, sobretudo em Educação CTS, podem valorizar diálogos entre esses conhecimentos naquilo que Boaventura de Sousa Santos (2007) chama de ecologia de saberes. O autor elenca cinco ecologias que lembram relações epistemológicas não destrutivas: ecologia dos saberes (identificar outros saberes e critérios de rigor), ecologia das temporalidades (inclui várias temporalidades), ecologia dos reconhecimentos (identificar diferenças entre iguais sem desconsiderar sua legitimidade), ecologia das transescalas (desglobalizar o local e globalizar a diversidade) e ecologia das produtividades (recuperar e valorizar sistemas alternativos de produção) (MENESES, 2014). Nesse sentido de multiplicidade de relações de (e entre) saberes, propomos a incorporação de debates sobre determinismo tecnológico nos estudos sobre processos educacionais, pois a Educação CTS pode considerar, também, “questões que envolvem os variados aspectos das relações sociais e econômicas regionais, abarcando o campo das políticas públicas de C&T com suas percepções de relevância” (LINSINGEN, 2007, p. 02). Uma abordagem educacional CTS crítica pode ser contextualizada em sintonia com os aspectos sociais, e comprometida em termos curriculares (idem). Assim, reforçamos a intenção presente em Cassiani e Linsingen (2010), de que os estudos CTS abram-se cada vez mais aos temas educacionais. Entendemos que a superação das premissas do determinismo tecnológico, e da subalternização imposta pelo colonialismo, passa, sobretudo, pelos planos educacionais, de modo que seja possível problematizar questões sociotécnicas41 de maneira crítica, participativa e colaborativa, em diferentes espaços educacionais. Não há muita novidade no fato de que percepções deterministas sobre tecnologias possam ser herdadas e desenvolverem-se juntamente
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Ou seja, nas quais aspectos sociais, técnicos e tecnológicos são indissociáveis.
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com as diferentes sociedades. Do mesmo modo que percepções deterministas sobre tecnologias não são exclusividade timorense e brasileira. Compreendemos a força do colonialismo sobre realidades sociais de coletivos subalternizados. Realidade essa, forjada sob processos de colonização que implicam relações de dominação estrutural, com a supressão, por vezes violenta, das diversidades dos sujeitos em questão (MOHANTY, 1984). Portanto, problematizar tal percepção determinista parece-nos relevante quando discutimos de modo colaborativo sobre diferentes rumos que a educação CTS poderia seguir em Timor-Leste pós-colonial (SILVA, 2015). Sobretudo em um momento histórico no qual a coletividade acadêmica timorense buscava planos de ações para desenvolver seus currículos de maneira autônoma e sensível aos contextos locais. Procuramos compreender a produção histórica de conhecimentos em Timor-Leste, particularmente no que diz respeito à Pedagogia Maubere42, proposta e prática de educação popular e de resistência colonial, que conforme Silva (2015), Em Timor existiram práticas duma nova pedagogia timoriana, a Pedagogia Maubere, como uma narrativa timorense baseada nas práticas científicas e culturais revolucionárias do período da luta pela independência e também no imperativo de preservar a relação intrínseca do povo com a natureza e o mundo, o planeta ou RaiInan. (...) Pedagogia da Terra e Pedagogia Maubere são novas pedagogias que necessitam debates e inovações para promover a melhoria na qualidade da vida humana e do planeta, o que significa o futuro da existência da humanidade. (SILVA, 2015, p. 134).
Desse modo, refletimos conjuntamente com representantes da coletividade acadêmica timorense43 sobre processos educacionais não
Detalhes da Pedagogia Maubere e sua relação com a Pedagogia da Terra podem ser encontrados em Urban (2015, 2020) e Silva (2011, 2015). 43 Verificar em Correia (2015) parte da materialidade resultante dessas atuações conjuntas. 42
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deterministas, que articulassem a produção de seus conhecimentos tradicionais com a produção científica e tecnológica contemporânea. Concordamos que tais articulações passam por uma avaliação crítica sobre o desenvolvimento de tecnologias sociais, que problematize a inclusão social, considere a cidadania sociotécnica e mobilize para a autoria em ambientes educacionais (LINSINGEN; CORRÊA, 2015), como demonstramos a seguir.
Tecnologias sociais e articulações autorais sociotécnicas Ao considerarmos a profícua produção de conhecimentos sobre tecnologias sociais nas últimas décadas no Brasil, percebemos, comumente, a referência a produtos, técnicas ou metodologias reaplicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que representem efetivas soluções de transformação social. A Fundação Banco do Brasil (FBB) caracteriza tecnologia social como todo processo, método ou instrumento capaz de solucionar algum tipo de problema social e que atenda aos quesitos de simplicidade, baixo custo, fácil replicabilidade e impacto social comprovado (FBB, 2008). Em tese, a ideia presente nessas definições é a de que tecnologias sociais podem aliar conhecimento popular, organização social e conhecimento técnico-científico nas soluções para problemas voltados a demandas de alimentação, educação, energia, habitação, renda, recursos hídricos, saúde, meio ambiente, dentre outras (BTS, 2008). O que se apresenta seria uma proposta de desenvolvimento, que consideraria a participação coletiva nos seus processos de organização, desenho e aplicação. É possível compreender que tecnologias sociais trariam propostas de atender questões relativas à melhoria das condições de vida e à diminuição de desigualdades sociais via desenvolvimento local sustentável.
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Para além dessas definições, nos ECTS educacionais que realizamos, buscamos desenvolver uma perspectiva crítica sobre tecnologias sociais na qual destacamos quatro dimensões, a promover: (i) diálogos entre diferentes conhecimentos (ecologia de saberes); (ii) mobilização dos coletivos envolvidos para maior compreensão da relevância de seus problemas (e soluções) sociotécnicos; (iii) (resgate de) sentidos nas lutas por garantias de direitos (cidadania sociotécnica); e, (iv) possibilidades (diversas) de compreender tecnologias como conhecimento humano localizado, possível de ser aprendido e transformado para o atendimento dos interesses e necessidades de diferentes grupos sociais, não sendo, portanto, universal (LINSINGEN; CORRÊA, 2015). Consideramos que, nesse início do século XXI, pressões para o consumismo e em defesa do determinismo tecnológico fazem parte da agenda eurocêntrica, patriarcal, heteronormativa, bélica e supremacista branca do neoliberalismo, que procura ostensivamente silenciar diversidades e invisibilizar práxis que costumam tratar como subalternas. Portanto, o desenvolvimento de tecnologias sociais em perspectiva crítica, tal como mostrado acima, se apresenta como um momento de possibilidades de diálogos horizontais entre conhecimentos científicos, tecnológicos e tradicionais, de crítica a dogmatismos, ao colonialismo e sensível a diferentes experiências, interpretações e valores dos sujeitos envolvidos. Algo que podemos relacionar com Freire (2011, 1987), que considera os conhecimentos historicamente produzidos e faz uma defesa de processos educacionais contextualizados e atentos às vivências dos sujeitos. Assim como é possível relacionar com a perspectiva defendida por Feenberg (2004), de abertura de assuntos técnicos à esfera pública, como verificamos na seguinte fala: “O aumento da esfera pública incluindo a tecnologia marca uma mudança radical do consenso anterior que assegurava que os assuntos técnicos deveriam ser decididos por especialistas técnicos, sem interferência leiga.” (FEENBERG, 2004, p.16).
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Feenberg (2003, 2004) destaca a importância de os sujeitos compreenderem que a mediação do processo político, que atua em interesses próprios da sociedade, como tal, pode englobar também as questões tecnológicas. Para o autor, portanto, a esperança nas potencialidades democráticas das tecnologias, e na abertura da esfera pública aos assuntos técnicos, precisa ser mantida. Conhecimentos tecnológicos e participação pública informada e crítica aparecem como fundamentais (necessários, embora não suficientes) à manutenção de sociedades democráticas. Apresentamos, portanto, tecnologias sociais como práticas possíveis, em contextos de lutas emancipatórias, conforme uma visão dinâmica das culturas e das diversidades de sujeitos que formam os coletivos locais. Junto a tal perspectiva crítica de tecnologias sociais, problematizamos sentidos sobre cidadania, ao discutirmos cidadania sociotécnica, tendo em vista o compromisso do campo CTS educacional com a democracia. Assim, buscamos mobilização para iniciativas coletivas de transformação social, baseadas em uma ideia, em construção, de cidadania sociotécnica, na qual são destacadas as potencialidades dos sujeitos para a participação social democrática. Posição que dialoga com o referencial teórico e metodológico de luta e resistência, conhecido como Epistemologias do Sul (SANTOS; MENESES, 2010), que busca identificar e validar conhecimentos nascidos nas lutas sociais contra o capitalismo, o colonialismo e o heteropatriarcado. Nas Epistemologias do Sul, os processos que conferem inteligibilidade e intencionalidade às experiências sociais são diversos. A variedade de experiências sociais produz e reproduz conhecimentos, de modo que as ações sociais pressupõem a presença de várias epistemologias (MENESES, 2014). Portanto, o termo Epistemologias do Sul considera o “reconhecimento de conhecimentos plurais em presença” (idem, p. 92), uma pluralidade epistemológica.
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Nesse sentido, dialogamos com Santos (2007, 2010), ao usarmos os princípios da ecologia de saberes, como destacado em momento anterior. Ao relacionarmos conhecimentos tradicionais, científicos e tecnológicos por meio de problematização de tecnologias sociais, partimos de uma ecologia de saberes na qual os sujeitos envolvidos não são apenas usuários/as de propostas salvacionistas exteriores aos coletivos. Antes, são autores/as dos levantamentos dos problemas sociotécnicos da sua comunidade e autores/as das propostas de soluções. A mudança de status de usuário/a para autor/a faz toda a diferença, na medida em que autores/as posicionam-se como sujeitos de sua aprendizagem, naquilo que bell hooks, leitora atenta de Freire, debate sobre autoridade analítica (2017). Ou seja, exercitar o diálogo com vozes tradicionalmente excluídas da produção acadêmica (e que são vozes autorais) e questionar a exclusividade de autoridade analítica ao discurso científico e tecnológico, dito neutro e universal. A construção de autoria, com base nas experiências vivenciadas (subjetividades), se relaciona com possibilidades de desenvolvimento de autonomia, em contextos educacionais, na medida em que os sujeitos, na posição de autores/as, não são apenas usuários/as. Um/a usuário/a de tecnologia social, por exemplo, comumente está inserido/a em uma política pública para resolução de problemas sociais, que foi pensada de modo vertical (desde o Estado até o cidadão), que reproduz soluções utilizadas em diferentes contextos e não participa, necessariamente, de alguma etapa dos processos de identificação e resolução dos seus problemas. Pensamos que sujeitos que fazem parte de processos educacionais, em um contexto de construção de autoria, podem ter possibilidades de ler e interpretar criticamente a realidade social na qual estão inseridos/as, produzir visões e experiências próprias sobre os seus problemas sociais, além de serem capazes de aprender e atuar autonomamente (CORRÊA, 2016). Algo que a Pedagogia Maubere já propunha, durante os anos de ocupação indonésia em Timor-Leste, por meio do
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Programa de Educação Alternativo da FRETILIN, e que se materializou na campanha de alfabetização de inspiração freireana e nas escolas populares de saúde (SILVA, 2011; URBAN, 2020). Contexto em que a produção de conhecimentos em diálogo de saberes, juntamente com a autoria, atuaram na luta pela restauração da independência. Nesse sentido, nossa proposta de debate sobre tecnologias sociais e cidadania sociotécnica considera possibilidades para a autoria, que compreendemos, exatamente, como emancipação do caráter assistencialista, que muitas vezes tenta ser imposto em contextos de cooperações, tais como os vivenciados em Timor-Leste. Tal potencial de autoria também abriria espaços para diferentes sentidos de emancipação social, favorecendo a consolidação de uma cidadania sociotécnica, na qual se ressignifiquem os sentidos dos termos “exclusão” e “inclusão” social (LINSINGEN; CORRÊA, 2015). Nos debates acerca do uso de termos como “inclusão social” e “exclusão social”, considera-se que eles seriam termos eurocêntricos, que não teriam razão de ser utilizados para estudos em sociedades subalternizadas, que não conheceram a plena integração social (MTE, 2007). Desse modo, ao abordarmos tecnologias sociais e cidadania sociotécnica, optamos por utilizar o termo “vulnerabilidade social”, para buscar apreender o dinamismo dos processos de desigualdade de maneira mais ampla, considerando a existência de zonas de vulnerabilidade, com tendência à precarização e às diferentes estruturas de oportunidades existentes no Sul global, tanto no Brasil quanto em TimorLeste. Portanto, no contexto teórico e metodológico da ecologia de saberes, consideramos o desenvolvimento de tecnologias sociais em perspectiva crítica, como uma possibilidade de assunção de autoria nas quais temas em ciências e tecnologias sejam compreendidos, e atuem, como fatores dinâmicos de desenvolvimentos sociais e econômicos so-
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lidários, éticos, inclusivos e contextualizados. Autoria, que visa conscientização da vulnerabilidade social circundante, não silencia conflitos, tensões, contradições, lutas e resistências, pois que são elementos constitutivos de uma cidadania sociotécnica crítica, solidária e responsável.
Experiências, materialidades e perspectivas Tendo em vista nossas vivências colaborativas em Timor-Leste, sobretudo, compreendemos tecnologias sociais como autocríticas, em relação à produção de conhecimentos. Por isso, não produzimos conhecimentos sobre os coletivos (perspectiva de silenciamento, assistencialismo e subalternização), mas produzimos conhecimentos com os coletivos (mobilização para autoria e emancipação). Pois, não haveria, nessas colaborações, uma equação na qual Timor-Leste acrescentaria conhecimentos tradicionais e o Brasil adicionaria ciências e tecnologias. Longe dessa perspectiva assistencialista e reducionista das cooperações bilaterais estabelecidas, consideramos um recorte, a partir de conhecimentos tradicionais timorenses, como meio de diálogo entre conhecimentos, e não como finalidade das relações. Fato é que a produção científica e tecnológica timorense contemporânea está documentada, como pode ser verificado, por exemplo, nos estudos de Correia (2018), que examinou a produção de Resíduos Sólidos Urbanos (RSU), em Díli, na atualidade. Ao categorizar, documentar e analisar processos envolvidos com RSU, o autor relacionou aspectos ambientais, sociopolíticos, econômicos e educacionais nas estratégias de gestão e tratamentos adotados no contexto. Denúncia e anúncio fizeram parte da pesquisa que intencionou um sistema de gestão de RSU mais adequado ao local. Contudo, para além do exame de conhecimentos científicos e tecnológicos, produzidos atualmente em Timor-Leste, o foco de nossa discussão, nesse momento, é a articulação em torno de conhecimentos tradicionais, tendo em vista tecnologias sociais.
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As discussões sobre produção de conhecimentos, provocadas por Boaventura de Sousa Santos, sobretudo em obras como “Um discurso sobre as ciências”, “Conhecimento Prudente para uma Vida Decente” e “Epistemologias do Sul”, serviram de inspiração teórica e metodológica em nossas cooperações com Timor-Leste. A ecologia de saberes parece-nos pontuar a necessidade de debatermos sobre a equidade entre os tipos de conhecimentos produzidos, sem desfavorecer conhecimentos científicos e tecnológicos, que, inegavelmente, atuam em muitos sentidos na melhoria da qualidade de vida dos sujeitos, e fazer perceber que não é necessário abdicar dos conhecimentos locais, nativos, tradicionais, das artes e filosófico, para aceitar criticamente as ciências. Na perspectiva de diálogo entre a ecologia de saberes e os estudos CTS latino-americanos educacionais, construímos um caminho possível, para desenvolvimento de tecnologias sociais, tendo em vista uma cidadania sociotécnica crítica, solidária e responsável, que valorize a autoridade analítica dos sujeitos, mobilize para a autoria e para a emancipação. Tal intenção não foi estritamente teórica, pois que atuamos em cooperação com parte do coletivo docente e discente timorense44. Uma materialidade dessa cooperação fica evidente nos trabalhos de Correia (2015), nos quais o autor resgata conhecimentos ancestrais produzidos em Timor-Leste e os articula com o ensino de Ciências na UNTL, atualmente. O autor procura valorizar, nos currículos formais de ensino de Ciências e Tecnologias, os conhecimentos tradicionais sistematizados de forma oral, entre as gerações. Um exemplo das práticas pedagógicas do autor pode ser verificado nos seus projetos de ensino e pesquisa, sobre articulações entre conhecimentos científicos, tecnológicos e tradicionais, em Timor-Leste, no que diz respeito a processos de extração artesanal do sal de cozinha, conforme figura 1, e de produção do tua-sabo (bebida alcoólica derivada de palmeiras), conforme figura 2, abaixo. 44
Verificar tecnologias sociais desenvolvidas atualmente em Timor-Leste, em Urban (2020).
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Figura 1. Processo artesanal de extração do sal
Fonte: Correia (2015) Figura 2. Produção de bebida alcoólica proveniente de palmeira
Fonte: Correia (2015)
Ao articular processos ancestrais com as experiências vivenciadas por discentes, em suas aulas de Ciências na UNTL, Correia (2015) demonstra preocupação com abordagens educacionais CTS críticas não
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deterministas, nas quais “se vislumbrem superar visões limitantes das inter-relações entre os diferentes conhecimentos, as várias possibilidades técnicas e os mais diversos coletivos” (CORREIA, 2015, p. 134). É a materialidade da ecologia de saberes em ação. Temos a produção de conhecimentos em diálogo, tendo em vista processos educacionais sensíveis aos contextos locais e mobilizados para a transformação social. Participar dessas articulações na UNTL, nos levou a alguns encaminhamentos reflexivos, tendo em vista nossas próprias condições de produção de conhecimentos, no Brasil, na época. Há um longo caminho a ser percorrido pelo Sul global, sobretudo no momento em que o mundo passa por uma pandemia, e o Brasil, após o golpe de 2016, vivencia limitações sociopolíticas nas quais instituições democráticas, direitos civis, políticos e sociais garantidos por lei são atacados diretamente. Tanto no Brasil quanto em Timor-Leste, vivemos momentos desafiadores nos quais o neoliberalismo opera em uma necropolítica45 (MBEMBE, 2018), que gerencia condições mortíferas e produz a morte, como modo de “administrar” o mundo. Como destacado na epígrafe “os povos e nacionalidades demandam o exercício pleno da democracia”, entretanto, e por isso mesmo, resta-nos buscar maneiras de possibilitar formações (no Brasil e em Timor-Leste) para maior inserção social dos sujeitos, nas lutas por garantias de direitos. Inserção que permita mobilizações, para participação em processos de tomadas de decisões conscientes, e negociadas em assuntos que envolvam produção de conhecimentos, em âmbito educacional. Mesmo que as realidades se mostrem adversas, continuamos a acreditar na construção dialógica e colaborativa de uma educação CTS crítica, responsável e solidária, como um campo de formação autoral para lutas políticas, com possibilidades da efetiva transformação social do Sul global. Transformações nas quais a cidadania sociotécnica seja Em referência ao uso do poder social e político para decretar como algumas pessoas podem viver e como outras devem morrer; ou seja, na distribuição desigual da oportunidade de viver e morrer no sistema capitalista atual. 45
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um ponto de partida e não de chegada, que tecnologias sociais sejam materialidades nas quais as contradições apareçam e sejam discutidas, que sejam um mote para mobilização democrática permanente dos sujeitos, frente aos desafios atuais e futuros.
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I can’t breathe: reflexões sobre colonialidade e Covid-19 a partir da cidade de Nova Iorque, EUA46 I can’t breathe: reflections about coloniality COVID-19 since New York City, USA I can’t breathe: reflexiones sobre colonialidad y Covid-19 de la ciudad de Nueva York, EE. UU. Soraya Franzoni Conde1 Suzani Cassiani2 1 Professora-pesquisadora dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Serviço Social, da Universidade Federal de Santa Catarina. Professora visitante na City University of New York – CAPES/PRINT. E-mail: sorayafconde@gmail.com / ORCID: http://orcid.org/0000-0002-5271-6479 2 Professora-pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica, da Universidade Federal de Santa Catarina. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas DICITE: Discursos da Ciência e Tecnologia na Educação. Bolsista Produtividade CNPq – 1C. E-mail: suzanicassiani@gmail.com / ORCID: http://orcid.org/0000-0001-8824-9342 Resumo: O objetivo deste texto é refletir sobre como a Covid-19 se manifesta na cidade de Nova Iorque, considerada o epicentro da pandemia, nos Estados Unidos da América, durante o primeiro semestre de 2020. Ele é produto de coleta diária de dados e informações, realizada durante os meses de março e junho de 2020, em meios de comunicação estadunidenses e brasileiros, em relatórios disponibilizados pela Prefeitura de Nova Iorque, além de leituras, discussões e análises coletivas feitas a partir do referencial teórico-crítico, feitas 46 Este artigo é parte das pesquisas desenvolvidas no âmbito do projeto “Repositório de Práticas Interculturais: Proposições para Pedagogias Decoloniais”, desenvolvido junto ao Programa de Internacionalização CAPES/PRINT/UFSC. Parte da coleta dos dados foi feita durante o estágio da primeira autora deste artigo, como professora visitante na City University of New York, com bolsa CAPES/PRINT/UFSC, cujo projeto de pesquisa também recebe apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc), Edital 06/2016. Versão semelhante deste texto foi publicada na Revista Interdisciplinar em Educação e Territorialidade (https://ojs.ufgd. edu.br/index.php/riet).
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com os grupos de estudos e pesquisas dos quais as autoras participam. A coleta de dados foi realizada buscando perceber quem são as principais vítimas da Covid-19 e qual o contexto em que estavam inseridas. Para isso, primeiramente, contextualizamos a cidade de Nova Iorque, destacando suas características sociais gerais, dadas pela organização espacial territorial desigual. Em seguida, analisamos os dados nos quais aparece o que denominamos de colonialismo, onde latinos, negros e mulheres constituem os grupos sociais mais fragilizados e atingidos pela pandemia, no Norte Global, revelando a existência do Sul, colonizado e explorado, dentro do Norte, explorador e colonizador. Por meio de uma perspectiva educacional ativista, crítica, transformadora e anticolonialista/anticapitalista, este artigo contribui para relevar e superar essa realidade, problematizando as desigualdades e oferecendo ferramentas críticas para um reposicionamento ativista transformador dos(as) oprimidos(as). Palavras-chave: Pandemia. Educação. Colonialidade. Abstract: The purpose of this text is to reflect on how COVID-19 manifests itself, mainly, in New York City (United States) from the relationship between the categories class, race and gender and the contribution of education in a critical perspective. It is the product of daily data and information collection carried out during the months of March and June 2020 in American and Brazilian media, in reports made available by the New York City Hall, in addition to readings, discussions and collective analyzes, based on the critical theoretical framework, carried out in groups of studies and research. For that, first, we contextualize the city of New York highlighting general social characteristics given by the unequal territorial spatial organization. Then, we reflect on the effects of the pandemic in relation to social class, race and sex / gender. Finally, we consider that class, race and gender constitute different parts of the same totality where a privileged minority exploits the majority that appears in an opposite, fragmented, divided way. It is the role of critical and transformative education to contribute to overcoming this reality, because if education does not change the world, it is an important aspect of human formation where our intentions are able to boost our actions. Keywords: Pandemic. Education. Coloniality Resumen: El propósito de este texto es reflexionar sobre cómo se manifiesta la Covid-19 en la ciudad de Nueva York, considerada el epicentro de la pandemia en los Estados Unidos de América durante el primer semestre de 2020. Él es producto de la recolección diaria de datos e información realizada durante los meses de marzo y junio de 2020 en medios de comunicación estadounidenses y brasileños, en informes proporcionados por el Ayuntamiento de Nueva York, además de lecturas, discusiones y análisis colectivos, basados en el marco teórico crítico, realizados en grupos de estudios e investigaciones de los cuales participan los autores. La recolección de datos se realizó con el fin de comprender quiénes son las principales víctimas de la Covid-19 y cuál es su contexto. Para ello, en primer lugar, contextualizamos la ciudad de Nueva York, destacando las características sociales generales dadas por la
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desigual organización espacial territorial. Luego, analizamos los datos recolectados en los que aparece la (neo) colonialidad, ya siendo latinos, negros y mujeres los grupos sociales más vulnerables y afectados por la pandemia en el Norte Global, lo que muestra la existencia del Sur colonizado y explotado dentro del Norte explorador y colonizador. A través de una perspectiva educativa activista, crítica, transformadora, anticolonialista/anticapitalista, este artículo contribuye para resaltar y superar esta realidad, problematizando las desigualdades y ofreciendo herramientas críticas para un reposicionamiento activista transformador de los oprimidos. Palabras clave: Pandemia. Educación. Colonialidad.
Introdução Não consigo respirar Disse George Floyd Com o joelho de quatrocentos anos de racismo No seu pescoço Não consigo respirar Disse Pedro Gonzaga, Um rapaz de 19 anos Asfixiado pelo peso do segurança do supermercado Extra Negro como ele Não consigo respirar Disse a mulher, Com olhar de medo, Seus pulmões destroçados pelo coronavírus Antes de ser entubada Não consigo respirar Disse a enfermeira, exausta Depois de um longo turno de trabalho Suando sob sua máscara E com a vista embaçada […] (Dzung Vo, poeta vietnamita que vive no Canadá)
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can’t breathe! Iniciamos este texto com a frase que tomou as ruas de Nova Iorque e de outras cidades do mundo, durante os protestos contra o racismo motivados pelo assassinato do segurança George Floyd, por policiais de Mineápolis, EUA, no dia 25 de maio de 2020. Dramáticas, as últimas palavras de Floyd coincidem com o estado de quem morre por Síndrome Respiratória Grave, desencadeada pelo novo coronavírus, que acomete e vitimiza milhares de pessoas, impossibilitadas de respirar. Nesse sentido, há um fio contínuo de opressões, explorações e colonialismo, ligando o assassinato de Floyd à morte de milhares de negros, negras, latinos, latinas e demais imigrantes vítimas do novo coronavírus, nos Estados Unidos, na América Latina e no mundo. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) (WHO, 2020), até o dia 5 de junho de 2020, o Planeta Terra teve 371.166 mortes confirmadas pela Covid-19, entre as quais 108 mil, nos EUA, e 30 mil, no Brasil. Em vista disso, o objetivo deste texto, para além de desvelar e refletir sobre ‘What’s going on?’, ou ‘O que está acontecendo?’, é debater sobre a forma desigual com que a pandemia se manifesta e sobre a existência do (neo)colonialismo, ou do que chamamos de Sul no Norte Global. Também, por meio dele, reafirmar o engajamento das autoras – professoras, pesquisadoras e brancas – na luta antirracista, antimachista e antixenofobia, com vistas a um posicionamento ativista transformador (STETSENKO, 2017), contra toda e qualquer forma de opressão e injustiça sociais. Concordamos com Taylor (2018), a respeito do fato de que a luta pela superação do racismo se dá de forma conjunta e solidária entre negros(as), imigrantes, latinos(as), indígenas, homossexuais, transexuais, trabalhadores e trabalhadoras brancos(as), pobres e explorados(as). Em termos metodológicos, procedeu-se à coleta diária de dados e informações durante os meses de março e junho de 2020, em meios de comunicação estadunidenses e brasileiros, em especial nos relatórios oficiais disponibilizados pela Prefeitura de Nova Iorque. Os dados foram analisados à luz de discussões coletivas, a partir do referencial
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teórico crítico, com os pesquisadores dos seguintes grupos de estudos: a Peer Activist Learning Community (Palc), da City University of New York, o Grupo de Estudos Trabalho, Educação e Infância (Getei) e o Grupo de Estudos Discursos da Ciência e da Tecnologia na Educação (Dicite), ambos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O texto está estruturado da seguinte forma: primeiramente, destacamos o contexto da cidade de Nova Iorque, caracterizada pela organização territorial segregada e pela síntese de diferentes opressões e explorações. Em seguida, a partir dos dados coletados, refletimos sobre a existência do Sul no Norte Global, a partir de reflexões sobre classe social, raça/etnia e gênero/sexo. Por último, destacamos que a crise da Covid-19 é fruto das desigualdades sociais geradas pelo sistema capitalista (MARX, 2013), caracterizado pelo (neo)colonialismo (QUIJANO, 2019) e pela necropolítica (MBEMBE, 2018), decorrentes do avanço do neoliberalismo, que aprofunda a exploração no trabalho, assim como o racismo, a pobreza, a violência de gênero e outras opressões, sobretudo em grupos sociais, historicamente explorados e colonizados. Esse (neo)colonialismo, manifesto nas formas de contratação terceirizadas, precarizadas e uberizadas, nas quais trabalhadores(as) considerados(as) essenciais não desfrutam do direito à quarentena, nem mesmo no Norte Global, é um dos problemas a serem enfrentados pela esfera educacional, entendida de forma ampla, e não restrita à escola. Se a educação não é a panaceia social, conforme sentencia Meszáros (2008), também é certo que nenhuma sociedade sobrevive sem uma educação baseada em valores correspondentes aos seus interesses. Nesse sentido, uma educação crítica, transformadora, posicionada, anticapitalista e decolonialista pode contribuir para a superação dessa realidade, problematizando essas desigualdades e favorecendo o posicionamento ativista transformador por parte de grupos historicamente oprimidos (STETSENKO, 2017; FREIRE, 2019).
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O contexto do “epicentro” da pandemia Símbolo da ideologia da liberdade individual, como expressão de um modo de vida considerado rico e libertário, no Norte Global, a densa cidade de Nova Iorque vive dias catastróficos, durante a crise causada pela Covid-19, com ruas vazias, lojas, restaurantes e comércios fechados, além do barulho constante e ensurdecedor de ambulâncias que percorrem diuturnamente as ruas. Estima-se que cerca de 2,7 mil pequenos comércios faliram e que 87% dos estabelecimentos restantes não possuem condições de pagar seus aluguéis. O índice de desemprego ultrapassa 30%, e há um movimento de ‘fuga’ da população branca, rica e privilegiada para casas de campo e de praia, localizadas em pequenas cidades, distantes dos grandes centros urbanos norte-americanos. Especuladores estimam uma forte crise imobiliária, com possibilidade de tornar Nova Iorque uma cidade fantasma, tal qual a falência da indústria automobilística fizera com Detroit, há poucos anos. Com o fechamento dos comércios e o esvaziamento das ruas, ganham destaques os invisíveis: milhares de moradores(as) de ruas, a maioria negros(as), pedindo comida e dinheiro. Com quase a metade da população do Estado, a cidade é composta pelos bairros Brooklyn, Queens, Manhattan, The Bronx e Staten Island, conforme ilustrado na Tabela 1, abaixo: Tabela 1. População dos bairros de Nova Iorque, EUA – 2018 Bairros da Cidade de Nova Iorque Bairro
População Estimada (2018)
Renda bilhões (US$)
Renda per capita
Área (km2)
(US$)
Pessoas/ km2
The Bronx
1,432,132
42.695
29,200
109.04
13,231
Brooklyn
2,582,830
91.559
34,600
183.42
14,649
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Manhattan
1,628,701
600.244
360,900
59.13
27,826
Queens
2,278,906
93.310
39,600
281.09
8,354
Staten Island
476,179
14.514
30,300
151.18
3,132
Cidade de Nova Iorque
8,398,748
842.343
97,700
783.83
10,947
Estado de Nova Iorque
19,745,289
1,701.399
85,700
122,284
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Fonte: New York (2020)
Segundo a Tabela 1, o bairro de Manhattan possui a maior densidade populacional da cidade. Presos à aparência, poderíamos olhar para os números gerais de atingidos pela Covid-19, e explicá-los pela densidade populacional. Mas, como diria Marx (2013), os dados gerais de uma população são apenas a aparência de um fenômeno. É preciso ciência, para compreender como os discursos veiculados na sociedade podem distorcer nossa compreensão da realidade. Nesse sentido, vejamos os dados, a seguir (Figura 1), sobre a contaminação da Covid-19, em cada bairro de Nova Iorque: Figura 1. Número de casos por bairro, em Nova Iorque
Fonte: https://on.nyc.gov/3GxBGiQ. Acesso em: 17 abr. 2020
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De acordo com os dados da Figura 1, o maior índice absoluto de contaminação se encontra no Queens, seguido por Brooklyn, The Bronx, Manhattan e Staten Island. Como podemos observar, contrariando afirmações superficiais sobre densidade populacional, não é de Manhattan (bairro mais denso e mais rico de Nova Iorque, cuja renda média é dez vezes maior do que a do segundo bairro mais rico) o maior índice de contaminados pela Covid-19, e sim do Queens, onde residem milhares de imigrantes latino-americanos(as), muitos(as) em situação ilegal/indocumentada, que constituem a força de trabalho mais barata e sujeita ao subemprego. Em seguida, aparece o Brooklyn, bairro também caracterizado pela forte diversidade cultural, pela mistura étnica entre migrantes de diferentes locais do mundo, e pelo alto índice de afro-americanos(as) e latinos(as). Em terceiro lugar, figura a região do The Bronx, tradicionalmente conhecida pela maior concentração de negros(as) americanos(as) da cidade, seguida da de imigrantes latinos(as). O cruzamento dos dados da Tabela 1 com os da Figura 1 nos leva a questionar a relação entre pandemia, raça e classe social. Embora o discurso veiculado inicialmente pelas mídias e pelos políticos de várias partes do mundo afirme que ‘pandemias e vírus não escolhem classe social’, a concentração do número de atingidos nos bairros de imigrantes trabalhadores(as) e de negros(as) evidencia que os recursos para a proteção contra o contágio e a recuperação econômica são apropriados de forma desigual e condicionados pelas condições de vida, que servem de critério para a decisão sobre quem deve morrer ou viver. Nesse mesmo sentido, destacamos os pacotes trilionários de ajuda destinados aos bancos e aos grandes empresários, no Brasil, nos EUA e no mundo. Em contraponto, aos(às) pobres, negros(as), imigrantes, trabalhadores(as) e deficientes, residentes nas localidades mais desvalorizadas, além de migalhas que não atingem o mínimo necessário, restam inúmeros obstáculos ao acesso, como a burocracia e as filas, locais onde o risco de contaminação é ainda mais elevado.
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Segundo Taylor (2018), o capitalismo é um sistema baseado na exploração de muitos por poucos privilegiados. Sua base está assentada sobre uma forte desigualdade social, que se utiliza de ferramentas requintadas para dividir a maioria explorada. Com base no mito da escassez, e usando do racismo e do colonialismo para espoliar, explorar, dominar e escravizar, cria uma competição entre os explorados, colocando-os uns contra os outros. Divididos pela cor da pele, pela origem, pela religião ou pelo sexo, deixam de lado a luta unificada da maioria contra a minoria. O sentimento de privilégio (real e verdadeiro) confunde os brancos, que passam a não se identificar com as pautas dos não brancos. O inverso também ocorre, e não brancos também não se identificam com as pautas dos brancos explorados e membros da classe trabalhadora. As formas confundem e criam uma falsa aparência, que, no fundo, diante da fragmentação dos explorados, beneficia apenas os exploradores. Essa ideologia da supremacia branca tem surtido efeitos sobre os EUA, fato observável nos dados sobre violência, pobreza e qualidade de vida. Nesse sentido, Taylor (2018) mostra como, nos lugares em que a ideia da supremacia branca prosperou, o movimento trabalhista declinou e instituiu-se uma verdadeira guerra entre brancos e não brancos. Ainda segundo a autora, a forma como a teoria racial e a ideologia da supremacia branca foram implementadas nos EUA (sob fortes financiamentos da Fundação Ford), culminou na disseminação de uma abordagem superficial do problema racial, tomada pelo sentimento de ódio e pela competição entre brancos e negros. Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil (vice-campeão mundial em desigualdade social), é lugar-comum o desenvolvimento da necropolítica (MBEMBE, 2018), caracterizada pelo genocídio de jovens negros(as) e pobres da periferia, em grande parte exterminados(as) pela violência policial. Conforme Gonzalez (2018) e Nascimento (1978), quanto mais pobre é a população, maior porcentagem de negros(as) ela
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tem. Ou seja, categorias como raça e classe se entrecruzam e evidenciam que o fato de ser negro(a) ou imigrante não pode ser entendido fora do contexto e das relações sociais em que se vive, tanto no Sul quanto no Norte Global, compondo a manifestação contemporânea de colonialidade ou (neo)colonialismo. Conforme Quijano (2019, p. 151): La colonialidad es uno de los elementos constitutivos y específicos del patrón mundial de poder capitalista. Se funda en la imposición de una clasificación racial/étnica de la población del mundo como piedra angular de dicho patrón de poder y opera en cada uno de los planos, ámbitos y dimensiones materiales y subjetivas, de la existencia cotidiana y a escala social. Se origina y se mundializa a partir da América.
Se, no passado, o colonialismo tinha, na escravidão de negros (as) e índios(as), no roubo de recursos naturais das colônias, no genocídio, no estupro e na violência contra mulheres e povos originários, o elemento central da acumulação primitiva capitalista (MARX, 2013), hoje, as grandes metrópoles foram substituídas por grandes transnacionais, sediadas em países do Norte Global, cuja principal forma de valorização se dá nos mercado de ações e na exploração dos recursos naturais, da força de trabalho e das commodities, nos países do Sul, a exemplo do que acontece na América Latina e na África. Com o crescimento do fluxo migratório internacional, sobretudo da população desempregada de países em crise ou em guerra, também se cria no interior dos países ricos do Norte Global um muro que divide o Norte, da elite branca supremacista, e o Sul, de latinos(as) e negros(as) explorado(as) e sem direitos garantidos, vítimas do novo coronavírus e daquilo que Mbembe (2018) chama de necropolítica. Para Mbembe (2018), a necropolítica se caracteriza pelo poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer. É executada por meio de sofisticadas tecnologias, usadas para controlar as populações pobres, consideradas uma ameaça social. Assim, ‘deixa-se’ que alguns morram e protegem-se os outros. O corpo ‘matável’ é geralmente definido pelo
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critério da raça; logo, os não brancos são mais ‘matáveis’ do que os brancos, independentemente da classe. O autor explica que o uso desse termo tem a função pedagógica de demonstrar, no mundo contemporâneo, as mais diversas formas com que se revestem as estruturas criadas para matar, controlar e destruir vidas. Ou seja, certas vidas valem mais do que outras, e aquelas que podem ameaçar a manutenção do status quo e da propriedade privada capitalista devem ser controladas. Se, por um lado, toda sociedade necessita de normas gerais para regular a vida social, por outro, a atual forma social cria espaços de morte, transformados na principal forma de controle e dominação. Mbembe (2018) afirma que quem morre em espaços como estes são grupos geralmente selecionados pelo critério biológico e com base no racismo. O mecanismo é sempre o mesmo: determinado grupo aparece como inimigo nos discursos gerais – midiáticos, políticos e fictícios –; em seguida, seu extermínio aparece como solução para o que a burguesia intitula de paz. Assim, a violência é justificada como um ‘mal necessário’, ou melhor, como mecanismo de segurança e de manutenção da paz burguesa e do direito à propriedade privada. O mesmo poderia ser dito do controle policial e militar existente nas fronteiras dos EUA com México, da guerra norte-americana contra o Islã e da violência policial nas favelas e periferias do Brasil e do mundo, onde predominam populações não brancas. Voltando aos dados sobre a cidade de Nova Iorque, observamos que é exatamente nos bairros em que os(as) trabalhadores(as) migrantes de origem latina e negra residem que se encontram os maiores índices de concentração da Covid-19, evidenciando que a ocupação do espaço e do território não é neutra, mas sim a expressão das forças sociais em disputa (VENDRAMINI; CONDE, 2020). Segundo Milton Santos (1993, p. 81), o valor de cada pessoa depende do lugar em que ela está, pois “[...] o seu valor como produtor, consumidor, cidadão, depende de sua localização no território”.
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O Sul no Norte Global: manifestações da Covid-19 em relação à raça, ao sexo/gênero e à classe Produto da segregação social e racial monstruosa e intrínseca à história dos EUA, a população negra nova-iorquina, seguida pelos imigrantes latino-americanos, compõe o grupo social mais severamente atingido pela Covid-19: Figura 2. Contaminados, curados e mortos pelo COVID-19, por origem racial
Fonte: https://on.nyc.gov/3NG8WXy. Acesso em: 20 abr. 2020
Observamos que, nas três categorias sistematizadas (doentes não hospitalizados; doentes hospitalizados e curados; e mortos registrados), os(as) negros(as) americanos(as) e os(as) imigrantes latinos(as) são os maiores grupos de atingidos, seguidos(as) dos(as) brancos(as) americanos(as) e dos(as) asiáticos(as). A relação entre doentes não hospitalizados, curados e mortos é o dobro entre negros(as) americanos(as) e imigrantes latinos(as) do que entre brancos(as) e imigrantes asiáticos(as). Conforme Wilhians (2020), os dados da Covid-19 expressam o racismo e a exploração estrutural e institucional presentes em três aspectos: 1) no número de contaminados, em virtude de a população negra (e latina) ter menos condições de realizar quarentena, por viver nas piores condições de trabalho, renda e moradia; 2) no número dos que conseguem atendimento e tratamento: num país sem sistema público universal de saúde (paraíso dos planos privados, com altíssimo índice de
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endividamento pessoal por tratamentos de saúde), negros(as) e imigrantes são impedidos(as) de acessar os serviços de tratamento; 3) no número de curados e de mortos: após acessarem o serviço dos hospitais, ocorre uma segregação, oriunda do fato de os(as) médicos(as) e enfermeiros(as) serem formados(as) para atender brancos(as) e ricos(as), critério que pesa na hora de escolherem quem deverá ser tratado primeiro. Também são comuns os casos de médicos(as) que entendem que os(as) negros(as) possuem mais resistência à dor do que os(as) brancos(as) e, por isso, utilizam dozes menores de anestésicos durante procedimentos cirúrgicos ou tratamentos. O autor e ativista ainda destaca que os dados sobre os contaminados devem ser interpretados cuidadosamente, pois o problema racial é errônea e comumente atribuído pela supremacia branca à origem biológica e hereditária – ou seja, há uma nova eugenia operante –, quando, na realidade, ele é produto de uma estrutura social desigual, racista e xenófoba, que condena pobres, negros(as) e latinos(as) às piores condições de vida e de acesso à saúde, alimentação, moradia e direitos (WILHIANS, 2020). Os discursos de eugenia, que lamentavelmente ainda se fazem presentes na vida política e na ciência, em razão do avanço da crise capitalista e do pensamento conservador da elite branca no Norte Global, mostram uma ideia de supremacia branca originalmente veiculada pelos colonizadores que escravizaram os nativos na América, na África e na Ásia. Nos territórios invadidos, alimentaram uma subjetividade que alude à ideia de que o homem branco e europeu é superior aos outros humanos. Essa noção de colonialidade e racismo, ainda presente nos dias atuais, tem um efeito devastador, que subalterniza, inferioriza e mata quem não se enquadra no padrão ocidental higienista (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007) e justifica a exploração e a expropriação dos não brancos. Nesse caminho, a maior parte das pessoas negras e dos(as) imigrantes (latinos/as, no caso dos EUA) está submetida às piores condições de vida e de
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trabalho, inclusive no Norte Global, como evidenciado pelos dados da cidade de Nova York. Assim, não brancos(as) são impossibilitados(as) de manter o distanciamento social, de ficar em casa e de ter acesso à boa alimentação e aos produtos de sanitização. Nos EUA, assim como no Brasil, as maiores taxas de hipertensão, diabetes e doenças cardíacas também se encontram entre a população negra, todas elas relacionadas às condições de vida, especialmente à falta de acesso à alimentação saudável e aos serviços de saúde (GASPER, 2020). O problema ganha proporções ainda maiores, quando percebemos que os EUA são o país com o maior índice de imigrantes do mundo (sobretudo de países asiáticos e latinos), a maioria dos quais permanece trabalhando ilegalmente e é submetida às piores condições de trabalho, compondo uma parcela disposta a aceitar, por necessidade, os trabalhos mais vis e os piores salários. Assim, a quarentena, além de ser possível apenas para uma pequena parcela da população, requer certas condições de infraestrutura, como, por exemplo, a manutenção das prateleiras dos supermercados cheias, para que todos os que possuam condições de comprar consigam se manter em casa e bem alimentados. Mas quem produz esses alimentos e materiais? No interior dos EUA, cerca de 80% da produção agrícola têm como base a exploração de milhares de imigrantes latino-americanos(as) ilegais e sazonais, considerados(as) trabalhadores essenciais durante a pandemia, não obstante sejam os(as) principais atingidos(as) pela Covid-19, no interior do país. Mas como poderia um trabalho essencial ser realizado por um(a) migrante ilegal? Essa contradição, insolúvel pela base de exploração do trabalho capitalista, foi revelada pelo New York Times (JORDAN, 2020) em reportagens que mostraram fazendeiros americanos reclamando de que as deportações de imigrantes de 2017 elevaram os salários dos trabalhadores rurais e diminuíram as taxas de lucro (VENDRAMINI; CONDE, 2020).
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Durante a crise da Covid-19, as questões que envolvem sexo/gênero, entendidas para além da determinação biológica e feminina, também merecem uma atenção especial, que suplante a aparência. Os dados oficiais divulgados pela Prefeitura de Nova Iorque evidenciam que o número de mulheres contaminadas é menor do que o de homens: Figura 3. Número de contaminados/as por sexo, na Cidade de Nova Iorque
Fonte: https://on.nyc.gov/3NI2LlH. Acesso em: 20 abr. 2020
Não fossem os elementos históricos que envolvem o trabalho feminino e reprodutivo, os dados poderiam evidenciar um favorecimento inato do sexo feminino entre as pessoas contaminadas. Entretanto, a história mostra que, desde os primórdios da acumulação primitiva de capital, as mulheres foram impedidas de acessar o trabalho remunerado e permaneceram mais restritas ao trabalho privado, doméstico e de cuidados, partes essenciais da reprodução familiar e do futuro do trabalho explorado na sociedade capitalista (FEDERICI, 2014). Impossibilitadas de acessar o trabalho assalariado, fato intensificado pelos cercamentos da acumulação primitiva e pelo desenvolvimento do trabalho industrial, a concentração da pobreza se tornou maior entre as mulheres. Embora quase a metade da força de trabalho remunerada no mundo, hoje, seja formada por mulheres, elas ficam com pouco mais de 10% da riqueza produzida mundialmente. Quando
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entram no mercado de trabalho, além de assédio e violências constantes, recebem salários mais baixos e exercem cargos de menor prestígio e poder de decisão (HIRATTA, 1993). Quando há divisão de tarefas domésticas, as mulheres permanecem desempenhando o trabalho privado de reprodução e cuidados (cozinhar, passar, lavar, atender, educar e dar afeto), enquanto os homens costumam assumir as compras, pagar contas, entre outras atividades que implicam sair de casa e circular socialmente (CONDE, 2018). Nesse sentido, embora o gênero não possa ser pensado sem referência ao sexo, ele vai além da esfera biológica, uma vez que a cultura é o que conforma o padrão do que entendemos por mulheres ou homens. O mesmo raciocínio pode ser estendido à raça e à classe. Ambas não podem ser unicamente definidas pelas esferas econômica ou biológica, mas sim pela identidade e a subjetividade daqueles que vivem a condição de sua classe e de sua raça (SAFFIOTTI, 2013; SHIELDS, 2020). A pandemia ocasionada pelo novo coronavírus tem mobilizado um gigantesco trabalho nas áreas dos cuidados e da saúde. Conforme relatório recém-publicado pela ONU Mulheres Brasil (MLAMBONGCUKA, 2020), cerca de 70% da força de trabalho do setor de saúde é composta por mulheres, proporção que alcança 85% na enfermagem. Ou seja, o trabalho de cuidados, majoritariamente desempenhado por mulheres, está sendo fortemente impactado pela pandemia. Expostas ao risco constante de contaminação, têm se tornado comuns as paralisações e mobilizações em prol de equipamentos de proteção de qualidade e em número suficiente. Como o trabalho de cuidados é social e economicamente desvalorizado, cuidadoras e enfermeiras frequentemente acumulam vários empregos. Tanto nos EUA como em outras partes do mundo, as mulheres pobres, negras e latinas constituem a principal força de trabalho em atividades que requerem cuidados, pelas quais perpassam claramente o racismo e o colonialismo, que destinam a certos grupos femininos posições de menor prestígio e remuneração.
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Também, a desvalorização do trabalho de cuidados é reflexo da desvalorização histórica da esfera da reprodução no sistema capitalista, na qual o trabalho produtivo, majoritariamente desempenhado por homens fora da esfera doméstica, recebe maior prestígio e valorização monetária. Essa lógica despreza a inexistência real da dicotomia entre natureza e cultura, objetividade e subjetividade, produção e reprodução, e se manifesta nas compreensões binárias e equivocadas sobre classe e sexo/gênero ou classe e raça. Além disso, o aumento do isolamento, dos cuidados e dos contaminados impacta a vida feminina, constantemente dividida entre duplas/triplas/quádruplas jornadas de trabalho. Os cuidados são agora redobrados entre os idosos da família (mais vulneráveis) e os filhos (sem escola nem espaços de socialização fora de casa). Quando os homens em idade produtiva de trabalho adoecem, são geralmente cuidados pelas mulheres, sejam elas companheiras, amigas, irmãs, mães, filhas, avós ou esposas. Nesses trabalhos, constituem o front de batalha, portanto estão mais expostas e sobrecarregadas com a pandemia. Em todos os casos, as mulheres pobres e trabalhadoras, por não terem condições de pagar pelo serviço de outras cuidadoras nem por outros serviços essenciais, são mais afetadas e sobrecarregadas, sejam elas negras, latinas ou brancas. Conforme Federici (2014), a questão do cuidado, que sobrecarrega mulheres (sobretudo negras, latinas e pobres), desde o período colonialista da acumulação primitiva do capital, intensifica-se em momentos de crise (como a pandemia) e evidencia a importância da esfera da reprodução, na família e na sociedade. Nesse sentido, os cuidados que as mulheres desempenham dentro de casa, nos hospitais e escolas são fundamentais para o futuro do trabalho na sociedade capitalista. A histórica desvalorização dessa esfera é reflexo de uma supervalorização do que gera lucro imediato, expressa em movimentos conservadores pela abertura de comércios e instituições fechadas durante a quarentena.
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Como se não bastassem tais dados, permanecer em casa não significa estar segura. No mundo todo, o isolamento social tem culminado no aumento da violência doméstica: 30% na França, 18% na Espanha, 30% em Singapura, 50% no Brasil e 35% nos EUA (BORGES; LARA, 2020). Esse fato pode ser explicado pelo confinamento com companheiros violentos e altamente tensionados pela crise financeira e pela impossibilidade de prover o sustento familiar, em uma sociedade em que valores patriarcais e tradicionais cobram dos homens a responsabilidade principal pelo sustento da casa. A maior parte das violências ocorre na frente das crianças, em virtude das escolas estarem fechadas. As casas de acolhimento de mulheres em situação de violência também não estão aceitando novas moradoras, por conta do risco de contaminação. Mais uma vez, é a mulher pobre e trabalhadora, negra e imigrante quem sofre os maiores efeitos da pandemia, o que evidencia como a realidade da crise gerada pela Covid-19 articula de forma muito evidente a relação entre sexo/gênero, classe e raça como um todo estruturado, articulado e inseparável, expressão da forma combinada entre capitalismo avançado e colonialidade.
Considerações finais: a contribuição da educação para um posicionamento ativista transformador dos oprimidos contra o opressor O/a leitor/a ingênuo/a poderá questionar sobre qual a relação da educação com os elementos, dados e reflexões destacadas no texto. Entendemos que se é papel da ciência ultrapassar a aparência, também é desvelar os véus ideológicos presentes em meios de comunicação de massa e em teorias burguesas racistas e xenófobas. Entender porque negros e latinos se contaminam e morrem mais de COVID-19, no interior de uma sociedade fundada na desigualdade social, no racismo e na exploração, é fundamental para romper com discursos higienistas que
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explicam os problemas sociais com base em uma abordagem inatista que desconsidera as condições de vida da população que adoece. A abordagem crítica e posicionada utilizada na análise dos dados presentes no texto é fundamental em práticas educativas voltadas à transformação social, sejam elas escolares ou não. É a partir dessas problematizações que o ensino e a ciência conseguem se conectar com a realidade de exploração e opressão da maior parte da população e oferecer ferramentas intelectuais que subsidiam o aparecimento do pensamento crítico nas novas gerações. Os dados relatados e as problematizações realizadas sobre raça, classe e gênero, incitam à reflexão sobre a importância de uma educação anticolonialista/ anticapitalista. Desvelar “What’s going on?” na vida real dos sujeitos do processo educativo é parte de uma abordagem educacional revolucionária e não bancária (FREIRE, 2019). Assim, a educação ativista e transformadora supera afirmações naturalistas/inatistas/individualistas acerca do que está acontecendo com os principais atingidos pela Covid-19 (STETSENKO, 2017; STETSENKO; SAWYER, 2020). Se a educação não muda o mundo, ela é um aspecto importante da formação humana, no qual se encontram as intencionalidades capazes de impulsionar nossas ações e ativismos críticos contra o status quo, o neocolonialismo, o racismo e o machismo. De forma geral, a educação pode servir ao consenso ou ao dissenso, à manutenção ou à transformação. Suas ferramentas intelectuais podem servir para criar seres inteligentes e habilidosos, mas destituídos de um posicionamento crítico sobre o que está acontecendo na vida real, tal como desvelado por este texto. Conforme Gramsci (1968), a educação não pode ser apenas um meio de instrução técnica e retórica. O educador precisa ser verdadeiro e, num clima de liberdade, superar a mera instrução desenvolvendo o caráter dos estudantes na luta contra a injustiça social. Na opinião do
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autor, educadores medíocres podem conseguir que estudantes se tornem mais instruídos, mas não serão verdadeiramente cultos e críticos. A escola e a educação precisam ser ligadas à vida e compor uma verdadeira arma da crítica (MARX, 2013). Assim, este texto, elaborado a partir de dados sobre a manifestação da Covid-19 em Nova Iorque, epicentro da pandemia nos Estados Unidos da América, durante o primeiro semestre de 2020, revela a forma desigual com que ela atinge pobres, negros(as) e migrantes, evidenciando a existência de um ‘muro’ colonialista, separando o Sul dentro do Norte Global. Há um Sul não branco e oprimido, que tenta respirar dentro do Norte Global, evidenciando que as últimas palavras de Floyd, que inspiraram nosso título, canalizam milhares de vozes negras e latinas, tal qual expressam os dados e as reflexões, ao longo deste texto. As mulheres também são fortemente afetadas pelo histórico papel de cuidadoras a elas atribuído, e pela violência doméstica a que estão submetidas durante o confinamento com companheiros violentos.
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DOI: doi.org/10.29327/565971.1-6
Da periferia do aprendizado à centralidade do que somos: diálogo Brasil-Moçambique From the learning periphery to centrality of what we are: Brazil-Mozambique dialogue Roberth De-Carvalho1 Adamo Devi Cuchedza2 1 Vinculado ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica, da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. E-mail: orientador.roberth@gmail.com / ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6712-1630 2 Professor-pesquisador da Universidade de Licungo, Beira, Moçambique. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica, da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. E-mail: acuchedza@gmail.com / ORCID: http://orcid.org/0000-0002-0280-6687
Resumo: Ex-colônias portuguesas, a Colônia do Brasil do Reino de Portugal (entre 1500-1822; Brasil) e a África Oriental Portuguesa (1501-1975; Moçambique) foram/são palcos de lutas e resistências que buscam outro tipo independência simbólica: descolonizar-se para reconectarem a suas origens. Do ranço de economias baseadas no tráfico da natureza (humana e não-humana), de saberes científicos, de técnicas e de tecnologias, a naturalização de ideias hipermercantilizadas insiste no espaço e no tempo da produção de múltiplas colonialidades. Por atravessarem áreas das Ciências da Natureza e da Matemática, destacamos, como objetivo central, deste ensaio, dialogar com nossas próprias histórias, despertando educadores em Ciências e em Matemática, ou de quaisquer outros campos de conhecimento, a deflagrarem condições de significação política, afetiva e ideológica, em seus saberes-sentidos escolares. O resultado de nosso ‘diálogo de saberes’ aponta caminhos para revisionar o Ensino de Ciências e de Matemática, na escola básica do Sul global. Palavras-chave: Diálogo de saberes. Brasil-Moçambique. Ensino de Ciências e de Matemática.
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Abstract: Ex Portuguese colonies, the Colônia do Brasil do Reino de Portugal (between 1500-1822; Brazil) and Africa Oriental Portuguesa (1501-1975; Mozambique) were/are stages of fights and resistances who seek another type of symbolic independence: decolonize themselves to reconnect with their origins. From the rancidity of economies based on the trafficking of nature (human and non-human), scientific knowledge, techniques and technologies, the naturalization of mercantilist ideas insists on the space and time of colonialism. For crossing areas of Natural Sciences and Mathematics, we point out as the main objective of this essay to dialogue with our stories, awakening educators in Science and Mathematics, or any other fields of knowledge, to unleash conditions of political, affective and ideological significance in their school knowledge-senses. The result of our ‘dialogue of knowledge’ points out ways to revise the teaching of science and mathematics in the basic school of the global South. Keywords: Dialogue of knowledge. Brazil-Mozambique. Science and Mathematics Teaching.
Introdução O universal implica uma relação de inclusão a alguma coisa ou entidade já constituída. O em-comum tem como característica essencial a capacidade de ser comunicado e partilhado. Ele pressupõe uma relação de copertencimento entre múltiplas singularidades. É graças a essa partilha e a essa comunicabilidade que produzimos a humanidade. Esta última não existe completamente feita de antemão. (MBEMBE, 2019, p. 122, grifo do original).
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NICIAMOS com a compreensão de que a empresa colonial (CÉSAIRE, 2017), que constituiu e formulou corpos, raças, conhecimentos, culturas, tecnologias, imaginários e memórias, os inteligiu por uma linguagem universal, reificante, produzindo-nos, como falantes e ouvintes (em que incluímos comunidades cegas/baixa visão e surdas), dispersos por contextos socioculturais, no mundo pós-colonial.
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Situados no Brasil e em Moçambique, dialogamos, entre a reconfiguração do espaço e a reorientação do tempo de nossas histórias, sob um estigma comum: a colonização. Inscritos na memória, como ex-colônias, Brasil, então conhecido como Colônia do Brasil do Reino de Portugal (entre 1530-1815), e Moçambique (entre 1752-1975), passando também pelo nome de África Oriental Portuguesa, ambos têm se desafiado por resistências atomizadas (de coletivos negros; feministas; LGBTQIA+; indígenas; pessoas com deficiência), na busca de uma importante independência simbólica: a reconexão com o originário. Entendemos pela categoria do originário o que se endereça/retorna ao ponto de partida, ao gene histórico-cultural contido na tradição de nossas identidades – melhor seria identificação, “como um processo em andamento” (HALL, 2019, p. 24); assim como, psicanaliticamente, se (re)(des)conectam partes de subjetividades fragmentadas, embora, aqui, somos tomados pela ancestralidade. As sabedorias ancestrais ensinam que não existe no universo o grande e o pequeno. O que há é a harmonia entre as coisas que possuem tamanhos distintos, sem relações de grandeza que, desprovidas de sentidos, não acrescentam nem diminuem nada. (SIMAS; RUFINO, 2020, p. 7).
E, isso nos afeta, pois, fragmentados no espaço e no tempo, nem grandes nem pequenos, nossos corpos, sexos/gêneros, mentes, almas/sensações foram deslocados, cartesianamente, em fragmentos, para compreendermos o mundo, pelo viés ideológico de uma racionalidade instrumental da Ciência. Educados em um projeto de ciência moderna, positivista, e sob uma ideologia mercantilista de concepções/subjetividades tecnocientíficas, artefatos, técnicas, tecnologias, sentimo-nos constituídos por um imaginário que opera hegemonicamente e em subterfúgio: a colonialidade.
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Com essa compreensão, situamos uma primeira crise epistêmica do Sul global: o pensamento-linguagem ocidental que produziu/produz a ideia de Ciências da Natureza e Matemática, forjando a unicidade do ente natural, ou seja, de uma natureza unívoca, líquida, certa, monolítica, dessubjetivada, capitalizada no/pelo centro capitalista do mundo. Assim, “Em uma estrutura sócio-cognitiva voltada para a uniformidade do saber numa acepção centro-periferia, o saber é interpretado como algo universal, e como tratar e implementar alternativas?” (CASSIANI; VON LINSINGEN; PEREIRA, 2016, p. 395) Com o que das Ciências da Natureza e da Matemática (e aqui pretendemos ampliar e transgredir suas inteligibilidades) aprendemos e apreendemos, desafia-nos, como professores, pela novíssima acepção, nossa busca por “Resistir, (re)Existir e (re)Inventar” (CASSIANI; VON LINSINGEN, 2019) a “relação de inclusão” universal, que nos conduziu a tais entidades disciplinares; relação essa que é destacada na epígrafe deste texto, a partir do filósofo camaronês Achille Mbembe (2018). E, ao tratarmos dessa primeira crise, nos damos conta de formas e conteúdos que têm atravessado, historicamente, a escola básica no Sul global, em suas nuances de: pública e gratuita - atributos de intensos embates neoliberais; presencial – pauta que tem acirrado tensões, quanto a formatos e modalidades por projetos e agências tendenciosos: os cartéis para a educação a distância ou o homeschooling (educação doméstica ou domiciliar); laica – identidade que tem sido relativizada por discursos nacionalistas e conservadores, como a exemplo da nefasta proposta de um projeto educacional brasileiro intitulado “escola sem partido”; inclusiva e democrática – nossa bandeira constante, como educadores, mas que impera como principal e estratégico desafio, pelos ambientes de tantas desigualdades socioeconômicas, étnico-raciais e de gênero, com os quais lidamos. E, embora, essa mesma escola se institua com tantas incongruências e atravessamentos em seus qualificativos, foi ela quem nos iniciou nessa ‘formação discursiva’ (ORLANDI, 2017), que muito revela do Eu, Tu, Ele que nos constitui, bem como
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marca nossos quefazeres freireanos, como sujeitos negros, sociotécnicos, afetivos, ambientais, políticos, históricos. E, como professorespesquisadores. Situamos, a partir disso, a segunda crise epistêmica: o que as Ciências da Natureza e a Matemática têm feito/produzido para descolonizar terras, territórios, águas, fauna, flora, minerais e existências/corpos? Ou melhor, a crise das naturezas humana e não-humana, como entes que compreendemos urgentes de descolonização, e em fuga da voracidade do projeto neoliberal. De tal modo, buscamos entender tais condições de significação por outra ‘razão negra’ (MBEMBE, 2018); pelas resistências, ideias e imanências indígenas (KRENAK, 2019); por ‘saberes-sentidos’ (FERREIRA; DE-CARVALHO, 2019). Enfim, construindo vieses de ‘cidadania sociotécnica’ (JACINSKI; VON LINSINGEN; CORRÊA, 2019), plurais e autóctones. Sob nossos sentidos, pelo desafio do lugar/posição de ex-colonizados. Marcamos a preposição sob, uma vez que queremos situar nossas intencionalidades de interlocução, de um lugar e de uma posição discursivos (ORLANDI, 2017; 1996) como dois professores-pesquisadores, assim autodeclarados: negro-brasileiro e negro-moçambicano, ou seja, afetados/produzidos por múltiplos fenômenos de colonialidade. Mas, principalmente, racializados. O cientista está submetido à memória de seu saber. O que tem de ser atingido é justamente essa relação com o interdiscurso, com a memória para poder significar outra coisa. Transformar-se, desenvolver-se. Transferir: produzir novas versões, efeitos metafóricos, deslizamentos de sentidos, que permitam o avanço científico. (ORLANDI, 1996, p. 139).
Buscamos, pelas memórias de nossos saberes, mobilizar interdiscursos predicativos de gestos e modos de escrever, olhar, ouvir, ler, ser, fazer, em que (re)produzimos o mote ideológico da tecnociência e
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da sociocultura que nos tem acometido, como sujeitos sociais. Versões desse diálogo, que sustentamos e inferimos, como agentes institucionais, para os avanços que buscamos no ensino de Ciências e de Matemática. Acreditamos, assim, que desse lugar ou posição discursiva, sobre os quais queremos deter nossa análise, cabe antevermos outros sentidos de mundo, que possibilitem que este texto passe por um prisma decolonial, no qual os discursos se apresentem ponderados, na historicidade de nossas ‘condições de produção’ (ORLANDI, 2017). Dessa forma, enunciando-nos como o Outro, no ensino e na pesquisa em Educação em Ciências e em Matemática, e nos quais nos apresentamos historicamente identificados, para constituir nosso fazer-ser de resistência à geopolítica de subalternização do Sul global. Para tanto, destacamos, a partir da linguista brasileira Eni P. Orlandi, o objetivo deste ensaio: Como a narratividade pode nos conduzir a compreender semelhanças e diferenças que se alojam nesses processos de significação, se pensarmos de que natureza é este ‘outro’ e este ‘Outro’ que aí se instalam, ou de que espaços tratam-se nesta outra geografia/cultura? (ORLANDI, 2017, p. 89).
Por essa ênfase discursiva, atravessamos algumas camadas de nossas histórias particulares. Partimos de encontros dialógicos, entre nós, Outras, Outres e Outros – pelo exemplo da interlocução entre Paulo Freire e Sérgio Guimarães (2011) –, que, aqui, se concentram entre Brasil (com um afro-brasileiro) e Moçambique (com um moçambicano), dialogando com nossas próprias histórias. Assim, buscamos refletir sobre saberes-sentidos, em condições de significação política, afetiva e ideológica, para a perspectiva de mundo que pretendemos, em propositiva transformação.
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Sentidos Metodológicos O que queremos dizer com sentidos metodológicos expressa uma profunda intencionalidade, no que temos creditado aos pensamentos decoloniais. Estes, plurais, pois, interculturalmente situados, bem como ao revisionismo sociocultural que temos pretendido, a partir dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ECTS) Latino-americanos, em perspectiva afrorreferenciada, para que possamos ser inseridos, como sujeitos sociais do Sul global, (re)existindo, dentro de nossas resistências. Assim, começamos a situar nosso caminho de chegada, ao deflagrarmos ‘a centralidade do que somos’. E, nesse aspecto, em particular, convergem os sentidos revisionistas que temos pretendido em nossas trajetórias pessoais, profissionais, relacionais, educativas, éticas, valorativas, ancestrais, de conexão com o humano e o não-humano – aqui, compreendendo o que afeta a formação discursiva, quanto às naturezas da ciência (NdC) e da tecnologia (NdT) (cf. DE-CARVALHO, 2020). Sentidos de justiça social e cognitiva, em relações Sul-Sul, endógenas, de ruptura com a teoria da modernização da periferia e da semiperiferia, que tem subsumido importantes práticas socioculturais, forjando, no tempo e no espaço, a NdC e a NdT. A primeira e possivelmente a mais importante tentativa foi da teoria da modernização. Em lugar de separar o estudo do mundo ‘civilizado’ do estudo do resto do mundo como se fossem lugares epistemológicos distintos, a teoria da modernização tentou historicizar as diferenças entre os dois espaços. Ela argumentava que o mundo ‘desenvolvido’ não era ontologicamente diferente do mundo ‘subdesenvolvido’, mas apenas estava à frente dele no tempo. Os países subdesenvolvidos poderiam alcançar os países desenvolvidos aprendendo com os modelos dos países mais avançados e fazendo certas mudanças essenciais nas suas práticas sócio-culturais. (WALLERSTEIN, 2012, p. 19).
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Brasil-Moçambique, em um ‘corredor de saberes’ (GASPARETTO, 2019), fundados por sociedades tribais e originárias (reinos dos macuas, bantus, mwenemutapas e zulus, ao sul da África, incluindo o atual país de Moçambique; e, os assurinis do Xingu, caiapós, tapirapés, ricbactas e bororos, em Pindorama, atual Brasil), formas-conteúdos que deviam forjar e mobilizar nossa identidade relacional com a natureza, quanto à produção histórica, artístico-cultural, social, econômica e tecnocientífica, assim como relações ancestrais de alteridade. Essa é a outra NdC e NdT que temos reclamado, a originária. Mas, Enquanto isso, a humanidade vai sendo descolada de uma maneira tão absoluta desse organismo que é a terra. Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes — a sub-humanidade. Porque tem uma humanidade, vamos dizer, bacana. E tem uma camada mais bruta, rústica, orgânica, uma sub-humanidade, uma gente que fica agarrada na terra. Parece que eles querem comer terra, mamar na terra, dormir deitados sobre a terra, envoltos na terra. A organicidade dessa gente é uma coisa que incomoda, tanto que as corporações têm criado cada vez mais mecanismos para separar esses filhotes da terra de sua mãe. (KRENAK, 2019, p. 14).
Organicidade instituída em línguas, afetos, crenças, leis, mitos, rituais, saberes, cuidados, e que tem sustentado a Terra, a natureza do ser e do fazer, na proposição de outros sentidos de humanidade: sentidos originários. Se o pós-guerra do ‘sistema-mundo centro’ (WALLERSTEIN, ibid.) foi um divisor de águas para a metodologia das ciências sociais – considerando-se o universo do conhecimento institucionalizado, validado historicamente, sob a chancela de centros hegemônicos do saber –, avaliamos que nossas existências originárias, assim se recortaram
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pelo lado dos não-ocidentais (ou nós-Outros), sob a perspectiva antropológica de sociedades tribais, alcançando, quando muito, o conceito de civilizações avançadas, relativamente às referências de conhecimento científico e tecnológico do centro hegemônico. Como situa Wallerstein (ibid.): O estudo do mundo não ocidental foi dividido entre a antropologia, que estudava os pequenos grupos, as assim chamadas ‘tribos’, e os estudos orientais, investigando as grandes, mas consideradas congeladas, ‘altas’ civilizações. Este padrão de estudo teve problemas para lidar com as novas realidades pós-1945. Isto provocou um debate sobre se, e de que modo, se poderia adaptar as premissas dominantes para torná-las mais relevantes a estas novas realidades globais. (p. 12).
Atentos a sentidos metodológicos dessa natureza originária do ser e do fazer, pelo ‘corpo-memória’ (ORLANDI, 2017) de sociedades livres e autogestionadas (pré-invasão, escravização, subjugo), temos entendido o ‘diálogo de saberes’ entre povos, entre Ciências, pela linguagem matemática, democraticamente participativa. Até, mesmo, porque, como demarca Wallerstein (2012), fomos transmutados, vez em que houve um invasivo “Movimento no tempo e no espaço, e movimento na identidade, afetando o corpo, o sujeito, os sentidos.” (ORLANDI, ibid., p. 89). Disso, emerge nossa inquietação quanto a sentidos que operam em nossos processos de significação histórica, tanto pela forma-conteúdo da diferença quanto da semelhança, compreendendonos como educadores, negros, cientistas, pesquisadores, afro-latinoamericano e africano.
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Para tanto, entendemos, a partir da obra Dialogando com a própria história, de autoria dos educadores brasileiros Paulo Freire (1921-1997) e Sérgio Guimarães47 (1951-), a qual tomamos para explicar que: nós estamos afirmando [...] que ninguém aprende fora da história. [...] que ninguém aprende individualmente apenas. Quer dizer, nós somos sócio-históricos, ou seres históricosociais e culturais, e que, por isso mesmo, o nosso aprendizado se dá na prática geral da qual fazemos parte, na prática social. Só que nós, [...], reconhecemos que não é possível afogar, fazer desaparecer a dimensão individual de cada sujeito histórico que se experimenta socialmente. (FREIRE; GUIMARÃES, 2011, p. 24).
Ou seja, há algo intrínseco em nossas individualidades que sobreleva o papel no aprendizado da história, melhor dizendo, “na feitura da história inclusive, é fazendo a história que a gente aprende a história. [...] esquecer isso é que é cometer [...] um baita erro, um imenso erro, que foi o erro do mecanicismo marxista.” (ibidem). E, como tal, influiu, sobremaneira, na racionalidade instrumental, que perpassa o Ensino de Ciências e de Matemática, em que um viés de teoria científica supriu a teoria das gentes. Princípios, postulados, leis, axiomas, teoremas, tudo se definiu por sentidos de uma dialética prescritiva, resolutiva, indutivo-dedutiva da práxis; esvaindo-se, assim, o real da história de sujeitos e sujeitas sociais. O real das histórias, que trazemos, se iniciou na tarde de 29 de maio de 2019, no primeiro encontro da disciplina condensada: Estudos Decoloniais, Epistemologias do Sul e Temáticas Socioambientais na Educação Científica e Tecnológica, ofertada pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica (PPGECT), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, Brasil, para estudantes de mestrado e doutorado. A referida disciplina fora ministrada pela pesquisadora brasileira Tatiana Galieta, da Universidade do Estado do Rio 47 Como representante do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), atuou em países da América Latina, do Caribe (Haiti, Honduras) e da África (Marrocos, Moçambique, Angola e GuinéBissau).
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de Janeiro (UERJ), em parceria com o pesquisador brasileiro Irlan Von Linsingen, da UFSC, que propuseram uma aproximação de impressões, compartilhamento de ideias, discussões da área de Educação em Ciências, sob perspectivas emergentes e transgressoras, sobre a natureza (humana e não-humana), como possibilidade de produção decolonial de conhecimentos científicos e tecnológicos. Essa disciplina resultou na organização de um blog, para registro de resultados e discussões, impactando pesquisas e estudos das pessoas participantes, sendo intitulado: ECT & Decolonialidade: reflexões e diálogos48. Em 30 horas-aula, de múltiplas sensações, percepções, afetos, interlocuções, sensos e contrasensos, nossas (e transpassadas por tantas outras) histórias se revelavam por subjetividades que perpassam nossas pesquisas, em leituras, vivências, escutas, fazeres, negações, dizeres, errâncias, ensinamentos, aprendizagens, ou seja, pelo flagrante do que somos, a partir de nosso lugar, como pesquisadores da periferia Sul global. Pois, ali se deram trocas e compartilhamentos, profícuos e insurgentes, entre estudantes latino-americanos/as e sul-africano. Em certa medida, associamos a outros sentidos metodológicos, pelo artigo: Saberes e interculturalidad: dilemas y aprendizajes en una experiencia con afrodescendientes colombianas, de Victoria-Morales et al. (2017), cuja pesquisa nos revelou um profícuo diálogo de saberes entre mulheres afro-colombianas e estudantes estrangeiras/os, em uma pós-graduação que “evidencia los efectos movilizadores respecto a perspectivas críticas surgidas en las dinámicas de los diálogos de saberes realizados bajo intencionalidades disruptivas para provocar una horizontalidad dialógica [...]” (VICTORIA-MORALES et al., 2017, p. 529). Por tais caminhos, construímos nosso diálogo de saberes, intercruzando campos e áreas de pesquisas, percepções e emoções, a partir de nossos corpos-memórias de periferia.
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Diálogo em corpo-memória Da periferia do Brasil Rememoramos, inicialmente, a partir do Brasil, nosso ambiente de encontro. Com debates humanistas e progressistas de escola, pelo movimento ‘escolanovista deweyano’, no pós-guerra, construía-se um novo imaginário nas Américas, a partir dos anos de 1950. Em que nos marca a promulgação, em 1961, da primeira Lei de Diretrizes e Bases (L.D.B.), da Educação Brasileira, a Lei n. 4.024; como também, três anos após, a deposição do presidente populista João Goulart49 (19191976). Era o golpe militar de 1964. Iniciava-se um período ditatorial no país, que se arrastou até 1985. Embora, paulatinamente, vimos superando o fim dos Anos de Chumbo, há 35 anos, ressaltamos que, para muito antes, desde a falaciosa abolição da economia escravagista, temos pensado na tardia reparação histórica da universidade pública brasileira, como a exemplo da recente política de cotas na pós-graduação da UFSC50. Creditada a lutas e a movimentos sociais, pela democratização da educação e da produção científica e tecnológica, para e na América Latina, passamos a viver a esperança de construir uma pluriversidade, no sentido sociocultural do que somos e do que precisamos para ser, para uma sociedade equânime, combatendo a fúria do capitalismo. Entretanto, projetos neoliberais têm empreendido esforços para a formação de mentalidades de ‘deficientes cívicos’ (SANTOS, 1999), levando-nos ao sabor de intenções politiqueiras, por sofismas e filosofismos de partidos políticos de centro (pelo falso-neutro) e de direita, fazendo-nos retroceder à esperança do que acreditávamos haver superado. 49 Que iniciou sua carreira política no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), tendo sido acusado pela classe empresarial e oposicionista de comunista, quando o então ministro do Trabalho, Getúlio Vargas, em 1954, decretou um aumento do salário-mínimo em 100%. 50 “[...] Resolução Normativa que regulamenta a Política de Ações Afirmativas para negros, indígenas, pessoas com deficiência e outras categorias de vulnerabilidade social nos cursos de pós-graduação lato sensu (especialização) e stricto sensu (mestrado e doutorado) da UFSC.” (AGECOM, 2020, s/p.)
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E que poderá fazer a educação com vistas à esperança? Enquanto processo gnoseológico ela engaja sujeitos – educadores – educandos – mediados pelo objeto cognoscível ou conteúdo a ser ensinado pelo sujeito educador e apreendido pelo sujeito educando. Qualquer que seja a dimensão pela qual apreciemos a prática educativa, a gnosiológica, a estética, a ética, a política, seu processo, se autenticamente vivido, implica sempre a esperança. É neste sentido que educadores desesperançados contradizem sua própria prática. São homens e mulheres sem endereço e sem rumo. Perdidos na história. (FREIRE; FREIRE, 2019, p. 153, grifo do original).
Retomando esperanças, a partir de Políticas de Ações Afirmativas, essa universidade, que se permite renovar, possibilitará a produção de outra ciência e outra tecnologia, ora silenciadas. Quilombolas, trans, indígenas e pessoas com deficiência, reorientando educadoras desesperançadas e educadores desesperançados, para uma nova realidade social, que vem de fora para dentro das fronteiras da universidade, da pesquisa, do ensino, das relações constitutivas de novas histórias. Ao que somos desafiadas e desafiados, em como lidar com outras convicções (religiosas, ritualísticas, ancestrais), dentro dessa ciência que nos está posta, pois, hegemônica, asséptica, isenta de misticismos e de subjetividades, cabendo o alerta do intelectual negro brasileiro, Abdias do Nascimento: Há a tendência entre estudiosos e ‘cientistas’ de rotular o candomblé como ‘fetichismo’, magia negra, superstição, animismo, e outras pejoratividades [...] Incapazes de penetrar no sistema de pensamento por trás dos rituais, tentam destruir tudo. Isso com a ajuda do sistema de pensamento europeu ocidental que tem imposto através da coerção, às vezes até com o emprego da força armada, entre outros recursos, o que significa um elemento deveras subversivo dentro do chamado processo de assimilação, aculturação e sincretismo. (NASCIMENTO, 2016, p.139).
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E, isso, vai nos conduzindo, como professores, a sermos agentes sociais e mobilizadores, em busca do que há na subjetividade daquelas e daqueles com quem dialogamos, ante outra NdC e NdT. Estaremos afetados pelas mesmas linguagens? Caberá, em grande parte, à investigação temática freireana, o desafio de uma escuta sensível sobre histórias, intercomunicando-nos com essa nova coletividade acadêmica, pois A dialogicidade é uma exigência da natureza humana, de um lado; de outro, um reclamo da opção democrática do educador. No fundo não há comunicação sem dialogicidade e a comunicação se acha no centro mesmo do fenômeno vital. É neste sentido que a comunicação é, a um tempo, vida, a outro, fator de mais vida. (FREIRE; FREIRE, 2019, p. 130, grifos do original).
Egresso de escola pública, o coautor afro-brasileiro deste texto, por ocasião da ditadura cívico-militar (1964-1985), vivenciou uma educação tecnicista e manualizada, sob a L.D.B. n. 5.692, de 1971. De família de mestiços brasileiros (mãe com ascendência indígena; pai pardo, sendo tataraneto de pessoas traficadas e escravizadas na colônia), sentiu o silenciamento de suas origens, experimentando o projeto de favelização brasileira – intensificado pelas políticas de urbanização na década dos anos 1950. Pois, na década de seu nascimento, anos de 1970, o Brasil chegava a 56% da população urbana, fruto de deslocamentos e êxodos rurais, sem moradia digna para todos. Esse crescimento desordenado das cidades, configurando a metropolização, é desafio da escola pública, pela multiplicidade de sujeitas e sujeitos, de origens, de linguagens, de ritmos que nela precisam acessar. E, como a queremos? Em pluriversidade – seria uma primeira resposta. Em busca de melhores condições de infraestrutura sociotécnica, tecnológica e de trabalho remunerado, com garantia de direitos, o povo se desloca, arriscando não “se dar bem”, como nos mostra o refrão, em rhythm and poetry (Rap), do grupo de jovens brasileiros Invictus:
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Eu não sei mais o que é se dar bem Eles dizem dar certo E fazem o povo de refém [Só pra ganhar bens] Assim, não vamos viver Pra que nosso crescimento Também faça tu crescer (INVICTUS, 2018, s/p., transcrito pelos autores).
O Eles é o politiqueiro, o demagogo, o partido do corrupto, seus conchavos, produzindo o efeito social que o videoclipe nos mostra51. Um grupo de jovens mestiços cantam a lei das ruas, quanto ao que importa saber; mas, quando anoitece: os resultados de impostos sonegados, de isenções fiscais, de desvios de verbas, de lavagem de dinheiro público, de queima de arquivo, de legitimação da escravização moderna… Como também de decretos e regulamentações homologados, à revelia do povo (como vêm procedendo, na atual gestão presidencial do Brasil), alijando nosso Povo de direitos sociais, sexuais, sanitários, democráticos, culturais, cognitivos e ambientais. Isso infere, diretamente, sobre a formaconteúdo de produzir Ciências e Matemática, na escola pública, pois é verba pública, de tributos pagos pelo Povo, e da qual ninguém sairá invicto. E, os Rappers aprofundam a denúncia, ao dizerem: Mostro que Nego Drama / Não é só drama de nego É um grito de ascensão / Pra justiça aos negro, ao gueto Com a força de um tornado / Explosivo igual vulcão Mas congele com iceberg / Essas mente de embarcação Libertem Rafa Braga52 / Ou toma Temer de exemplo Roubou a grana dele / Mata a fome das criança Justiça e liberdade nas ruas / É o que eu contemplo Onde nem mais um bom homem / Mantém suas esperanças (INVICTUS, ibid., transcrito pelos autores).
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zLjaccEDPkA. Acesso em: 15 dez. 2020. Rafael Braga Vieira (Rafa Braga), 32, homem negro, catador de recicláveis, único condenado pela justiça brasileira por protestos públicos, ocorridos em 2013.
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O hip-hop lança luz sobre um fascismo que há no submundo: o d’Eles. Aqueles que querem nos ocultar, proceder em subterfúgio, ao modo da branquitude, sempre alçando o poder sobre nós-Outros. Por essa perspectiva, “É preciso pensar a relação do sujeito com a linguagem como parte da relação do sujeito com o mundo, em termos sociais e políticos.” (ORLANDI, 1996, p. 90). Importantes elementos para ensinar ciências, uma vez que “A inevitável presença do sujeito na história anuncia a sua presença irremediável, no seu possível outro lugar. Corpo favelado em presença no espaço público.” (ORLANDI, 2017, p. 151). Corpo-memória da pessoa negra, pobre. A pobreza atinge sobretudo a população preta ou parda, que representa 72.7% dos pobres, em números absolutos, 38.1 milhões de pessoas. E as mulheres pretas ou pardas compõem o maior contingente, 27.2 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza. (NERY, 2019, s/p.).
Esse recorte racial e de gênero mostra o corpo amortecido, como nos diz o capítulo 5: Réquiem para o escravo, do livro Crítica da razão negra, em que Achille Mbembe elabora uma alegoria, em uma seção intitulada: Do escravo e do espectro. Ao nos explicar sobre “a figura do espectro e a temática das sombras, do real e do sujeito”, dialoga com contos Yorubás, pela autoria do escritor nigeriano Amos Tutuola, para caracterizar a parte da sombra, ao nos dizer que: [...] o poder (de que dispõem os que veem a noite) de convocar, provocar o retorno e a aparição do espírito morto e também de sua sombra. A segunda é o poder, de que dispõe o sujeito iniciado, de sair de si e de se tornar espectador de si mesmo, da provação que é sua vida, incluindo eventos com a sua morte e o seu funeral. (MBEMBE, 2018, p. 241-242, grifos do original). Toda a energia aprisionada no corpo, sob a terra, nos rios, nas montanhas, no mundo animal e vegetal é liberada de uma vez e nenhuma dessas entidades mais tem equivalente ou referente identificável. Em troca, deixam de ser referentes do que quer que seja. (ibidem, p. 249).
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Pelo Rap engajado, chega-nos a denúncia sobre o que ocorre em espaços de poder institucional, estes que tendem a legitimar o racismo, e que se produz dentro do pacote de dispositivos de desrreferenciamento da negritude. Do drama da negritude; da fome, em ruas e favelas; do estado militarizado; do poder tomado a rebote, por via de extorsões, grilagens, agiotagens, queimas de arquivo, tráficos e ameaças pelo milicianato; da destruição de templos de matriz africana, infringindo o sagrado de sua fé; do projeto evangelístico missionário, cristianizante da periferia, como dispositivo de colonialidade que desidentifica raízes socioculturais; os artistas produzem o beat, para comunicar, pedagogicamente, uma epistemologia de Resistência a esses dispositivos. De outra forma-conteúdo, a cultura Yorubá invoca o poder de convocar e o poder de sair de si, para denunciar o projeto neoliberal da branquitude, este que é escravizador, por mente de embarcação. Mente, esta, que é refinada pelo imaginário colonizador, ancorando caravelas em seu ‘Novo Mundo’, que instaura massacres simbólicos e materiais, de viés civilizatório. Potentes espaços de interpretação, para situarmos o perigo da ‘ciência de embarcação’ e da ‘tecnologia de embarcação’, essas que podem ser desconstituídas e desnaturalizadas, pelo Ensino de Ciências e da Matemática, em interlocuções por uma investigação-ação participativa (IAP), instituída pelo sociólogo colombiano Orlando Fals-Borda (1925-2008). O autor nos coloca em um diálogo possível com a cultura institucional, dentro do fazer científico e tecnológico, a partir do que Somos, pela concretude comunitária, na essência da periferia. Da periferia de Moçambique De outro continente, pela voz do coautor moçambicano, deste texto, é demarcado o corpo-memória de suas vivências, ante o projeto político intitulado Ensino Primário para Todos (ZIMBICO; COSSA, 2018), que ocorreu entre os anos 1975 a 1990. Esse foi um projeto de construção
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do socialismo, que se deu no pós-independência, em 1975, e “que tinha definido a década de 1980 como de erradicação do analfabetismo, através da escolarização primária universal, no âmbito dos esforços da ‘década de vitória sobre o subdesenvolvimento’. ” (ibidem, p. 913). Imerso em 16 anos de guerras civis, Moçambique obteve trégua em 1992, com a assinatura do Acordo Geral da Paz, que deu início à chamada ‘democratização’. Para a materialização do projeto de formação do ‘homem novo’ (cidadão emancipado da dominação mental colonial), foram confiados os ‘grupos dinamizadores’ que, sob o centralismo democrático, deveriam difundir a linha política do partido FRELIMO53. Servindo-se das experiências das zonas libertadas durante a guerra colonial (1964– 1974), a educação foi posta ao serviço de ‘todo’ o povo moçambicano. (ZIMBICO; COSSA, 2018, p. 915).
O alargamento do acesso à escola pública moçambicana veio no mesmo compasso da compulsão neoliberal, em que divisas hegemônicas tiveram que fazer parte de lucrativos investimentos, em países excolônias. “Na sequência, desde 1987, Moçambique implementa um programa de reajustamento estrutural e de estabilização macroeconômica, para reduzir a pobreza, com apoio do Banco Mundial (BM) e Fundo Monetário Internacional (FMI).” (ibidem, p. 915). Essa é uma cadeia de dependência externa que contamina a produção de ciência, tecnologia, formação de especialistas, criação de institutos, centros de pesquisa e universidades. E, mesmo, a exemplo de ex-colônias, a mercadorização de nossa ‘democracia’. Ou seja, a instalação da colonialidade material e financeira, perpetuando agenciamentos de ordem socioeconômica, humana, ambiental, política e cultural. Embora com eleições multipartidárias, desde 1994, Moçambique tem experimentado sucessivas alternâncias de poder, em que se mantêm as mesmas condições de precariedade educacional da escola
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Partido da Frente de Libertação de Moçambique.
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básica, da formação de professores, de investimentos para acesso e permanência de estudantes na escola. Fome, guerras civis, corrupções, nepotismos, tensões de fundamentalistas religiosos (ex.: jihadistas ao sul do país – sunitas – querendo impor adesão ao estado islâmico), deslocamentos populacionais a nordeste do país (como exemplo: a província de Cabo Delgado, rica em gás natural), estado de militarização. Seguimos, também, com a compreensão interseccional, aliando diferenças entre gênero, racismo, classe, renda, religião, em que 55% da população de Moçambique vive abaixo da linha de pobreza – cf. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Human Development Report 2015 (INE, 2012). São fatos políticos e humanitários, para os quais a educação científica e tecnológica precisa se voltar, a partir desses corpos-memória, na escola básica. Ou seja, contingências de um país em que educar (a exemplo do Brasil) precisa ser um ato de amor, de esperança, de transformação de consciências, nos campos social e político. Pela linguagem matemática, vemos a necessidade de retornar, primeiramente, à linguagem que evoca do corpo-memória moçambicano, de tradição milenar, de nossas múltiplas heterogeneidades e contradições, identidades plurais e livres, para formarmos um ‘corredor de saberes’ (GASPARETTO, 2019), como metodologia de rede, pelo Sul global. Tudo isso requer movimento, agência pessoal, diálogo horizontal, com o que chegamos à compreensão de que não nos basta o conhecimento outrora definido como único, supridor de carências de nós, as subdesenvolvidas e os subdesenvolvidos, a Periferia, aquelas e aqueles que precisam sorver experiências do Centro. Ao contrário, precisamos trilhar outras veredas, buscar em nosso gene originário, tatear o ancestral. De forma que: Se nos deixarmos estar nesta posição e se pensamos que o ‘sedentarismo’ da ciência, e do cientista, se define a partir de um lugar ‘lá’, seremos sempre nômades da ciência. Se-
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guindo então o que diz C. Franz, somos esses exilados, filhos de três pátrias, que acabam vivendo em nenhuma, ou, o que, para o autor, dá no mesmo: pátria individual e secreta, a nossa solidão. Que eu prefiro formular como sendo a de nosso silêncio. (ORLANDI, 2017, p. 199, grifos do original).
Como nômades da ciência, nos posicionamos em defesa das pátrias, das terras e dos territórios de cidadãs e de cidadãos, livres, pela centralidade do que Somos, quer sejamos América Latina, Caribe ou África; quer sejamos países contidos no projeto de orientalização, por força de metodologias ocidentais; quer de povos deslocados de seus sentidos originários; quer de anistiados; quer de refugiados de guerras ou por catástrofes naturais; ou ainda, quer das pátrias em diáspora, que sentam nos bancos das escola pública com seus saberes-sentidos de Ciências, e com suas múltiplas linguagens matemáticas.
Diálogo em trânsito Em um contexto pandêmico, em que a letalidade do novo coronavírus (SARS-CoV-2) ceifou 2.20154 vidas, em Moçambique (país com 32,5 milhões de habitantes, sendo 51,3% de sexo normativizado como feminino, inclusive as não-binárias), e, 662.41455 vidas, no Brasil (país com 211,80 milhões de habitantes, sendo 51,0% de sexo normativizado como feminino, inclusive as não-binárias) – em dados atualizados até 23 de abril de 2022 –, sentimos grandes disparidades entre políticas de inclusão, saúde pública e acesso à tecnologia, condições de produção do que prentendíamos dialogar. Os discursos políticos e econômicos que se (re)produzem são marcados por ideologias massivamente neoliberais, verticalizadas, inferindo sobremaneira em nossos modos de ser, de fazer, de pensar, de estar no mundo e de nos relacionar com o Outro. Embora outrificados, 54 55
Capturado de: http://covid19.who.int/region/afro/country/mz. Acesso em: 23 abr. 2022. Capturado de: http://covid19.who.int/region/amro/country/br. Acesso em: 23 abr. 2022.
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subalternizados, periferizados, e, sobretudo, racializados, dado que somos reféns das múltiplas facetas da empresa colonial, que investem sobre a escola básica (sob métodos, organizações didáticas, currículos, materiais de ensino, avaliações, rankeamentos), temos nos lançado à dialogicidade, com sujeitas e sujeitos que se coadunam com uma virada do pensamento tecnocientífico, para a produção de sentidos pluriversos, quanto às cidadanias sociotécnicas, revisionando protagonismos e autorias, a partir de outras chaves onto-epistêmicas e ancestrais. Com isso, temos entendido que o trabalho das ciências, na assunção de uma NdC e uma NdT originárias, subsume por apropriações, espoliações, distorções, silenciamentos, apagamentos, assaltos históricos do colonizador. Tudo afetado pelo fenômeno modernidade/colonialidade, definidor da busca excessivamente desenvolvimentista, da tendência fortemente civilizacional, por um humanismo de centralidade iluminista, inculcando-nos seus não-problemas tecnocientíficos. Nosso diálogo tem se dado em um ‘corredor de saberes’ (GASPARETTO, 2019), entre Moçambique-Brasil-Moçambique, interconstituído por histórias políticas e formativas, a partir do nosso ambiente educacional. Assim, a pergunta inicial, instigada por Cassiani, Von Linsingen e Pereira (2016), desencadeou a reflexão sobre o que entendemos, como educadores, por duas crises epistêmicas: o pensamento-linguagem ocidental sobre as Ciências da Natureza e a Matemática; e, os resultados que disso provieram sobre o uso, a manipulação, a experimentação da natureza humana e não-humana. Focados nisso, perseguimos as condições de significação do que contêm nossos discursos, deflagrando que os aprendizados na periferia Sul global produziram a centralidade do que somos, corporificados, assim: pelo recorte binário de homens, racializados como negros e colonizados, na periferia do mundo; ou seja, produzidos para um projeto nefasto de reprodução de desigualdades. Pois, subjugados e situados dentro de um racionalismo instrumental e cartesiano.
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Atentos às circunvoluções tecnológicas, que traduzem novas formas e conteúdos de lidar com o mercado de produtos e serviços (ex.: serviços de autoatendimento em mercados, aeroportos, bancos; URA digital – reconhecimento de voz; redes sociais de relacionamento online; webconferências; telemedicina; inteligência artificial; holografia; dentre outros), as mesmas produzem desafios com a formação de presentes e futuras gerações de estudantes e de professoras e professores, na Escola Básica. Sobretudo, para a educação científica e tecnológica, que precisa lidar com uma formação discursiva que sustente a historicidade do sujeito, suas condições de produção e de significação, para a ideologia a que tem servido. Vez em que têm argumentado os jovens: estudar para quê? E, por quê? Por tais variáveis, acreditamos na investigação temática freireana, pois o sermos mais plurais (como esperamos das políticas de ações afirmativas), como interlocutores, não nos garantirá que estejamos em defesa de pautas próprias, identitárias, mas que apenas seremos parte de um imaginário matizado. Daí, que recorremos à condição do corpomemória, para essa nova dialogicidade, pois o corpo tem o que a história lhe contém. Mas também, atentos à ‘ciência da embarcação’ e à ‘tecnologia da embarcação’, que nos reproduzem em colonialidade, situamos a filosofia e a sociologia contidas na metodologia da investigação-açãoparticipativa falsbordiana, para que ensinemos Ciências da Natureza e Matemática, no sentido de estabelecer elos e canais de interlocução comunitária, a partir de conexões ancestrais, originárias. Entre o Rap engajado, as premissas freireanas, a sociologia/filosofia falsbordiana, a concepção de cidadania sociotécnica, a democracia participativa, compreendemos que tudo se dá por influxos de saberes, identificações socioculturais, resistências indígenas, movimentos sociais, feminismos plurais, coletivos negros, redes de pesquisadores afro-latino-ame-
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ricanos. Enfim, espaços e tempos de interpretação, para a ação de historicizar diálogos, situando-nos, politicamente, em defesa de pátrias com cidadanias pluriversas.
Agradecimentos Agradecemos, especialmente, à professora Tatiana Galieta e ao professor Irlan von Linsingen, pelo sucesso na realização da disciplina condensada Estudos Decoloniais, Epistemologias do Sul e Temáticas Socioambientais na Educação Científica e Tecnológica, oferecida pelo PPGECT/UFSC, em 2019-1, que mobilizou nosso diálogo. Como também ao Programa de Estudantes-Convênio de Pós-Graduação (PEC-PG), da CAPES.
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A refavela revela o choque Entre a favela, inferno e o céu Baby blue rock sobre a cabeça De um povo chocolate e mel A refavela revela o sonho De minha alma, meu coração De minha gente, minha semente Preta Maria, Zé, João [ trecho de “Refavela”, de Gilberto Gil, 1977]
Imagem em gesso, representando a cabocla Jurema, dos cultos afro-brasileiros (Parque Urbano do Bolaxa, Área de Proteção Ambiental da Lagoa Verde, município de Rio Grande, RS). (Arqueofotografia de: Wa Ching).
Seção III: Por gêneros anticoloniais no Sul global Corpos e mentes de epistemes do feminino (cis, trans, binárias ou não-binárias) que persistem, frente às instâncias patriarcais, misóginas, heteronormativas e militarescas. Desigualdades e apagamentos que mulheres cis/trans, pan/intersexuais e outras dissidências têm sofrido, em qualquer região global. Pesquisas e estudos insurgentes, para honrar memórias… de uma mulher moçambicana (não identificada), acusada de feitiçaria, por forças militares da região norte de Moçambique, por não lhes mostrar esconderijos de insurgentes contra aquele governo, tendo sido executada de forma brutal e humilhante, em setembro de 2020, na província de Cabo Delgado. Importante mencionar que o governo moçambicano, à época, havia celebrado contratos de exploração e cessão de terras com empresas transnacionais. da disk jockey Ana Karolina de Souza Santos (19), que fora raptada e assassinada, em 28 de julho de 2019, na cidade de Fortaleza, Ceará (Brasil), por ser lésbica. da mulher trans Indonésia Mayang Prasetyo, que vivia em Brisbane, na Austrália, e fora morta por seu companheiro, em 2014. das Marieles, Margaridas e das Fridas que não se calam. Meio às extremas violências patriarcal, racista e capitalista, elas sussurram … e sussurrando transbordam, resistem.
DOI: doi.org/10.29327/565971.1-7
Perspectivas africanas de e sobre mulheres, gênero e feminismos African perspectives on and about women, gender and feminisms Vera Gasparetto1 Hélder Pires Amâncio2 1 Pós-Doutoranda Interdisciplinar em Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: gasparettovera@yahoo.com.br / ORCID: http://orcid.org/0000-00023865-0549. 2 Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: hpamancio@gmail.com / ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6726-2169.
Resumo: Há um crescimento quantitativo e qualitativo na produção intelectual dos estudos de gênero no âmbito dos estudos africanos, porém, a circulação da mesma permanece deficitária tanto no contexto local, como global. Este trabalho levanta temas, problemas e perspectivas analíticas dominantes no campo dos estudos de gênero e feminismoS africanoS e suas relações globais. Observamos confluências e tensões da área de estudos, expressas nas entrevistas com intelectuais no campo acadêmico (referências teóricas africanas e moçambicanas), ativistas dos movimentos de mulheres e feministas. Nesse sentido, o texto cruza os olhares de uma pesquisadora brasileira interdisciplinar e de um antropólogo moçambicano, tecendo conexões epistemológicas de resistência às perspectivas universalistas de conhecimento e de direitos, adotando uma abordagem que privilegia as relações Sul-Sul. Palavras-chave: Estudos Africanos. Estudos de Gênero. FeminismoS africanoS. Moçambique. Abstract: There is a quantitative and qualitative growth in the intellectual production of gender studies within the scope of African studies. However, its circulation remains deficient both in the local and global context. This work raises themes, problems and analytical perspectives dominant in the field of African gender and feminism studies and their global relations. We observed confluences and tensions
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in the study area, expressed in interviews with intellectuals in the academic field (African and Mozambican theoretical references), activists from the women's and feminist movements and. The text crosses the eyes of an interdisciplinary Brazilian researcher and a Mozambican anthropologist, weaving epistemological connections of resistance to the universalist perspectives of knowledge and rights, adopting an approach that privileges South-South relations. Keywords: African Studies. Gender Studies. African feminismS. Mozambique.
Introdução
O
PRESENTE artigo coloca em diálogo inquietações de pensadoras africanas56 que buscam produzir um conhecimento endógeno compreensivo e explicativo dos desafios contemporâneos dos estudos de gênero e feministas, voltados às realidades diferenciadas das mulheres no continente. O apanhado teórico é articulado com uma pesquisa empírica, realizada junto a setores dos movimentos de mulheres e feministas em Moçambique, assim como entrevistas com intelectuais daquele país. Neste trabalho apresentamos temas, problemas e perspectivas analíticas dominantes e algumas controvérsias nos estudos sobre gênero e feminismoS africanoS57 aqui analisados. Para contextualizar a análise partimos do pensamento do sociólogo sul-africano Jímì Adèsínà (2010). Na terceira seção apresentamos algumas das principais críticas das estudiosas africanas ao universalismo e conceitos correlatos em favor de uma produção de conhecimento endógena e que considere os contextos sociais de vida das pessoas. Na quarta seção, abordamos o debate em torno dos direitos das mulheres, equidade de gênero e feminismos. Na quinta seção abordamos a contribuição intelectual das mulheres, na sexta retomamos as críticas e controversas em torno das
Optamos por uma escrita do texto no feminino como forma de subverter a tendência hegemônica de uma escrita no masculino. 57 Optamos por essa grafia para ressaltar a pluralidade dos diferentes feminismos no continente. 56
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questões de gênero e posteriormente apresentamos as considerações finais. O texto procura trazer para o debate não só as autoras geralmente conhecidas, mas igualmente as vozes de intelectuais do campo acadêmico e também ativistas que pouco se ouve e se conhece, buscando visibilizar o protagonismo de outras figuras na composição e tentativas de compreensão do mundo. Para Adèsínà (2010) existem três tipos de estudos de gênero em África, conforme apresentamos a seguir. O “gênero como regurgitação” apresenta categorias, conceitos, teorias e paradigmas sobre as condições locais, mas a narrativa e a análise são extensões dos estudos euroamericanos, atreladas a termos acadêmicos ocidentais. Os trabalhos desta perspectiva utilizam-se de dados locais, porém os conceitos são “de fora”, sem desafiar as teorias exógenas e seus marcos conceituais, reforçando assim a divisão internacional do trabalho intelectual. No âmbito do “gênero como protesto”, teóricas recusam-se a submeter-se aos termos da divisão internacional do trabalho intelectual – onde África e os africanos fornecem os dados, e os euro-americanos ofereceram as teorias de análise. Essa perspectiva tem uma vasta produção, sem necessariamente gerar novos conhecimentos epistêmicos, que marca a distinção do local e dos dados etnográficos. A “endogeneidade” é a perspectiva dos estudos de gênero, em África, que exige o trato dos dados etnográficos locais, para além de narrativas acadêmicas, com o desafio de potencializar o grau de distintas percepções epistêmicas e/ou fazer uma ruptura com a epistemologia hegemônica ocidental. A antropóloga Ifi Amadiume e socióloga Oyèrónke Oyèwùmí, ambas nigerianas, produziram pesquisas endógenas que provocaram rupturas epistemológicas e elaboraram contribuições seminais nos discursos globais sobre gênero, oferecendo pistas para que uma nova geração de pesquisadoras africanas enfrentasse o desafio da recuperação
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intelectual. As pesquisas delas e da nova geração de investigadoras do continente teorizaram sobre realidades eminentemente africanas, como a matrifocalidade e as sociedades matricêntricas, oferecendo novas bases para as compreensões sobre relações de gênero, questões de identidade e sobre a tarefa política da luta por igualdade entre os sexos em África (ADÈSÍNÀ, 2010, p. 3).
Críticas ao universalismo em favor da endogeneidade e da contextualidade Na literatura que acessamos sobre os feminismos em África identificamos críticas praticamente unânimes à generalização com que o continente é tratado e aos pressupostos epistemológicos dos estudos de gênero que utilizam modelos associados à herança do colonialismo europeu e ao neocolonialismo (McFADDEN, 2011; CASIMIRO, 2014; MAMA, 2011). Diferentes autoras apontam para a problemática de análises focadas em categorias e conceitos euro-americanos, incompatíveis com as práticas históricas locais, diversas e complexas, levando ao questionamento de conceitos pré-estabelecidos. Elas debatem as teorias, a forma como se pensam e influenciam os projetos de pesquisa implementados. McFadden (2011), por exemplo, nas suas reflexões evidencia a subserviência da academia africana ao projeto neoliberal, assim como, a influência da globalização e do capitalismo na produção teórica feminista no continente. As teorias importadas do feminismo ocidental hegemônico, impõem experiências, estruturas históricas e aplicam conceitos ocidentais sobre realidades em África. Por exemplo, o conceito de patriarcado, que leva a analisar as africanas como instrumentos de sistemas de dominação masculina, sem considerar “o poder e autoridade das mulheres nas esferas religiosas, políticas, econômicas e domésticas pré-coloniais” (BAKAREYUSSUF, 2003, p. 3). Persiste uma tendência generalista no tratamento do
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continente africano como “uma entidade geográfica ou uma realidade cultural homogênea” e, essa questão, “continua a ser um dos debates entre as estudiosas africanas” (ibidem). De acordo com Bakare-Yussuf (2003, p.3), essa tendência “causa uma nebulosidade teórica sobre o continente, por sua diversidade com múltiplas tradições culturais e agrupamentos etnolinguísticos. Essa pluralidade faz qualquer generalização da existência de gênero no continente problemática”. Em diálogo com o pensamento de Bakare-Yussuf, a socióloga moçambicana Conceição Osório (2017) aprofunda a análise sobre o esgotamento de conceitos que considera simplista e lineares. Para ela, [...] o conceito de gênero está ligado ao conceito de dominação patriarcal, portanto essa abordagem que se faz da dominação feminina através do patriarcado. Utilizo cada vez menos a dominação patriarcal por que é muito simplista e linear. Penso que a alternativa é eu própria fazer as abordagens, contextualizar, mostrar que há singularidades, que há mudança, que há uma coisa e outra, que essas coisas se interpenetram, se inter-relacionam. Gostaria de inventar uma coisa que contrapusesse o conceito de gênero, que inicialmente era interessante, mas foi sendo esgotado, apropriado politicamente. Muitas vezes nos vemos num imbróglio científico, onde o conceito de gênero é dominação masculina, é um mandato masculino para a dominação feminina e não vemos que esse conceito deve ser contradito com as mudanças. Há, por exemplo, a violência de gênero que existe sobre os homens, que por vezes são estratégias de contrapoder femininas. Podem ser estratégias de revisar o poder, mas podem ser de reordenar o poder, reordenar as hierarquias, desierarquizando (Conceição Osório, entrevista 2017).
Esse ponto encontra-se com a posição de Bakare-Yussuf (2003), para quem a ênfase na dominação patriarcal provoca riscos epistêmicos que valorizam a vitimização ou a totalização de instituições e relações opressivas. Essas visões ignoram o poder da organização das mulheres
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e invisibilizam seus protagonismos, reificando mulheres dentro de papéis e sistemas de organização social, como é o caso de sociedades matrilineares e bilineares, onde elas têm posições de poder mais complexas. Para a autora, conceituar o patriarcado como uma mudança e sistema instável de poder “pode avançar no sentido de uma descrição da experiência de gênero africana que não assume posições fixas em hierarquias inevitáveis, mas tenciona transformação e formas produtivas de contestação” (BAKARE-YUSSUF, 2003, p. 4-5). A perspectiva de Bakare-Yussuf (2003) é igualmente partilhada pela sul-africana Shireen Hassim (2005), estudiosa de gênero e política em África, para quem, ainda que alguns movimentos de mulheres e algumas formas de feminismo defendam a eliminação do patriarcado (entendido como o sistema de dominação masculina), como o interesse comum, em muitos países pós-coloniais, este é considerado um conceito inútil pois, não leva em consideração interseções entre classe, raça e formas coloniais de dominação e opressão das mulheres. Algumas feministas pós-coloniais criticaram a ênfase na categoria “patriarcado”, Hassim (2005), chamou esse foco de “mesmice dos interesses das mulheres”, identificando nestes posicionamentos um viés etnocêntrico e de classe média, baseado em modelos ocidentais de lutas políticas como o padrão pelo qual são julgadas todas as outras estratégias políticas das mulheres. Entre as críticas a essa mesmice está Chandra Mohanty (2008), para a qual o feminismo e o conteúdo ideológico da consciência feminista deveriam ser definidos no contexto de formações sociais particulares e ter ressonância na experiência histórica e na cultura política de cada sociedade.
Direito das mulheres, gênero e feminismos africanos É devido a essas inúmeras realidades vividas nas suas lutas acima apontadas, sonhos e agências a numerosos locais de contestação e de poder dentro das sociedades que as mulheres insistem no direito à
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sua humanidade e dignidade plenas, fazendo emergir uma abordagem epistemológica que permite a distinção entre gênero e feminismo para ser conceitual e politicamente elaborada como um primeiro passo para delinear um significado mais preciso do que significa e trata o feminismo em África (McFADDEN, 2016). Como ilustra a fala de uma ativista da Associação Sociocultural Horizonte Azul (ASCHA), de 15 anos, evidenciando a construção da agência, da utopia e da perspectiva feminista a partir da organização de jovens em redes de solidariedade: Na ASCHA pude saber que sou dona de mim mesma, ninguém manda no meu corpo, faço tudo o que quiser, e decido quem mexe e quem não mexe nele. Fico muito triste quando nós raparigas somos desprezadas aqui na sociedade, mas também fico feliz por que nas escolas nós somos mais capacitadas, inteligentes, ao invés daquelas pessoas que são dadas aquela importância aqui na sociedade. A nós não é dada importância, mas tenho visto que quase todos os cargos importantes do país são as mulheres as encarregadas por eles. Na Associação pude aprender muitas coisas, como pude ver que nosso país é muito machista (...). Acredito que a ASCHA e outras organizações vão acabar com esse machismo e nosso mundo vai ser feminista (Mara58, Entrevista ASCHA, 2017).
Assim como acontece com a maioria das raparigas e mulheres que viveram a subjugação colonial em diferentes contextos, na África elas lutam contra as condições de opressão e precisam desenvolver estratégias coletivas de sobrevivência, pois o capitalismo impacta diferentemente na vida de mulheres e homens. Isso implica em analisar o motivo pelo qual as diferentes linhas teóricas do feminismo são motivos de controvérsias em Moçambique, indicando uma abordagem crítica a determinadas teorias feministas que interpretam de forma essencialista as mulheres africanas no que diz respeito à subordinação e falta de agência na luta por seus direitos (CASIMIRO, 2004). 58
Pseudônimo.
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Ainda que no continente, o patriarcado e a colonialidade sejam predominantes, as mulheres resistem e se reinventam a partir de suas necessidades de sobrevivência, criando o “feminismo popular”, caracterizado por lutas e resistências criativas e inovadoras, que estão fora da academia (CASIMIRO, 2014). São as “mulheres do povo” as protagonistas de lutas que carecem de respostas imediatas às necessidades objetivas de sobrevivência e que incorporam reivindicações de gênero, como revela o depoimento de uma ativista: Para nós o feminismo é uma atitude de questionamento, pois somos a continuidade das mulheres que culminaram com o 8 de março. Nós somos feministas por que lutamos pelos direitos humanos, nossa atitude é dizer “já temos esse direito, mas por que eu não estou a gozar desse direito?”. “Existe a lei da violência e por que eu não vou denunciar, o que está a me impedir de denunciar?” Eu volto para as questões das relações de gênero para rever o que me impede? Qual a atitude de grupo que me impede? E depois vou para a advocacia que é com o governo. Nos encontros mensais de capacitação feminista nós falamos dos recursos naturais e analisamos que benefícios feministas a Lei de Terras traz para as mulheres e por que elas não têm DUAT59 até hoje? Essa é a atitude feminista que nós encontramos nos princípios da Marcha Mundial das Mulheres: mesmo existindo a lei, por que as mulheres não estão a gozar dos seus direitos? Então para nós ser feminista é uma atitude (Carlota Inhamussua, entrevista 2017).
Embora parcela das mulheres de base das organizações que participam das mobilizações por seus direitos possam não ter consciência do conceito de “feminismo”, na prática vivenciam uma luta feminista, como se percebe no depoimento: Elas [as mulheres] se identificam porque quando nos capacitamos não falamos de ser feminista, mas da atitude perante a reivindicação ou a busca de nossos direitos. Mas é a atitude que se relaciona com o feminismo. Por que se 59
Documento para o Direito de Uso e Aproveitamento de Terra.
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nós, as estudadas, analisarmos o feminismo, que teve suas ondas, questiona a falta dos direitos e discute as relações de gênero, percebemos que somos a continuidade dessas mulheres que pensaram que é preciso questionar, não aceitar, por que o patriarcado ainda se veste nas leis. Os homens que estão lá para julgar, mesmos as mulheres que estão lá para julgar, muitas vezes se vestem do patriarcado e do machismo e elas não tomam a atitude que devem tomar. Então nós temos que contrariar. E a forma de contrariar é esta atitude (Carlota Inhamussua, entrevista 2017).
O trabalho realizado por organizações como a Associação Mulher, Lei e Desenvolvimento (MULEIDE) nas comunidades de várias províncias de Moçambique adota uma perspectiva educativa a partir de uma visão feminista, ainda que o conceito de feminismo não seja explicitado, como se observa na narrativa da entrevistada: Nós podemos dizer que é uma mistura das visões: visão feminista não muito visível, porque para nós são conceitos novos. Já vínhamos trabalhando no feminismo, mas sem saber que estávamos a trabalhar por ele. Porque toda mulher que trabalha em prol dos direitos humanos das mulheres, toda a mulher que ajuda outras mulheres a ultrapassar as suas barreiras é tudo uma corrente feminista (Rafa Machava, entrevista 2017).
A ambiguidade de uma prática feminista sem relação necessária com uma consciência feminista é observada em outros contextos africanos e apontada no trabalho sobre a realidade das mulheres da Guiné Bissau desenvolvido por Ângela Figueiredo e Patrícia Godinho: No caso da Guiné-Bissau, a maioria das mulheres, embora pratique o feminismo de várias formas – primeiramente através dos movimentos sociais de luta pelos direitos femininos, empreendedorismo e das lutas pela participação política -, elas não vislumbram um debate interno, no sentido de uma consciência feminista, tal como acontece no mundo ocidental e no contexto brasileiro, ou seja, as mulheres guineenses são feministas e praticam o feminismo sem saberem que o são (FIGUEIREDO; GODINHO, 2016, p. 916).
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Contribuições teóricas das mulheres e intelectuais africanas Se parcela das mulheres do povo, em contextos africanos, praticam o feminismo ainda que sem consciência dele, diferente de intelectuais africanas que elaboram teoricamente sobre ele, com base nas práticas cotidianas das primeiras, trazendo duas contribuições conceituais para a história mundial: o matriarcado e o sistema dual sex. O matriarcado como uma base social e ideológica fundamental na qual assentavam o parentesco africano e os sistemas sociais e morais mais vastos (CASIMIRO, 2014). E, o sistema dual sex diretamente relacionado com o matriarcado, refere-se ao caráter dual dos sexos dos sistemas políticos em África, uma característica considerada pelas autoras como sendo unicamente africana (AMADIUME, 1997, CASIMIRO, 2014). Isabel Casimiro (2008), em sua tese de doutorado intitulada “Cruzando lugares, percorrendo tempos: Mudanças recentes nas relações de género em Angoche”, aprofundou-se no estudo sobre sociedades matricêntricas, na região norte de Moçambique. Nesse trabalho, ela refere-se a contribuição dos estudos sobre essas sociedades: Os estudos que se foram realizando acerca das sociedades matriarcais, matricêntricas, de filiação matrilinear, fazem referência a sociedades em que as mulheres tinham uma contribuição fundamental para a subsistência nas sociedades agrárias e a sociedades em que a descendência segue a linha feminina. Sociedades em que as mulheres negoceiam, contestam, exercem o poder como pessoas e agentes autónomas e não dependentes ou subordinadas aos homens, com uma estrutura social não violenta, baseadas na igualdade social, em que as decisões políticas são tomadas por consenso. Sociedades de paz e sociedades de balanço, nas palavras de Heide Goettner-Abendroth na abertura do I e do II Congresso Mundial de Estudos sobre o Matriarcado (CASIMIRO, 2008, p. 36).
As dimensões de um sistema matriarcal, de tradição africana, agregavam o social, o econômico e o político, dominado pelas mulheres que estavam no controle da agricultura, do mercado, do comércio e da
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religião. Ele coexistia com um sistema patriarcal (dominado pelos homens), mas se diferenciava por suas relações de cooperação e partilha do espaço social, por isso a denominação sistema dual-sex, porque se tratava de um sistema em que havia a colaboração dos homens, na divisão social do trabalho, não sobrecarregando as mulheres como é no sistema patriarcal. Contudo, como ressalta Isabel Casimiro (2014), o matriarcado não era equivalente ao patriarcado, porque não estava baseado na apropriação e na violência. A base fundamental do matriarcado era o agregado familiar (e não a família nuclear, como nas sociedades europeias, já patriarcais, quando da invasão dos povos Indo-Europeus), o que fez com que as mulheres tivessem uma proeminência, na organização dessas estruturas. O protagonismo das mulheres, embora invisibilizado no contexto das sociedades patriarcais africanas, permanece central. A antropóloga moçambicana Ana Loforte (2003) em seu livro Gênero e Poder entre os Tsongas mostra como as mulheres moçambicanas são protagonistas e criadoras de estratégias de sobrevivência frente às crises econômicas e ao patriarcado. A presença delas é essencial tanto na vida reprodutiva quanto na vida produtiva, na luta pelo acesso e posse da terra, e controle do mercado. A participação das mulheres, na vida comunitária, é uma forma de construir seu poder, buscando a visibilidade de suas demandas, e saindo do mundo privado com a articulação de redes de solidariedade e de gestão, tanto no âmbito das relações do agregado familiar como no âmbito da comunidade e da sociedade mais geral. Para Ana Loforte, mesmo no contexto de uma sociedade patriarcal e machista, o poder dos homens não é total, as mulheres criam o que ela denomina de “lugares de poder”: “...embora as relações [no contexto do seu estudo] sejam dispersas, assimétricas e constitutivas de uma desigualdade, as mulheres detêm lugares de poder” (LOFORTE, 2003, p.20).
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A narrativa da ativista e feminista moçambicana Rafa Machava é ilustrativa desses “lugares de poder”, pelos quais as mulheres lutam. Ao articular a ideia de educação e patriarcado, no âmbito da vida privada e reprodutiva, refere: [...] nós temos que quebrar este ciclo do patriarcado, daí vamos avançar muito, em todo mundo. Nós, a corrente das mulheres feministas ou femininas, se conseguirmos quebrar este braço, este nó do patriarcado, aí podemos vencer [...] temos todas, direitos iguais e, muitas das vezes, nós como pais não damos as mesmas oportunidades às crianças. Se eu estou a cozinhar, a tendência é chamar a filha menina para cozinhar comigo. Se o pai está a arranjar ou limpar o carro, a tendência é chamar o rapaz. Se nós conseguirmos quebrar isto vamos viver um mundo melhor (Rafa Machava, entrevista 2017).
Na conexão entre a vida cotidiana e o campo da produção de conhecimento são vários os desafios apontados por ativistas e acadêmicas, os quais não temos a pretensão de esgotar nesse texto. Entretanto, no quadro a seguir fazemos um apanhado de eixos, temas e autoras que nos revelam a predominância de dois tipos de problemas nos estudos sobre gênero e feminismos em África: os de ordem epistemológica e os de ordem política que estão imbricados (GASPARETTO; AMÂNCIO, 2017), como igualmente observa a socióloga swazilandesa Patrícia MacFadden: Basicamente, em termos do significado do feminismo, penso que é importante reconhecer dois elementos fundamentais desse fenômeno político. Um é o desenvolvimento de uma tradição teórica pelas mulheres, que produziu formas de conhecimento centradas nas vidas, lutas e celebrações das mulheres nas diversas divisões sociais, políticas e culturais. Outra é a tradução da teoria feminista em uma práxis que transformou o ativismo, advocacia e formulação/implementação de políticas, bem como alterou as maneiras pelas quais as mulheres vivem suas vidas privadas (McFADDEN, 2011, p.11).
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O levantamento de temáticas e problemáticas no quadro a seguir, realizou-se através da leitura e sistematização de algumas obras e artigos de autoras africanas. O mesmo foi apresentado em Simpósio Temático no 13º Congresso Mundos de Mulheres e Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 (2017) e ampliado na tese de Gasparetto (2019). Quadro 1. Temas e autoras conforme bibliografia acessada TEMAS ABORDADOS AUTORAS/ES Trabalho e empoderamento econômico Trabalho e economia formal Mbilinyi (2015) Trabalho, mercado informal, economia Amadiume (2001); Bakare-Yussuf (2003); Oyèwùmí informal e geração de renda, acesso e (2000; 2004); Mate (2011), Loforte (2003); Castelcontrole dos meios de produção e posse Branco (2012); Mbilinyi (2015) da terra, trabalho doméstico Empreendedorismo, feminização da Mate (2011); Loforte (2008); Casimiro (2014) pobreza, sobrevivência Organização social, Parentesco e arranjos familiares, Tradições Conjugalidade e matrimônio Amadiume (2001); Oyèwùmí (2000; 2004); Mate (2011); Loforte (2003) Formas de família e relações de parenAdésinà (2010); Oyèwùmí (2000; 2004); Loforte tesco (2008) Famílias chefiadas por mulheres Oyèwùmí (2000; 2004); Loforte (2003); Casimiro Divisão sexual do trabalho (2014), Hassim (2005). Matrifocalidade – mãe como centro da Adésinà (2010); Amadiume (2001); Oyèwùmí (2000; organização familiar, parentesco bila2004) teral Tradições, rituais de iniciação feminino Amadiume (2001); Oyèwùmí (2000, 2004); Mate e masculinos (2011); Mariano (2017) Política Educação/escolarização e o papel das McFadden (2011); Mama (2002, 2011); Hassim (2005) universidades Matriarcado, Sociedades Matricêntricas Casimiro (2008, 2014) Amadiume (1997) Colonialismo, Estado neoliberal e as mulheres
McFadden (2011); Mate (2011); Casimiro (2014); Eboh (2000); Hassim (2005); Mama (2011); Mbilinyi (2015); Figueiredo E Godinho (2016)
Violências (doméstica, simbólica, estatal, etc.) Saúde, direitos sexuais e reprodutivos Papel do Estado
Mate (2011); Casimiro (2014); McFadden (2011) Mate (2011); Hassim (2005); Mama (2011) Mate (2011); McFadden (2011); Casimiro (2014); Mama (2011);
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Papel do movimento feminista e de mulheres Emancipação política, cidadania e empoderamento Neoliberalismo, Ajuste estrutural, Privatizações, Transnacionalismo Desenvolvimento Globalização Fundamentalismo religioso
McFadden (2011, 2016); Mate (2011); Casimiro (2004, 2014); Mama (2002) Hassim (2005); Mbilinyi (2015); Figueiredo e Godinho (2016) McFadden (2011); Casimiro (2008, 2014); Mate (2011); Mama (2011) McFadden (2011); Mate (2011); Mbilinyi (2015) Mate (2011); McFadden (2011); Ogundipe (2013), Mama (2011). McFadden (2011); Mate (2011); Casimiro (2014); Mama (2002); McClintock (2010) Mate (2011); Hassim (2005)
ONGs, ONGuização
Loforte (2009); Casimiro (2014); Ogundipe (2013); Mama (2002, 2011) Empoderamento social Gênero e poder, sistema dual sex Amadiume (1987, 1997); Casimiro (2014) Redes de solidariedade e resistência Casimiro (2014); Loforte (2003); Mate (2011); Hassim (2005); Mbilinyi (2015) Mulher, mulher africana, trabalho e Bakare-Yusuf (2003); Mate (2011); McFadden (2011); sexualidade Casimiro (2014); Figueiredo e Godinho (2016) Mulher mercadoria, mercado matrimo- Mate (2011); Casimiro (2014); Eboh (2000) nial, economia do sexo, economia do casamento Questões epistemológicas Interseccionalidade de classe, raça, McFadden (2011); Mate (2011); Casimiro (2014); sexo, geração, território Oyèwùmí (2000, 2004); Macclintock (2010); Hassim (2005), Mama (2002); Figueiredo e Godinho (2016) Pós-colonialismo, neocolonialismo, McFadden (2011); McClintock (2010) descolonial Crítica à visão euro-americana e aos McFadden (2011); Adésinà (2010); Amadiume feminismos hegemônicos, (2001); Oyèwùmí (2000; 2004); Bakare-Yusuf (2003); Casimiro (2014); Eboh (2000); Mama (2002, 2011, 2013) Divisão Intelectual do Trabalho e do Adésinà (2010); Mate (2011); McFadden (2011); CasiConhecimento miro (2014); Mama (2002, 2011, 2013)
Fonte: Elaborado pelo/a autor/a
O quadro traz um conjunto de temas que constituem uma agenda contemporânea das mulheres, com eixos que se entrelaçam e revelam questões propositivas, apontando para pesquisas e ações relacionadas às vidas cotidianas e de possível apropriação para a formulação de políticas públicas. Desde os anos 1960, se multiplicaram as áreas temáticas sobre a situação das africanas:
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emancipação política; educação e treinamento; empoderamento econômico; programas de ajuste estrutural; acesso das mulheres a melhores empregos; acesso mais fácil às mulheres, crédito para empresas geradoras de renda ou compra de terrenos ou propriedade; mulheres e saúde, o que destaca a necessidade das mulheres de ter acesso a serviços de saúde, particularmente saúde reprodutiva e sexual; ambiente e saúde; mulheres e o estado - a questão da guerra, violação, repressão e violência estatal; mulheres e políticas - liderança e participação política; mulheres e direitos e justiça social - é política, reforma legal e ações concretas para capacitar as mulheres; e assim por diante (AMADIUME, 2001, p. 48-49).
São temas que se articulam em várias arenas sociais (AMADIUME, 2001; McFADDEN, 2011), sendo alguns dos períodos pós-independência em diferentes países, mas recorrentes na contemporaneidade, pois se ressignificam e se recolocam, dependendo dos contextos e dos campos de tensão que reivindicam na busca pelos direitos das mulheres, tão diversas quanto as próprias sociedades. A compreensão das especificidades deve levar em conta o contexto global de produção do conhecimento, sendo esse o ponto de partida para questionar o conceito de gênero e seus correlatos, alicerçado pelas experiências e epistemologias africanas (OYÈWÙMÍ, 2004). Para além de questionar os conceitos de gênero, família nuclear e mulheresposa, que fundamentam a epistemologia feminista ocidental, o objetivo dessas mulheres é encontrar meios para que as pesquisas africanas sejam informadas por preocupações e interpretações locais e que estas experiências sejam tomadas em conta na luta política, na construção teórica geral e na formulação e implementação de políticas públicas.
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Críticas e controvérsias em torno do conceito de gênero e modelos analíticos Nas críticas que as mulheres e intelectuais africanas levantam às produções feministas ocidentais, evidencia-se o racismo estrutural global sobre o continente africano. No âmbito de tais críticas, especificamente voltadas ao conceito de gênero (mas não só), há bastantes controvérsias. A socióloga moçambicana Rehana Carpuchande, ao propor o que ela chama de um “mosaico epistemológico”, aborda essa tensão: [...] para falar de gênero é preciso ter em conta o mosaico epistemológico, no sentido que existem várias epistemologias, várias abordagens sobre essa questão. Há o feminismo do Ocidente, há o feminismo do Sul e há o mais específico que dentro do Sul, podemos chamar de feminismo africano, onde nós encontramos teóricas com abordagens diferentes sobre essas mesmas questões. Por exemplo, a abordagem de Simone de Beauvoir, de Judith Butler, Judite Sáfiro é totalmente diferente de Raewyn Connell, ou de Oyèrónke Oyèwùmí. Tento trazer esse mosaico e mostrar como as preocupações com o conceito de gênero são controversas porque ao longo da história há uma necessidade de uma redefinição do próprio conceito, que necessita ter em conta as especificidades de cada contexto. Quando a Oyèrónke no trabalho a “A invenção da mulher”, diz que não existe gender na sociedade Yorubá, mas que o princípio de hierarquização é a base da idade senhority, ela traz uma proposta que mexe com esse quadro epistemológico que a gente chama de Ocidente. Por outro lado, autoras como Raewyn Connell, estão a chamar a atenção a uma epistemologia que fosse mais cá do Sul, ou de falar de gênero ter em conta outras categorias que funcionam nessa questão da hierarquização, que é a questão da classe dentro da mesma sociedade, vamos lá ver a questão da orientação sexual, vamos lá ver a própria idade em alguns contextos (Rehana Carpuchande, entrevista 2017).
Os exemplos etnográficos do contexto Yorubá (OYÈWÙMÍ, 2004), desafiam o discurso feminista ocidental e universal de gênero, pois demonstram que as categorias sociais africanas são fluídas e não
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se encaixam nas epistemologias hegemônicas. As análises e interpretações de África devem começar a partir dela mesma, a partir da produção de significados e interpretações derivados da organização, das relações sociais e das especificidades dos contextos culturais locais, como revela o pensamento da antropóloga moçambicana Esmeralda Mariano, dialogando igualmente com as análises de Oyèwùmí: Eu penso que faz sentido nós rompermos com essas categorizações e cada vez mais que estou a crescer em termos intelectuais e físicos tenho um sentimento que me incomoda em relação a essas categorias: feminismo, masculinidade, essa definição de mulher que não faz mais sentido. Primo mais pelo respeito pelas pessoas, pelos indivíduos. Continuamos a perpetuar essas lógicas binárias e redutivas de chamar mulheres x homens; branco x preto, ao invés de chamar de indivíduos, que me parece uma categoria que contempla seres independentemente dos sexos, das raças. A Oyèrónke Oyèwùmí fala mais do conceito de gênero em termos de senhoridade. É claro que nos relacionamos com indivíduos, com pessoas e já estamos educados a dizer “é mulher, é homem”, mas eu já não sei quem é homem e quem é mulher e o que é ser homem e mulher. Na cultura do Sul de Moçambique (etnia changana) há um termo chamado é o sungukati. [...] essas mulheres são as que tem um segredo da família, da casa, até a própria palavra significa kati = casa, do lar, sungu = amarrar. Então aquela que tem maturidade, é uma sábia, é uma pessoa que tem conhecimento, que depois tem um poder. Com sungukati já não há problema de gênero, de masculino ou feminino, de ser percebido gênero em termos de relações e diferença sexual. Já não há: é pessoa, é um estatuto (Esmeralda Mariano, entrevista 2017).
As autoras colocam em xeque a importação de modelos teóricos feministas ocidentais, para explicar as realidades africanas, pois essas não podem ser entendidas fora do contexto socioeconômico, político e intelectual global e local em que estão inseridas, assim também a presença das mulheres africanas nos feminismos internacionais. Como sugere a antropóloga nigeriana Ife Amadiume (2001, p.48), é necessário
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“olhar para as diferentes áreas nas quais as mulheres estão expressando suas opiniões sobre as condições e os direitos das mulheres e os discursos feministas acerca desses direitos”, para entender a natureza da discriminação e das injustiças contra as mulheres em países africanos. Em seu posicionamento teórico-metodológico de Amadiume (2001), reconhece nas mulheres africanas o poder que elas têm de falar sobre as suas condições, necessidades e direitos e a sua importância na causa da justiça social. Esta constitui a base da crítica ao feminismo ocidental que tende a vê-las na perspectiva do patriarcado europeu. Daí, sua defesa por uma perspectiva histórico-cultural e comparativa, em detrimento de um monopólio do feminismo. A perspectiva feminista europeia tende a ver as africanas como atrasadas, subordinadas aos homens e sem agência, sendo o feminismo europeu a única alternativa para elas. Aplicando tal olhar a uma realidade que lhe é alienígena, as feministas europeias não entendem como uma mulher pode ser economicamente forte e politicamente poderosa, estando, porém, em um casamento poligâmico (AMADIUME, 2001). Para as autoras, essa incompreensão deriva dos conceitos ocidentais de família monogâmica e do imperialismo epistemológico das feministas ocidentais em relação ao resto do mundo (BAKARE-YUSUF, 2003; McFADDEN, 2011, 2016; LEWIS, 2016; ADÉSINÀ, 2010; MAMA, 2011, 2013). O problema político atravessa tanto as questões de nível teórico como as pragmáticas, de luta cotidiana pelos direitos das mulheres e igualdade de gênero. Oyèwùmí (2004) analisa que os problemas das mulheres na esfera privada são na verdade de ordem pública e construídos historicamente pela desigualdade de gênero da estrutura social. Entretanto, a partir do momento em que as pesquisadoras feministas se valem de gênero, como modelo explicativo para a subordinação e opressão das mulheres, em todo o mundo, o problema surge, pois elas assumem a categoria “mulher” e sua subordinação, como universais. Questões sobre a democratização do Estado são levantadas por McFadden (2011) e Amadiume (2001). Apesar do contexto neocolonial da
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África e suas implicações na vida cotidiana, especialmente das mulheres, as vozes destas são fortes, duradouras e continuam resistindo nas bases, nas suas comunidades, observam as autoras ao analisarem as condições dessas mulheres, suas preocupações e localizar suas vozes feministas para a justiça social, situando-as nesse diálogo entre a epistemologia e a política. A feminista e acadêmica nigeriana, Amina Mama (2002) acrescenta alguns desafios para essas vozes, como as agendas próprias e a perspectiva da interseccionalidade: Esta apresentação de outras vozes dos feminismos africanos e sua diversidade e contradições internas, fugindo de essencialismos e simplificações, compartilhando as diferentes correntes precisam introduzir a interseccionalidade na análise, a necessidade de se autonomear e ter uma agenda própria, bem como a demanda por igualdade da comunidade no contexto da diferença que as tecnologias geopolíticas impõem a algumas linhas globais de demarcação [...] a auto representação, a escuta generosa da “outra”, através da qual diversos feminismos contemporâneos articulam a produção de saberes e práticas políticas. (MAMA, 2002, n.p.).
A feminista tanzaniana Marjorie Mbilinyi (2015) considera que as feministas do terceiro mundo tiveram que lutar para ter suas próprias vozes ouvidas nacional, regional e globalmente, enfrentando a marginalização na indústria global de pesquisa e publicações. Muitas delas se uniram em organizações e redes locais e regionais de forma solidária, criando espaços para debater ideias e plataformas para promover visões alternativas. Outro âmbito em que as mulheres lutam por seu lugar é dentro dos próprios movimentos sociais, buscando espaços de protagonismo. Para a feminista e teórica política sul-africana Shireen Hassim (2005) as relações de poder dentro de alguns movimentos sociais são mascaradas e as questões de quem tem voz e agência permanecem muitas vezes obscurecidas. Alguns movimentos sociais apoiam as mobilizações das
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mulheres com base em suas necessidades práticas (como eletricidade, terra e moradia), mas quando se trata de relações de gênero no âmbito do poder, os conflitos se instalam. Essa discussão revela que o primeiro desafio conceitual enfrentado pelos feminismos africanos neste tempo hodierno é a ambiguidade do uso da categoria gênero como uma “ferramenta” da reinvenção do status quo neoliberal, e do gênero como ferramenta do pensamento feminista. É preciso distinguir o gênero, como uma idealização construída a partir da necessidade das mulheres se localizarem, entenderem e explicarem suas vidas, seus silêncios e os espaços invisíveis para os quais têm sido levadas através das normas sociais e culturais, da vida familiar (e da ideia de que o espaço público é masculino e fora do seu alcance). Gênero está, portanto, embutido nas epistemologias de resistência ao patriarcalismo e todos os seus sistemas institucionalizados de privilégio, supremacia, impunidade e sexismo. O feminismo usa o gênero como parte de uma alavanca intelectual e ativista, intrometendo-se abertamente na linguagem e nos tabus patriarcais que ainda inibem as mulheres de serem seres criativas, dinâmicas e conscientes que trazem a sua agência aos locais contestados de poder, nas inter-relações entre as mesmas/suas comunidades e as instituições do Estado e das suas infraestruturas, políticas e práticas feudais. (McFADDEN, 2016, p. 3).
O conceito de gênero traz para o encarceramento patriarcal das mulheres seus “papéis” e “deveres” normalizados, a noção de que não se trata de sexo, mas sim dos locais e práticas de exploração e exclusão do poder. À medida que essa noção foi ganhando reconhecimento pelo mundo e as mulheres do continente africano começaram a perceber a associação entre o desenvolvimento e gênero, aprofundaram a contestação ao sistema hegemônico no poder e a naturalização do lugar que tem sido reservado para elas (fora dos âmbitos desse poder, que tenta determinar o que podem fazer, pensar, dizer ou ser).
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McFadden (2016) ressalta que a estratégia de gênero dentro do processo de construção dos estados nacionais africanos nasceu associada ao apoio às organizações de mulheres e ao incentivo em criar políticas de estado ligadas à construção da igualdade de gênero, ou mesmo através de ONGs que vieram para substituir o papel dos Estados. Assim, ao longo de 25 anos o conceito ou categoria “gênero” serviu a variados objetivos (e continua), modificando-se também na interrelação entre organizações multilaterais, Estado africanos, academia e movimentos sociais, mas também sendo ressignificada e reconceitualizada, para potencializar as lutas dos feminismos: [...] gênero tornou-se uma questão sobre toda a gente, tornou-se uma panaceia para todos os desafios que as nossas sociedades colocam e uma resposta a todas as exigências que as mulheres fizeram; tornou-se um estado e uma língua da ONU e os homens posicionaram-se imediatamente no mesmo como um ‘quadro’ que muito eficaz e deliberadamente silenciou as mulheres e as empurrou de novo para as margens das sociedades. Tornou-se uma indústria e uma fonte de habilitação económica e de aprovação social. Os departamentos das universidades criaram ‘estudos de gênero e sobre as mulheres’. Em termos convencionais, o gênero é resignado, sem dentes e sem uma identidade política clara. Porém, no âmago desta estratégia de apropriação conceptual assenta a ideologia do conservadorismo neoliberal, que é de facto bastante reacionária e pro status quo. A par desta sabotagem conceitual de uma noção que foi arquitetada nas lutas das mulheres para um melhor entendimento do patriarcalismo, o gênero como ferramenta do pensamento crítico serviu para explicar as formas pelas quais as mulheres experienciaram a exclusão patriarcal, impunidade, supremacia e desumanização, através de um exercício teórico e prático que é fundamentalmente informado pela ideologia e pela prática política do Feminismo, como uma resistência e uma tradição celebrativa. (McFADDEN, 2016, p. 2).
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A estratégia de ocupação de espaços de poder institucionais pelas mulheres podem despolitizar as realidades e atenuar as reivindicações e as arestas políticas que exigem setores de lutas para formas políticas, econômicas, ações legais inclusivas e outras formas de igualdade e direitos. A autora refere-se às mulheres na política, nos parlamentos; empreendedoras e nas Empresas; nas Forças Armadas e na Polícia; na ONU - o estado globalizado, na União africana e nas infraestruturas regionais do Estado; nos Institutos de Investigação e nas Universidades. Esta estratégia de valorização e reconhecimento de uma parcela de mulheres pode silenciar a maioria das vozes da sociedade civil e empurrar de novo a imensa maioria delas “para as fendas escuras e lúgubres da sociedade, onde assistimos a uma resistência feroz contra quem quer que seja do sexo feminino, homossexual, negra, jovem, idosa, com deficiência física ou mental e ‘Outras’ de formas aterradoras” (McFADDEN, 2016, p. 3). Essas estratégias despojaram de recursos e energias algumas acadêmicas e ativistas mais radicais: “Tem sido uma época longa e seca no campo das ideias e sonhos vigorosos e desafiantes ao nível do continente e, em larga medida, este é o resultado de uma estratégia política muito eficaz de tornar convencionais as ferramentas do pensamento que as mulheres talharam para a sua liberdade.” (McFADDEN, 2016, p. 3). As lutas diárias das mulheres nas comunidades rurais e urbanas em relação às políticas de gênero no continente africano somam-se a uma estratégia feminista focada em exigir políticas dos Estados. Segundo Mama (2002) a relevância do “feminismo de Estado” se deve ao fato de que os interesses de gênero têm sido amplamente definidos em relação ao Estado, com as mulheres buscando assegurar que este atue em sua defesa, contra os excessos abusivos das construções imperiais e tradicionais que operam as opressões sobre elas, aliando-se na luta conta o colonialismo e lutando pela implementação do projeto nacionalista:
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Nós exigimos que ele forneça serviços que, em muitos aspectos, são fundamentais para a desprivatização da opressão das mulheres. Apelamos ao Estado para promulgar leis que protejam as mulheres de estupro e violência baseada em gênero, garantam os direitos humanos das mulheres e proíbam algumas das manifestações extremas de opressão sexual que ocorrem nos contextos africanos: casamento infantil, mutilação genital feminina, deserdação de viúvas e afins. Parecia uma estratégia razoável. Afinal, as mulheres africanas não apenas lutaram em lutas anticoloniais, mas também responderam mais tarde aos novos Estados-nação com grande entusiasmo. Nós dificilmente precisamos ser lembradas de que as mulheres abraçaram o nacionalismo, ou que, na medida em que foram permitidas, seja como faxineiras de escritório ou como Ministras, as mulheres também serviram ao Estado-nação. (MAMA, 2002, n.p.).
Em outro texto, Amina Mama, argumenta que a abordagem da indústria “mulheres no desenvolvimento” não adota uma perspectiva feminista crítica e, por isso mesmo, tem merecido atenção dos movimentos. A predominância do trabalho instrumental atende a indústria do desenvolvimento de formas despolitizadas, pois se concentra em análise técnica, voltada para a produção de manuais de treinamento em gênero e serviços em detrimento de ideias feministas transformadoras e agendas de justiça social que dialogam com os crescentes movimentos de mulheres (MAMA, 2011). Ainda que com suas próprias características e contradições, Moçambique tem um processo de alguma forma ligado aos discursos internacionais de desenvolvimento que moldaram os vários feminismos na África, como é o caso do “feminismo desenvolvimentista” que é um produto dos compromissos contínuos entre o país e as agências de desenvolvimento internacionais. Aliada a estas últimas, a indústria do conhecimento concentrou-se em integrar as mulheres na “corrente principal” da agenda de gênero e desenvolvimento (mainstream agend).
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Para Signe Arnfred (2001) essa perspectiva incluiu o “gênero feminino” nas políticas, mas não desafiou o modelo androcrático dominante e ajudou a despolitizar os assuntos sobre a mulher no desenvolvimento, igualando a maior parte das vezes sexo e gênero, ou transformando-o numa questão de planificação e monitoria, o que esvazia o conteúdo e o propósito das lutas políticas. Isso ficou mais saliente em países que dependiam mais da assistência ao desenvolvimento. Esse discurso liberal aborda a desigualdade de gênero através da integração Mulheres no Desenvolvimento (WID) e Mulheres e Desenvolvimento (WAD) e se constitui como moeda corrente nas arenas políticas nacionais e internacionais que permanecem em grande parte hostis ao feminismo (ARNFRED, 2001, p. 75). Amina Mama (2011) salienta que o termo 'feminismo' contrasta com essa posição (de manutenção do status quo), gerando uma postura crítica à contínua subordinação e marginalização das mulheres, apesar de décadas de trabalhos do WID e tem uma tradição organizativa do movimento que é não-hierárquica, participativa e democrática, promovendo culturas institucionais igualitárias caracterizadas por um espírito de respeito e solidariedade, que inclui o fim das opressões sistêmicas: As perspectivas feministas sobre o desenvolvimento incluem compromissos para terminar opressão sistêmica, exigindo direitos sexuais e reprodutivos e plena e igualdade de cidadania política e transformação das relações de gênero em níveis domiciliares, bem como em arenas públicas. (...) o feminismo, dentro e além da África, refere-se a um grau de autonomia organizacional e intelectual, que significa o espaço para articular análises e agendas políticas enraizadas em análise das condições materiais e culturais da vida das mulheres. Autonomia é importante porque distingue os movimentos feministas das mobilizações dirigidas. (MAMA, 2011, p. 5).
A intelectual e ativista maliana, Aminata Traoré (2013), considera que o debate sobre o lugar e o papel das mulheres no desenvolvimento na África foi ignorado. A leitura que se aplica à economia e à sociedade também foi estendida às relações entre homens e mulheres. O
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status e o papel das mulheres foram julgados, denunciados e as soluções só foram compreendidas em termos de “desenvolvimento”, pois as populações de África no seu conjunto não tiveram a liberdade de pensar, escolher, decidir por si mesmas, nem no campo da agricultura, nem na sua industrialização, nem nas trocas comerciais. Eles60 não nos deixaram livres para pensar sobre o relacionamento entre homens e mulheres. Muitos projetos foram iniciados para nos tirar do nosso estado “subdesenvolvido”, o que significava que as mulheres africanas precisavam adotar a imagem das mulheres dos países desenvolvidos. É por isso que digo que é um debate principalmente cultural. A mulher teve que ser libertada da mesma maneira que as ocidentais. O combate tornou-se intra-africano: precisávamos ser igualadas aos nossos homens, para superá-los mesmo. Precisávamos acreditar que éramos duplamente vítimas, contra o Ocidente e contra nossos homens que se aproveitam desse desenvolvimento. (TRAORÉ, 2013, p. 132).
A entrada das políticas de ajuste estrutural no continente nos anos 1980 levou os homens ao desemprego, fazendo com que a grande maioria das pessoas se “tornassem pobres”, explicando-se assim o fenômeno da construção da pobreza. Os homens que queriam a integração à modernidade e ao desenvolvimento estavam sentados em casa e as mulheres eram obrigadas a alimentá-los, buscando o sustento da família no mercado informal. Todo este cenário acima apresentado mostra-nos a complexa trama envolvida nas relações cotidianas das pessoas (mulheres, homens, crianças e idosos no continente), que desafiam os quadros analíticos pré-estabelecidos produzidos em contextos outros (especificamente euro-americanos) que desconsideram as culturas locais africanas e impõem suas lentes de leitura do mundo, produzindo metanarrativas estereotipadas e etnocêntricas sobre sociedades outras. A autora se refere aos neocolonizadores, aos capitalistas e aos neoliberais, que chegaram com seus modelos de desenvolvimento e suas práticas de exploração e recursos, incluindo os naturais e humanos. 60
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Considerações finais Neste texto levantamos alguns dos principais temas, problemas e perspectivas analíticas nos estudos sobre mulheres, gênero e feminismo em África, com os pés postos em Moçambique. Evidenciamos a diversidade de temas relacionados às mulheres, tais como trabalho e estratégias de sobrevivência (formal e informal); empoderamento social e econômico; emancipação política; cidadania; organização social, parentesco e arranjos familiares; rituais de iniciação feminina, processos educativos (escolar e não escolar); relação entre mulheres e o Estado; poder; redes de solidariedade; saúde, direitos sexuais e reprodutivos; geração; posse da terra; transnacionalismo; neoliberalismo; neocolonialismo; divisão intelectual do trabalho científico, desenvolvimento, entre outros. Como vimos, as perspectivas ou abordagens empíricas e analíticas de teóricas africanas desafiam os quadros teóricos, conceituais e metodológicos pré-estabelecidos por intelectuais ocidentais e impostos como modelos únicos de leitura das realidades do mundo, incluindo africanas. Nos seus diferentes trabalhos, as intelectuais africanas apresentam não apenas críticas, mas proposições seminais para o desenvolvimento de pesquisas que, além de contextualizar os fenômenos analisados, permitem compreender de forma as complexa as realidades nas quais as mulheres africanas vivem (GASPARETTO; AMÂNCIO, 2017). Nos vários trabalhos, os temas acima apresentados são combinados e as análises evidentemente interdisciplinares (ZELEZA, 2006), críticas, complexas e profundas sobre as diferentes realidades das mulheres africanas, mobilizando instrumentos teóricos de várias áreas. A abordagem fenomenológica, por exemplo, evita fazer afirmações absolutas sobre o mundo e as relações sociais anteriores à investigação, contribuindo para compreender a existência feminina em África, produzindo uma teoria situada e incorporada do conhecimento e experiência, e rejeitando dualismos (BAKARE-YUSUF, 2003; MAMA,
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2011). A abordagem histórico-cultural e comparativa privilegia experiências locais das mulheres, sem perder de vista o contexto global (AMADIUME, 2001; LOFORTE, 2003). A abordagem interseccional61 fundamenta-se na mobilização e articulação das diferentes categorias, conceitos e marcadores sociais como classe, raça, gênero, geração, nação, etc. para entender a complexidade das condições e relações nas quais as mulheres africanas estão imersas (MAMA, 2002; OYÈWÙMÍ, 2004; HASSIM, 2005; McFADDEN, 2011; CASIMIRO, 2014). A perspectiva transformacional, que propõe a articulação da teoria feminista com o ativismo (McFADDEN, 2011; HASSIM, 2005). A perspectiva da economia política procura entender como as condições econômicas e políticas locais e internacionais impactam na vida cotidiana das mulheres mundo rural e urbano, perguntando-se como elas, localmente, reagem, resistem, influenciam e modificam essas políticas (CASTEL-BRANCO, 2012; MATE, 2011; MBILINYI, 2015; MADZWAMUSE, 2014; OSSOME, s.d). Estas são algumas das abordagens que identificamos nos diferentes estudos e muitas vezes combinadas em um mesmo texto. Sobre os problemas identificados, distinguimos duas ordens: a epistemológica e a política, ainda que tal separação seja tênue na medida em que um faz parte do outro. Os de ordem epistemológica relacionam-se a adequação dos conceitos, metodologias e teorias, para a investigação e compreensão das realidades africanas, exemplificado pelos conceitos de gênero e feminismo em África que diferem da concepção ocidental. Os problemas de ordem política se relacionam ao ativismo, advocacia e reflexões ligadas à formulação e implementação de políticas públicas, para a garantia dos direitos das mulheres africanas. No contexto dessas abordagens, as intelectuais colocam em perspectiva diversos desafios epistemológicos. McFadden (2011), por exemplo, propõe reconceitualização da noção de pós-colonialismo, e 61 As autoras elaboram uma abordagem interseccional, ainda que a maior parte delas não utilize-se dessa categoria.
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aponta para a necessidade de elaborar um feminismo contemporâneo que privilegie a realidade concreta das mulheres, conciliando a teoria e a ação. Para ela e nós, estamos de pleno acordo, o feminismo é um fenômeno político com forte tradição teórica, que produziu formas de conhecimento centradas nas vidas das mulheres, o que sinaliza a necessidade de transformação da teoria feminista em práxis articuladora do ativismo, advocacy, implementação de políticas e transformação na forma das mulheres viverem a vida pública e privada. A experiência africana de debate sobre gênero localiza-se na intersecção entre dois encontros históricos e ainda em conflito: as imposições externas – exógenas e os processos históricos internos – endógenos. O continente é constituído por uma diversidade de tradições, culturas, etnias, idiomas, e qualquer generalização teórica pode ser levada ao fracasso, em especial sobre a configuração da existência de gênero no continente (BAKARE-YUSUF, 2003). As imposições teóricas se combinaram para distorcer, modificar e transformar as relações de gênero africanas de uma forma que torna difícil falar em termos absolutos da experiência da existência de gênero sem projetar ideias para o presente e sobre o passado: “As oportunidades e ações para abrir o pensamento feminista africano surgem de se concentrar em experiências vividas e as complexas nuances, contradições e potencialidades da vida cotidiana” (BAKARE-YUSUF, 2003, n.p.). É preciso que as investigações no continente observem a cultura “nacional” de cada país, considerando religiões, classes, regionais e a pluralidade da especificidade étnica (com atenção ao poder da etnia em moldar a vida das pessoas, apesar da promoção dos Estados-Nação em África), dialogando com a tarefa de ampliar os trabalhos de pesquisas e análises do que significa ser uma mulher africana nos diferentes contextos (BAKARE-YUSUF, 2003). Esse movimento promove tensões e negociações entre várias classes e contextos sociais, em uma situação neocolonial que mantém e
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reforça mecanismos de exclusão e repressão herdados da formação colonial em todo o continente. “Se não tivermos capacidade de reformular o Estado não nos tornaremos pós-coloniais. [...] temos que nos tornar pós-coloniais ousando inventar novas ideias, sistemas e práticas sociais que nós possuímos enquanto povos africanos. E o feminismo radical é uma parte essencial desse futuro.” (McFADDEN, 2016, p.17). O grande desafio então, pensando com McFadden (2016), é mobilizar recursos intelectuais, reformular linguagens e imaginários compartilhados e apostar em novas energias, impulsionadas pelo desejo de transformação para avançar nos limites da existência social, expressos por um movimento feminista contemporâneo radical, reconceitualizando os direitos e o Estado, como resultado da luta feminista e da cidadania.
Referências ADÈSÍNÀ, J. Re-appropriating Matrifocality: Endogeneity and African Gender Scholarship. Sociological Review African, v. 14, n. 1, 2010. AMADIUME, I. African Women: Voicing Feminisms and Democratic Futures. Macalester International: International Feminisms: Divergent Perspectives, v. 10, art. 9, 2001. p. 47-68. AMADIUME, I. Reinventing Africa. Matriarchy, Religion, Culture. London & New Yorque: Zed Books Ltd, 1997. ARNFRED, S. Questions of Power: Women’s Movements, Feminist Theory and Development Aid. Discussing Womens’s Empowerment: SIDA Studies, Stockholm, v. 3, 2001. p. 73-87. BAKARE-YUSUF, B. Beyond Determinism: The Phenomenology of African Female Existence. Feminista Africa, Issue 2, 2003. Disponível em: https://bit.ly/3abx9GA. Acesso em: 16 jun. 2021. CASIMIRO, I. M.C. Cruzando lugares, percorrendo tempos – Mudanças recentes nas relações de género em Angoche. Tese (Doutoramento em Sociologia na Especialidade de Sociologia do Desenvolvimento e da Transformação Social), Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Portugal, 2008. CASIMIRO, I. M. C. Feminismo e direitos humanos das mulheres. Outras Vozes, n. 6, fev. 2004. CASIMIRO, I. M. C. Paz na Terra, Guerra em Casa - Feminismo e organizações de mulheres em Moçambique. Pernambuco: Editora da UFPE, 2014. (Série Brasil & África, col. Pesquisas 1).
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DOI: doi.org/10.29327/565971.1-8
O encantamento como pedagogia feminista: rompendo a cumplicidade feminista com a colonialidade62 Wonder as Feminist Pedagogy: disrupting feminist complicity with coloniality Fabiane Ramos1 Laura Roberts2 1 Fabiane Ramos recebeu seu PhD em Educação pela University of Queensland, Meajin (Brisbane), onde ensinou estudos educacionais, estudos de gênero e linguística antes de assumir o cargo de professora no programa de acesso ao ensino superior na University of Southern Queensland, em 2022. Seu trabalho é interdisciplinar com ênfase nas conexões entre as teorias feministas e decoloniais em reimaginar realidades e possibilidades éticas para nossos futuros coletivos. Em sua pesquisa atual, Fabiane está aplicando esse enfoque teórico às suas práticas pedagógicas no contexto do ensino superior australiano e às suas experiências como mulher imigrante acadêmica. E-mail: Fabiane.Ramos@usq.edu.au / ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0690-1681 2 Laura Roberts recebeu seu PhD em Filosofia pela University of Queensland, Meanjin (Brisbane), onde ensinou filosofia e estudos de gênero antes de assumir o cargo de professora de Mulheres e Gênero na Flinders University em 2020. Ela é autora de Irigaray and Politics: A Critical Introduction (Edimburgo: Edinburgh University Press, 2019), co-editora de uma edição especial de Sophia sobre 'Irigaray and Politics' (2021) e publicou artigos em antologias e periódicos, incluindo Hypatia e Australian Feminist Studies.
Resumo: Este artigo documenta nossa luta contínua e colaborativa para impedir a reprodução da colonialidade do conhecimento no ensino dos Estudos de Gênero. Documentamos como nosso ativismo feminista decolonial é atualizado em nossa pedagogia, que é guiada por interpretações feministas do 'encantamento' (IRIGARAY, 1999; AHMED, 2004; hooks, 2010) lido juntamente com a teoria decolonial, incluindo a de Ramón Grosfoguel, Walter D. Mignolo e María Lugones. Usando noções do encantamento como pedagogia, tentamos criar espaços em nossas salas de
Artigo traduzido da versão original, em inglês, publicado pela revista Feminist Review: RAMOS, F.; ROBERTS, L. Wonder as Feminist Pedagogy: disrupting feminist complicity with coloniality. Feminist Review, n. 128, 2021. p. 28-43. Disponível em: https://doi.org/10.1177/01417789211013702. Acesso em: 9 mar. 2022.
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aula, onde a autorreflexão crítica e o engajamento crítico intelectual e incorporado possam emergir. Nossas tentativas de criar esses espaços incluem múltiplos aspectos ou fios que, quando entrelaçados, podem permitir outras formas de saber-serfazer que funcionam no sentido de romper a cumplicidade feminista com a colonialidade no contexto australiano. Palavras-chave: Estudos de gênero. Colonialidade. Decolonialidade. Encantamento. Pedagogia feminista. Sara Ahmed. Luce Irigaray. María Lugones.
“É
ATRAVÉS DO ENCANTAMENTO”, Sara Ahmed (2004, p. 180) escreve “que a dor e a raiva ganham vida”, levando-nos a perceber que “o que dói e o que causa dor... não é necessário e pode ser desfeito bem como feito”. Para Ahmed (ibid., p. 181), portanto, o encantamento “energiza a esperança de transformação... a vontade para a política”, e é a chave para a pedagogia feminista. Inspiradas por Ahmed, e pensando em como as noções de encantamento, como pedagogia, contribuem para abordagens feministas decoloniais mais amplas, nosso artigo explora como empregamos interpretações de encantamento em nossas pedagogias, na tentativa de desafiar a violência epistêmica e ontológica contínua, da lógica colonial, na Academia e no feminismo dominante. Este artigo, portanto, documenta nossa luta contínua, colaborativa, para impedir a reprodução da colonialidade do conhecimento no ensino de Estudos de Gênero, e nossas tentativas de atualizar abordagens feministas decoloniais nas salas de aula da universidade. Enquanto dávamos aulas de Estudos de Gênero, em caráter informal, em uma universidade australiana, com foco em pesquisa, de 2017 a 2019,63 como duas acadêmicas em início de carreira, reconhecemos uma abertura através da qual poderíamos começar a romper o problema da cumplicidade feminista com a colonialidade, por meio de nossas práticas de ensino. 63 No início de 2020 e 2022, Laura Roberts e Fabiane Ramos nos mudamos para outras universidades australianas, mas ambas continuamos a desenvolver o conceito de encantamento comum, como práxis pedagógica. Por esta razão, usamos, principalmente, o tempo presente, para discutir nossas práticas.
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Este artigo explora como entendemos essa cumplicidade com a colonialidade, bem como teoriza e documenta nossos esforços colaborativos, para resistir a essa questão contínua, dentro do feminismo acadêmico dominante. Documentamos como nosso ativismo feminista decolonial é atualizado em nossa pedagogia, que é guiada por interpretações feministas de 'encantamento' (IRIGARAY, 1999; AHMED, 2004; hooks, 2010), lido juntamente com a teoria decolonial, incluindo a de Ramón Grosfoguel (2007, 2012, 2013), Walter D. Mignolo (2009, 2011) e María Lugones (1987, 2003, 2007, 2010). Usando noções do encantamento como pedagogia, tentamos criar espaços em nossas salas de aula, onde a autorreflexão crítica e o engajamento crítico intelectual e materializado possam emergir. Nossas tentativas de criar esses espaços incluem múltiplos aspectos ou fios que, quando entrelaçados, podem permitir outras formas de saber-ser-fazer que funcionam no sentido de romper a cumplicidade feminista, com a colonialidade no contexto australiano.
Colonialidade e estudos de gênero na Austrália Antes de nos voltarmos para nossas ideias de encantamento como pedagogia, é necessário primeiro articular o que entendemos por colonialidade e suas ligações com os Estudos de Gênero, bem como comentar sobre o local de onde falamos (Meanjin, Brisbane, Austrália). Para nós, o fundamento da colonialidade é baseado em estruturas de poder e lógicas geradas, durante a era colonial, tais como “a divisão internacional do trabalho (centro-periferia), a hierarquia racial/étnica (ocidental e não ocidental), a hierarquia cristianocêntrica patriarcal de gênero/sexualidade e o sistema interestadual (poder militar e político).” (GROSFOGUEL; OSO; CHRISTOU, 2015, p. 641). Colonialidade, conforme Nelson Maldonado-Torres (2007, p. 243), “refere-se a padrões de poder de longa data que surgiram como resultado do colonialismo, mas
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que definem cultura, trabalho, relações intersubjetivas e produção de conhecimento muito além dos limites estritos de administração colonial.” A colonialidade, portanto, oferece um quadro valioso para uma análise que leva em consideração como a Austrália contemporânea foi moldada pelas complexidades e ambiguidades de sua história única, como uma colônia de colonos europeus brancos, geograficamente situada na Oceania. Ao definir colonialidade, Aníbal Quijano (2000) explica que à medida que os países da Europa Ocidental se consolidavam como o centro do capitalismo, durante sua expansão colonial, passaram a deter o controle hegemônico do mercado mundial, dos meios de produção e da força de trabalho e, consequentemente, tornaram-se o centro de produção de conhecimento global. Pensando na importância filosófica do controle da Europa Ocidental sobre a produção de conhecimento global, Maldonado-Torres (2007) relaciona a colonialidade à formulação filosófica de René Descartes do cogito ergo sum: Penso, logo existo. Maldonado-Torres (ibid., P. 252) argumenta que essa noção “pressupõe duas dimensões não reconhecidas”; ele observa: “Sob o 'eu penso' podemos ler 'os outros não pensam', e por trás do 'eu sou' é possível localizar a justificativa filosófica para a ideia de que 'os outros não são' ou não podem ser” (ibid.). Maldonado-Torres (ibid., p. 252-253) associa a colonialidade do conhecimento à colonialidade do ser e afirma que “a ausência de racionalidade está articulada na modernidade com a ideia da ausência do Ser nos outros”. Maldonado-Torres afirma que a racionalidade, determinada pelo projeto da modernidade, atua no sentido de excluir diversos indivíduos indígenas, colonizados e feminizados da categoria de conhecedor/produtor de conhecimento, bem como do âmbito humano e, portanto, da existência. Com base nessa argumentação, fica evidente que a produção de conhecimento e pesquisa nas universidades têm sido elementos fundamentais para o estabelecimento da colonialidade e, mais especificamente,
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da colonialidade do conhecimento. Apoiadas pelo domínio econômico, político e tecnológico, as universidades ocidentalizadas tiveram o poder de produzir e difundir um certo tipo de conhecimento acadêmico concebido como universal, neutro e oficial, produzido por um grupo privilegiado de 'conhecedores/sujeitos' (GROSFOGUEL, 2013; McDOWALL; RAMOS, 2018). Portanto, é fundamental que entendamos a gravidade dessa situação, ao considerar ou imaginar um desafio feminista decolonial à colonialidade do conhecimento e do Ser. Articular formas incorporadas feministas decoloniais de conhecer e pensar desafia fundamentalmente essa lógica do cogito cartesiano, sua neutralidade ilusória e suas 'dimensões não reconhecidas', à medida que se move em direção a outras formas de saberfazer e, em última análise, ser.64 No contexto australiano, a posição de conhecedores/sujeitos privilegiados está profundamente ligada à lógica da colonialidade. Desde o início da colonização, o conhecedor/sujeito é conceituado como homem cisgênero heterossexual, de classe média/alta, de ascendência anglo-britânica. Assim, os grupos de pessoas que não se enquadram nesses descritores são reduzidos à categoria de 'conhecido/objeto'. Os movimentos feministas e a disciplina acadêmica dos Estudos de Gênero têm lutado por muito tempo para trazer as mulheres (e mais recentemente as pessoas de diferentes gêneros e sexualidades, além das divisões binárias e normativas), para a esfera do conhecedor/sujeito. Em diversos aspectos, a disciplina fez progressos importantes nesse sentido; no entanto, a colonialidade, ainda, governa a lógica subjacente do feminismo dominante e, por associação, dos Estudos de Gênero. As lutas e a criação de conhecimento, nesse campo, têm se centrado tradicionalmente na situação difícil das mulheres brancas cisgênero de classe média (com uma presença recente mais expressiva de queer e, até 64 Para mais informações, consulte Lugones (2007, 2010) e duas edições especiais recentes de Hypatia: Indigenizing and Decolonizing Feminist Philosophy (BARDWELL-JONES; McLAREN, 2020) e Toward Decolonial Feminisms (VELEZ; TUANA, 2020). Luce Irigaray não adota uma abordagem explicitamente decolonial, mas sua crítica da lógica cartesiana é útil para esses debates (ver ROBERTS, 2019).
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certo ponto, transgêneros), do Norte Global.65 É este local que produziu o que conhecemos, hoje, como o cânone dos Estudos de Gênero. Desse modo, parece inegável a cumplicidade em sustentar uma lógica colonial de produção de conhecimento, com centro e margens claros. É importante notar, entretanto, que mudanças para desafiar e mudar este aspecto dos Estudos de Gênero têm acontecido. Há uma tendência clara para a inclusão e a diversidade, com a interseccionalidade se tornando uma frase-chave nos currículos dos Estudos de Gênero. Porém, uma questão difícil e crucial permanece. Essas mudanças vão além da simbolização e ações de bem-estar, baseadas na inclusão de mulheres de cor e/ou representantes de outros grupos desprivilegiados na lista de leitura? O perigo é que surja um falso sentido de diversidade, inclusão e, para efeito desta discussão, decolonialidade, quando de fato a lógica hierárquica da produção do conhecimento, com um claro cânone legítimo, permanece intocada. As feministas são rápidas em criticar os "homens brancos mortos" do cânone ocidental, mas com que frequência voltamos o olhar crítico para o que e como ensinamos nos Estudos de Gênero e suas consequências na perpetuação da colonialidade? Mignolo (2009, p. 162) argumenta que “não é suficiente mudar o conteúdo da conversa, [mas sim] mudar os termos da conversa... [e] ir aos próprios pressupostos que sustentam o locus de enunciação”, sendo que locus de enunciação refere-se à “localização geopolítica e corpo-política do sujeito que fala” (GROSFOGUEL, 2007, p. 213). Assim, para que um projeto decolonial ocorra nos Estudos de Gênero (considerando que é possível), são necessárias questões profundas sobre o locus de enunciação e as estruturas de produção do conhecimento. Não é suficiente incluir mais vozes nas narrativas dos Estudos de Gênero, se a colonialidade Apesar das limitações com o Norte/Sul Global, como terminologia, empregamos esses termos guiados pela definição de Mignolo (2011, p. 166) do Sul/Norte Global como áreas do globo 'delimitadas de maneira difusa', que não representam, necessariamente, localizações geográficas. Seguindo a definição de Mignolo de Norte/Sul Global, como metáforas, para representar as desigualdades globais de poder/econômicas/sociais/políticas atuais, incluímos a Austrália na categoria Norte Global. 65
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subjacente do conhecimento que governa os próprios termos da conversa permanece incontestada. E, no contexto australiano, tomamos nosso entendimento da cumplicidade feminista com a colonialidade de Aileen Moreton-Robinson (2000). Moreton-Robinson, uma mulher goenpul do povo Quandamooka (Moreton Bay), escreve: A branquitude patriarcal funciona secretamente para apoiar as feministas brancas a serem racialmente desencarnadas, à medida que seu pensamento, conhecimento e escrita se tornam mais consistentes com a epistemologia e as disciplinas masculinas ocidentais. A branquitude patriarcal leva as mulheres a pensar que sua epistemologia não é afetada por esse processo por causa da 'liberdade acadêmica' e de seu posicionamento como sujeito/conhecedor. Nossa capacidade de conhecer e nossas experiências são limitadas, portanto os pontos de vista são parciais assim como os conhecimentos que produzimos. Encontrar maneiras de colocar uma política de diferença em prática exigirá mais do que incluir voz ou abrir espaço para as mulheres indígenas no feminismo australiano. Isso requer que o privilégio da raça branca seja possuído e desafiado por feministas brancas engajadas na pedagogia e na política antirracistas.(MORETON-ROBINSON, 2000, p. 351).66
Política de localização/posicionalidades Seguindo as palavras de Moreton-Robinson (2000, p. 351), concordamos que um dos problemas da cumplicidade feminista com a colonialidade na Austrália é que muitas autoras da cultura feminista dominante permanecem desencarnadas em seu pensamento, deixando de dar conta de suas posições internas ao estado colonizador colonial e às
Este artigo não tem espaço para explorarmos adequadamente os vínculos íntimos entre o capitalismo, a neoliberalização do ensino superior e a colonialidade do conhecimento. Reconhecemos, no entanto, esses vínculos importantes e observamos que a jornada em direção à decolonialidade no currículo deve levar em conta esses vínculos e as formas como as intersecções dessas estruturas restringem o acesso a salas de aula universitárias para muitos grupos minoritários.
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estruturas racistas que ele defende. Diante disso, exigimos uma pedagogia que considere os saberes incorporados, que ambas trazemos para a sala de aula, como professoras, os saberes incorporados de palestrantes convidadas e as diversas localizações sociopolíticas das alunas. Um de nossos primeiros passos, então, é reconhecer nossa própria política de localização (RICH, 1986). Somos mulheres migrantes que, agora, vivemos no estado colonial da Austrália. Assim, reconhecemos nossa cumplicidade geopolítica pessoal com este sistema.
Fabiane Ramos Lembro de mim mesma com 21 anos, uma mulher cisgênero de pele marrom-clara, recém-saída do avião, recém-chegada à Austrália.67 Logo fui informada de que não era branca, mas tinha um tom de pele aceitável, dentro de uma estrutura de poder complicada, com respeito a tons de pele. Fui recebida com um visto de residente, que foi concedido à minha pessoa instruída de classe média. Mas logo percebi que nem todas as recém-chegadas e recém-chegados recebiam o mesmo 'G'day' com um sorriso. Lembro de mim mesma, como aluna de graduação, aprendendo na aula de linguística sobre a retórica usada pelo então governo de Howard, para desumanizar refugiados. Lembro-me de quando comecei na área de ensino de Inglês, como língua adicional (EAL), e senti uma sensação de desconforto no forte contraste das experiências de migração entre minhas alunas e alunos, em uma faculdade particular privilegiada, e as recém-chegadas e os recém-chegados, refugiadas e requerentes de asilo que ensinei. Esse desconforto continuou nos primeiros dias de meus estudos de doutorado, quando comecei a tomar consciência de como o conhecimento sobre as pessoas do Sul Global era produzido em pesquisas.
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Toda esta seção de posicionalidade foi adaptada de Ramos (2018).
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Lembro-me, também, que, desde o início da minha história na Austrália, fiquei comovida com as atrocidades que a colonização infligiu e ainda inflige aos povos aborígenes. Achava que tinha entendido a ilusão e as mentiras da terra nullius. No entanto, durante boa parte dos dezessete anos, desde que migrei para a Austrália, não conseguia me ver como colonizadora. Para mim, o colonizador era uma pessoa branca que veio para cá há muito tempo. Eu era simplesmente uma imigrante não branca. E, como às vezes sofro algumas das opressões que podem estar ligadas a essa posição, eu não enxergava minha cumplicidade com a colonização e deslocamentos contínuos dos guardiões tradicionais da Austrália. Como nova colonizadora-imigrante, tenho o direito de ficar e competir pelos privilégios aos quais os cidadãos australianos têm acesso, baseados em genocídio e expropriação. Ao mesmo tempo, ainda sou considerada estrangeira, apesar de meu status de cidadã. Desde que cheguei, fui socializada em um sistema no qual aqueles que detêm o poder de decidir, se tenho permissão para ficar ou não – se posso pertencer ou não –, são uma classe dominante de australianos brancos (MORETON-ROBINSON, 2003). Não precisei pedir a nenhum dos guardiães tradicionais desta terra se poderia, por favor, vir e ficar. Não precisei solicitar um visto a eles. Não precisei me inserir em suas instituições e cultura(s). Em contraste, eu tive que fazer todas essas coisas em relação ao estado-nação da Austrália e seu grupo principal de habitantes. E eu não poderia, de forma alguma, ignorar o fato de que a lei e todas as instituições das quais faço parte, agora, são controladas por pessoas que reivindicam a posição de 'verdadeiros australianos' (ibid.). Os australianos aborígenes não fazem parte do imaginário australiano inventado e das normas apresentadas aos novos colonizadoresimigrantes. Eles são ignorados e deixados de lado. O desejo de contestar essas lógicas e injustiças começou a crescer, à medida que comecei a entender meu lugar nessas realidades emaranhadas.
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Meus olhos começaram a ver além das paredes construídas, em torno do espaço que me disseram para ocupar na Austrália e na academia (algo como: 'você pode ficar, mas não cause problemas, porque afinal você não é realmente uma de nós'). A necessidade de desobedecer fervilhava. Comecei a entender que “a parede é feita de sedimentos: daquilo que assentou e acumulou ao longo do tempo” (AHAMED, 2012, p. 12). Em vez de aceitar os sedimentos como obstáculos, decidi escalar a parede. Eu prefiro “transformar a parede em uma mesa”, transformando o objeto obstrutivo em uma plataforma para a ação (ibid.). Enquanto buscava respostas e me preparava para escalar a parede, aconteceram transformações importantes. Aprendi coisas que não podem ser desaprendidas ou ignoradas. Concordo com Gloria Anzaldúa (1987, p. 48), quando diz que “saber é doloroso porque depois que acontece eu não consigo ficar no mesmo lugar e ficar confortável. Não sou mais a mesma pessoa que era antes”. Durante os primeiros estágios de minha pesquisa de doutorado, aprendi aspectos da pesquisa em Ciências Sociais que me incomodavam: afirmar conhecer o Outro como objeto do olhar do pesquisador; homogeneizar grupos de pessoas com rótulos de teorias mestras; falar de uma posição desligada, como se o pesquisador não estivesse profundamente implicado no processo (TUHIWAI SMITH, 1999; MIGNOLO, 2009; GROSFOGUEL, 2012). Foi nessa época que conheci um grupo de estudiosas que trabalhavam com teorias decoloniais, e iniciamos uma cooperativa de estudos. Este foi um ponto de inflexão para mim, pois colaborar e aprender com este grupo abriu a possibilidade de outras formas de saber-ser-fazer na academia. Foi por meio da cooperativa que conheci Laura Roberts, e logo uma aliança de amizade floresceu. Desde o início, criamos organicamente um espaço mútuo, seguro, que permitiu a união de nossos encantamentos e desejos individuais, compartilhados para gerar mudanças. Juntas nos sentimos mais fortes, para transformar paredes em mesas, em nossas plataformas de ação.
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Laura Roberts Eu sou uma mulher branca, filha de pais britânicos da classe trabalhadora. Eu nasci em Durban, Kwa-Zulu Natal, África do Sul, a segunda maior cidade do país, e entrei no Ensino Médio, enquanto o país estava desmantelando o apartheid e fazendo a transição para a democracia. Fui a primeira geração de alunas do Ensino Médio sul-africano a experimentar a decolonização de nosso sistema educacional e currículo nacional. Lemos histórias que antes eram proibidas sob o governo do apartheid, e, em sala de aula, exploramos por meio da literatura e das peças, com a ajuda de professoras brilhantes e destemidas, entendimentos diferenciados das maneiras como raça, classe e gênero estão sempre emaranhados. As leis racistas do governo do apartheid e o privilégio da branquidade foram elucidados de maneira constrangedora na sala de aula, assim como nos corredores das escolas. Não foi um trabalho fácil, mas era a nossa realidade. Apesar de seus próprios problemas complexos, Durban é uma cidade etnicamente diversa e, nesse sentido, bastante diferente do resto da África do Sul, com uma população majoritária de zulus e um grande número de descendentes de britânicos e indianos (estes dois últimos grupos representando cerca de 50 por cento da população total, no início dos anos 2000). E, dada a localização de meu colégio estadual, meu grupo refletia amplamente essa tendência demográfica. Quando entrei na Universidade de Kwa-Zulu Natal, as alunas e os alunos brancos eram minoria, em um grupo grande e variado. Embora todos nós tivéssemos alguma noção da gravidade das mudanças ao nosso redor, somente após reflexão e muito envolvimento com a filosofia decolonial e feminista, que aprecio a importância desses anos na formação de minha posicionalidade. O currículo, minhas professoras e professores e minhas colegas de classe, juntas, ofereceram um espaço único para entender o que agora posso chamar de colonialidade do conhecimento e colonialidade do Ser. Sim, a branquidade
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ainda detém muitos privilégios na África do Sul pós-apartheid, mas essa branquidade nunca é invisível; é constantemente desafiada e responsabilizada. É por isso que, quando cheguei à Austrália, com 20 e poucos anos, a branquidade 'invisível' da universidade, do currículo, dos professores e de meus colegas de classe foi um choque. Nunca me esquecerei de sentar-me em uma grande sala de aula durante minhas primeiras semanas na universidade na Austrália e perceber isso. Embora eu agora entenda os séculos de resistência aborígene à colonização e à colonialidade do conhecimento no trabalho na universidade, que continua até hoje, como uma nova migrante e estudante de graduação, no início dos anos 2000, parecia que a branquidade patriarcal da instituição e o currículo não estavam sendo questionados ou ativamente desafiados por muitas acadêmicas ou alunas. Não me entendam mal; minha intenção aqui não é romantizar a transição para a democracia na África do Sul e imaginar esses tempos, como o projeto decolonizador perfeito. Precisamos apenas relembrar os protestos de Rhodes Must Fall, de 2015, para reconhecer que, talvez, a decolonização das instituições de ensino superior, que começou há vinte anos, não tenha realmente acontecido, ou certamente não foi rápida o suficiente. Meu ponto é que minha política de localização, para usar a frase de Adrienne Rich (1986), foi formada durante essa época e lugar, e me localizar nesta posição de sujeita significa compreender minha perspectiva limitada, corporificada. Rich escreve: Este corpo. Branco, feminino; ou feminino, branco. Os primeiros fatos óbvios ao longo da vida. Mas eu nasci na ala de brancos de um hospital que separava mulheres negras e brancas em trabalho de parto e bebês negros e brancos no berçário, assim como separava corpos de negros e brancos em seu necrotério. Eu fui identificada como branca antes de ser identificada como mulher. (ibid., p. 215)
Segundo Rich (ibid., p. 216), reconheço “essa pele branca, os lugares que ela me levou, os lugares que não me deixou ir”. Este reconhecimento está gravado no meu corpo, e surge do fato de ter amadurecido
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em um país onde era inimaginável não saber como a brancura da minha pele estava implicada em uma das mais recentes instâncias do projeto colonial: o apartheid. Ainda estou aprendendo a história real da Austrália e o genocídio dos povos indígenas das Primeiras Nações, que ocorreu no país que agora hesito em chamar de lar. Esse sentimento assustador permanece, embora agora tenha as ferramentas conceituais e a linguagem para entender meu lugar dentro desse sistema colonial, bem como para articular esse mal-estar e essa injustiça. Em resposta a esta inquietação, vejo minha pesquisa e prática de ensino, como uma forma de desafiar a cumplicidade mais ampla com a colonialidade na academia, bem como, especificamente, para romper a cumplicidade feminista com a colonialidade que nos rodeia.
Descobrindo o encantamento em parceria: o encantamento como pedagogia feminista Nós nos conhecemos durante nosso doutorado por meio do envolvimento com a cooperação decolonial na Universidade, e nossa aliança de amizade floresceu, a partir daí. Juntamos forças e começamos a co-ministrar os cursos de Estudos de Gênero. Levando a sério o desafio de Aileen Moreton-Robinson (2003), às feministas brancas na Austrália, começamos a pensar em maneiras pelas quais poderíamos desafiar a branquitude patriarcal e a colonialidade nas aulas que lecionamos. Reconhecendo a cumplicidade de muitos estudos e pedagogia feministas com a colonialidade, na Austrália e em outros países, queríamos encorajar as alunas e alunos, nas nossas aulas de Estudos de Gênero, a compreenderem, bem como desafiar a lógica colonial na instituição e no feminismo dominante, bem como em suas próprias vidas e comunidades mais amplas. Durante nossas reflexões críticas iniciais,
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enquanto procurávamos maneiras de incorporar esses desafios à colonialidade, em nossas salas de aula, a noção de encantamento como pedagogia feminista emergiu. Junto com o trabalho de Sara Ahmed, nos envolvemos com Luce Irigaray e Bell Hooks, cujos escritos sobre ensino e encantamento inspiram e embasam nossa práxis de pesquisa e ensino. Bell Hooks escreve: […] Um elemento de sabedoria prática que vem com o pensamento crítico que está atento e consciente é a experiência contínua de encantamento. A capacidade de ficar encantado, animado e inspirado por ideias é uma prática que abre radicalmente a mente. Empolgados para aprender, extasiados com pensamentos e ideias, como professores e alunos, temos a oportunidade de usar o conhecimento de maneiras que transformam positivamente o mundo em que vivemos [...] Consequentemente, existe a capacidade das ideias de esclarecer e aumentar nosso senso de encantamento, nosso reconhecimento do poder do mistério. (HOOKS, 2010, p. 188).
Pensar a pedagogia como encantamento permite-nos explorar o que significa ensinar e saber, questionando a diferença entre a transmissão de informação e o conhecimento e afeto corporificados. É nesse sentido que propomos que aprendamos-ensinemos-aprendamos, pelo encantamento. Em nossa definição, deste como pedagogia, nos inspiramos nas palavras da escritora feminista Sara Ahmed (2004, p. 180), que nos diz: “O encantamento é o meio pelo qual outras possibilidades se abrem [...] o encantamento expande nosso campo de visão e tato [...] o encantamento significa aprender a ver o mundo como algo que não tem que ser [...] o encantamento implica aprender.” Ahmed (ibid., p. 180-183) acrescenta: “O encantamento é o que me trouxe ao feminismo; o que me deu a capacidade de me chamar de feminista. Certamente, quando tive o primeiro contato com o feminismo e comecei a ler minha própria vida e a vida das outras de maneira diferente, tudo se tornou surpreendente.”
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Em sua reflexão sobre o encantamento, Ahmed menciona a leitura de Irigaray da obra de René Descartes sobre as paixões. Pensando no encantamento, como pedagogia, e no encantamento, como abertura de um espaço para o novo, “uma esperança de transformação” (AHMED, 2004, p. 181), passamos a meditar por um momento com o pensamento de Irigaray sobre o encantamento.68 Irigaray (1999) relê As Paixões da Alma (1649), de Descartes, e está mais interessada em seu pensamento sobre o encantamento, como uma paixão sem um oposto. O foco de Irigaray no encantamento, como uma paixão sem um oposto – uma ação que é ativa e passiva –, alude a uma forma de saber-ser-fazer que, fundamentalmente, desafia lógicas coloniais binárias e dicotômicas, de conhecedor e conhecido. Além disso, como sugere Ahmed, sem um oposto, a paixão ou o movimento do encantamento abrem espaço para que algo novo surja: propõe uma lógica relacional não-dicotômica. E nos escritos de Irigaray sobre o encantamento, ela oferece uma abertura sutil para teorizar uma relacionalidade não-apropriativa que interrompe a lógica patriarcal colonial, ao mesmo tempo que oferece um modelo de coexistência ética (e pedagogia), que não resulta em apropriação ou silenciamento de um outro. Sugerimos que o pensamento de Ahmed e Irigaray sobre o encantamento, como uma relacionalidade não apropriativa que abre espaço para o novo, pode ser lido ao lado do pensamento de Moreton-Robinson sobre os pontos de vista aborígenes, para romper a cumplicidade feminista com a colonialidade. Isso porque o encantamento, como veremos, exige que cada sujeita leve a sério seus pontos de vista e limites ao conhecimento. Lemos essas pensadoras juntas para teorizar nossas próprias posicionalidades, projeto de currículo e práticas de ensino. Reconhecemos o aparente paradoxo de nos voltarmos para a leitura de René Descartes por Irigaray, dadas as maneiras como Maldonado-Torres (2007) e outros usam o argumento do cogito de Descartes, para apoiar seu trabalho sobre a colonialidade do Ser. No entanto, acreditamos que o trabalho decolonial deve desafiar a ideia de que o conhecimento eurocêntrico é a única fonte de conhecimento válido, alegando pluralidade, em termos de locus de enunciação, ao invés de ignorar ou não abordar esse trabalho. 68
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Usando essas noções de encantamento, começamos a traçar pedagogias e novas histórias que esperam nutrir formas feministas decoloniais de saber-ser-fazer. Crucialmente, essas maneiras de saber-serfazer estão fundamentadas na materialidade de nossas vidas, em nossas diferenças vividas e em nossos vários pontos de vista. Diante disso, o encantamento como pedagogia interrompe uma racionalidade desencarnada, uma posição de sujeito desencarnado de conhecedor, que Moreton-Robinson, justamente, desafia. Ao ler as meditações de Ahmed e Irigaray sobre encantamento, ao lado do desafio de Moreton-Robinson às feministas brancas, fazemos questão de destacar uma confluência que vemos em seu trabalho. Todas as três estudiosas se interessam por questões de epistemologia e, em particular, essa noção dos limites do conhecimento ou pontos de vista. Moreton-Robinson (2000, p. 351) observa que “nossa capacidade de saber e nossas experiências são limitadas, portanto os pontos de vista são parciais e também os conhecimentos que produzimos.” Destacamos também as formas pelas quais a jornada para uma relação de conhecimento ético entre professoras e alunas, em sala de aula, pode ser reimaginada como uma relação ética não apropriativa de coexistência. Com base em seu trabalho sobre encantamento, como uma relação intermediária, em seu livro I Love to You, Irigaray (1996, p. 112) escreve que, embora você nunca venha a 'me conhecer' – porque me conhecer significa se apropriar de mim – você pode, no entanto, ainda “percebo as direções e dimensões de minha intencionalidade. É importante ressaltar que você pode me ajudar a me tornar eu mesma.” Irigaray, argumentamos, fornece uma maneira importante de teorizar um encontro para aprender um com o outro sem apropriação. Acreditamos que esta é uma maneira interessante de teorizar o que acontece em uma sala de aula. Para perceber minha intencionalidade eticamente, Irigaray (ibid., p. 116) sugere que devemos cultivar o silêncio e aprender a ouvir com atenção. Irigaray (ibid.) escreve: “Eu te ouço: percebo o que você está di-
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zendo, estou atenta a isso, estou tentando compreender e ouvir sua intenção. O que não significa: eu te compreendo, eu te conheço.” Assim, começamos a apreciar, como uma noção radicalmente reconfigurada do encantamento, como a passagem entre, por exemplo, a ignorância e a sabedoria ocupa o espaço de silêncio necessário para a escuta atenta e a comunicação ética entre nós.
O Encantamento na Sala de Aula por Meio do Plurílogo e das Viagens pelo(s) Mundo(s) Em nossa discussão acima, conceitualizamos o encantamento, como fornecedor de oportunidades para abertura, e curiosidade para aprender-ensinar-aprender, a partir de posições incorporadas e guiadas por afeto e intelecto (não em oposição binária, mas como elementos complementares de conhecimento que vão além da objetividade e da racionalidade). O encantamento é instigar a paixão pelo aprendizado, que rompe com os truísmos tidos como certos e o saber como posse (do 'conhecido'), em favor do conhecimento, como uma relação múltipla, dinâmica e nunca completa. No encantamento há um poder eterno do mistério (usando as palavras de hooks), por causa de sua premissa sobre a impossibilidade de 'conhecer plenamente'. Reivindicar conhecimento absoluto, sobre qualquer coisa ou pessoa, significa reivindicar a posse e eliminar a possibilidade do encantamento. Portanto, como é que esse conceito se traduz na materialidade das aulas de Estudos de Gênero que lecionamos, situadas em uma universidade australiana de elite, composta em sua maioria por alunas e alunos brancos de classe média? Como o encantamento se traduz no que fazemos? Como podemos instigar uma sensação de encantamento nas alunas e alunos? Como pode esse conceito de maneiras tangíveis permitir momentos de resistência e criação em sala de aula, enquanto
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trabalhamos em relação às alunas e aos alunos, para promover mudanças epistêmicas e ontológicas? Prosseguimos para a fase de concepção do curso, com essas questões em mente, e com a determinação de incorporar o encantamento como pedagogia feminista, apesar de uma profunda consciência das restrições e limitações institucionais-culturais-sociais-políticas-epistemológicas. Reconhecemos que o que fizemos até agora são basicamente as etapas iniciais do que, provavelmente, será um projeto de trabalho em andamento para toda a vida. No entanto, decidimos que, ao articular essas práticas iniciais e orientar a filosofia neste artigo, teríamos a oportunidade não apenas de refletir sobre o que temos feito, mas também de aprofundar nossa colaboração e conversação com as comunidades feministas. Para nós, um aspecto fundamental da operacionalização do encantamento é uma mudança conceitual e o início de nossa intervenção no design do curso, o que significa fazer intervenções no nível da construção de significado desde o início. Em outras palavras, uma mudança conceitual envolve reimaginar não apenas o que incluir no plano de estudos, mas sobretudo como as alunas e os alunos e nós nos envolvemos com o conteúdo. Uma parte central deste trabalho é repensar como lemos textos/experiências/realidades, como abordamos a criação de conhecimento e como incentivamos mudanças que vão além da sala de aula. Em nossa mudança conceitual, vamos além de incluir o trabalho de mulheres aborígines, mulheres de cor (mais amplamente) e comunidades diversas de todo o mundo, como um complemento a um programa de estudos que é centrado no 'cânone' de Estudos de Gênero do Norte Global. Projetamos o programa com diversas teorias e estudos de caso, no que chamamos de 'design de plurílogo', tomando emprestado o conceito de plurílogo de Shireen Roshanravan (2014). Em um plurílogo, muitas vozes estão conversando umas com as outras, e esta é uma relação não hierárquica de criação de conhecimento. As vozes em um plurílogo podem ser dissonantes e falar línguas diferentes, mas a base
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comum é que todas as vozes estão co-implicadas nas lutas que estão discutindo (SHOHAT apud ibid.). Em um plurílogo, há um compromisso de honrar a complexidade de todas e todos os participantes, e este tipo de engajamento aborda “Mulheres de cor que se recusam a derrubar sua complexidade e heterogeneidade, em um gênero de pensamento totalizado e unificado, ou em enquadrá-las apenas como reativas a exclusões e distorções racistas do feminismo.” (ibid., p. 57). Levamos muito a sério a homenagem à complexidade e heterogeneidade de todas e todos os participantes do plurílogo, nas salas de aula que ensinamos. Como ponto de partida neste plurílogo, interrompemos a narrativa linear das três ondas da história feminista anglo e norte-americana, como a história central do feminismo, em favor de histórias múltiplas/emaranhadas ocorrendo em todo o mundo, que são baseadas em vários aspectos contextos geo-socio-histórico-políticos. Sem ignorar as lutas importantes que emergem nos contextos dos Estados Unidos e da GrãBretanha, como as sufragistas, questionamos isso como a única história central (HEMMINGS, 2005). E, como Roshanravan (2014) explica, enfatizamos que vários movimentos feministas não existem simplesmente como uma reação a uma narrativa 'central' do feminismo e das lutas de gênero. Enquanto apresentamos essas histórias múltiplas, posicionamos as mulheres aborígenes e mulheres negras, como sujeitas agentes e criadoras de conhecimento, em suas próprias narrativas. Nesse processo, nos envolvemos em conversas com alunas e alunos sobre suas próprias suposições, sobre feminismos/estudos de gênero e, ao fazer isso, iniciamos um processo crítico de desdobrar entendimentos tomados como garantidos, em termos do que os feminismos/estudos de gênero podem ser, quem conta como criadoras de conhecimento, bem como as posicionalidades das alunas e alunos/nossas, em relação às narrativas feministas e estruturas de poder.69 69
As principais autoras com as quais trabalhamos no curso incluem Aileen Moreton-Robinson, María
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É, também, a partir desse ponto, que começamos a discutir a ideia de que “não existe uma luta de um só tema porque não vivemos vidas de um só tema” (LORDE, 2007, p. 138). Ou seja, colonialidade, patriarcado, capitalismo, racismo e heteronormatividade estão interligados e dependem uns dos outros, para existir. Desdobramos essas noções cuidadosamente com os alunos em aula, sempre nos localizando nesses sistemas e incentivando os alunos a fazerem o mesmo. Ahmed articula bem o ethos que serve de ponto de partida em nosso curso: Muitos feminismos significam muitos movimentos. [...] Pode-se supor que o feminismo é o que o Ocidente dá ao Oriente. Essa suposição é uma suposição itinerante, que conta uma história feminista de uma certa maneira, uma história que é muito repetida; uma história de como o feminismo adquiriu utilidade como um presente imperial. Essa não é minha história. Precisamos contar outras histórias feministas. (AHMED, 2017, p. 3-4).
A partir desse descentramento de uma história singular-central, para enfocar movimentos múltiplos por meio de plurílogos, que reconhecem que muitos movimentos feministas não são registrados na mundanidade da vida das pessoas, pretendemos instigar um sentimento inicial de encantamento nas e nos estudantes. Testemunhamos faíscas de curiosidade em muitas alunas e alunos, à medida que começam a perceber as limitações de uma compreensão hegemônica singular do feminismo e as possibilidades de abrir seus campos de visão e imaginação. No entanto, essa centelha inicial de encantamento pode ser perigosa, pois pode levar a uma curiosidade impulsionada por lógicas possessivas de desejo de conhecer o outro. Estamos muito cientes disso e tomamos cuidado extra para orientar as alunas e os alunos a desenvolver um senso de ser em relação a textos/conhecimentos/criadores Lugones, Irene Watson, Audre Lorde, Sara Ahmed, Gloria Anzaldúa e Ramón Grosfoguel. Nem todas essas autoras se chamariam explicitamente de teóricas decoloniais, mas as agrupamos sob esse termo generalista, pois são pensadoras que consideramos contribuintes para a decolonialidade (desvinculação da lógica dominante da colonialidade).
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de conhecimento/comunidades ao invés de 'aprender sobre' algo. Aprender 'sobre' algo denota um sujeito (o aprendiz) aprendendo sobre um objeto, e isso implica a própria lógica colonial da posse contra a qual argumentamos no encantamento como pedagogia. Um dos desafios que enfrentamos é que tanto as alunas e alunos quanto nós mesmas fomos treinadas nesse tipo de aprendizado colonial, e romper com ele requer esforços profundos, contínuos e conscientes. Um conceito que achamos útil para orientar esses esforços para romper com a 'aprendizagem possessiva' e aprofundar um senso de encantamento nos cursos é a 'viagem pelo(s) mundo(s)' de Lugones (1987, 2003). Abordando o que fazemos em sala de aula e o conteúdo que ensinamos-aprendemos, como viagens pelo(s) mundo(s) facilita o encantamento, incentivando as alunas e os alunos a se envolverem com diferentes realidades (mundos) com o que Lugones (1987) chama de 'percepção amorosa' em vez de 'percepção arrogante'. A percepção arrogante denota um distanciamento e uma abordagem para ver a outra como um ser unidimensional que carece de complexidade e está subordinado à percepção do conhecedor. Por outro lado, a percepção amorosa, semelhante às concepções de amor e encantamento de Irigaray, implica uma relacionalidade com outras sujeitas (ao invés de objetos) que é baseada em uma autorreflexividade profunda e uma atitude amorosa humilde, abrindo espaço para uma mudança na visão onde o outro é animado como um ser multidimensional complexo. Lugones explica que: Ao viajar aos mundos de outras pessoas, descobrimos que existem mundos nos quais aqueles que são vítimas da percepção arrogante são realmente sujeitos, seres vivos, resistentes, construtores de visões, embora na construção principal eles sejam animados apenas pelo observador arrogante e sejam flexíveis, dobráveis, arquiváveis, classificáveis. (LUGONES, 1987, p. 18).
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Acima de tudo, nesta discussão, Lugones faz uma distinção definitiva entre turismo/exploração colonial e sua conceituação de viagem pelo(s) mundo(s): Turistas e exploradores coloniais, missionários e conquistadores não viajam no sentido que tenho em mente. Ou seja, não há mudança epistêmica para outros mundos dos sentidos, precisamente porque eles percebem/imaginam apenas o 'exótico', o 'Outro', o 'primitivo', o 'selvagem', e não há nenhum mundo de sentido onde o exótico, o Outro, o selvagem e o 'necessitado de salvação' sejam separados da lógica da dominação. (LUGONES, 2003, p. 18).
Desse modo, Lugones enfatiza que o modo de viajar em viagens pelo(s) mundo(s) realmente importa e influencia a própria possibilidade de percepção amorosa. A viagem pelo(s) mundo(s) para Lugones está, portanto, profundamente relacionada às mudanças epistêmicas/ontológicas à medida que nos movemos pelos mundos dos sentidos. Em nossas salas de aula, convidamos as alunas e os alunos a viajarem pelo(s) mundo(s) enquanto se envolvem em um plurílogo com foco em construções/personificações de gênero (interseccional). A viagem pelo(s) mundo(s) ocorre na forma como abordamos as relações que construímos na sala de aula e no envolvimento com o conteúdo. Então, funcionamos como 'guias'; não queremos dizer guias turísticos que simplesmente mostram fatos e números sobre nossos 'destinos'. Seguindo Lugones, estamos mais interessados no significado original da palavra 'viajar', do século XIV 'travailen', trabalhar, trabalhar, fazer uma jornada difícil (Online Etymology Dictionary, 2017). Aqui podemos ver que as raízes etimológicas das viagens não estão relacionadas à ideia de lazer, mas a movimentos difíceis e árduos. Com isso em mente, orientamos e apoiamos as alunas e os alunos no trabalho que precisa ser feito para abordar o que fazemos, com percepção amorosa, à medida que começamos a lidar com nossas percepções arrogantes. Um passo importante na viagem pelo(s) mundo(s) é começar a quebrar a percepção arrogante. Para que isso seja possível, trabalhamos
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com afinco para criar um espaço seguro na sala de aula que conduza à autorreflexividade, um elemento vital para desconstruir a percepção arrogante e abrir espaço para a percepção amorosa. A autorreflexividade começa conosco, as professoras, meditando sobre nossas relações e cumplicidades com a colonialidade e nosso papel como guardiões de conhecimentos com todos os seus potenciais de rupturas e/ou manutenção do status quo. Compartilhamos explicitamente nossas autorreflexões com as alunas e os alunos, e criamos espaços para que elas façam o mesmo. Nesse processo, a estrutura das classes desempenha um papel importante. Planejamos cuidadosamente as perguntas a serem incluídas nas discussões que levam as alunas e os alunos a pensar profundamente sobre seu lugar no mundo, seus privilégios e cumplicidades com sistemas de poder, os modos em que foram treinados a saber e os estereótipos tomados por certos (gênero, raça, alteridade, cultura, etc.). Essas questões são sempre formuladas em conexão com os tópicos/pensadores com os quais estamos nos engajando para começar a promover maneiras de 'ler' literatura/experiências/realidades que são relacionais em vez de distantes. À medida que experimentamos o encantamento como pedagogia, temos consciência de que o que propomos rompe, com as noções de conforto e empurra muitas alunas e alunos para fora de suas zonas de conforto (certamente nos empurra). E há um perigo real de as alunas e os alunos se desligarem e se desconectarem, o que significaria que uma possibilidade de encantamento está perdida; entretanto, em nossa experiência, isso raramente aconteceu. Uma possível explicação é que concentramos a mesma quantidade de energia que colocamos na escolha de prompts e conteúdo (ou talvez até mais) em como conduzimos as conversas. Compartilhamos e tentamos implementar o ethos do encantamento (via plurílogo e viagens pelo mundo), desde o início do curso. Isso significa uma forte ênfase em cordialidade, respeito, responsabilidade, confiança e abertura. Exigimos que as alunas e os alunos sejam
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respeitadas e honradas, independentemente de onde estejam e quaisquer que sejam suas visões de mundo. No entanto, enfatizamos que todas, na comunidade da sala de aula, compartilhem a responsabilidade de nutrir esse ethos que propomos. Isso inclui assumir a responsabilidade, por seus pontos de vista, e como elas tratam umas às outras. Entendemos que estamos pedindo às alunas que corram riscos e sejam vulneráveis, por isso deixamos claro que também corremos riscos e não deixamos de mostrar nossa vulnerabilidade e compartilhar nossas histórias, também, em sala de aula. Não temos medo de dizer em voz alta que o amor guia o que fazemos, que amamos o que fazemos e que amamos trabalhar com elas. Isso pode soar clichê (mas tudo bem): nossas salas de aula são cheias de amor, ternura e cuidado. Rimos e choramos com as alunas, enquanto tentamos ver/ouvir umas às outras, e o(s) mundo(s) ao nosso redor, com percepção amorosa. Embora seja claro que nem todas as alunas e alunos estão dispostas/prontas a se abrir, com o decorrer do semestre, vemos uma atmosfera de confiança se desenvolver, e acreditamos que isso se deve ao fato de as alunas e os alunos se sentirem respeitadas. O que testemunhamos, em nossas salas de aula, foi que, quando as alunas e os alunos não são caladas, e têm a oportunidade de se expressar, em um ambiente de apoio, à medida que cultivam, expandem e mudam suas 'leituras' de mundos, elas são mais propensas a desenvolver um senso de encantamento. Podemos ver isso claramente nos diários semanais, que os alunos e as alunas são obrigadas a escrever. Nesses diários, as alunas e os alunos refletem sobre o que fizemos em sala de aula, seu aprendizado, os textos que estamos lendo, e como se sentem em relação a tudo isso. Com o passar das semanas, observamos, em muitos dos diários, esforços significantes em desdobrar privilégios, alteridade e desigualdades epistêmicas/ontológicas, bem como em cultivar uma ética de relacionalidade, para diversas formas de ser e conhecer, em múltiplos mundos de sentido.
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Descobrimos, em nossos cursos, que este meio (que também serve como avaliação formativa)70 é um excelente complemento para as discussões em sala de aula, ao facilitar um aprofundamento da autorreflexividade e 'leituras' de mundos. Os diários, também, são muito úteis do ponto de vista pedagógico, pois oferecem oportunidades de orientação e diálogo íntimo entre nós, as alunas e os alunos, que nem sempre são possíveis, durante as aulas. Por meio do feedback semanal, somos capazes de adequar a orientação que cada aluna ou aluno precisa, dependendo de onde se encontram, e para facilitar o incentivo contínuo para seu crescimento. A outra vantagem de usar diários, como uma ferramenta pedagógica, é que ele se adapta às alunas mais e aos alunos mais introvertidas, que podem não falar ativamente em sala de aula, para se envolver nas conversas. Finalmente, por meio de diários semanais, junto com as discussões em sala de aula, testemunhamos a crescente compreensão das alunas e dos alunos sobre suas posições e responsabilidades em um plurílogo, e sobre como viajar pelo mundo. Portanto, argumentamos que os diários semanais, juntamente com as discussões em sala de aula, são elementos-chave para atualizar o encantamento em nossas salas de aula. Outro exemplo de como atualizamos o encantamento, como pedagogia, em termos de avaliação, é o Projeto Wikipedia. Em um esforço para traduzir a teoria com a qual nos envolvemos no curso, em uma mudança concreta positiva, esta tarefa exige que as alunas e alunos produzam ou editem uma página da Wikipedia, sobre tópicos ou pessoas excluídas ou pouco pesquisadas, usando as formas feministas decoloniais de conhecimento adquirido, nesta e em outras disciplinas de Estudos de Gênero, na universidade. A ideia é que as alunas e alunos obtenham
70 Nesta avaliação, não há certo ou errado em termos do que as alunas e os alunos compartilham, desde que demonstrem que se envolveram de forma crítica com o conteúdo e com o aprendizado. Isso abre espaço para que as alunas e os alunos corram mais riscos, e para que possamos fornecer uma orientação mais aprofundada, de uma maneira sem julgamentos.
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uma compreensão mais profunda da política de produção de conhecimento, em termos de inclusões e exclusões normalizadas. As alunas e alunos têm a oportunidade de compartilhar conhecimentos e, ao mesmo tempo, reivindicar um espaço para usar sua voz, e para que várias vozes sejam ouvidas. Essa avaliação também é uma atividade de construção da comunidade, não apenas em termos de colaboração com os membros da equipe, mas também com o envolvimento com os tópicos ou pessoas sobre os quais elas e eles escolhem escrever. Este projeto teve múltiplas etapas e culminou em um grupo Wikipedia Edit-a-thon, no final do semestre. Convidamos uma voluntária da Wikipedia, para vir à aula ensinar as habilidades técnicas necessárias, e para a edição final, ajudar com quaisquer dificuldades. As alunas e alunos foram orientadas a enviar um rascunho de sua página ou modificações, bem como um projeto racional, para ser verificado por sua tutora, antes do Edit-a-thon. Durante esse estágio inicial, discutimos com as alunas e os alunos a ética da representação e o que significava escrever sobre as outras e outros de uma maneira relacional, e que não se apropria. A lógica do projeto exigia que as alunas e alunos explicassem suas razões para o projeto escolhido. Incluímos as seguintes questões norteadoras: Por que você escolheu este tópico? Por que isso é significativo para você? Como seu projeto está ligado a algumas das ideias ou teóricos com os quais nos envolvemos no curso? Qual é a importância de adicionar este tópico/edições à Wikipedia? O Edit-a-thon foi um grande sucesso e deu às alunas e alunos uma noção de como a teoria que estamos aprendendo funciona na sociedade em geral. Finalmente, as conexões entre a sala de aula e a sociedade, em geral, não ocorrem apenas durante esta avaliação, mas são um aspecto central de nossa compreensão do encantamento como pedagogia. Embora esteja fora de nosso controle o que acontece fora da classe, nossa esperança é que mudanças conceituais, em como e o que ensinamosaprendemos nos Estudos de Gênero e feminismos, alimentem mudan-
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ças mais amplas na vida das alunas e alunos e, consequentemente, influenciem mudanças, em suas comunidades e redes. Durante nosso tempo de ensino juntas, testemunhamos muitas alunas e alunos participando do ativismo local, lutando por várias causas e assumindo cargos profissionais, onde têm a possibilidade de contribuir para a mudança social. Entendemos que um grupo de alunas e alunos privilegiadas, participando do ativismo e trazendo uma nova ética da relacionalidade, para seus locais de trabalho, pode parecer irrelevante para esforços decoloniais mais amplos. No entanto, como argumentamos antes, a solidariedade e as alianças são elementos vitais para desafiar a colonialidade e acreditamos que as alunas e alunos, e nós mesmos, temos um papel a desempenhar. Estamos cientes de que nossa sala de aula não pode fazer tudo, mas isso não significa que não possa fazer nada. Podemos contribuir para educar as alunas e alunos e inspirá-las a sair e criar mudanças no(s) mundo(s) ao seu alcance. No encantamento como pedagogia, o processo de aprendizagem nunca é final e o conhecimento está sempre no processo de desenvolvimento. Isso também se aplica à nossa práxis: o que fizermos será sempre um trabalho em andamento. Este trabalho é complexo, limitado, dinâmico; sobe e desce, em círculos; fica emaranhado e preso; grita pedindo ar e às vezes flui como um rio. O trabalho que fazemos é importante para nós; dói e nos dá esperança. Muitas alunas e alunos percebem, com o desenrolar do semestre, que nós também estamos tão preocupadas quanto elas com o que estamos ensinando-aprendendo, e isso ajuda a nos aproximar. À medida que nos aproximamos, começamos a testemunhar momentos semanais de amor-intelecto-reflexividade-compaixão na sala de aula. São momentos de magia, em sala de aula, onde a possibilidade de crescimento e transformação reside: para alunas e alunos, e professoras e professores. Esses momentos de encantamento têm o potencial de atingir comunidades mais amplas, à medida que nosso trabalho/aprendizagem transborda da sala de aula para
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as práticas/éticas que as alunas e alunos podem trazer para seus relacionamentos, futuras carreiras e ativismos. Logo, é fácil concordar com Ahmed (2014) que, “Não é surpresa, o encantamento é a chave para a pedagogia feminista”. E, para nós, esses são os primeiros passos para possibilitar outras formas de saber-ser-fazer, que trabalhem no sentido de romper a cumplicidade feminista com a colonialidade no contexto australiano. Ao encerrarmos este artigo, é importante reconhecer que desenvolvemos este trabalho enquanto empregadas, precariamente, em posições acadêmicas informais. Essa precariedade no emprego (em grande parte composta por mulheres acadêmicas) é uma característica comum do setor de ensino superior neoliberal colonial australiano (e global). O emprego precário se alimenta do medo e da conformidade, então ir contra a corrente, inegavelmente, adiciona uma carga emocional pesada ao que fazemos. O objetivo aqui não é um apelo à empatia, mas um apelo à ação e solidariedade entre as acadêmicas e acadêmicos (e qualquer pessoa que venha ler este trabalho). Esse chamado anda de mãos dadas com nossa discussão sobre encantamento como pedagogia. Nossa práxis de sala de aula tenta construir comunidade e solidariedade entre as alunas e alunos, e instigar seu próprio senso de encantamento. Também, as convidamos a encantar-se conosco, em imaginar novos futuros pautados pela lógica e pela ética decoloniais.
Agradecimentos Gostaríamos de agradecer em especial ao Dr. Bryan Mukandi, Dra. Shamara Ransirini Pitiyage, Dra. Sameema Zahra e Dra. Hora Zabarjadi Sar, por contribuírem tão generosamente com seus conhecimentos, como palestrantes convidadas, e para reconhecer o trabalho emocional extra de estudiosas de cor, em uma instituição colonial predominantemente branca.
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Reinventando a presença: Nacionalismo antigênero e o campo dêitico de resistência de Marielle Franco no Brasil Reinventing presence: Anti-gender nationalism and Marielle Franco's deictic field of resistance in Brazil Daniel do Nascimento e Silva1 Allison Dziuba2 1 Graduado em Letras (Universidade Estadual do Ceará), mestre e doutor em Linguística, pela Unicamp, orientado por Kanavillil Rajagopalan. Tem mantido, desde o doutorado, colaboração com pesquisadores da University of California Berkeley, tendo feito doutorado sanduíche (2007-2008), pósdoutorado (2015-2016) e outras visitas breves e longas, sempre sob a supervisão de Charles Briggs. Email: dnsfortal@gmail.com / ORCID: http://orcid.org/0000-0002-6098-5185 2 Sua pesquisa se centra na retórica feminista interseccional. Seu projeto atual examina a escrita extracurricular, performances e ativismo de estudantes universitários e o papel da emoção nessas atividades. Já atuou como Assistente Editorial do College Composition and Communication e Rhetoric Society Quarterly, e como bolsista de graduação em redação. Doutoranda em Retórica e Composição em Língua Inglesa, na Universidade da Califórnia, em Irvine, Estados Unidos. Foi premiada com uma Bolsa de Dissertação Americana (American Dissertation Fellowship), da American Association of University Women (Associação Americana de Mulheres Universitárias). Em setembro de 2022, ela assumirá a vaga de professora assistente no Programa de Composição, Retórica e Estudos de Inglês na Universidade do Alabama. E-mail: adziuba@uci.edu / ORCID: http://orcid.org/0000-0003-4806-0881
Resumo: Este artigo discute como os atores políticos encaixam o aqui e agora da enunciação, em construções de gênero, sexualidade e raça – uma prática dêitica, que pode ser separada do seu contexto e projetada em campos políticos. Empiricamente, analisamos invocações alternativas do campo dêitico (HANKS, 2005), pela nova direita bolsonarista no Brasil, pela vereadora Marielle Franco, assassinada no mesmo ano em que Bolsonaro foi eleito presidente, e pelo movimento de luto por Marielle. Ao passo que Bolsonaro midiatizou uma imagem invertida de tropos progressistas, como a igualdade de gênero, a educação sexual e o legado de Marielle, a vereadora, e, posteriormente, seu movimento de luto, politizaram o aqui e agora de Marielle e o mapearam em motes como “Marielle vive”, que desafiam o tempo
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cronológico. A figura central de Marielle tem estado, assim, “presente” no espectro político brasileiro – como figura de imanência para o campo progressista, e, para o bolsonarismo, como sintoma do corpo negro generificado, cuja vida não é enlutável mas cuja temida ausência é inimaginável.
Política antigênero, Bolsonarismo e Marielle Franco
E
STUDIOSOS de todo o mundo têm chamado a atenção para o fato de os movimentos políticos reacionários estarem, cada vez mais, transformando o gênero em um “inimigo” da nação.71 Susan Gal (2021), por exemplo, cita a inquietação sentida por estudiosas feministas, na Polônia, ao encontrarem protestos de rua contra o “genderismo”, no início da década de 2010. Gal explica que o genderismo faz parte de um registo conservador mais amplo, que inclui outros termos novos como “ideologia do gênero” e “teoria do gênero”, e tem sido mobilizado para denunciar “a igualdade de direitos para as mulheres, uniões civis, igualdade matrimonial, direitos LGBTQI+, direitos reprodutivos, fertilização assistida e contracepção” (GAL, 2021, p. 99; ver também BORBA, no prelo). Borba, Hall e Hiramoto (2020) discutem outras invocações nacionalistas de tropos antigênero, em defesa da soberania nacional: na Colômbia, movimentos conservadores criticaram o discurso pró-igualdade de gênero embutido no acordo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) que foi votado em 2016 – o que contribuiu para a rejeição do acordo; na Rússia, Vladimir Putin usou o seu controle dos meios de comunicação contra protestos à sua reeleição de 2012, instigando um discurso de que os seus opositores
71 Este artigo é uma versão ampliada, em português, de um artigo em inglês que será publicado no periódico Gender & Language (Equinox), em 2022. O artigo fará parte de um dossiê organizado por Dominika Baran (Duke University) sobre discursos anti-LGBT e nacionalismo. Agradecemos aos editores da revista, Rodrigo Borba, Kira Hall e Mie Hiramoto, à editora do dossiê, Dominika, e à Equinox, pela autorização da publicação de uma versão do texto em português. Agradecemos também a todos esses editores pelas críticas e sugestões no processo de redação. Todas as imperfeições que restarem são, obviamente, de nossa responsabilidade.
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estariam sendo “patrocinados por feministas ocidentais e lobistas homossexuais que pretendiam conquistar o mundo." (BORBA; HALL; HIRAMOTO, 2020, p. 2). Exemplos de tais ataques nacionalistas, contra as conquistas dos movimentos feministas e da pesquisa sobre gênero e sexualidade das últimas décadas, são numerosos. Em comum, tais movimentos contemporâneos “contestam a igualdade de gênero e os direitos LGBT e invocam as noções intrigantes de ‘ideologia de gênero’, ‘teoria de gênero’ ou ‘(anti)genderismo’.” (KUHAR; PATERNOTTE, 2017, p. 2). Esses movimentos são citacionais – extraem formas textuais e semióticas uns dos outros, e especialmente de discursos que foram criados em setores conservadores da igreja católica e reciclados no protestantismo evangélico (BUTLER, 2019), bem como de discursos econômicos neoliberais conservadores (COOPER, 2017), prospectando, dessas fontes mais amplas, grande parte de sua força e eficácia performativas. Como Borba (no prelo) explica, o significante flutuante “ideologia do gênero” tem sido utilizado por movimentos conservadores e antigênero, para unificar a oposição à ideia de que o gênero é uma construção social. O discurso antigênero inclui frequentemente a degradação do povo LGBTQIA+ e dos direitos reprodutivos das mulheres e está enredado na defesa de um estado neoliberal que se abstém do bem-estar social (BROWN, 2019). Neste trabalho, olhamos para o Brasil contemporâneo a fim de investigar o entrelaçamento entre tais reconfigurações ideológicas de gênero com o declínio democrático – bem como olhamos para a resistência política a esse entrelaçamento. Empiricamente, identificamos dois campos políticos opostos – o bolsonarismo, o movimento reticulado e largamente digital de apoio ao presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro, e o movimento de luto por Marielle Franco, a vereadora negra e lésbica progressista nascida no Complexo da Maré, Rio de Janeiro,
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que foi brutalmente assassinada em 2018 – e analisamos algumas interações-chave em 2017 e 2018 que mostram modos de ligação entre o aqui-e-agora dêitico da interação (HANKS, 2005) e construções políticas mais amplas, especificamente aquelas que articulam a “presença” de Marielle com as construções de gênero, raça e sexualidade que ela abraçou. A "presença" de Marielle tem sido reivindicada tanto pelo bloco bolsonarista quanto pelo movimento de luto pela vereadora. Após seu assassinato, Marielle – como mulher negra, lésbica e feminista – rapidamente passou a se fazer presente no bolsonarismo como o ícone da suposta perversão sexual embutida na ideologia de gênero; mas ela também passou a estar presente em movimentos de resistência à supremacia branca encarnada por Bolsonaro. Em formulações como "Marielle vive", "Marielle, presente!" (ou Marielle? Presente!, um tropo que emula a presença em sala de aula) e "Marielle é semente", esse movimento social tem impulsionado o tempo de forma diferente, muitas vezes incorporando o modo como Marielle politizou o tempo da desigualdade e projetou futuros afirmativos mais amplos. Tomamos o assassinato de Marielle como um eixo temporal e espacial para o presente momento político no Brasil. Com Gal e Irvine (2019, p. 118), acreditamos que é “necessário trabalho interpretativo, situado na interação, para invocar (indiciar)” um eixo ideológico de diferenciação (política) e “para interpretar fenômenos em tempo real como instanciações das qualidades que fazem parte desse eixo”. Abordamos o trabalho interacional que, de forma diferencial, invoca Marielle e o seu corpo negro generificado como um eixo de diferenciação, olhando para a indexicalidade da dêixis na interação: a projeção de um campo dêitico (HANKS, 2005) – ou seja, o composto de expressões dêiticas como "eu", "tu", "aqui", "agora", ideologias linguísticas e muitas vezes posturas corporais, olhares e gestos – para a esfera política. As expressões dêiticas (índices de pessoa como “você”, de tempo, como “hoje”, de lugar, como “ali” etc.) ocorrem em todas as línguas, e o seu significado denotativo “depende estritamente da ocasião da sua utilização”
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(HANKS, 2005, p. 191). A ancoragem contextual fundamental da dêixis, a sua coocorrência com os movimentos corporais e a incorporação dos shifters (JAKOBSON, [1957]:1971) ou índices dêiticos em campos de ação mais amplos revelam a maleabilidade da linguagem em fornecer aos usuários coordenadas dinâmicas de tempo, espaço e pessoa para ação social posterior. Metodologicamente, construímos três estudos de caso para investigar o trabalho interacional em torno do qual os agentes projetam diversamente o aqui e agora da interação em uma arena política mais ampla onde Marielle e o seu legado têm sido projetados como presentes. Nossos estudos de caso baseiam-se em interações no Rio de Janeiro de 2017-2018 que exemplificam diferentes camadas da projeção do gênero na política: Marielle interagindo com um público feminista; uma entrevista midiatizada de Bolsonaro para a Rede Globo; um comício político em que três candidatos bolsonaristas quebram a placa de rua de Marielle, bem como as respostas do movimento de luto por Marielle a essa demonstração pública de violência. Os nossos dados apontam para a centralidade de Marielle no cenário político e para a importância e performatividade da dêixis na produção da “presença” permanente de Marielle na política brasileira contemporânea. Em outubro de 2016, cerca de dois meses após um golpe de estado ter destituído a única mulher já eleita presidenta do Brasil, Marielle foi eleita vereadora no Rio de Janeiro numa campanha de base centrada no protagonismo das mulheres negras da periferia. Ela era a única mulher negra na Câmara Municipal (num grupo de apenas sete vereadoras contra 44 vereadores homens), e o seu estilo de fala aguerrido, conhecido como papo reto, era uma marca notada por muitos (SILVA; LEE, 2021). O seu gabinete era composto majoritariamente por mulheres, incluindo uma mulher trans. No entanto, uma tentativa de asfixiar a voz de Marielle foi efetuada da forma mais trágica e brutal em 14 de março de 2018, quando a vereadora
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e o seu motorista, Anderson Gomes, foram assassinados numa emboscada. No entanto, em vez de a voz de Marielle ser silenciada, nasceu um movimento de luto e solidariedade, projetando vicariamente sua voz e seu legado político na consciência popular. Bolsonaro e os seus adeptos também canibalizaram e resignaram rapidamente a figura de Marielle, transformando a sua imagem invertida, no exterior constitutivo dos discursos, que o consolidaram como líder de uma cruzada moral contra a ideologia de gênero, o comunismo e outras inversões espectrais associadas ao “inimigo” (CESARINO, 2019; BORBA, 2019; CORREA; KALIL, 2020; SILVA, 2020). Estruturamos nosso argumento da seguinte forma. A seção 2 discute a abordagem prática de Hanks para a dêixis e apresenta o primeiro estudo de caso, centrado num discurso que Marielle proferiu em um seminário feminista no Rio de Janeiro, em 2017. Em seu discurso, Marielle destaca as coordenadas de espaço e tempo na Câmara a fim de situar os discursos emergentes sobre “ideologia de gênero”; ao politizar esses pontos de referência espaciais e temporais, ela invoca um modo alternativo de habitá-los, projetando a si própria não como um indivíduo, mas como a encarnação de um coletivo. O segundo caso (seção 3) discute uma entrevista de Bolsonaro na qual ele explora a dêixis para produzir um campo epistêmico de verdade sobre a “ideologia de gênero” e a pornografia infantil. A sua utilização do campo dêitico para produzir a “presença” de objetos referenciais que não existiam como referentes factuais no livro de educação sexual apresentado ao público nos ajuda a discutir, no terceiro estudo de caso (seção 4), a invocação contemporânea de Marielle Franco como "presente" tanto no bloco bolsonarista como no movimento de luto pela vereadora. No entanto, embora ambos os campos invoquem a presença espectral de Marielle por meio de índices dêiticos, os interesses políticos dos dois grupos são diferentes. Para os bolsonaristas, o corpo negro lésbico de Marielle é uma “não-referência” (FANON, 1969; ALVES; VARGAS, 2020): a sua morte não deve ser enlutada e, no entanto, a sua ausência do campo político é
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inimaginável. Por outro lado, os ativistas que choram a morte de Marielle invocam sua “presença” espectral e incorporam o seu legado e as suas inversões indiciais (KHALIL; SILVA; LEE, no prelo) na política atual. Na conclusão, sistematizamos as nossas observações sobre as relações entre dêixis, a presença de Marielle e a política no Brasil contemporâneo.
O campo dêitico de resistência de Marielle A pesquisa sobre indexicalidade tem sido crucial para demonstrar a força histórica e a complexidade social do uso que os agentes fazem da linguagem em contexto. A indexicalidade pode ser entendida como “a forma como, por graus, os signos linguísticos e outros signos orientam os usuários desses signos para as condições envolventes específicas em que os utilizam” (SILVERSTEIN, 2006, p. 14). A nossa preocupação aqui é com um tipo particular de indexicalidade – a referência dêitica – e com os efeitos políticos de encaixar práticas dêiticas particulares em campos políticos mais amplos. Hanks (2005) explica que expressões dêiticas, tais como "eu", "tu", "aqui" e "agora", existem em todas as línguas e o seu significado muda de acordo com os enquadres de participação em que são utilizadas. Hanks (2005, p. 191) estuda dêixis de uma abordagem prática, ou seja, uma abordagem centrada nas “relações entre a ação verbal, os sistemas linguísticos e outros sistemas semióticos, e as ideias de senso comum que os falantes têm sobre a linguagem e o mundo social do qual ela faz parte”. Com base na sociologia de Bourdieu, Hanks propõe compreender a orientação dêitica dos usuários em contexto por meio da noção de “campo” (BOURDIEU, 1985): “um espaço de posições e tomadas de posição em que os agentes (individuais ou coletivos) se envolvem e através do qual diversas formas de valor ou 'capital' circulam” (HANKS, 2005,
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p. 192). Embora os limites dos campos sociais não sejam claramente definidos, a participação num campo social envolve trabalho de demarcação de fronteiras, o que, por sua vez, levanta questões de poder e controle. Logicamente, para Hanks (ibid.), um campo dêitico é um espaço de prática onde os agentes comunicativos tomam posições “relativamente aos enquadres de participação que ocupam [...], às posições ocupadas por objetos de referência e às múltiplas dimensões pelas quais os primeiros têm acesso às segundas" (p. 193). Embora o acesso a um campo “dêitico” puramente gramatical não seja tão “controlado” como outros campos sociológicos, na medida em que a utilização dos shifters é uma questão de domínio de um sistema relativamente arbitrário, a prática dêitica sempre encaixa a dêixis em outros campos. Nas palavras de Hanks (ibid.), “através do encaixe (embedding), as relações sociais de poder, de delimitação, de conflito e de valor são fundidas com o campo dêitico.” (p. 193). Acreditamos que a ênfase de Hanks no significado material do encaixe de coordenadas situacionais – como falante, destinatário, objeto de referência e o espaço-tempo social de enunciação – em locais investidos com significado político é bastante relevante para compreender a importância de Marielle na política. Marielle representava uma grande parcela da sociedade brasileira – pessoas racializadas como negras e pardas (54,9% da população) e, dentro dessa parcela, especialmente as mulheres negras da periferia – que é sub-representada na política e sofre os piores efeitos do estado penal neoliberal (WACQUANT, 2009), como a convivência com a disputa (e ocasional cooperação) entre Estado e “mundo do crime” (BIONDI, 2014; FELTRAN, 2020), a violência contra os negros (ALVES, 2018) e o acesso restrito à saúde pública e outros serviços sociais (VALLADARES, 2005). A trajetória de Marielle na política representa a agência e a produção de soluções para a vida prática que os negros e residentes de favelas têm historicamente perseguido no Brasil. No século XIX, dada a ausência de políticas de habita-
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ção para as pessoas libertadas do longo e violento processo de escravatura do Brasil, que só foi abolido em 1888, ex-escravos e seus descendentes construíram as suas próprias casas em encostas no centro do Rio de Janeiro. Criaram, assim, seus próprios bairros. Hoje em dia, esses territórios estão sujeitos à extrema desigualdade econômica brasileira, mas são também locais de intensa criatividade e produção cultural. Marielle participou de atividades em vários coletivos, movimentos progressistas na Igreja Católica e ONGs nas favelas do Complexo da Maré que lhe proporcionaram formas de letramento cruciais para sua entrada na universidade como estudante de ciências sociais (em 2002) e para o seu ativismo político no Rio de Janeiro (ver FRANCO, 2018; SOUZA, 2020; DUNCAN, 2021). No final dos anos 2000, Marielle levou sua aprendizagem da favela para o mandato de Marcelo Freixo, então deputado estadual pelo PSOL. Em colaboração, eles conceberam políticas públicas focalizadas na segurança pública e nos direitos humanos. Em suas aparições públicas, Marielle encaixava, nos termos de Hanks (2005, p. 194), as suas coordenadas como falante e residente do Complexo da Maré em “locais aos quais o poder, o conflito, o acesso controlado e as outras características dos campos sociais se ligam”. Dada a sua trajetória em movimentos sociais e coletivos – e a sua eloquência como vereadora – Marielle politizou o campo dêitico. Um exemplo da natureza reflexiva do encaixe de Marielle no campo político, particularmente na política de gênero, foi uma palestra que ela deu no 3º Seminário Feminista do IESP/UERJ (FRANCO, 2017). Vale a pena notar neste estudo de caso que Marielle proferiu essa palestra em maio de 2017, no momento político conturbado que se seguiu ao controverso impeachment de Dilma Roussef. Correa e Kalil (2020) fazem um importante diagnóstico da relação entre a política antigênero, no Brasil, e a guinada política conservadora desde o impeachment de Roussef em 2016. As autoras escrevem que “a dinâmica da res-
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tauração conservadora” no Brasil “atingiu o seu auge com o impeachment, [momento em que] os ataques ao gênero para além do domínio religioso se tornaram mais propícios” (CORREA; KALIL, 2020, p. 64). A aliança entre o neoliberalismo existente e os valores familiares (ver COOPER, 2017; BROWN, 2019; BUTLER, 2019) já estava em curso no Brasil, mas a guinada à direita com a derrubada de Rousseff consolidou a combinação entre a economia de livre mercado e uma agenda conservadora, para o gênero e a sexualidade. É, portanto, nesse contexto mais amplo em que o gênero passou a ser uma palavra perigosa que Marielle se dirigiu ao grupo de participantes no seminário feminista. Enquanto Marielle falava aos pares em sociologia, ela invocou a sua formação no campo para analisar a configuração espacial e social da Câmara Municipal – um local de poder com o qual ela se familiarizava. Ela queria, em suas próprias palavras, “olhar aquilo como trabalho de campo”. No excerto 1, Marielle descreve a configuração espacial do poder na câmara municipal e comenta a “dinâmica da restauração conservadora” (CORREA; KALIL, 2020, p. 31) no legislativo municipal. Mais especificamente, Marielle elabora sobre o movimento por parte do grupo conservador da câmara para eliminar a palavra “gênero” do plano de educação da cidade:
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Excerto 1. Fala de Marielle para o 3o Seminário Feminista – IESP/UERJ [12 maio 2017] 72 Pra você ter uma ideia é- a audiência não a de hoje, mas duas passadas, era um campo de fla flu, era um lugar aonde as faixas falava (.) pra gente que tem esse lugar não da socióloga, mas do acumulo da diversidade de conhecimento que não é só o IESP, mas de quem tá absorvendo e lendo e relendo o mundo por exemplo a perspectiva de família lembrava o TFP ((Movimento Tradição, Família e Propriedade)), lembrava o lugar apenas da tradição, da família, da propriedade, do capital (.) eram faixas escritas exatamente nesse sentido, pela família tradicional, em letras garrafais (.) então a minha família, com a minha filha e a minha companheira ((ela vira para Selma)) a família da sua filha sob hipótese alguma tá:: incluída no lugar do plano municipal de educação e do conjunto dos vereadores ((2:40min omitidos)) quem é professor deveria olhar aquilo como trabalho de campo, eu sou professora (.) aí você vê, assim, têm os CDF da frente (.) e tem uma galera do fundão, claro que eu estou escrotizando e fazendo o estereótipo, mas tem uma galera do fundão (.)e o líder do governo Paulo Messina fala assim: ei, vota assim (.) é assim, é literalmente desse jeito (.) QUE QUE É, HEIN? seria ótimo se não fosse trágico
Marielle começa comparando a sessão plenária com um jogo de futebol. Depois, ela contrasta a disposição espacial habitual na câmara com uma sala de aula. A atmosfera de um estádio de futebol ajuda Marielle a explicar o envolvimento afetivo dos ativistas que se opõem à discussão do gênero nas escolas. Como fãs de futebol, eles trouxeram uma faixa promovendo a “defesa da família tradicional”. Ao descrever esses Utilizamos uma versão simplificada do Sistema de Convenções de Transcrição Jefferson: (.) Uma micropausa [] Falas sobrepostas (( )) Comentários dos analistas Sublinhado Um aumento de volume ou ênfase MAIÚSCULAS Palavras gritadas <palavra> Ritmo de fala decrescente (falando devagar) = Indica que não houve pausa entre as frases :: Som alongado 72
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eixos de espaço, tempo e valores, Marielle é ao mesmo tempo crítica e bem-humorada. Isso fica evidente em sua descrição da típica ordem espacial numa sessão de votação no parlamento, que se assemelha a uma sala de aula estereotipada onde os "nerds" se sentam à frente e os "preguiçosos" se sentam atrás. Essa configuração, em que o líder da bancada "literalmente" grita aos que estão atrás como votar, é o epítome das coalizões políticas no Brasil. Essa ordem espacial é também uma ordem temporal: na sessão plenária, houve uma bandeira que ecoava o movimento conservador Tradição Família e Propriedade (TFP); o espaço da câmara, acrescentou Marielle, itera o tempo do “eurocentrismo, da hierarquia e da dominação”. Marielle delineia essas configurações espaço-temporais para enfatizar a importância de encaixar suas coordenadas de fala nesse espaço de forma diferente. Coerentemente com sua etnografia informal do poder, Marielle projeta um campo dêitico oposto, no qual ela frequentemente se refere a si mesma como “nós”. Sua racionalização para o uso desse pronome foi que ela não chegou lá sozinha (havia os eleitores que ela representava, além de seu gabinete majoritariamente feminino). Além disso, ela afirmou que seu corpo negro simbolizava resistência coletiva. Em suas palavras: “estar na câmara municipal hoje” não é “sobre minha vida Marielle (...), não é minha identidade (...) na minha-nossa perspectiva, (...) é o lugar do coletivo”. A hesitação de Marielle em usar “minha” para explicar sua perspectiva e seu uso constante de “nós” para falar de si mesma indexam, além disso, sua projeção de um campo dêitico que faz referência a um coletivo de mulheres, que como ela “estão resistindo e ocupando [a câmara através] do corpo de uma mulher, negra, da favela, bissexual”. Marielle também diz que muitas vezes é considerada inadequada em espaços de elite. Ela era a única mulher negra no parlamento e frequentemente lidava com perguntas invasivas de seus colegas brancos sobre seu turbante e seu cabelo natural. Ela recordou uma situação em que foi interpelada à distância por um guarda de segurança que não
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a reconheceu. Quando ela passou pela entrada, o segurança gritou: ‘Ou! Ou! Ou!”. Ao recontar o incidente, Marielle reproduziu seu olhar de surpresa e comentou: “Aí não acreditei, né, aqueles dez segundos. Aí eu voltei e olhei, e aí homem negro, né? Colega, o irmão.” Sua resposta foi pedagógica: “não acredito que já estou aqui há dois meses e você não me reconheceu. Ah, mas tudo bem, a gente qualquer dia desse vai fazer uma oficina com os seguranças para vocês entenderem que não pode tratar ninguém assim.” As observações de Marielle mostram não apenas como o tempoespaço parlamentar é ligado ao racismo, sexismo e homo-lesbo-transfobia, mas também como ela pretendia habitá-lo de forma diferente. Em consonância com movimentos populares que adicionam inflexões inovadoras femininas ou neutras de gênero em palavras masculinas, vistas como “não marcadas” em ideologias linguísticas cientificistas (ver BORBA, 2019), Marielle apelidou seu gabinete de “mandata”, aplicando assim criativamente o morfema de gênero -a à palavra “mandato”, que não tem correlato feminino. A mandata era composta principalmente de mulheres, incluindo uma mulher transexual, Lana de Holanda, cuja presença no seminário foi constantemente referenciada por Marielle: “E aí a gente chega naquela casa, não é Lana? E não chega sozinha.” A presença de Lana na mandata também deu suporte ao movimento de resistência de Marielle aos vereadores que veem gênero como uma “palavra contagiosa” (BUTLER, 1997; MISKOLCI, 2018). Marielle lembrou que a palavra gênero “agora (...) virou um xingamento” tal que alguns tentaram retirá-la de todas as leis da cidade, incluindo a legislação alimentar (alguns vereadores viam como perigosa a palavra gênero em “gênero alimentício”). Marielle narra o seu confronto com um vereador:
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Excerto 2. Fala de Marielle para o 3o Seminário Feminista – IESP/UERJ [12 maio 2017] Tem um vereador da base que falou textualmente, Marielle, vamos [trocar gênero por] homem e mulher (.) eu falei, não dou conta, eu faço o que com a Lana? ((Ela aponta para Lana de Holanda, que está na plateia)).
Marielle contesta, assim, o fato de o vereador negar o direito de Lana de fazer parte da letra da lei. Este estudo de caso sobre a prática comunicativa de Marielle mostra seu encaixe alternativo de coordenadas de fala dêiticas na política – desafiando, assim, as relações indexais hegemônicas no Brasil. Em sua ação parlamentar, Marielle projetou um campo dêitico no qual índices como “eu”, “nós”, “aqui”, “agora” e “amanhã”, juntamente com o corpo e o olhar, invertem os valores denotacionais que a maioria dos políticos brancos e homens têm historicamente tentado estabilizar no Rio de Janeiro e no Brasil de forma mais ampla. Em outras palavras, enquanto os políticos do Brasil se engajaram em destacar a individualidade e a comunidade política branca, masculina, heterossexual, racista e antiLGBTQIA+ como referências do aqui e agora da política, Marielle há muito tempo vinha trabalhando para desestabilizar as presumidas relações referenciais neste campo dêitico.
Bolsonaro e a ausência presente da ideologia de gênero Em março de 2018, um ano após o discurso que analisamos, a vereadora e seu motorista Anderson foram assassinados. Esse assassinato político foi um importante marco do ano eleitoral de 2018 – outros eventos importantes foram a controversa prisão de Lula, o líder de intenções de voto para presidente, em abril, e o esfaqueamento de Jair Bolsonaro em setembro, um mês antes das eleições. A família Bolsonaro extraiu desses eventos parte da força eleitoral que permitiu a Jair
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ser eleito presidente e seus filhos Flávio e Eduardo serem eleitos respectivamente para o Senado pelo Rio de Janeiro e para a Câmara dos Deputados por São Paulo (Carlos preferiu manter seu cargo de vereador do Rio de Janeiro enquanto coordenava a campanha digital de seu pai). Durante o ano eleitoral, a família Bolsonaro e os candidatos bolsonaristas citaram Marielle como um exemplo da suposta perversão da ideologia de gênero e do feminismo. Enquanto a próxima seção desvenda a importância de Marielle como um "espelho invertido" (CESARINO, 2019) para o movimento bolsonarista que estava tomando corpo em 2018, este estudo de caso detalha a midiatização que Jair Bolsonaro fez de uma narrativa heroica por meio da dêixis – alegadamente para restaurar uma ordem natural que havia sido deturpada por progressistas como Marielle. O presente estudo de caso analisa, assim, a entrevista de Jair Bolsonaro para o Jornal Nacional como candidato à presidência, em 28/08/2018. Nela, Bolsonaro encaixou o aqui e agora da enunciação em um campo político supostamente ameaçado pela ideologia de gênero. No entanto, antes de analisarmos essa interação ao vivo, gostaríamos de discutir brevemente a midiatização que a família Bolsonaro fez de uma suposta restauração da ordem "natural" de gênero. Essa ação coordenada ilustra o nó brasileiro dos discursos transnacionais contemporâneos que conectam ideologia de gênero, nacionalismo e economia de mercado. Wendy Brown (2019) argumenta que o enlace da "moral tradicional" (isto é, religião, patriotismo e família heterossexual patriarcal) com a economia neoliberal não é novidade, mas já estava inscrito nas primeiras formulações do pensamento neoliberal, tais como concebidas por estudiosos como Friedrich Hayek e Milton Friedman. Segundo Brown (2019, p. 12), Hayek acreditava que “os mercados e a moral, em conjunto, são a base da liberdade, da ordem e do desenvolvimento da civilização. Ambos são organizados espontaneamente e transmitidos
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pela tradição, ao invés do poder político." Assim, os próprios fundadores do neoliberalismo vincularam a moralidade tradicional à “preservação do passado com o patriotismo, projetando este último não apenas como amor à pátria, mas como amor à maneira como as coisas já foram, o que torna as objeções contra a injustiça racial e de gênero antipatrióticas.” (p. 14). As alianças que Bolsonaro fez com representantes do mercado, como Paulo Guedes, proprietário de um banco de investimento, que estudou com Milton Friedman, na Universidade de Chicago, não foram meramente coincidentes (GASPAR, 2018). Assim, o desenlace dos valores familiares, por Bolsonaro (que teria libertado esses valores das amarras do politicamente correto, por exemplo), foi visto como consistente com os esforços do atual ministro da economia Guedes, para libertar a economia das restrições da socialdemocracia. Significativo para essa cruzada de restauração moral e econômica foi o apoio pioneiro que Flávio e Carlos Bolsonaro ofereceram ao Movimento Escola sem Partido, iniciado por Miguel Nagib, um promotor que colaborou com o Instituto Millenium, um think tank liderado por Guedes. Em 2003, Nagib encenou, em frente à escola que sua filha frequentava, um protesto contra o que ele via como doutrinação comunista. O protesto não atraiu muita atenção, e o movimento permaneceu marginal. Entretanto, a campanha de Nagib por uma educação sem socialismo começou a ganhar autoridade, depois que ele entrou para o Instituto Millenium, no final dos anos 2000. No início dos anos 2010, movimentos religiosos na Europa e na América Latina disseminaram cada vez mais o termo “ideologia de gênero” (KUHAR; PATERNOTTE, 2017), e Nagib rapidamente incorporou esse léxico. Em 2014, Flávio e Carlos Bolsonaro apresentaram às suas casas legislativas do Rio de Janeiro projetos similares escritos por Nagib, em uma primeira tentativa de transformar os ideais neoliberais antigênero do movimento em política educacional (CIAVATTA, 2017). Seu pai também ajudou a delinear o registro antigênero que se tornou um símbolo emblemático, identificando um campo político
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(BORBA, no prelo). O campo dêitico que o então candidato presidencial invocou, durante uma entrevista ao vivo com o Jornal Nacional, demonstra sua capacidade de transformar o espectro da ideologia de gênero em verdadeira ansiedade. Em seu uso ardiloso da dêixis, ele viola as regras do debate e mostra um livro de educação sexual (BRULLER; BRULLER, 2007) para a câmera (Figura 1). No campo dêitico, projetado por Bolsonaro, o livro fisicamente presente evidencia uma trama esquerdista para perverter as crianças em idade escolar. Além disso, Bolsonaro argumenta falsamente que o livro fazia parte de um projeto de 2010, de distribuição de materiais de educação sexual nas escolas, o qual ele notoriamente apelidou como “kit gay”, na época. Ele acrescenta que o kit foi distribuído em uma conferência LGBT infantil, que ele teria testemunhado no congresso. (A Conferência Nacional LGBT não era uma conferência infantil, mas uma conferência entre adultos que discutia a sexualidade na infância e adolescência). Os entrevistadores, Renata Vasconcellos e William Bonner, inicialmente, parecem aceitar sua exibição da capa do livro, mas quando Bolsonaro adverte o público para tirar as crianças da sala porque ele mostrará imagens impróprias, dentro do livro, Vasconcelos e Bonner o desencorajam a fazê-lo. Excerto 3. Entrevista de Bolsonaro para o Jornal Nacional [28 agosto 2018] (JB = Jair Bolsonaro, RV = Renata Vasconcelos, WB = William Bonner) 01
JB
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RV
03
JB
entre esse material, Bonner, estava esse livro lá, Bonner (.) então, o pai que tenha filho na sala agora, retira o filho da sala, para ele não ver isso aqui (.) se bem que na biblioteca das escolas públicas tem [olha [CANDIDATO, vou pedir para o senhor não mostrar se as crianças não podem ver= =não, mas é um LIVRO ESCOLAR, é para CRIANÇA, É UM LIVRO PARA A CRIANÇA, OS PAIS NÃO SABEM QUE ISSO ESTÁ NA [BIBLIOTECA
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WB
05
JB
[nós temos uma regra (...) os candidatos não mostram documentos, eles não mostram papéis= =não, mas está aqui no livro, uma prova, isso daqui.
Figura 1. Bolsonaro mostrando um livro de educação sexual, como evidência de uma suposta doutrinação ideológica
Fonte: elaboração dos autores
Bolsonaro invoca o aqui e agora da interação, para produzir um campo epistêmico de verdade, medo e moralidade. Embora o livro nunca tenha sido parte do projeto frustrado do PT de fazer avançar materiais educativos anti-homofobia, por meio da dêixis, o livro se torna evidência de uma trama perversa: “está aqui no livro, uma prova, isso daqui”. Nesse campo dêitico, a autoridade epistêmica também é invocada para alarmar os pais (“o pai que tenha filho na sala agora, retira o filho da sala, para ele não ver isso aqui”) e para fomentar indignação (“se bem que na biblioteca das escolas públicas tem”). E, mesmo que os entrevistadores não se alinhassem ideologicamente com Bolsonaro, eles ajudaram a projetar a “presença” da pornografia infantil e da ideologia de gênero, ao pedirem para ele não mostrar as imagens, no momento
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presente da interação. Interacionalmente, Bolsonaro e os entrevistadores pressupõem que as imagens pornográficas estão “lá” – e por implicação, que as supostas imagens ofensivas teriam sido distribuídas, como parte do suposto “kit gay”. Esse amálgama dêitico – composto pelo livro, o semblante sério de Bolsonaro, as imagens potencialmente pornográficas a serem mostradas, o pressuposto dos entrevistadores de que as imagens existem e as posturas corporais e arranjos familiares simultâneos a serem realizados – criam uma metafísica da presença (DERRIDA, 1978), que fundamenta a verdade, o afeto e a moralidade, no presente da enunciação. Embora os índices dêiticos de Bolsonaro (por exemplo, “está aqui no livro, uma prova, isso daqui”), de um ponto de vista estritamente lógico-semântico, não tenham representado com exatidão os referentes factuais no mundo “lá fora”, na medida em que nenhum “kit gay” desse tipo jamais existiu, esses índices foram interativamente eficazes na produção desses referentes “no mundo”, ao mesmo tempo em que projetaram uma imagem invertida da esquerda, para um amplo público que assistiu à entrevista da Rede Globo. Dessa forma, Bolsonaro combina a proteção das crianças e a estrutura familiar heteronormativa, com a defesa da nação. Fundamentalmente, este estudo de caso ressalta a importância dos índices linguísticos – e em particular dos índices dêiticos – para fornecer o terreno epistêmico sobre o qual uma agenda política pode ser reivindicada ou avançada. Mesmo que os referentes no mundo, tais como “kit gay” ou “ideologia de gênero”, não existissem como objetos a serem representados, segundo uma ideologia de linguagem referencialista, a “presença” (ausente) de tais objetos foi performativamente produzida por Bolsonaro, no campo dêitico, pela utilização ardilosa da imagem, corpo, conversa e interação – tanto com os entrevistadores como com os pais preocupados. No próximo caso, conectaremos essa produção de presença, no aqui e agora da interação, com as projeções
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diferenciadas de Marielle, pelo campo bolsonarista e pelo movimento de luto pela vereadora.
“Marielle, presente” Nosso terceiro estudo de caso fornece evidências de como outros agentes, nesses campos políticos opostos, tomaram posições no espaço dêitico – e de como esses agentes, ao encaixarem coordenadas espaço-temporais no campo político, produzem diferentes modos de habitar a política de gênero. É importante destacar, neste caso, a centralidade da construção da "presença" de Marielle – seja como um espelho invertido do bolsonarismo, seja como uma heroína ou mártir que se faz presente para os movimentos sociais progressistas. Começamos descrevendo um comício, no turbulento ano eleitoral de 2018. Em Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro, três candidatos pró-Bolsonaro quebraram uma placa de rua em homenagem a Marielle Franco. Vestindo camisetas amarelas e verdes iconizando nacionalismo, Daniel Silveira e Wilson Witzel, respectivamente candidatos a deputado federal e governador, se revezaram para filmar o comício. Vestindo uma camiseta preta com o rosto de Bolsonaro estampado, Ricardo Amorim, candidato a deputado estadual, usava um microfone para se dirigir ao público. Excerto 4. Candidatos fazem comício em cima de um carro de som [3 October 2018] (DS = Daniel Silveira, RA = Rodrigo Amorim, WW = Wilson Witzel) 01
DS
02 03
WW RA
((falando para a câmera do telefone)) fala pessoal, Daniel Silveira, juiz Wilson Witzel [vinte [isso aí [((RA fala para o público, que os ovacionam))
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DS
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WW
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RA
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RA
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DS
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RA
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Povo
((para a câmera; as pessoas gritam da rua)) nosso candidato ao governo, estamos em Petrópolis, quero que vocês entendam a nossa força (.) AQUI NINGUÉM VAI TER BANDEIRA VERMELHA (.) ESSA É A NOSSA FORÇA ((para a câmera)) estamos aqui com (.) nosso candidato a deputado federal, tamo junto, Daniel (.) ele vai ser uma voz no congresso nacional, aqui da região serrana de Petrópolis ((as pessoas os ovacionam da rua)) ((falando para a multidão)) eles estão perdidos (.) eles vão ter dias MUITO DIFÍCEIS na ALERJ (.) porque eu vou sentar o dedo nesses VAGABUNDOS DE ARAQUE (.) eu quero dizer o seguinte, pra terminar, pra terminar (.) MARIELLE, a MARIELLE foi assassinada (.) [mais de 60.000 brasileiros morrem todos os anos ((falando para alguém na multidão)) [pega a placa, A PLACA NO CARRO, A PLACA (.) A PLACA, A PLACA, PEGA A PLACA ((falando para a multidão)) esses vagabundos fizeram- esses vagabundos- eu vou dar uma notícia pra vocês (.) esses vagabundos, eles foram na Cinelândia, e à revelia de todo mundo eles pegaram a placa (.) da praça Marechal Floriano no Rio de Janeiro e trocaram por uma placa escrita Rua [Marielle ((a multidão emite vaias)) [A PLACA, A PLACA ((ele pega a placa, que está partida ao meio, e exibe à multidão)) eu, eu, eu e Daniel fomos lá e QUEBRAMOS A PLACA ((a multidão ovaciona)) Jair Bolsonaro (.) Jair Bolsonaro sofreu um atentado à democracia ((ao ser esfaqueado)) e esses canalhas calaram a boca (.) por isso A GENTE VAI VARRER ESSES VAGABUNDOS ((Daniel exibe a placa quebrada para a multidão, que urra)) ACABOU PSOL, ACABOU PCdoB, ACABOU ESSA PORRA AQUI ((ele aponta para a placa)) agora é Bolsonaro PORRA MITO, MITO, MITO, MITO
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Figura 2. Placa de Marielle Franco quebrada ao meio
Fonte: elaboração dos autores
Essa interação foi altamente citada e comentada durante a eleição (Figura 2). Deiticamente, os três candidatos invocam um origo espacial e temporal que é então mapeado para o cenário político. Eles falam a partir de um “aqui” (Petrópolis), um lugar que encena sua “força” e que é trazido para suportar a “limpeza” da bagunça “lá”, na praça onde a Câmara Municipal do Rio está localizada, Marielle trabalhou e “esses vagabundos” estão aos montes. Temporalmente, Amorim indexa uma época que começa a mudar (“agora é Bolsonaro, porra") e não acolhe o tempo-espaço de Marielle (“acabou essa porra aqui”, diz ele enquanto aponta para a placa). Todos os três candidatos desse comício foram eleitos. (Em 2021, no entanto, Daniel Silveira teve seu mandato de deputado federal cassado, devido a ameaças a ministros do STF; Witzel sofreu impeachment no governo do Estado por diversos crimes cometidos, incluindo superfaturamento de respiradores e suspeitas nas licitações para hospitais de campanha). Em sua exibição pública da presença da placa de rua quebrada, os candidatos invocam a força epistêmica da dêixis para encenar o ódio a Marielle como epítome de “um longo, duradouro e fundador
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ódio ao povo negro” (ALVES; VARGAS, 2020, p. 645). Como na exposição de Bolsonaro do livro sobre educação sexual, uma metafísica da presença é produzida no aqui e agora da interação para fundamentar construções políticas mais amplas. No entanto, em vez do pavor da pornografia infantil, é a violência generificada antinegros que estrutura a presença da interação no comício de Petrópolis. Em sua leitura das posicionalidades racializadas no mundo colonial delineadas por Fanon (1969), Alves e Vargas (2020, p. 652) escrevem que, em “um mundo antinegro, o sujeito negro é parte de um campo assimétrico de posicionalidades estruturadas, já que sua presença física única é uma ameaça, mas sua ausência simbólica é inimaginável”. Nesse sentido, a “presença” de Marielle é simultaneamente necessária e abominada pelos candidatos bolsonaristas. A presença espectral de Marielle é assim invocada por Witzel, Amorim e Silveira, como ocupando uma posição central pavorosa, nesse origo político. Essa dinâmica afetiva talvez seja melhor exemplificada em 07, quando Silveira grita freneticamente para que alguém na multidão lhe traga a placa. Sua ansiedade em exibir a placa arrancada indica que o momento atual da interação é também um momento que acumula história. O acúmulo histórico a que nos referimos é a violência constitutiva sobre a qual o Brasil foi fundado (STARLING; SCHWARZ, 2018): o país que mais escravizou os africanos durante o colonialismo europeu, onde seus descendentes são a maioria da população (negros e pardos são 54,9% da população), e, ainda assim, são os mais afetados pelo racismo estrutural, pela violência policial e pela desigualdade econômica. No turno 06, Amorim indexa essa história antinegra acumulada, ao reformular o discurso de que o assassinato de Marielle foi um crime contra a democracia. Para ele, o único e verdadeiro atentado à democracia teria sido o esfaqueamento de Bolsonaro, ocorrido um mês antes. Amorim, assim, desvaloriza o assassinato da vereadora, reenquadrando-o como um assassinato comum, em um país onde cerca de
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“60.000 brasileiros” perdem a vida anualmente para o crime violento. Segundo o Fórum de Segurança Pública do Brasil, em 2017, 65.602 pessoas foram assassinadas no país – uma estatística chocante que representou um aumento de 4,9% em relação a 2016 (CERQUEIRA et al., 2019). O estudo também aponta que 75,5% das vítimas são pessoas negras. No entanto, em seu eco ao discurso de Bolsonaro, Amorim apresenta essa estatística tanto como mundana (o assassinato de Marielle seria apenas um entre milhares) quanto como justificativa para uma agenda de lei e ordem (que ajudou a elegê-los). Além disso, ao tornar a vida de Marielle descartável e sua morte como apenas mais uma estatística, Amorim produz a “presença” de Marielle através de uma inversão de seu legado: para ele, a valorização da vida dela deve ser abominada; na mesma linha, Jair Bolsonaro foi quem “sofreu um atentado à democracia (ao ser esfaqueado), e esses canalhas calaram a boca”. Marcos Nobre (2020) argumenta que o atual governo de extrema-direita apresenta a “verdadeira democracia” como um retorno ao passado ditatorial. A ordem dêitica bolsonarista é “conservadora”, especialmente em seu sentido temporal. Após o evento, Flávio Bolsonaro racionalizou que os candidatos, ao quebrarem a placa de Marielle, “nada mais fizeram do que restaurar a ordem” (MAIA, 2018). Ele explicou que a praça recebeu o nome oficial de Marechal Floriano Peixoto (um ex-presidente e um “verdadeiro” democrata nesse registro), e que “o PSOL acha que está acima da lei e pode mudar nome de rua na marra”. Amorim, Silveira e Witzel estariam apenas corrigindo uma “ilegalidade”. Após a destruição da placa, o movimento de luto de Marielle reagiu rapidamente. Os enlutados já vinham reivindicando a “presença” da vereadora, desde que ela foi assassinada. Assim, o movimento encaixou sua resposta semiótica à quebra da placa, na “temporalidade metalética” (SILVA; LEE, 2021), que já vinha sendo construída para o tempo e espaço de Marielle. Em teoria narrativa, a metalepse é a transgressão entre universos narrativos (GENETTE, 1980), por exemplo, quando um
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personagem de um romance sai do registro “narrado” e entra na “narração”, onde se localiza o leitor. Enquanto escrevemos este artigo, o movimento de luto ainda fala de Marielle no presente (Figura 3), como se ela tivesse transcendido o tempo e o espaço dos falecidos, e voltado para o mundo dos vivos. Figura 3. Faixa “Marielle vive” exibida por manifestantes em Melbourne, Austrália (Fenizola 2019)
Fonte: elaboração dos autores
Os ativistas também dizem que Marielle é "semente", o que significa que esse tempo metaléptico é prospectivo e visa multiplicar sua influência. Pouco depois do comício viral, o movimento de luto criou uma campanha de financiamento coletivo para imprimir centenas de placas de rua. Desafiaram, assim, o racismo ostensivo, a lesbofobia e a violência de gênero do comício em Petrópolis. Com a hashtag #MarielleMultiplica, essa ação concertada se espalhou por diferentes cidades do mundo (ver Figuras 4, 5, e 6).
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Figura 4. Parlamentares municipais e estaduais em frente à Câmara Municipal do Rio de Janeiro (Fenizola 2019)
Fonte: elaboração dos autores Figura 5. Protesto em Lisboa, Portugal (Fenizola 2019)
Fonte: elaboração dos autores
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Figura 6. Estação de metrô Rio de Janeiro, em Buenos Aires, Argentina (Fenizola 2019)
Fonte: elaboração dos autores
Hoje, mais de 18.000 placas foram produzidas e distribuídas em todo o mundo (ver https://www.ruamariellefranco.com.br). Espacialmente, as Figuras 3, 4 e 6 exemplificam a projeção do campo dêitico de Marielle para lugares como Melbourne, Lisboa e Buenos Aires. Crucialmente, essa ação global e concertada sugere que a projeção metalética do tempo e do espaço do luto – ou seja, a projeção retroativa de Marielle, em temporalidades e espaços onde ela habita, agora, tardiamente – cresce a partir das “sementes” que ela vinha plantando. Por exemplo, enlutados em cidades, como Rio, Melbourne, Lisboa e Buenos Aires, passaram a habitar suas inversões no espaço dêitico: eu não sou um “eu”; eu sou um “nós”. Ou: não somos uma comunidade que habita uma cidade delimitada; estamos unidos pela “presença” de Marielle e seu legado ao redor do mundo. Marielle está metalepticamente lá com eles – de fato, com apoiadores em todo o mundo, em lugares onde Marielle, durante sua vida biológica, talvez nunca tenha estado.
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Conclusão Neste artigo, abordamos a política no Brasil contemporâneo, a partir do ponto de vista do discurso dêitico. Mais especificamente, olhamos para a centralidade de Marielle Franco, no momento político atual do Brasil, tanto como uma “inimiga”, frequentemente evocada pela direita, quanto como um símbolo de esperança para o campo progressista. Hanks (2008, p. 11) discute que uma função pragmática básica do discurso dêitico é “estabelecer uma relação entre um origo e um objeto de referência”. Em sua abordagem etnográfica da dêixis, Hanks questiona quadros “egocêntricos” de dêixis que concebem índices dêiticos como “eu”, “nós”, “você”, como meros indicadores da proximidade de objetos de referência a um locutor. Para Hanks (ibidem), a “ideia de que a proximidade física é o núcleo do significado dêitico” pode funcionar bem para enquadres epistêmicos que assumem, de um lado, o sistema dêitico do inglês e, de outro, uma ideologia de linguística de que o significado emerge de um indivíduo circunscrito e fisicamente presente; no entanto, outras línguas podem privilegiar outros origos, tais como o destinatário, ou uma relação entre o falante e o destinatário, ou mesmo algum outro aspecto do contexto. Em sua crítica, Hanks (ibid., p. 10) sustenta que não é a proximidade física que está na base da deixis, mas sim “o acesso (perceptivo, cognitivo, social) que os participantes têm ao referente”. Acreditamos que nossas análises podem contribuir para conceitualizações existentes sobre a dêixis, na medida em que trazemos para o cerne a construção da “presença”, não em termos físicos, mas, sim, em termos culturais e ideológicos. A produção de Bolsonaro de uma metafísica da verdade, com base em um objeto imaginário (ideologia de gênero), que estaria aparentemente presente em um livro de educação sexual, e as diferentes invocações da “presença” de Marielle, na interação, demonstram a importância desses objetos referenciais “ausentemente presentes” (ideologia de gênero e Marielle Franco) na conturbada política brasileira contemporânea.
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Nossos estudos de caso sobre a projeção do campo dêitico, na arena política, apontam para outras duas conclusões. Primeiro, as situações de linguagem em interação que analisamos evidenciam a performatividade da dêixis. Ao longo dos casos, os índices linguísticos – e os índices dêiticos, em particular – são usados para convocar à existência determinados entendimentos de tempo, lugar e mundo. Os participantes desses eventos invocaram um campo experiencial para projetar modos interessados de habitar a política, com consequentes efeitos para a arena política contemporânea no Brasil. No primeiro caso, olhamos para a própria Marielle e para as formas pelas quais ela politizou seu acesso ao espaço experiencial do legislativo municipal. Ela denunciou o impedimento de seu acesso como mulher negra à câmara. Ao politizar o seu aqui e agora de enunciação, na política, ela inverteu relações de gênero e raça estabelecidas no Brasil. Além disso, ela posicionou metalepticamente as mulheres negras, as minorias sexuais e os pobres como “originadores” e “agentes” da mudança política (ver FRANCO, 2018; KHALIL; SILVA; LEE, no prelo), além de projetar sua posição de falante não como um “eu”, mas como um “nós”. No segundo caso, abordamos o uso ardiloso da dêixis por Jair Bolsonaro em uma entrevista presidencial para invocar a ameaça “presente” da “ideologia de gênero” e da pornografia infantil; e embora Marielle não seja mencionada na entrevista, sua negritude generificada é outra presença espectral ali, na medida em que o sujeito negro é “sempre e desde já a não-referência” da supremacia branca e, portanto, do bolsonarismo. Dito de outro modo, a pessoa negra, e Marielle em particular, “fornecem o ponto fixo contra o qual todas as outras posicionalidades alcançam o peso social, mas sua presença é negada, apagada, ignorada” (ALVES; VARGAS, 2020, p. 645). No terceiro caso, olhamos para a convocação explícita de Marielle pelos candidatos políticos bolsonaristas e pelos enlutados. Destacamos a importância dos índices para a invocação da “presença” de Marielle: ao exibirem a placa de rua arrancada, Witzel, Amorim e Silveira delineiam
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um campo dêitico onde a “presença” de Marielle é o epítome da nãoreferência da pessoa negra (FANON, 1969; ALVES; VARGAS, 2020, p. 645), ou seja, sua vida é negada como uma vida a ser lamentada, mas sua “ausência é inimaginável”. Também discutimos a resistência a essa não-referência por meio da fractalização temporal e espacial do aquiagora de Marielle: os enlutados responderam ao violento dilaceramento midiatizado da placa de Marielle, multiplicando as placas e fazendo-as “germinar” em outras cidades ao redor do mundo. Ao exibir a placa de Marielle em todo o mundo (e direto de suas casas, nas interações virtuais no contexto da pandemia), os enlutados têm dito constantemente que Marielle está com eles e elas, deiticamente, “presente”. Para concluir, discutiremos como a temporalidade negra e queer de Marielle desafia a temporalidade nacionalista. O apelo à moralidade no discurso nacionalista muitas vezes depende da figura da criança: eventos como a invocação de Bolsonaro de crianças vulneráveis recebendo “kits gays” e os protestos contra a vinda de Judith Butler ao Brasil, em 2017, acusada por manifestantes reacionários de “pedófila” (BUTLER, 2017), demonstram como a preservação da nação e da família se entrelaçam retoricamente. De acordo com essa narrativa natural, o corpo feminino é síncrono ao destino linear da nação – continuidade, ordem e progresso. Portanto, interromper essa narrativa significa não apenas romper com uma ordem biológica, mas também com uma ordem temporal. O corpo negro e lésbico de Marielle realiza necessariamente essa dupla ruptura. Ao repudiar a inevitabilidade da heterossexualidade, as relações sexuais queer desafiam a naturalidade da reprodução e a família nuclear. O parentesco que não depende ou não sustenta os direitos de propriedade patriarcais altera a ordem nacional projetada sobre o corpo reprodutivo feminino. Além disso, Marielle complexificou essa linha nacionalista “natural”, pois ela era também uma mulher negra. Ou seja, ela desafiou o discurso nacionalista da continuidade centrado em “ordem e progresso”, que é também o discurso
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de uma nação branca ou embranquecida. O ativismo de Marielle oferece alternativas aos discursos de linearidade heteronormativa de supremacia branca, na medida em que ela habitava um estado estratégico e crítico do devir: “essa temporalidade (...) não é a do Cronos, do tempo linear cujo próprio nome sinaliza mitologicamente a linhagem (no antigo mito grego, Cronos é pai de Zeus); ao contrário, as contingências das identidades queer podem estar mais próximas do tempo de Kairos, o momento de oportunidade” (McCALLUM; TUHKANEN, 2011, p. 8-9). A lesbianidade negra de Marielle perturba, assim, a estabilidade temporal da supremacia branca. A “presença” queer e negra de Marielle e a disseminação póstuma dessa “presença” por diferentes escalas espaciais e temporais mundo afora ressaltam o potencial transformador das “experiências não reguladas pelo tempo do ‘relógio’ ou por uma conceituação do presente como singular e fugaz; trata-se de experiências que não se reduzem à ideia de que o tempo avança constantemente, que ele é escasso, que vivemos em um único plano temporal" (DINSHAW et al., 2007, p. 185). Marielle politicamente abraçou – e, como figura metaléptica, abraça – essas rupturas. Sua presença coletiva na Câmara e, hoje, no campo progressista que reivindica suas “sementes”, redefine o aqui e agora do conservadorismo de direita.
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Reflexões para uma virada epistêmica feminista no Ensino de Ciências: A Decolonialidade como possibilidade Reflections for a feminist epistemic turn in Science Teaching: Decoloniality as a possibility Maíra Caroline Defendi Oliveira1 Simone Ribeiro2 1 Doutoranda em Educação Científica e Tecnológica-PPGECT, UFSC, Florianópolis, Brasil. E-mail: mairadefendioliveira@gmail.com / Orcid: http://orcid.org/0000-0002-5386-5054. 2 Doutoranda em Educação Científica e Tecnológica-PPGECT, UFSC, Florianópolis, Brasil. E-mail: zenlua@gmail.com / Orcid: http://orcid.org/0000-0003-0873-4474.
Introdução
N
ESTE TEXTO, trazemos reflexões sobre dados oficiais de violência de gênero e feminicídio no Brasil, sobre o conceito de colonialidade de gênero e possíveis articulações dessas questões, na Ciência e no seu ensino. Tendo em vista que campos teóricos e conceitos são pontuados como áreas em constante disputa, apresentamos questões que são estudadas e desenvolvidas por distintos grupos: estudos Pós-Coloniais, Decoloniais, Epistemologias do Sul, Estudos Feministas, Feminismo Decolonial e Feminismos Negros. Não temos a pretensão de fazer distinções ou análises críticas de um grupo de estudo em detrimento do outro, e em um processo consciente, que teorias são permeadas também, por contradições, trazemos exemplos de epistemologias outras, que questionam a imposição de valores que tem sido posta às localidades subalternizadas pelas classes dominantes. São pa-
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radigmas que apontam para a necessidade de uma mudança nos projetos epistêmicos, sobre a produção e apropriação do conhecimento científico, e das relações desse conhecimento com outras práticas de saber e, em consequência, com o ensino de ciências. Ainda vivemos em uma sociedade que majoritariamente se estrutura a partir de relações de poder. É possível associar padrões de dominação da colonialidade a partir de dicotomias hierarquizadas como brancos x negros, civilização x barbárie, moderno x primitivo, ocidente x oriente. A mesma lógica instituiu que homens são superiores a mulheres. Não é por acaso a utilização da palavra homem, como sinônimo/representação do que seja Ser humano. De fato, no pensamento colonial, o homem branco é a perfeição, é humano. Tudo que disso difere é desviante, e, assim, justificável, que seja desumanizado. Para a autora argentina Maria Lugones (2014), não temos como questionar a lógica colonial capitalista moderna, se não levarmos em conta, além das questões de classe e raça73, as questões de gênero. A autora propõe a colonialidade de gênero como um sistema moderno colonial que funciona por meio da opressão, hierarquização e inferiorização da mulher que chega até a desumanização. Lugones discute que essa lógica é central para o pensamento capitalista colonial moderno que domina a base material e os meios de produção de territórios e grupos sociais subalternizados, em uma lógica recursiva (LUGONES, 2014). Apesar de compreendermos a existência de diferentes fundamentos históricos ideológicos, além dos econômicos, para a dominação masculina, a compreensão sobre a divisão sexual do trabalho é fundamental para entendermos a lógica capitalista colonial moderna, segundo a filósofa italiana Silvia Federici: “o trabalho doméstico não remunerado tem sido um dos principais pilares da produção capitalista, ao ser o trabalho que produz a força de trabalho” (FEDERICI, 2017, p.12). Nesse texto, entendemos raça não como conceito biológico, mas como conceito de importância sociológica e política na luta por igualdade racial.
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Questionamentos sobre origens da relação hierárquica, entre os gêneros e supostas habilidades intrínsecas ao feminino, levaram pesquisadoras feministas a perceberem que as explicações apresentadas pela Ciência eram insuficientes, pois se pautavam em um determinismo biológico, apontando que mulheres são naturalmente mais frágeis, dóceis e jeitosas, assim, a maternidade e o cuidado seria algo próprio da sua fisiologia (MIES, 2016). Esse determinismo biológico latente não é encontrado somente nos evolucionistas, behavioristas, positivistas, funcionalistas e estruturalistas, mas também em parte nos marxistas – ao menos onde falam sobre mulheres. Esse é o caso de Engels, Lenin e mesmo de Marx. Tais conceitos biologistas distorcidos são, entre outros, ‘natureza’, ‘trabalho’, ‘divisão sexual do trabalho’, ‘produtividade’, ‘família’. (MIES, 2016, p. 840).
Para a socióloga alemã Maria Mies, a divisão sexual do trabalho surge durante as primeiras eras da história da humanidade, nas quais já havia divisões baseadas no sexo, homens caçavam, enquanto mulheres colhiam frutos e legumes (MIES, 2016). Embora o advento da propriedade privada tenha gerado mudanças na forma de organização da sociedade, que passou a se constituir a partir de famílias, o sistema de produção econômico entre homens e mulheres mantinha-se complementar, ou seja, o trabalho doméstico realizado pelas mulheres era tão essencial quanto a criação de gado realizada pelos homens, para a manutenção da vida em sociedade (FEDERICI, 2017). Todavia, com a Revolução Industrial e o advento do capitalismo, o trabalho doméstico passou a ser associado à ideia de servir, e entendido como uma forma inferior de trabalho. Nem é preciso dizer que, nesse contexto, o sexismo emergiu como uma fonte de lucro exorbitante para os capitalistas. Primeiro, por naturalizar a maternidade e o cuidado com a prole, como uma incum-
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bência da mulher (determinismo biológico), e, assim, manter a reposição da força de trabalho, indispensável ao capitalismo. Segundo, por fazer parecer “obrigação” da mulher e, dessa forma, não remunerar os serviços domésticos como trabalho. E, terceiro, por tratar mulheres como inferiores aos homens e fazer disso uma justificativa para que essas tenham salários menores, condições precárias de trabalho e jornadas exorbitantes. Ainda nessa lógica, no modelo heteropatriarcal e monogâmico, nós mulheres somos consideradas objetos de desejo masculino, reproduzindo todos os papéis sociais que isso carrega. O mesmo é colocado aos homens, enquanto nós mulheres temos que ser delicadas, cuidadosas, amorosas e frágeis, homens têm que ser fortes, ativos e poderosos, por natureza.
O que a Ciência e o Ensino de Ciências têm a ver com isso? A história e a filosofia das ciências já nos possibilitam, há algum tempo, compreender que sua construção se trata de um impedimento humano, em consequência, apresentam graus de subjetividades. Já parece consenso que a sua construção se dá num processo, nunca acabado, que, em certa medida, sofre influências dos pensamentos de cada época. Além disso, a universalização é passível de constantes questionamentos, principalmente, por pensadores e pesquisadores do Sul global que entendem a universalização como uma imposição da colonização. o sistema dominante também é um sistema local, com sua base social em determinada cultura, classe e gênero. Não é universal em sentido epistemológico. É apenas a versão globalizada de uma tradição local extremamente provinciana. Nascidos de uma cultura dominadora e colonizadora, os sistemas modernos de saber são, eles próprios, colonizadores (SHIVA, 2003, p. 21).
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A Ciência não é universal e responde a uma geopolítica que vem atrelada à classe e à raça: homens brancos do norte global que detêm os meios de produção e, consequentemente, produzem conhecimentos (ALMEIDA, 2019, p. 43-44). O que confere o status de científico ao conhecimento, normalmente, são critérios como aplicação de um método, verificabilidade e isenção ou neutralidade por parte de cientistas, porém, todos esses critérios já foram bastante questionados e relativizados pela sociologia e filosofia da Ciência. Assim, podemos dizer que o que confere o status de “científico” a um saber está mais relacionado ao poder que ao próprio saber (SHIVA, 2003) Em seu texto O óvulo e o esperma: como a Ciência construiu um romance baseado em papéis estereotipados de macho-fêmea, a antropóloga norte-americana Emily Martin, no início da década de 1990, publica um artigo em que analisa textos científicos da área biológica/médica, escritos até o final da década de 1980, que apresentam conceitos patriarcais sobre como o esperma é a parte ativa da reprodução, atacando e penetrando o óvulo, que é um receptáculo frágil e passivo, que espera pelo esperma vigoroso chegar para desencadear o desenvolvimento humano. De acordo com essa publicação e com o livro How We Do It: The Evolution and Future of Human Reproduction, de Robert Martin, publicado em 2013, cientistas colocaram o óvulo como um receptor. Um instrumento passivo e com pouca participação no processo de concepção da vida humana. Hoje já se sabe que não são esses os papéis do óvulo e espermatozóide. Estudos apontam que é o óvulo que escolhe o espermatozóide, ou seja, o óvulo tem um papel completamente ativo e decisivo no processo de reprodução. Argumentos subjetivos como esses sobre feminino e masculino, atravessam conceitos da biologia, principalmente, naqueles relacionados a questões sexuais. Outro exemplo, são os hormônios estrogênio e testosterona, que apesar de moléculas com funções químicas semelhantes, ambos presentes em machos e fêmeas,
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são constantemente nomeados como hormônio masculino (testosterona) e feminino (estrogênio). Nesse sentido, os estudos feministas têm contribuído para uma postura questionadora sobre questões da epistemologia da Ciência. Como é o caso da pesquisadora feminista nigeriana Oyèronke Oyewùmí, em sua obra La invencion de las mujeres, que nos diz que os imaginários socioculturais sobre gênero contribuem a contornar e produzir os discursos científicos sobre sexo. E esses discursos regulatórios que materializam o sexo reforçam e legitimam imaginários culturais, desigualdades e hierarquias de gênero. Ou seja, um sistema retroalimentativo em que a biologia reforça o gênero e o gênero reforça a biologia, nele o binarismo é concebido socialmente como percurso natural da biologia, por exemplo ao reforçar que corpos “normais” estão definidos somente a partir de duas alternativas cromossômicas XX para mulheres e XY para homens, e constroem como patológica qualquer outra organização cromossômica ou possibilidade que fuja às normas da cisgeneridade (MARIN; OLIVEIRA, 2019). Na educação em Ciências, esse processo se dá da mesma forma, reproduzindo discursos patriarcais, materializados pelo conhecimento científico e senso comum. Livros didáticos estão recheados de exemplos, como esses. Além disso, outro problema é que gênero e sexualidade muitas vezes são temáticas censuradas e o/a professor/a desautorizado/a a falar sobre. Motivo pelo qual, muitas vezes são temáticas evitadas por educadores/as, por medo de sofrerem algum tipo de retaliação por parte da família ou da escola. Nesse processo, a simplificação, ou até mesmo o silenciamento, diante de tais temáticas, também contribui com a manutenção de estereótipos machistas, binários e patriarcais que estruturam a sociedade e contribuem com a falta de conscientização, frente a números crescentes de violência de gênero e feminicídios.
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Colonialidade/Decolonialidade e a Epistemologia Hegemônica A decolonialidade é representada pelo pensamento crítico defendido pelo grupo de intelectuais latino-americano denominado “Modernidade/Colonialidade” (M/C). Este termo faz referência às possibilidades de pensamento, a partir dos subalternizados pela modernidade capitalista. Essa perspectiva discute a colonialidade como uma estrutura global, presente em uma lógica atual de exercício do poder, e que atua em três eixos: colonialidade do poder, do ser e do saber (QUIJANO, 1997). De modo geral, “a colonialidade é a continuidade das formas de dominação, após o fim das administrações coloniais produzidas pelas estruturas do sistema-mundo capitalista moderno/colonial” (GROSFOGUEL, 2008, p.126). Neste sentido, a colonialidade nos âmbitos econômico e social apresenta um modo próprio de se constituir nos territórios, estando presente na organização das próprias relações cotidianas e na construção social do espaço. A colonialidade do poder traz uma hierarquia racializada imbricada na destruição dos valores das comunidades, através do epistemicídio e do racismo epistêmico (QUIJANO, 2006). Já no campo do saber, a colonialidade exerce sua violência impedindo que as pessoas compreendam o mundo a partir do próprio mundo em que vivem (PORTO-GONÇALVES, 2005). Ou seja, “o particularismo ocidental foi escrito como o universalismo global” (HALL, 2003, p.85), no qual a “epistemologia eurocêntrica ocidental dominante, não admite nenhuma outra epistemologia como espaço de produção de pensamento crítico nem científico” (GROSFOGUEL, 2007, p. 35). Deste modo, produções de tempos e lugares fora da Europa ou que partam do pensamento crítico de sujeitos subalternizados, não são consideradas. A força da colonialidade levou a universalização da Ciência (SANTOS; MENESES, 2010), inviabilizando saberes e conhecimentos de sujeitos não autorizados, atribuindo valores e uma hierarquia de conhecimentos. A colonialidade do ser pressupõe classificação e divisão
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dos humanos em categorias binárias, ou seja, primitivo versus civilizado, promovendo a inferiorização, a subalternização e a desumanização das pessoas por conta de sua cor e/ou raízes ancestrais. A autora argentina María Lugones, (2014), concorda que a modernidade organiza o mundo ontologicamente em categorias homogêneas, porém seu pensamento adiciona a proposição de um sistema moderno colonial de gênero que funciona por meio de uma lógica de opressão, uso de dicotomias, hierarquização e divisão do mundo em categorias. Enfatiza que essa lógica é central para o pensamento capitalista e colonial moderno sobre raça, gênero e sexualidade. Lugones compreende a hierarquia dicotômica entre humano e o não humano como aspecto central do sistema moderno. Essa hierarquia veio acompanhada por outras distinções hierárquicas, também dicotômicas incluindo a distinção entre homens e mulheres. Assim: O homem europeu, burguês, colonial moderno tornou-se um sujeito/agente, apto a decidir para a vida pública e o governo, um ser de civilização, heterossexual, cristão, um ser de mente e razão. A mulher europeia burguesa não era entendida como seu complemento, mas como alguém que reproduzia raça e capital por meio de sua pureza sexual, sua passividade, e por estar atada ao lar a serviço do homem branco europeu burguês. (LUGONES, 2014, p. 936).
Segundo os estudos de Lugones, a colonização por meio do trabalho civilizatório dava acesso brutal aos corpos das pessoas pela via da exploração, violação e controle sexual, atuando em uma lógica do medo. Os animais eram diferenciados entre macho e fêmea, sendo as fêmeas consideradas como uma inversão da deformação do macho (perfeição). Essa dicotomia transformou os colonizados/as em homens e mulheres no sentido de natureza (macho e fêmea). Ainda, a divisão maniqueísta
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entre o bem e o mal, os ritos de confissão cristão74 marcaram como maligna a sexualidade feminina. Como justificativa dos abusos da missão civilizatória, estava em pauta colocar os/as colonizados/as contra si próprios/as, assim, as mulheres colonizadas eram entendidas como figuras malignas. Como parte da imposição colonial de gênero, ocorreu a desumanização da colonialidade do ser, normalizando a condenação das colonizadas que eram julgadas como seres bestiais, promíscuas, grotescas e pecaminosas, sexualmente. Neste ponto, Lugones se opõe ao conceito de colonialidade do poder e propõe o termo colonialidade de gênero. A colonialidade do poder trata da inseparabilidade entre a racialização e as formas de exploração capitalista. Em contraponto ao pensar a colonialidade de gênero, Lugones complexifica a compreensão do autor Quijano sobre o sistema de poder capitalista global, mas também sua própria compreensão do gênero, visto em termos de acesso sexual às mulheres. Ao usar o termo colonialidade, a intenção é nomear não somente uma classificação de povos, em termos de colonialidade de poder e de gênero, mas também o processo de redução ativa das pessoas, a desumanização que as torna aptas para a classificação, o processo de assujeitamento e a investida de tornar o/a colonizado/a menos que seres humanos (LUGONES, 2014, p. 939). A autora vem propor resistência à colonialidade de gênero, a partir da perspectiva da diferença colonial, assim, a análise da opressão de gênero racializada capitalista seria a “colonialidade de gênero”. Como desdobramento do pensamento de Lugones, o caminho para a superação da colonialidade de gênero define a linha de pensamento que fundamenta o “feminismo descolonial”.
Discussões sobre cristianismo, patriarcado, subalternização feminina, ciência, capitalismo e imperialismo no livro: McClintock, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas: Unicamp, 2010. 74
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Feminismos decoloniais e a violência de gênero Os feminismos decoloniais/descoloniais demarcam e instituem o peso que a questão racial tem na agenda do movimento de mulheres latino-americanas, quando levamos em conta, por exemplo, que a violência sofrida por mais da metade das mulheres no Brasil, ocorre com mulheres não brancas. Buscam, também, trazer luz à compreensão atual da morte e violência contra mulheres que estão relacionadas, assim como o acúmulo de contribuições sobre os feminicídios, às políticas de controle do corpo feminino e à divisão sexual do trabalho (CARNEIRO, 2019). Como já descrito acima, sobre a divisão sexual do trabalho, Da Silva, (2018) contribui com a reflexão sobre o espaço público e privado: o trabalho da mulher caracterizado por uma extensão da sua biologia que dita as formas de ser como sensível, amável, cuidadora e passiva, se torna apropriado para o cuidado com a casa e com a família, o trabalho doméstico, na dimensão do privado. O homem como ativo, corajoso e inteligente, mais apropriado para o trabalho com valor de mercado, na dimensão do trabalho público. Estes papéis respondem diretamente às demandas do capitalismo que dependem tanto do viés reprodutivo do trabalho doméstico, como da produtividade do trabalho masculino fora de casa. Os lugares determinados ao trabalho se complementam e se sustentam no núcleo familiar hetero/patriarcal/cis/normativo (DA SILVA, 2018). O cenário do capitalismo heteropatriarcal imbricado com aspectos ontológicos da dominação colonial, explicado no início do texto, formam uma estrutura rígida que define o lugar do homem e da mulher na sociedade. É possível entender, a partir dessa estrutura, que a violência contra a mulher seria uma expressão natural do papel do homem e se configura como um recurso da demonstração de poder que o homem exerce sobre as mulheres.
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Segundo pesquisadoras negras como: Kimberlé Crenshaw75, Patricia Hill Collins, Karla Akotirene e Lélia González76, em contraponto com visões também homogeneizantes, vindas dos feminismos hegemônicos tradicionais, formulam e discutem o conceito de interseccionalidade que vem questionar a universalização das formas de representação do feminino em culturas e matrizes sociais diversas. O termo interseccionalidade trata de uma categoria de análise que traz o entrecruzamento de opressões como: classe, raça e gênero, sem hierarquizações. No caso das mulheres negras e escravizadas na diáspora africana os papéis social, político e biológico se distinguem entre mulheres brancas e não brancas, com pautas de lutas diferentes e até contrastantes como é o caso da conquista do mercado de trabalho para mulheres brancas e que não se aplica às mulheres negras (COLLINS, 2019; AKOTIRENE, 2019; COLLINS, 2021). Somada a essa estrutura, no âmbito das organizações de controle político e de dominação colonialista, o olhar interseccional nos mostra que, quanto mais frágeis forem às populações, como as mulheres e as meninas negras, indígenas, com deficiência, ou LGBTTQI+, maior o desequilíbrio e a determinação entre quem pode morrer e quem deve viver. Não é por coincidência que o número de feminicídios e a violência de gênero têm aumentado, especialmente em regiões como África e América Latina. Os feminicídios tornaram-se um grave problema de segurança, de saúde pública e de violações aos direitos humanos das mulheres. De fato, os feminicídios são mortes específicas de mulheres. A morte se constitui como tema de extrema importância para o entendimento da história das condições de vida, sofrimento e existência humana nas sociedades. A violência, por sua vez, possui relação estreita com a morte, e vem caracterizando as preocupações sobre o tema na 75 Kimberlé Creshaw - professora estadunidense, cientista formulou o termo interseccionalidade no âmbito do direito. 76 Lélia González não utilizou o termo interseccionalidade, porém suas reflexões nos permitem também compreender o conceito, no contexto brasileiro.
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atualidade, isto devido aos novos e antigos contextos de guerra, crises econômicas, conflitos insurgentes, e das diversas formas de racismo e xenofobia, incidindo no aumento expressivo das mortes violentas em alguns países no mundo capitalista, em especial na América Latina (MENEGHEL; PORTELLA, 2017). Segundo a intelectual Lélia Gonzalez que discute o papel da mulher negra na sociedade brasileira, mulheres latino-americanas têm sido vítimas sistemáticas de violências de gênero e seus cruzamentos, como raça, gênero, classe e território pelas classes dominantes, desde o período da colonização (GONZALEZ, 2020). A violência sexual contra mulheres negras e ameríndias foi um componente importante da violência colonial, escravista. E continua ainda hoje sendo usada como arma de guerra nos conflitos armados. Outra violência sofrida são as políticas de controle da natalidade que impactam diretamente os corpos das mulheres, seja pelas práticas de esterilização forçada, seja pela criminalização do aborto que matou e mata milhares de mulheres todos os anos. Ou seja, o desprezo ao corpo feminino e a vida das mulheres estão estritamente relacionadas às demandas por exploração do trabalho e ao modelo capitalista (GONZALEZ, 2019). Segundo o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública que compara dados de violência no Brasil dos anos de 2018, 2019 e 2020, foram registrados, no Brasil, no ano de 2019 mil trezentos e vinte e seis crimes de feminicídio, o que representa um crescimento de 7,1 % em relação a 2018 e o maior número registrado desde 2007. Segundo o ATLAS da Violência de 2019, em média, foram registradas a morte de treze mulheres diariamente. Outro fator que chama atenção quando abordamos a questão violência contra a mulher é o aspecto racial. Segundo o ATLAS da Violência de 2019 a taxa de homicídios de mulheres não-negras teve crescimento de 4,5% no período de 2007 a 2017, a taxa de homicídios de mu-
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lheres negras cresceu 29,9%. Segundo o 14° Anuário Brasileiro de Segurança Pública em relação à raça/etnia, 66,6% das vítimas de feminicídio de 2019, no Brasil, são mulheres negras. Diante desses dados, é importante pensar no que nos diz Sueli Carneiro (2019), ao apontar que a violação colonial praticada no Brasil e na América Latina, como um todo, pelos senhores brancos contra as mulheres negras, indígenas e as miscigenações, daí, resultantes, estruturam todas as relações estabelecidas, desde então. Nessas condições de desigualdade e violência, principalmente, contra as mulheres não brancas, segundo discute Lélia Gonzalez, 2020 é que se estabeleceu o mito da democracia racial e adiciona Jessé Souza, da igualdade de gênero, onde o colonialismo adquiriu novos contornos, e, a partir da lógica da colonialidade, opera sobre uma ordem social supostamente democrática que mantêm inalteradas as relações de gênero e raça, instituídos desde o período escravocrata. Como nos faz refletir Jessé Souza (2017), um dos princípios fundamentais da sociedade brasileira, além da escravidão, é o patriarcalismo. O Brasil, desde a sua invasão, tem construído e perpetuado práticas majoritariamente patriarcais, machistas e racistas. A começar pela superioridade do branco europeu, que aqui chegou. Além da escravidão, um dos modelos mais bem-sucedidos empregados pela colonização foi o patriarcado, ou seja, a constituição da “nova” família brasileira. Indígenas e Mulheres Negras foram violentadas, estupradas e abusadas, desde a chegada dos invasores. Deram à luz a filhas e filhos, muitas vezes tratados como bastardos, passaram a compor o mercado de escravos. Essas duas relações, estabelecidas no início da organização “moderna” brasileira, o racismo – devido à escravidão – e o patriarcado – devido à estrutura imposta pelos homens brancos europeus – determinam, até hoje, as relações de poder/ser/saber/gênero, na nossa sociedade. Quem foi e quem são as empregadas domésticas no nosso país? Quem são as mulheres que mais sofrem com violência? No Brasil,
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classe, gênero e raça estão estreitamente interseccionados, e é importantíssimo que essas categorias sejam refletidas, a partir dessas relações, se quisermos, realmente, algum tipo de justiça social.
Em um Movimento de Reflexão sobre a Ciência e seu Ensino: a Decolonialidade como Possibilidade Na intencionalidade da construção de mundos diferentes, o movimento de olhar para os fatos e teorias, partindo de outros lugares, pode ser um caminho para pensarmos formas de enfrentamento, no caso deste texto, ao feminicídio. A colonialidade do saber atrelada à colonialidade de gênero, respondendo ao complexo colonial, capitalista e patriarcal, parecem funcionar como um sistema recursivo que gera subalternizações, neste caso, de gênero. Mulheres que estão fora do campo de produção de conhecimentos, por serem, ontologicamente, inferiorizadas pelo modelo colonial, capitalista e patriarcal, ficam impedidas de fazer a virada necessária para sair e reivindicar novos lugares sociais. Se justiça social caminha junto com a justiça cognitiva/epistemológica, julgamos que a educação é um dos campos possíveis de atuação para pensar a subalternização das mulheres. Porém, é importante ter em mente que homens com acesso à educação, também respondem à dimensão sistêmica de poder com violência. Concordamos com Linda Martín Alcoff (2016) sobre a necessidade do desenvolvimento de uma epistemologia decolonial revolucionária, que debate sobre o que é considerado como verdades histórica e científica. Em contraponto ao sistema hegemônico, nas suas diversas esferas, sobretudo, na construção de novos significados e na interpretação do mundo. Não podemos aceitar passivamente e de forma acrítica a globalização e o modelo neoliberal que ela impõe. Temos que questionar paradigmas e preenchê-las com nosso próprio significado e interesse, já que, ao longo da história moderna/colonial capitalista, fomos e ainda somos impedidas de determinar nosso próprio futuro.
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Estruturada e administrada por seres humanos – assim como a atividade científica – a educação é um instrumento multiplicador dos conhecimentos produzidos na academia, arrastando valores e preconceitos da sociedade que a engendra, expressando-os através do currículo escolar – tanto no seu formato pensado (documentos oficiais: diretrizes, matrizes, planos), como no praticado (práxis do profissional em sala de aula). Compreendendo um território amplo, o currículo envolve diversas áreas do conhecimento e perpassa por relações de poder. Assim, a educação em ciências acrítica – que não considera as relações sociais e culturais implícitas na construção do pensamento científico – pode perpetuar pressupostos que reproduz assimetrias e arbitrariedades que emergem da sociedade, como a desigualdade de gênero – que se manifesta sob a forma de sexismo, misoginia, exclusão de mulheres dos espaços de poder e, por consequência, feminicídios. Refletir, apontar, repensar e propor estratégias de enfrentamento a presença e reproduções dessas características no currículo são caminhos possíveis, como: considerar a produção de conhecimento desde as sujeitas subalternizadas, deslocando o lugar de objeto do conhecimento para produtoras de conhecimento; estudar e compreender as lutas por ações afirmativas e representatividade das mulheres em espaços de poder; oportunizar, priorizar e questionar no espaço escolar o lugar social e biológico da mulher; não silenciar frente a casos de violência, inferiorização e subalternização da mulher; ter atenção, discutir e não legitimar posturas que privilegiem determinismos biológico e binarismos - coisa/lugar/roupa/profissão de mulher/menina e, de homem/menino; dar aporte conceitual/teórico/social e histórico para legitimar o lugar da mulher fora do espaço privado; desassociar estruturas e substâncias biológico-químicas do corpo humano ao sexo masculino ou feminino. Em outras palavras, é necessária uma postura intencional e esvaziada da neutralidade tão falada em espaços de construção de conhecimento e educacionais.
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Dessa forma, em acordo com Louro (2008), “[...] é indispensável um debate crítico mais amplo sobre gênero e sexualidade nas políticas curriculares”, analisando com mais profundidade a construção cultural demasiadamente injusta, repressiva e nociva para as mulheres e, paradoxalmente, também para os homens, confrontando a tradição epistemológica dominante. Então, uma educação que reflita essas condições com intenção explícita de superação atrelada a um pensamento político que rompa com lugares, símbolos, discursos e práticas de desqualificação e violência contra as mulheres pode ajudar na construção das relações na dimensão da liberdade. O feminismo, a partir de uma lente decolonial, revisita, repensa e reorganiza essas bases sociais, negando o neoliberalismo, o enfrentando a partir de novas estratégias, novas tecnologias, e outros saberes que não aqueles defendidos pela hegemonia do poder/saber/ser. Parte do local, do ancestral e preocupa-se com a formação humana do/a sujeito/a, e não com a reprodução da força de trabalho, com os mecanismos de controle, com a acumulação de recursos e o lucro. No ensino de Ciências com perspectiva feminista e anticolonial aborda a sexualidade, para além do sexo, da normatização dos corpos ou da reprodução. Pressupõe intimidade, afeto, emoções, sentimentos, história de vida e bem-estar pessoal. Pauta-se na escuta, no diálogo, na voz dos/das estudantes. Rompe com o paradigma machista e patriarcal, e busca construir uma forma livre de sexualidade, que quebra com os padrões impostos do feminino e masculino, e toda a carga que suas imposições carregam.
Agradecimentos e apoios À Capes-PROEX, ao Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica (PPGECT) e ao Grupo de Pesquisa Discursos da Ciência e da Tecnologia na Educação (DICITE), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
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(Re) Inventar
“É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática.” Paulo Freire (1921-1997)
“Quanto mais a fome grita, com sua boca enorme arreganhada em nossas barrigas, mais o desejo se escancara, buscando alguma claridade luminosa onde possa agarrar suas unhas vermelhas.” Helena Silvestre (em Notas sobre a fome, de 2021, p. 17-18)
Instalação com série de bonecos em papier marche, representativa das bruxas, na cultura açoriano-descendente das comunidades de pesca artesanal de Santa Catarina (Museu Nacional do Mar, município de São Francisco do Sul, SC). (Arqueofotografia de: Wa Ching).
Seção IV: Por uma outridade em Educação em Ciências no Brasil É pela persistência que temos enfrentado desafios, desvelado silenciamentos, driblado repressões. E, tudo isso tem sido feito por nosso principal trajeto: o da Educação em Ciências. É através dela que temos nos juntado a vozes outras, modos outros, gestos outros, olhares outros, para produzirmos novas possibilidades de (re)Existir. Embora, muitas dessas já tenham sido ceifadas, por realidades opressoras, desiguais e injustas. E, assim, rememoramos algumas, para que nunca esqueçamos de suas latentes existências… do congolês, que residia com sua família no Brasil, Moïse Mugenyi Kabagambe, desde janeiro de 2022; do Presidente do Haiti, Jovenel Moïse, desde julho de 2021; das vinte e cinco vítimas da chacina do Jacarezinho, na cidade do Rio de Janeiro (Brasil), desde maio de 2021; das doze crianças vitimadas por balas perdidas, por incursões policiais, em favelas do Rio de Janeiro (Brasil), suas residências, em 2020 (em plena pandemia da Covid-19): Kauã Vitor da Silva (11); Leônidas Augusto da Silva Oliveira (12); Luiz Antônio de Souza (14); Maria Alice Neves (4); Rayanne Lopes (10); João Vitor Moreira (14); Anna Carolina de Souza Neves (8); Douglas Enzo Maia dos Santos Marinho (4); Ítalo Augusto de Castro Amorim (7); João Pedro Matos Pinto(14); as primas Emily Victória Silva dos Santos (4) e Rebeca Beatriz Rodrigues dos Santos (7). das crianças Yanomami, com 4 e 5 anos, da comunidade Makuxi-Yano, região de Alto Alegre, em Roraima, em 12 de outubro de 2021, que foram sugadas por uma draga, do garimpo ilegal do ouro, no Rio Parima.
DOI: doi.org/10.29327/565971.1-11
Corpos Negros em Videoclipes de Artistas Brasileiros: Temas Potenciais na Formação de Professores de Biologia Black Bodies in Brazilian Artists' Video Clips: Potential Topics under Discussion in Biology Teacher Education Amanda Lima1 Francine Pinhão2 Geovana Rodrigues3 Tatiana Galieta4 1 Licenciada em Ciências Biológicas. Mestre e Doutora em Educação em Ciências e Saúde pelo Instituto NUTES/UFRJ, no Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Professora Assistente da Faculdade de Formação de Professores (FFP), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atua na formação inicial e continuada de professores de Ciências e Biologia, com interesses de pesquisa e extensão em comunidades de prática e processos de didatização de questões socialmente vivas. E-mail: amandalimaffp@gmail.com 2 Licenciada em Ciências Biológicas. Mestra e Doutora em Educação em Ciências e Saúde pelo Instituto NUTES/UFRJ. Professora Adjunta na FFP/UERJ. Os principais interesses de pesquisa e extensão são: ensino de ciências, saúde e meio ambiente, formação política e cidadania, sexualidade e formação de professores de ciências. - E-mail: francinepinhao@gmail.com /ORCID: https://orcid.org/00000001-5409-5082 3 Cursa Licenciatura em Ciências Biológicas na FFP-UERJ, no Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Foi monitora da disciplina Laboratório de Ensino I, quando esta foi ministrada no Período Acadêmico Emergencial pelas demais autoras. E-mail: geovana.gg@hotmail.com.br 4 Licenciada e Bacharel em Ciências Biológicas. Mestre em Educação em Ciências e Saúde. Doutora em Educação Científica e Tecnológica. Professora Associada da FFP-UERJ, no Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Docente de cursos de graduação e pós-graduação, coordena projeto de extensão, desenvolve e orienta pesquisas na área de Educação em Ciências. Líder do grupo de pesquisa LIQUENS (Leituras e Investigações sobre Questões de Ensino de Ciências e Sociedade). E-mail: tatigalieta@gmail.com / ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3822-1947
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Introdução
A
PANDEMIA da Covid-19 nos impôs uma nova dinâmica de relações pessoais e profissionais, que impactaram, inclusive, as atividades das instituições de ensino superior. Na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ingressamos em um primeiro período acadêmico emergencial (PAE-1), em agosto de 2020, e, com isso, professores e estudantes tiveram que se adequar ao ensino remoto (com todas as dificuldades e angústias que isso significava). O curso de licenciatura em Ciências Biológicas, da Faculdade de Formação de Professores (FFPUERJ), ao qual estamos vinculadas, teve que seguir as deliberações da universidade, as quais impuseram redução na oferta de disciplinas e limitação de aulas síncronas, entre as que foram ofertadas. Vimo-nos tendo que fazer novos planejamentos e conviver com a incerteza de que as escolhas seriam efetivas para a aprendizagem de nossos estudantes. Nós, autoras deste texto, fomos responsáveis pela organização da disciplina “Laboratório de Ensino I” (LABI), destinada a licenciandos do primeiro período (fase) do curso. A disciplina LABI possui carga horária de 60 horas, e tem como objetivo geral: “compreender o ensino de ciências e biologia, em espaços formais e/ou não formais, a partir das relações entre ciência e sociedade, caracterizando os temas saúde, ambiente e sexualidade como interdisciplinares e contextuais”; e, os seguintes objetivos específicos: “desenvolver capacidade de elaboração e análise de materiais77 para fins de ensino em contextos formais ou não formais; exercitar a escrita e a leitura de textos acadêmicos78; caracterizar as questões/conceitos de saúde, ambiente e sexualidade como interdisciplinares e contextuais, desconstruindo a visão exclusivamente biológica; conhecer as diferentes vertentes de educação ambiental, educação em saúde e educação sexual, estabelecendo relação com o campo 77 Produção de materiais didáticos, como jogos, vídeos, cartilhas etc. e análise de materiais, sobretudo livros didáticos. 78 Artigos e trabalhos apresentados em eventos científicos.
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da educação em ciências; reconhecer o corpo humano como híbrido biológico e cultural e o seu potencial para integração das questões de saúde.” (UERJ-FFP, 2005). No PAE-1, a disciplina foi organizada em quatro módulos: histórico do ensino de Ciências no Brasil; corpo humano: conceitos e relações com o ensino de Ciências; saúde e ambiente: conceitos e relações com o ensino de Ciências; e, sexualidade: conceitos e relações com o ensino de Ciências. O curso foi ministrado ao longo de 13 semanas, com 4 (quatro) encontros síncronos, sendo as demais atividades assíncronas, com a abertura de fóruns e avaliações semanais. Cada módulo foi organizado seguindo a escolha metodológica de disponibilizar – para cada semana do curso – textos escritos (artigos, textos de divulgação científica, capítulos de livros), materiais audiovisuais, para consulta e atividades avaliativas. Tentávamos, com isso, contemplar uma variedade de materiais utilizados na disciplina que atendesse às diferentes formas de aprendizagem dos estudantes. Neste texto, focamos na descrição da aula da Semana 4, cujo tema foi “Eugenia e racismo estrutural”, e que está situada no módulo sobre o corpo humano. Para esta aula, os estudantes deveriam realizar a leitura prévia do texto de Munanga (2003), assistir à exposição do prof. Douglas Verrangia (2020) e ouvir o podcast de Ale Santos (2020). A avaliação consistiu na seleção de um videoclipe de algum(a) artista brasileiro(a), estabelecendo relações com os materiais estudados. O objetivo deste texto consiste em identificar os elementos sobre corpo e corporalidade, nos videoclipes selecionados pelos licenciandos, por meio de uma análise descritiva-interpretativa que localizou os temas recorrentes nos audiovisuais. O termo “corporalidade” refere-se “não apenas às características físicas, materiais e biológicas do corpo humano” (GALIETA, 2021, p. 5224). Com ele busca-se “alçar as dimensões do espírito, da alma, da inteligência, do cotidiano, dos sentimen-
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tos dos corpos humanos, aqui, especificamente, dos corpos negros. Dimensões estas que foram apagadas na ciência moderna e negadas aos negros e às negras desde a escravização” (idem). Iniciamos trazendo alguns apontamentos teóricos a respeito do tema da aula e, posteriormente, descrevemos a atividade avaliativa a ela associada, incluindo uma síntese analítica dos elementos relacionados ao/à corpo/corporalidade nos videoclipes selecionados pelos licenciandos. Neste estudo, nos detemos, mais especificamente, nas interpretações das produções textuais dos estudantes, que consistiram na avaliação da aula.
Corpos Negros e eugenia Apesar de a lei 10.639/2003 (BRASIL, 2003) ter completado sua maioridade, vemos ainda a cultura e a história de África e dos afrodescendentes sub-representadas, nos currículos de formação de professores. Em particular, nos cursos de licenciaturas em Ciências da Natureza, pouco abordamos as produções científicas de povos africanos e afrodescendentes, as quais se desenvolveram em epistemes outras e anteriores à ciência moderna. Da mesma forma, a questão racial encontra-se silenciada. Em um espaço construído por brancos e para brancos, nos omitimos (repetidamente) da discussão sobre as violências cometidas, em nome e com chancela de cientistas eugenistas. O papel das ciências, em específico das biológicas, na construção do mito da democracia racial brasileira, precisa ser incluído nas disciplinas universitárias. Como bem destacam Rodrigues, Cardoso e Francchini (2020, p. 73): De forma geral, o silêncio dos professores em relação às situações de discriminação é resultado em parte da ausência desta temática nos cursos de formação, principalmente de formação inicial e pelo ainda influente discurso da democracia racial que supõe que no Brasil não há racismo.
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A partir desse reconhecimento, no campo da Biologia e do ensino de Ciências, torna-se premente o compromisso com práticas de pesquisa, ensino e extensão que denunciem violências constitutivas do campo, e proponham outras lógicas de produção intelectual. Nesse sentido, não é suficiente admitir que, para a Biologia, o conceito de raça é um erro conceitual, pois ainda circulam socialmente discursos pautados na lógica eugenista, dentro e fora da ciência, que devem ser enfrentados e superados (VERRANGIA; GONÇALVES E SILVA, 2010). Fizemos a opção (teórica) de abordar a questão racial, a partir de uma discussão sobre o corpo, um dos eixos centrais de “Laboratório de Ensino I”, e que é utilizado para debatermos questões relacionadas à sexualidade, saúde e meio ambiente. A escolha se justifica tanto pela importância do tema nos currículos escolares quanto pela compreensão de que a estruturação da violência simbólica, cujo resultado é a manutenção das relações de opressão, busca elementos de sua afirmação na materialidade do corpo (BOURDIEU, 2017). Sendo assim, optamos por atravessar todos os conteúdos da disciplina, com discussões sobre classe, raça e gênero. O foco na questão racial, em específico, buscou contribuir para a formação de professores, que sejam preparados para “lidarem pedagogicamente com as relações étnico-raciais vividas no cotidiano da escola”, conforme salientado por Verrangia (2016, p. 97). O corpo humano tem sido um dos principais objetos de estudo da Biologia Moderna79, algo que se reflete no ensino das Ciências Biológicas e, consequentemente, acaba por propagar uma ideia de um corpo focado em seus aspectos biológicos, estruturado de maneira fragmentada e descontextualizada (TRIVELATO, 2005). Essa discussão sobre o corpo não é recente (VARGAS et al., 1988), e vários estudos se debruçaram sobre o tema (ARAUJO et al., 2015). No entanto, realizávamos uma
79 Consideramos como marco da Biologia Moderna a publicação do livro “A origem das espécies” de Charles Darwin em 1859, o qual inaugura o paradigma evolutivo nas ciências biológicas.
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discussão sobre corpo (ser) humano que ainda era marcada pela branquidade, apesar de termos avançado em discussões, por exemplo, sobre as representações de corpos negros em materiais didáticos (SILVÉRIO; MOTOKANE, 2019). Ou seja, a questão racial que atravessa e marca corpos (negros) não tem recebido atenção devida em pesquisas da área de Educação em Ciências. Com isso, negligenciamos as várias formas de corporalidade negra, que se expressa filosófica, cultural e religiosamente, em diversas produções e manifestações. Essa constatação se faz ainda mais grave pelo fato de termos sido um dos países latino-americanos em que o movimento eugênico ganhou expressiva notoriedade no início do século XX. De acordo com Stepan (1991, p. 4), a “história da eugenia na América Latina teria se caracterizado por um tipo especial de conhecimento científico e social produzido e conformado pelas variáveis políticas, históricas e culturais peculiares desta região”. No Brasil, o movimento eugenista teve uma abordagem preventiva/higienista, tomando o rumo do embranquecimento da população, já que o racismo brasileiro sempre foi pautado por características fenotípicas, sobretudo a cor da pele. O principal ator do eugenismo brasileiro foi Renato Kehl (médico e farmacêutico), que passa a disseminar os ideais eugenistas, a partir do ano de 1917. Em seu primeiro artigo, publicado no Jornal do Comércio, ele enfatiza o estudo da hereditariedade e a prática de preceitos eugênicos, visando a “melhoria progressiva da nacionalidade brasileira” (KEHL, 1933 apud SOUZA, 2012, p. 6). A partir da articulação do médico surge, em 1918, a Sociedade Eugênica de São Paulo, a primeira da América Latina. Durante o curto tempo em que está estruturada, há a publicação de vários trabalhos em revistas e jornais, e, com isso, ocorre a disseminação do pensamento eugênico entre a elite brasileira. Nos anos de 1930, ocorreu o auge da ascensão eugenista no Brasil, devido ao I Congresso Brasileiro de Eugenia (1929) e ao contexto internacional (SOUZA, 2012).
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Uma das principais “frentes de pesquisa” eugenista dedicava-se aos estudos anatômicos, sobretudo análises morfométricas, de corpos (cadáveres ou vivos) de homens e mulheres negros/as. As medições cranianas eram utilizadas, para relacionar o crânio do branco a um suposto maior desenvolvimento e, portanto, à maior capacidade intelectual. Um caso notório é o da sul-africana Sarah Saartjes Baartman, conhecida como Vênus Negra, que viveu na Europa no início do século XIX. Ela era exibida e estudada em sessões públicas, para que os presentes pudessem observar suas dimensões corporais “anormais” e “selvagens” (de acordo com o que era considerado “padrão” pelos cientistas europeus). Nesse sentido, o processo de objetificação, desumanização e a hipersexualização do corpo negro, sobretudo da mulher, foi (e é) fundamental para sua opressão e seu silenciamento. Conforme dizem Bezerra et al. (2016, s/p), os instrumentos utilizados nesse processo se perpetuaram historicamente, também, “na relação de traços de selvageria, animalização e incivilidade do corpo negro, em contraponto ao corpo branco relacionado a traços de beleza, engenhosidade, inventividade e progresso”. Após a abolição da escravatura, as teorias eugênicas assumem extrema relevância para o controle da população negra, uma vez que seu status científico lhes confere autoridade para designar políticas públicas racistas. Os corpos negros, que antes eram de propriedade privada do homem branco de origem europeia, agora passam a ser marginalizados, criminalizados e executados, em um regime societário com aspirações democráticas. Eles continuam excluídos da sociedade, com o aval da ciência moderna e de um aparato legal, como, por exemplo, a lei das contravenções penais 3.688/1941 (BRASIL, 1941), conhecida popularmente como “lei da vadiagem”. Entretanto, a dominação e o controle dos corpos pretos não se dão exclusivamente a partir de normas jurídicas e pela criação de regras
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institucionais (muitas das vezes atreladas a um conjunto de leis). A hegemonia de um grupo racial, no caso da sociedade brasileira de homens brancos, ocorre, inclusive, quando “a cultura, os padrões estéticos e as práticas de poder de um determinado grupo” se tornam “o horizonte civilizatório do conjunto da sociedade” (ALMEIDA, 2019, p. 40). Dessa maneira, o domínio – e sua naturalização – do grupo hegemônico (em instituições públicas e privadas) depende “da existência de regras e padrões que direta ou indiretamente, dificultem a ascensão de negros e/ou mulheres” e “da inexistência de espaços em que se discuta a desigualdade racial e de gênero” (ALMEIDA, 2019, p. 41). Ou seja, a negação da presença de corpos (femininos e pretos), em determinados espaços, se dá, também, com a elaboração de percepções culturais e subjetivas que excluem os grupos subalternizados. A resistência passa, portanto, pelo uso dos próprios corpos, como símbolo de luta e de visibilização das causas, em busca do rompimento com a opressão sofrida há séculos. No caso específico do Movimento Negro, destacamos a estética, “a afirmação positiva do cabelo negro, crespo, etnicamente representado por dreads e tranças”, que “é uma forte imagem de luta e resistência utilizada pela população negra desde as senzalas, é a afirmação de uma assunção étnica e construção identitária de uma negritude [...]” (BEZERRA et al., 2016, s/p). No âmbito cultural, ainda nos anos 1970, os bailes black, de Soul music, surgem como um espaço vital de estabelecimento da identidade negra, inclusive pelo cabelo afro/black. No documentário Ôri (1989), Beatriz Nascimento narra o corpo negro e sua presença nesses espaços como a “possibilidade de afirmação ao nível do que eu sou bonito, eu sou forte, de que eu tenho um corpo bom” (NASCIMENTO, 1977 apud RATTS, 2006). O corpo negro, de acordo com a intelectual, “se constitui e se redefine na experiência diaspórica e na transmigração” e “é, em parte, o corpo raptado em África” (RATTS, 2006, p. 65-66). Assim, a inter-relação entre corpo, espaço e identidade pode ser refeita por aqueles (as) que buscam tornarem-se pessoas e não coisas, que procuram e
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constroem lugares de referência transitórios ou duradouros, como o quilombo ou um espaço de diversão (RATTS, 2006), como os bailes black, os bailes funk, as rodas de samba, as batalhas de RAP e break dance. É fundamental, portanto, destacar o elemento cultural no processo de colonização e de embranquecimento, uma vez que a cultura do colonizador (branco europeu) era tida como superior e civilizada. Logo, é imprescindível trazer a resistência negra que se expressa em diferentes manifestações artísticas, entre elas a música e a dança. Através delas, corpos pretos têm preservado memórias, feito denúncias sobre o racismo e anúncios sobre outra forma de se relacionar com o próprio corpo e com o corpo do outro em unidade, em comunidade/comunhão. As memórias expressas por meio de linguagem musical foram, então, o objeto de estudo que circunscrevemos para os licenciandos. A finalidade da atividade foi oportunizar o contato com tais produções culturais, como também desenvolver a capacidade dos licenciandos identificarem o potencial didático para o ensino de Biologia.
Aspectos do/a Corpo/Corporalidade abordados nos videoclipes Sobre a análise A atividade avaliativa consistiu na seleção individual de um videoclipe disponível no YouTube de algum(a) artista brasileiro(a), de qualquer gênero musical, que abordasse o tema corpo e racismo. Após a seleção, eles produziram um texto contendo os seguintes itens: a) informações da obra: nome do artista, título da música, ano da produção, diretor(a) e gravadora/produtora, quando disponível, e o link do site; b) justificativa da escolha do vídeo; c) breve síntese sobre o vídeo; d) destaque de, pelo menos, uma cena ou passagem do videoclipe, que tinha relação com algum tema levantado pelos autores estudados; e) dissertação sobre as perguntas: “Qual tema/assunto de uma aula de Ciências que poderia ser explorado a
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partir do videoclipe selecionado? Por quê? Quais discussões poderiam ser suscitadas a partir da música/vídeo nessa aula?”. As produções textuais foram analisadas, em busca do estabelecimento de diálogos entre os audiovisuais e o tema corpo/corporalidade negra e racismo, além da identificação de elementos didáticos que potencializam discussões antirracistas no ensino de Ciências. A análise foi organizada em duas partes: 1ª) identificação de elementos relacionados ao/à corpo/corporalidade nos videoclipes e posterior agrupamento em categorias definidas, a partir de pesquisa anterior (GALIETA, s/d.); 2ª) interpretações dos estudantes e possibilidades de uso didático dos videoclipes em aulas de Ciências e Biologia. Devido ao limite de extensão deste manuscrito, teremos que apresentar a segunda parte da análise em texto com publicação futura. Galieta (s/d), em pesquisa que teve como objeto de estudo a literatura do rapper Emicida, definiu 7 (sete) categorias temáticas, entre elas: “corporalidade”; “racismo e resistência Negra”; e “ancestralidade e espiritualidade”. A autora identificou os elementos que expressam a corporalidade e que dizem respeito: i) aos sentimentos e às emoções; ii) ao corpo físico, sua anatomia e fisiologia; e, iii) aos processos de amadurecer, envelhecer, crescer (GALIETA, s/d). As outras duas categorias, acima mencionadas, podem se relacionar, potencialmente, às manifestações corporais, uma vez que abordam a escravização dos povos africanos, colonização, violência policial; assassinatos, discriminação racial, segregação, formas de resistência, luta e enfrentamento (categoria “racismo e resistência Negra”) e a manifestação da religiosidade/espiritualidade, através de referências a orixás; rituais de umbanda e candomblé; entidades católicas sincretizadas ou não (categoria “ancestralidade/espiritualidade”). A partir dessas categorias empíricas, os videoclipes foram agrupados em quatro delas, tendo sido a categoria temática “racismo e resistência Negra” subdividida em duas (b e c). São elas: a) sentimentos e emoções; b) corpos negros violenta-
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dos; c) resistência Negra; e d) ancestralidade e espiritualidade. É importante destacar que um mesmo videoclipe poderia ser enquadrado em mais de uma categoria. Os videoclipes selecionados pelos licenciandos Ao total, recebemos 32 avaliações, que se basearam em 21 videoclipes de 15 artistas brasileiros (Quadro 1). Todos as/os artistas selecionados pelos estudantes são negros. Apenas duas mulheres aparecem: as cantoras Elza Soares (nascida em 1930) e Iza (Isabela Cristina Correia de Lima Lima, nascida em 1990), ambas naturais do Rio de Janeiro. Os 13 demais são, em maioria, homens jovens. Tais escolhas por parte dos licenciandos sinalizam questões de gênero, raça e regionalidade. No primeiro caso, a predominância de homens pode indicar o protagonismo masculino no mercado musical. De acordo com o relatório “Por elas que fazem música” (UBC, 2021), as mulheres ocupam 15% do quadro de associados da União Brasileira de Compositores, recebendo 9% do valor total de rendimento dos titulares. Com relação à raça, a opção por artistas negros parece indicar um reconhecimento, por parte dos estudantes, da legitimidade e autoridade que pessoas negras têm para falar/cantar sobre seus próprios corpos. Por fim, o predomínio de artistas cariocas e/ou da região sudeste, aponta para uma regionalidade, nas seleções feitas pelos licenciandos, possivelmente, relacionada ao universo musical ao qual eles têm acesso (seja voluntariamente, por consumo intencional, seja pelo efeito publicitário das mídias). No entanto, a ausência de artistas do Funk deve ser notada.
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Quadro 1. informações sobre os videoclipes escolhidos pelos licenciandos Música
Artista (ano da gravação)
Produção/Direção, canal no Youtube, ano (link de acesso) do videoclipe
“A carne”
Elza Soares (2002)
Sem dados. Canal Elza Soares, 2017 (link)
Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette (comp.) “A cena” Rashid (part. Izzy Gordon) (2015)
Levi Riera (direção). Canal Rashid Oficial, 2015 (link)
“A música da mãe”
Djonga (2018)
Naio Rezende e Djonga (direção). Canal Djonga, 2018 (link)
“Amigo Branco”
Thiago Elniño (2013)
Rabú Gonzales (direção). Canal Thiago Elniño, 2013 (link)
“Bluesman”
Baco Exu do Blues (2018)
Douglas Ratzlaff Bernardt (direção). Canal 999, 2018 (link)
“Boa esperança”
Emicida (2015)
Katia Lund e João Wainer (direção). Canal Emicida, 2015 (link)
“Canção infantil”
Cesar MC (part. Cristal) (2019)
Guilherme Brehm (direção). Canal PineappleStormTV, 2019 (link)
“Cor”80
Douglas Camppos (2017)
Rodrigo Araújo (produção). Canal Campposições, 2017 (link)
“Crime bárbaro”
Rincon Sapiência (2017)
Nixon Freire (direção). Canal Rincon Sapiência, 2018 (link)
“Dona de mim”
Iza (2018)
Brabo Music Team, Pablo Bispo, Ruxell e Sérgio Santos (produção). Canal IZA, 2018 (link).
(filme oficial)
“Eminência Parda”
Emicida (part. Dona Onete, Jé Santiago e Papillon) (2019)
Leandro HBL (direção). Canal Emicida, 2019 (link)
“Eu só peço a Deus”
Inquérito (2014)
Levi Riera (produção). Canal Renan Inquérito, 2015 (link)
“Hat-trick”
Djonga (2019)
176 Studio & Djonga (direção). Canal Djonga, 2019 (link)
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“Junho de 94”
Djonga (2018)
Gabriel Solano (direção). Canal Djonga, 2018 (link)
“Mandume”
Emicida (part. Drik Barbosa, Amiri, Rico Dalasam, Muzzike e Raphão Alaafin) (2015)
Gabi Jacob (direção). Canal Emicida, 2016 (link)
“Meu nome é Jhony”
Jhony MC (2020)
Rabu Gonzales (Direção). Canal Bagua Records. 2020 (link)
“Minha alma”
O Rappa (1999)
Sem dados. Canal O Rappa, 2012 (link)
“Negão Negra”
Elza Soares e Flávio Renegado (2020)
Pablo Gomide, Canal Elza Soares, 2020 (link)
“Negro drama”
Racionais MC’s (2002)
Videoclipe não oficial. Canal Amaragi Rap, 2010 (link)
“Pedagogin-
Thiago Elniño (part. Sant e KMKZ) (2017)
João Victor Medeiros (direção). Canal Thiago Elniño, 2017 (link)
MV Bill (2019)
Isac Metanoia (direção). Siriguela (produção). Canal MV Bill, 2019 (link)
ga” “Vírus”
Fonte: as autoras (2021)
Dos 21 videoclipes selecionados, 16 são de artistas do gênero musical RAP (Rhythm and Poetry), quatro podem ser considerados de MPB (incluindo, aí, samba e pop) e um de Rock. Cinco videoclipes foram escolhidos por mais de um licenciando, a saber: “Boa Esperança” (quatro licenciandos), “A carne”, “A cena”, “Eu só peço a Deus” e “Mandume”, cada um escolhido por três licenciandos. Destacam-se os rappers Emicida, artista referenciado em sete avaliações, e Djonga, com três videoclipes diferentes; atualmente, os dois são grandes nomes do RAP nacional. O amplo destaque do RAP, entre as escolhas dos licenciandos, reafirma sua importância como música de protesto/denúncia do racismo 80 Esse videoclipe não foi considerado nas análises pelo fato de somente ter o cantor, em diferentes cenários, interpretando a música.
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brasileiro. Pesquisas anteriores ressaltam a potencialidade do RAP na educação formal (AMARAL, 2015; DIAS, 2019) e, em específico, na educação científica e tecnológica (GANHOR, 2016). Elas destacam a possibilidade de resgate da história de povos africanos, confrontando-a com o cotidiano da juventude afro-brasileira urbana periférica, além de contribuírem para a consolidação de uma pedagogia baseada no Hip-Hop que milita pela decolonização das mentes e do currículo e pela (re)construção da memória coletiva (DIAS, 2019). Entendemos que a escolha de videoclipes de rappers brasileiros pelos licenciandos, ainda que de forma não sistematizada, confirma a força do RAP junto aos jovens (em nosso caso, estudantes de um campus universitário periférico) e reafirma o que tem sido discutido pelas/os pesquisadoras/es supracitados. Temas em destaque nos videoclipes selecionados Não tivemos como objetivo analisar as narrativas dos videoclipes, de modo que apenas nos detivemos a determinados aspectos considerados relevantes, em relação ao corpo/corporalidade negro/a. Nesse sentido, agrupamos os videoclipes de acordo com as ênfases dadas, em cada um dos audiovisuais. É importante sinalizar que todos os videoclipes consideram, em alguma dimensão, o racismo, o preconceito ou a discriminação racial. Levamos em conta, aqui, a distinção conceitual feita por Almeida (2019)81. Este resultado nos indica que os licenciandos buscaram audiovisuais comprometidos com a denúncia das opressões sofridas pelo povo preto, que se expressam em sua corporalidade. 81 “(...) o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam. (...) O preconceito racial é o juízo baseado em estereótipos acerca de indivíduos que pertençam a um determinado grupo racializados, e que pode ou não resultar em práticas discriminatórias. A discriminação racial, por sua vez, é a atribuição de tratamento diferenciado a membros de grupos racialmente identificados.” (ALMEIDA, 2019, p. 32, grifos do autor omitidos).
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A seguir, apresentamos as quatro categorias identificadas, contendo breves comentários acerca de alguns videoclipes. a) Sentimentos e Emoções Em certa medida, todos os videoclipes trazem à tona emoções experimentadas por negros/as. No entanto, destacamos a expressão da corporalidade através da manifestação de sentimentos e emoções que são decorrentes de discriminação racial. Em “A cena” (Rashid, 2015), por exemplo, o medo, o sofrimento, a raiva e a tristeza são frutos de situações cotidianamente vivenciadas pela população negra. São apresentadas cenas de várias personagens (mãe e filha em casa, professor na escola, motoboy em um escritório, empregada com sua patroa, jovem encarcerado com seu advogado, entre outros), que demonstram estar sendo afetados psicologicamente pelo racismo cotidiano. O videoclipe “Amigo branco” (Thiago Elniño, 2013) traz um homem branco experimentando o preconceito racial que a população negra sofre diariamente. Há a representação de personalidades pretas em capas de revistas, com as quais o homem não se identifica; são mostradas as dificuldades dele conseguir um emprego, por causa de sua cor branca; e, a rejeição de um pai negro, ao ver sua filha flertando com alguém que não tem a sua cor de pele, por exemplo. Em “Canção infantil” (Cesar MC, 2019), as cenas se alternam entre uma sala de aula e um palco de teatro, nos quais a música é cantada. Na sala de aula, estudantes, também, interpretam alguns versos, entre eles: “Eu não sei se isso é bom ou mal/ Alguém me explica o que nesse mundo é real/ O tiroteio na escola, camisa no varal/ O vilão que tá na estória ou aquele do jornal”, que é cantado por um adolescente negro. No teatro, a camisa branca do cantor vai gradativamente ficando ensanguentada e ele, ao final, é abraçado por uma criança, enquanto as demais na plateia acendem seus celulares. Apesar da forte denúncia, o
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videoclipe sugere que além das angústias, dores e medos que crianças e adolescentes negros sentem, deve também haver esperança. b) Corpos negros violentados A maioria dos videoclipes, incluídos nessa categoria, denuncia violências corriqueiras e cotidianas de jovens e famílias negras periféricas. Em “Crime Bárbaro” (Rincon Sapiência, 2017), um jovem preto (o próprio cantor) é perseguido por um policial branco. “A música da mãe” (Djonga, 2018) mostra o cantor bem-sucedido sendo assediado pelos fãs, porém, ao fundo, ocorrem violências contra jovens pretos e, no final, o próprio Djonga é preso pela polícia. Os videoclipes “Minha alma” (O Rappa, 1999) e “Negro Drama” (Racionais MC’s, 2002; Amaragi Rap, 2010) se passam em favelas cariocas e paulistanas e também trazem cenas de violência policial. Nos dois videoclipes mais recentes, “Meu nome é Jhony” (Jhony MC, 2020) e “Negão Negra” (Elza Soares e Flávio Renegado, 2020), as abordagens e operações policiais em comunidades são o centro da narrativa. A partir dessas obras, pode-se aprofundar na discussão sobre o papel da polícia no controle e na disciplina de corpos pretos, além, certamente, de seu papel no extermínio da juventude negra periférica. O videoclipe “Junho de 94” (Djonga, 2018) traz a oposição entre duas famílias (uma composta por pessoas negras e outra por brancas) que estão tomando seu café da manhã, enquanto o artista aparece cantando a música com uma corda no pescoço. Ao final, ele é enforcado na mesa da família branca. “Eminência parda” (Emicida, 2019) também apresenta uma família negra que, ao entrar em um restaurante elitizado, desperta os olhares preconceituosos dos brancos que ali estão presentes. O videoclipe mostra as representações dos negros nos imaginários dos brancos, os quais colocam os primeiros em posições de subjugação e exploração que se remetem à escravidão. Os membros daquela família são vistos como pessoas em situação de rua, assaltante,
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prostituta, funcionários de limpeza do restaurante e negros escravizados. As violências que se expressam nos olhares consistem em algo cotidiano para os/as negros/as brasileiros/as que circulam por espaços privilegiados, territórios brancos que segregam corpos negros, os quais “deveriam” se restringir aos espaços marginalizados e periféricos, ou seja, aos territórios negros (NOGUEIRA, 2018). Outra dimensão da violência contra corpos negros aparece em “Hat-trick” (Djonga, 2019). O videoclipe apresenta um jovem negro, bem-sucedido em sua profissão, com o rosto pintado de branco. O processo de embranquecimento, além de ter sido uma das motivações do movimento eugênico no Brasil, produziu (e ainda produz) fortes efeitos psicológicos sobre os negros. A necessidade de adequar-se a padrões estéticos e culturais de uma hegemonia branca tem repercutido na saúde mental da população negra que, inclusive, passou a não querer se auto identificar como tal, já que o próprio inconsciente das pessoas negras foi embranquecido (SOUZA, 1983). Por outro lado, o cantor nega essa adequação e diz em sua música: “Me desculpe aí/ Mas não compro seu processo de embranquecimento de MC”. c) Resistência Negra É interessante notar que, para além da denúncia das violências e opressões às quais os negros têm sido submetidos, desde seu sequestro de África e sua escravização no território brasileiro, as histórias contadas nos videoclipes apresentam movimentos de reação, resistência e superação. É o caso de “Eu só peço a Deus” (Inquérito, 2014), que conta a história de um jovem escravizado que simula sua morte e retorna à casa-grande para libertar os seus. Apesar de também mostrar as violências sofridas por negros escravizados (a história se passa em Minas Gerais, em 1850), o videoclipe apresenta uma, entre tantas outras, estratégia de sobrevivência e de fuga. Isso é fundamental para desconstruir a
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imagem de submissão, aceitação e não reação de africanos e afrodescendentes frente à condição de exploração de seus corpos. Essa mesma expressão da resistência surge em “Boa esperança” (Emicida, 2015), que mostra uma casa de brancos que têm como empregados negros/as que são constantemente humilhados. A situação de violência é rompida quando estes se rebelam, amarram seus patrões e ateiam fogo aos seus pertences. O videoclipe se encerra com uma série de reportagens que noticiam o espalhamento das rebeliões por todo o país. O noticiário de um telejornal é também utilizado como recurso em “Vírus” (MV Bill, 2019). Nele, as manchetes “Pretos estão tomando o poder”, “Preto em todo lugar”, “Pretos estão incomodando os preconceituosos”, “Falar de igualdade já virou algo folclórico”, “Demagogos falaram: não somos racistas!” e “Pretos surgem de todas as partes: é um vírus”, “Pretos lutam e nunca desiste (sic) da luta” e “Não embaça quando chegar nossa vez” são exibidas demonstrando um fenômeno de resistência coletiva dos pretos. Outro aspecto importante da resistência Negra é o da estética. Um dos exemplos é o videoclipe de “A carne” (Elza Soares, 2002). Nele, corpos dançam, com cabelos “black power” e fazem gestos que remetem à luta antirracista. Esta consiste em uma das principais formas de afirmação positiva do corpo negro, de acordo com o que Beatriz Nascimento (ORI, 1989) e Bezerra et al. (2016) nos explicam. O videoclipe “Mandume” (Emicida, 2015) também traz forte representação estética e cultural. Em análise anterior, Oliveira e Bragança (2019) destacam a diversidade de estilos (roupas), cabelos (penteados, cortes e arranjos) e posturas que enfrentam e convocam à ação “como uma reação às políticas de docilização dos corpos submetidas às populações negras” (p. 5). Há, também, a representação de diversidade de gênero com a presença de mulheres trans e travestis. Outro exemplo de resistência surge no videoclipe “Dona de Mim” (Iza, 2018), no qual são apresentadas mulheres negras ocupando
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diferentes lugares (uma professora, uma mãe, uma advogada e uma senhora, ré em um julgamento, além da própria cantora). A força dessas personagens revela a potência da mulher negra, que sofre com as consequências das interseções de gênero, raça e classe. Um de nossos licenciandos, Raphael Soares, fez uma arte a partir do videoclipe (Figura 1). Ele escreveu: “[...] com essa proposta de fundo eu decidi representar como eu me senti depois de ouvir aquele podcast e em seguida rever o clipe”. Figura 1. arte produzida a partir do videoclipe “Dona de Mim” (Iza, 2018)
Fonte: Artista/Licenciando Raphael Alves Soares Mansur Moraes (2020)82
d) Ancestralidade e Espiritualidade Em alguns videoclipes, estão presentes manifestações ou rituais de religiões de matrizes africanas ou afro-brasileiras. Corpos que dançam, celebram, se reúnem em rodas, em devoção às divindades, aos Orixás, que expressam a corporalidade negra. Em “Pedagoginga” (Thiago Elniño, 2017), a personagem central é um menino negro que furta livros e revistas, para poder ler e estudar. A escola formal é fortemente 82
O licenciando autorizou a publicação de sua arte neste escrito.
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criticada, aparecendo o Hip-Hop como um movimento educador/formador. Além disso, há cenas em que o menino é protegido por seu guia, representado pelo próprio cantor. Aparecem imagens de divindades, enquanto a letra da música traz os nomes de alguns Orixás (Orunmilá, Oxóssi e Ogum). Isso reforça a questão da espiritualidade e reafirma as crenças de religiões de matriz africana, em tempos de dominação neopentecostal, e aumento de casos de intolerância religiosa, inclusive em escolas (SILVA, 2019). Em “Bluesman” (Baco Exu do Blues, 2018), o personagem principal se encontra com um senhor preto idoso, tocando seu rosto, em um descampado. Ele também aparece em uma igreja, e aparece um desenho de Jesus Cristo preto. Em diversos momentos, o jovem rapaz saúda e pede a benção de homens e mulheres mais velhas. Há também uma passagem em que a música do rapper é interrompida por um cântico entoado ao som de atabaques. Assim, elementos que recuperam a ancestralidade negra compõem a obra. Apesar de já termos citado o videoclipe “Mandume” (Emicida, 2015), na categoria c, retomamos ele, aqui, pois há uma cena em que duas mulheres negras dançam, em um ritual de religião de matriz africana, e são interrompidas por um homem branco, vestido de terno, que empunha uma bíblia como se estivesse tentando exorcizá-las. O fogo próximo às mulheres chega a apagar-se com o ato do homem, porém, ele reacende e derruba o homem. Neste momento, Raphão Alaafin canta: “sem eucaristia no meu cântico”. A resistência ressaltada anteriormente passa, portanto, também pela reafirmação das crenças religiosas ancestrais. A partir das categorias acima descritas compreendemos que as obras audiovisuais selecionadas pelos licenciandos são potentes para subsidiar uma educação antirracista, em torno do tema corpo/corporalidade em aulas de Ciências e Biologia, na medida em que permitem discutir:
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O corpo ocidental/cartesiano que separa o sentir do existir, já que a dimensão racional (o pensar) é supervalorizada; o que resulta em corpo humano (objeto de estudo e ensino) sem emoção e sem sentimentos. No caso dos corpos de pessoas negras, tal separação chega ao extremo, sendo negado tanto o sentir quanto o pensar, atingindo uma desumanização que justificou a escravização e a violência racial institucionalizada no Brasil (ALMEIDA, 2014). Portanto, nem todos os corpos existem da mesma forma, pois corpos negros são perseguidos e violentados, algo que interfere diretamente na saúde da população negra. Corpos negros trazem em si, por outro lado, uma história de resistência que precisa ser apresentada aos estudantes da educação básica, por exemplo, a partir da ênfase aos elementos estéticos corporais que fogem do padrão branco ocidental. Da mesma forma que as emoções do corpo foram apagadas, também foi negada às pessoas negras a possibilidade de manifestarem suas crenças através de seus corpos. A discriminação às religiões de matriz africana, cujos rituais têm corpos que dançam e cantam, surge como um tema a ser discutido em nossas aulas.
Considerações Finais Nesse texto, apresentamos uma atividade avaliativa desenvolvida em uma disciplina obrigatória do curso de licenciatura em Ciências Biológicas da FFP-UERJ, na qual abordamos o tema corpo atravessado por uma discussão racial que potencializou a inserção da questão étnico-racial na formação inicial. A disciplina “Laboratório de Ensino I” foi oferecida durante o PAE-1 de forma remota, devido à pandemia da
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Covid-19. A partir da solicitação de escolha de videoclipes de artistas brasileiros, pretendíamos contemplar aspectos culturais e sociais relacionados ao tema, com um recorte racial, algo que nem sempre é considerado pelos estudos sobre corpo no ensino de Ciências e Biologia. A análise dos temas abordados, nos 21 videoclipes escolhidos pelos licenciandos, mostra a potencialidade de tais recursos audiovisuais na discussão sobre corpo e raça. Destacamos que a maior parte dos videoclipes (13 ao total) foram produzidos nos últimos 5 (cinco) anos, ou seja, são obras recentes e que fazem uma fotografia da realidade social brasileira contemporânea. Ao trazê-las para a sala de aula, estamos, portanto, contextualizando socialmente o tema “racismo” e, ao mesmo tempo, explorando questões relacionadas ao/à corpo/corporalidade negro/a, que não se limitam aos aspectos físicos/fisiológicos, tradicionalmente ensinados nas disciplinas Ciências e Biologia. Devido ao limite de extensão do texto, não pudemos apresentar as possibilidades didáticas dos videoclipes identificadas pelos licenciandos. No entanto, por meio das análises aqui apresentadas, é possível inferir que elas podem estar relacionadas: i) às contribuições da ciência moderna (sobretudo àquelas relacionadas ao movimento eugênico brasileiro do início do século XX), para a consolidação de estereótipos raciais que, até hoje, perduram em nossa sociedade e promovem discriminações e violências (físicas e psicológicas); ii) às discussões envolvendo os conceitos biológico, social e ideológico de raça; iii) ao/à corpo/corporalidade negro/a como um instrumento de resistência contra as opressões sofridas há séculos pelo povo negro em diáspora, através da afirmação positiva de sua identidade, seja ela cultural, estética ou religiosa; iv) à dimensão espiritual do corpo e sua relação com a ancestralidade. Com isso, salientamos o grande potencial das obras audiovisuais, para subsidiarem discussões sobre o corpo humano em aulas de Ciências e Biologia.
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Como possibilidade de desdobramento do presente estudo, indicamos o aprofundamento das relações entre imagens (narrativas) e letras das músicas exploradas nos videoclipes, em busca da identificação das representações sobre corpo/corporalidade, criadas a partir do diálogo entre texto imagético e texto oral. Acreditamos que uma análise discursiva semiótica poderia trazer importantes contribuições das obras para a educação formal.
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DOI: doi.org/10.29327/565971.1-12
Leitura, escrita e processos de argumentação: potencialidades na convergência de sentidos entre os Estudos da Ciência, Tecnologia e Sociedade (ECTS) e o Ensino de Biologia Reading, writing and argumentation processes: potentialities in the convergence of meanings between Science, Technology and Society Studies (STS) and Biology Teaching Tabatta Cristina Fritzen da Silva Lavarda1 Patrícia Barbosa Pereira2 1 Graduada em Ciências Biológicas Licenciatura pela Faculdade União das Américas. É mestre pelo Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e em Matemática, pela Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil, e possui especializações em Ensino de Ciências e Matemática, Educação Especial e Educação Ambiental. Atua como professora do quadro próprio do magistério no Estado do Paraná - Núcleo Regional de Educação de Curitiba, no Ensino Fundamental com a disciplina Ciências e no Ensino Médio com a disciplina Biologia. E-mail: tabattacristina@gmail.com / Orcid: http://orcid.org/0000-0002-3879-1843 2 Graduada em Ciências Biológicas (Bacharelado e Licenciatura), com mestrado e doutorado em Educação Científica e Tecnológica, pela Universidade Federal de Santa Catarina. É professora da Universidade Federal do Paraná, em Curitiba, Paraná, Brasil, vinculada ao Departamento de Teoria e Prática de Ensino - Setor de Educação, no qual atua nos cursos de graduação em Ciências Biológicas e em Pedagogia. Nessa instituição, é também credenciada no Programa de Pós-Graduação em Educação e no Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e em Matemática. Coordena o Laboratório de Estudos em Discurso, Decolonialidade e Interculturalidade na Educação. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação em Ciências e seu ensino/pesquisa, prioritariamente nos seguintes temas: Ensino de Ciências e Linguagem, Estudos Decoloniais e Interculturalidade no Ensino de Ciências/Biologia. E-mail: patriciapereira@ufpr.br / ORCID: https://orcid.org/0000-00022984-2872
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Resumo: Neste texto propomos a discussão de uma abordagem de ensino para a disciplina de Biologia, a partir da implementação de uma proposta didática fundamentada em estratégias de ensino-aprendizagem com enfoque nas relações dos Estudos da Ciência, Tecnologia e Sociedade (ECTS) de referenciais latino-americanos e da Análise de Discurso (AD) da vertente franco-brasileira, impulsionando — por estratégias de leitura, escrita e debates, a promoção do interesse em compreender que a produção científica e tecnológica deve ser vista como sujeita à interesses sociais, culturais, econômicos, políticos, éticos e morais. Buscamos analisar os processos de construção de sentidos em sala de aula, acerca dos aspectos socioeconômicos vinculados à ciência e tecnologia, tendo em vista a importância da linguagem e a contribuição da leitura e da escrita. Os resultados demonstraram que a proposta didática proporcionou condições para construção de redes de sentidos, a partir dos assuntos abordados em sala de aula, bem como processos de argumentação e senso crítico a partir do estímulo ao posicionamento sobre questões científicas e tecnológicas que venham a interferir na sociedade da qual as/os estudantes fazem parte. Palavras-chave: Ensino de Biologia. ECTS. Proposta didática. Leitura e escrita.
O iniciar da caminhada
T
RAZEMOS para a discussão neste texto, o recorte de uma pesquisa mais ampla — realizada em nível de mestrado, sendo que os primeiros passos do que apresentaremos aqui, constituíram-se de algumas de nossas inquietações e reflexões como professoras e pesquisadoras, bem como de algumas das leituras que orientaram nossas práticas ao longo da pesquisa realizada. Partimos do entendimento de que algumas iniciativas para abordagem de assuntos relacionados à Ciência, Tecnologia e Sociedade, ainda no Ensino Médio, já são vislumbradas no contexto escolar, porém, é possível perceber que as práticas das/os professoras/es83 acabam conduzidas, muitas vezes, de maneira fragmentada, o que já é inerente Por uma questão de normalização na escrita, e compreendendo que todo gesto linguístico é, de certo modo, excludente, optamos pela designação binária de gênero ao longo do texto. 83
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até mesmo à formação inicial docente, a qual, predominantemente, ainda ocorre de modo tradicional e disciplinar. Pensando na importância da linguagem para ressignificação desses processos pedagógicos, recorremos aos estudos da Análise de Discurso (AD) da vertente franco-brasileira, em especial com base na obra de Eni Orlandi. Essa abordagem procura compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico. Assim, propõe-se a estudar a prática da linguagem, a palavra em movimento, o discurso — o sujeito fazendo uso da linguagem - que é afetado pela história, interpelado pelo inconsciente e pela ideologia (ORLANDI, 2003). Por esse referencial dar grande importância ao discurso e a linguagem fazendo sentido, tornou-se, para nós, algo motivador pensar sobre a maneira parafrástica que os conteúdos de Biologia geralmente são abordados em sala de aula, ou seja, de uma forma conteudista, memorística, sobrecarregada de conceitos descontextualizados (MUNFORD; LIMA, 2007), a partir de aulas expositivas como metodologia para ensinar uma disciplina bastante abstrata e complexa. O aporte teórico da AD nos permite, dessa forma, compreender a importância de se pensar a não transparência da linguagem nos processos de ensino-aprendizagem, compreendendo, que o que se diz, e como se diz, interfere na produção de sentidos das/os estudantes em relação aos conteúdos que se quer ensinar. Outro aspecto proporcionado pela AD é o pensar sobre a importância da leitura e da escrita no Ensino de Biologia, e a necessidade de professoras/es levarem em consideração as diferentes condições de produção e as histórias de leitura, presentes em uma sala de aula, pois, mesmo que as pessoas vivam inseridas em uma mesma comunidade, compartilhando de uma cultura em comum, as particularidades, individualidades e subjetividades influenciam na aprendizagem e nos processos de autoria. Dessa forma, as/os professoras/es podem contribuir para um aprendizado mais significativo propiciando a ampliação das
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histórias de leitura de suas/seus estudantes e levando em consideração as condições de produção do conhecimento que está sendo construído, estabelecendo, quando necessário, as relações intertextuais, com resgate da história dos sentidos do texto (ORLANDI, 2012). Ao considerar que a linguagem não é transparente e que o sujeito não é dado a priori, pois resulta de uma estrutura complexa, tendo existência descentrada no espaço discursivo, ou seja, constitui-se entre o “eu” e o “outro”; bem como a incompletude como condição da produção dessa linguagem, dos sujeitos e dos sentidos (ORLANDI, 2003), as reflexões da AD e dos Estudos da Ciência, Tecnologia e Sociedade (ECTS) de referenciais latino-americanos (DAGNINO; THOMAS; DAVYT, 1996; KREIMER; THOMAS, 2004; VACCAREZZA, 2004; LINSINGEN, 2007) nos apresentam possibilidades para pensarmos o Ensino de Biologia de uma maneira diferente da abordagem tradicional tão presente nas escolas. Assim, permitem proporcionar uma formação crítica em aprendizagens vinculadas à argumentação, ao posicionamento e à atuação em processos de decisão e produção de conhecimentos científicos e tecnológicos, tendo em vista que essa produção pode interferir e atravessar nossas vidas. A partir da emergência desses estudos e com base na reflexão sobre tais necessidades, dentre os principais objetivos deste trabalho, pretendemos identificar e analisar os processos de construção de sentidos sobre assuntos relacionados à Biologia trabalhada no Ensino Médio, a partir do desenvolvimento de uma proposta didática fundamentada em estratégias de ensino-aprendizagem com enfoque nas relações propostas pelos ECTS de referenciais latino-americanos articulados à AD da perspectiva franco-brasileira. Em consonância, pretendemos problematizar argumentação e senso crítico a partir do estímulo ao posicionamento sobre questões científicas e tecnológicas que venham a interferir na sociedade da qual as/os estudantes fazem parte.
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Problematizar a leitura e escrita – um viés para o Ensino de Ciências A partir da perspectiva discursiva, exploramos conceitos importantes sobre os processos de leitura e escrita e suas possibilidades no Ensino de Ciências, em especial de Biologia. Na esteira de discussão de autoras/es como Cassiani, Giraldi e Linsingen (2012), bem como Possenti (2009), concordamos com o entendimento das diversas relações estabelecidas entre textos e leitores. Assim, percebemos que as/os estudantes não leem ou escrevem todas/os da mesma maneira, e que existem graus de habilidades e diferentes contextos de leitura e escrita. Embora pareça óbvio, nem sempre essas diferenças, muitas vezes estruturais, são levadas em consideração nos processos de construção de conhecimento. De acordo com Orlandi (2012), na AD não existe apenas a decodificação ou a apreensão de um único sentido (uma informação) na leitura de um texto, que já esteja dado nele. Ou seja, um texto nunca é tratado apenas como um produto pronto e acabado, mas sim atrelado ao processo de sua produção e de sua significação. Consequentemente, de acordo com essa noção, quem lê não apreende meramente um único sentido do que está exposto no texto, pelo contrário, atribui variados sentidos ao texto, conforme suas condições de produção amplas e estritas, em especial, as condições de produção de leitura desse texto. Sendo assim, “a leitura deve ser considerada no seu aspecto mais consequente, que não é o da mera decodificação, mas o da compreensão” (ORLANDI, 2012, p. 50). Toda leitura tem sua história. Ou seja, um mesmo texto pode ter diferentes leituras em diferentes épocas e, dessa forma, as leituras que não são possíveis hoje, podem vir a ser no futuro, pois os textos passam por processos de ressignificação e deslizamentos de sentidos, segundo as condições de produção e a intertextualidade (a relação de um texto com outros) que estamos sujeitos. “O conjunto das
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leituras feitas configuram, em parte, a compreensibilidade de cada leitor específico” (ORLANDI, 2012, p. 57). Refletindo sobre o tipo de leitura que, predominantemente, ainda temos em nossas escolas, podemos descrevê-la como atrelada ao método tradicional de ensino, em que são apagadas suas condições de produção, as histórias de leituras das/os estudantes, ou seja, não são consideradas vivências e experiências do cotidiano — que são únicas e influenciam na produção de sentidos por parte de cada estudante — ao contrário, espera-se uma interpretação única. Para Cassiani, Giraldi e Linsingen (2012, p.46) “os sentidos esperados pelo professor devem ser trabalhados como um dos constituintes da produção de sentidos, mas não como o único constituinte”. Assim, na escola, as condições de produção da leitura da/o estudante podem ser modificadas pelas/os professoras/es, propiciando a compreensão de suas histórias de leituras, estabelecendo, quando necessário, as relações intertextuais, com resgate para a historicidade dos sentidos do texto. No entanto, ainda existem professoras/es que esperam de suas/seus estudantes apenas as leituras previstas de um texto, como se ele fosse fechado para diferentes produções de sentidos, excluindo-se, dessa forma, qualquer relação do texto com o contexto histórico-social, cultural e ideológico. (...) em termos de escola, o que gostaria de ressaltar é que as leituras previstas para um texto devem entrar como um dos constituintes das condições de produção da leitura e não como o constituinte determinante delas, uma vez que, entre outros, a história das leituras do leitor também se constitui um fator relevante para o processo de interação que a leitura estabelece. (ORLANDI, 2012, p. 60).
Geralmente, quando a construção de sentidos de um texto por uma/um estudante é diferente da esperada pela/o docente, isso é considerado um erro ou incompetência atrelada à interpretação. Esse é um
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argumento muito comum entre as/os professoras/es frente às dificuldades encontradas no Ensino de Ciências. Muitas vezes, quando se afirma que as/os estudantes não sabem interpretar, o que se quer dizer é que houve uma falta de competência para se encontrar no texto o sentido único previsto, a partir de uma ideia de leitura com foco na localização de informações. Ainda para Cassiani, Giraldi e Linsingen (2012), na contracorrente da interpretação única, a abordagem polissêmica sobre temas da ciência possibilita condições de produção de autoria, ou seja, possibilita a tomada de posição dos sujeitos diante dos textos sobre ciências. Assim, afirmam ainda que quando é aberto um espaço para a polissemia em sala de aula, instaura-se um discurso que se aproxima do polêmico, que é aquele em que ocorre disputa de sentidos no jogo entre a paráfrase e a polissemia e traz a vida de fora da escola para dentro dela. Portanto, faz-se necessária e urgente uma transformação na postura tradicional de professoras/es, oferecendo-lhes caminhos e estratégias que possam auxiliar suas práticas em sala de aula com vistas a uma educação de melhor qualidade — que agregue significados para a vida das/os estudantes, possibilite processos de participação na construção do conhecimento - e não somente a perspectiva da transmissãorecepção - e forme para uma cidadania crítica, com envolvimento coletivo em processos de tomadas de decisões políticas em relação aos avanços da ciência e da tecnologia. Salientamos que tal formação para a cidadania crítica, a qual defendemos, está em consonância com a proposição feita por Rodrigues, Cassiani e Linsingen (2019), em que, articulada às práticas pedagógicas que proporcionem a construção de conhecimentos e práticas libertadoras, essa cidadania é vislumbrada junto à superação das contradições vivenciadas pelas/os estudantes, diretamente associadas à raça, ao gênero e às condições de exploração no trabalho (típicas do sistema capitalista).
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Proposta didática para o Ensino de Biologia – Articulações entre ECTS e Linguagem Com o propósito de investigar e analisar alguns processos de construção de sentidos sobre assuntos relacionados à Biologia no Ensino Médio, a partir de estratégias propostas pelos ECTS atreladas à perspectiva da linguagem da AD, buscamos elaborar uma sequência de aulas permeada por estratégias de leitura, escrita e debates que pudessem promover nas/os estudantes a compreensão de que a produção científica e tecnológica deve ser vista como sujeita aos interesses sociais, culturais, econômicos, políticos, éticos e morais. Com relação ao aporte teórico para os ECTS, optamos pelo Pensamento Latino Americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade (PLACTS84), pois acreditamos que essa corrente de pensamento tem contribuído intensamente para ressignificar as relações CTS na educação e instigado um olhar mais reflexivo para as complexas interações entre os âmbitos da ciência, da tecnologia e da sociedade não somente na, como também da América Latina (PEREIRA, 2014; LINSINGEN, 2007). Nos preocupamos, também, em despertar o interesse das/os estudantes para uma reflexão crítica sobre os produtos da ciência e da tecnologia, com o intuito de promover a compreensão da necessidade de sua participação ativa nas tomadas de decisões sobre os assuntos que afetam a sociedade. Assim, nos ancoramos na crítica que é feita, dentro do próprio PLACTS, à adoção de um modelo de desenvolvimento com base nos países de “Primeiro Mundo”, do eixo Norte Global, na lógica da colonialidade e, assim, contrário às necessidades regionais.
84 O PLACTS surge de uma reflexão da própria comunidade científica, a partir de uma proposição feita por Dagnino, Thomas e Davyt (1996), como uma forma de pensamento autônoma e original da América Latina, que buscava uma revisão e redirecionamento do desenvolvimento científico e tecnológico. De acordo com Dias (2008), apesar de remeter às décadas de 1960 e 1970, o enfoque ainda se mostra bastante atual, marcado pela preocupação para com a adoção de estilos alternativos de desenvolvimento.
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A partir desses objetivos foi então planejada a articulação de assuntos relacionados à Biologia Molecular com a discussão ECTS, levando em conta a necessidade de um olhar cuidadoso para questões da linguagem. Uma escolha que, como já mencionamos, deveu-se, principalmente, ao fato dessa subárea envolver conteúdos caracteristicamente abstratos, tais como: a estrutura da molécula de DNA, bem como a replicação, transcrição e tradução dessa molécula para a produção de proteínas. Assim, foi realizada a organização de uma proposta didática, intitulada “Desvendando o código genético”, constituída por 14 aulas de 50 minutos cada uma, com foco na abordagem de questões/temáticas de cunho mais social, via discussão de Organismos Geneticamente Modificados (OGM), em especial os transgênicos. Juntamente com esta articulação, os assuntos foram organizados a cada aula, seguindo os passos adotados por Delizoicov e Angotti (1994) como estratégia didática, tendo em vista os Três Momentos Pedagógicos (3MP): Problematização Inicial (PI), Organização do Conhecimento (OC) e Aplicação do Conhecimento (AC). A proposta contou com a perspectiva discursiva e abordagens do campo dos ECTS para o ensino da Biologia durante todas as etapas, ou seja, da elaboração à análise de todas as atividades. Porém, para este texto utilizaremos o recorte de quatro aulas, apresentadas resumidamente no Quadro 1, a seguir. Quadro 1. Recorte da proposta didática implementada Aula
MP
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PI
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OC
Objetivos de ensino-aprendizagem Problematizar a produção e utilização de OGM, visando discutir criticamente sobre suas vantagens e desvantagens na busca da qualidade de vida dos seres humanos. Entender que é necessário ter um olhar crítico em relação aos
Caminhos Metodológicos Problematização do tema, por meio de textos de divulgação científica.
Aula expositiva e dialogada, com auxílio de vídeo e HQ.
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OC
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transgênicos que a ciência e a tecnologia desenvolvem, em vez de consumir cegamente o que as indústrias produzem. Assimilar os processos de replica- Aula expositiva e dialogada, ção e transcrição do DNA, para com HQ, quadro e giz. compreender o funcionamento da molécula e como se dá a sua manipulação. Elaborar argumentos que possiDinâmica “tempestade de bilitem discutir as vantagens e ideias” e realização de textos e desvantagens da produção de desenhos, a partir de uma transgênicos, para a economia, questão problematizadora soalimentação humana e o meio bre OGM. ambiente. Fonte: as autoras (2021)
Para alcançarmos os objetivos propostos, para a pesquisa que, aqui, trazemos um recorte, assumimos uma abordagem essencialmente qualitativa, de natureza interpretativa, com observação participante. Assim, a implementação da proposta de ensino foi uma das etapas da pesquisa, desenvolvida em um Colégio da Rede Estadual, no município de Curitiba, com 34 estudantes, do 1º ano do Ensino Médio. A constituição dos dados foi realizada por meio de atividades produzidas por essas/es estudantes, observações das aulas, diários de bordo e de gravações em áudio. Nesse contexto, caracterizamos este trabalho como fruto de uma pesquisa de interação pedagógica, em que a perspectiva da linguagem adotada se instaura em processos de opacidade e, desse modo, não inclui a possibilidade de se atravessar o texto para encontrar um sentido do outro lado, pois, em contrapartida, ocupa-se dos processos de significação (ORLANDI, 2003). Assim, podemos olhar para a linguagem de forma menos ingênua e naturalizada, levando em consideração a sua não transparência em sala de aula, buscando compreender suas maneiras de significar (PEREIRA, 2008). Em consonância a isso, de acordo com a perspectiva de leitura e linguagem por nós adotada, consideramos que as/os estudantes não se
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relacionam da mesma forma com os conteúdos que lhes são apresentados e as/os professoras/es também não reagem da mesma maneira aos recursos metodológicos utilizados, assim como não se expressam igualmente de acordo com os temas sócio-científicos abordados durante o desenvolvimento de uma proposta didática em sala de aula. Cada estudante interage de acordo com as condições de produção de seu discurso, influenciadas pelo seu contexto sócio-histórico e suas histórias de leitura e escrita, ao longo de suas vivências, para além das escolares.
Algumas análises da convergência de sentidos entre os ECTS e o Ensino de Biologia Considerando a possibilidade de as/os estudantes escolherem o tipo de texto que mais lhes agradava (tirinha, HQ, carta, desenho ou entrevista gravada em áudio e vídeo, com colegas de outras salas ou familiares), para tratar sobre os transgênicos no momento pedagógico de Aplicação do Conhecimento (AC), tendo em vista todo o caminho iniciado a partir da problematização inicial, realizada em sala, apresentado no quadro 1, para nossa surpresa, todas as produções realizadas foram dentro do gênero textual de HQ. Na AD essa situação é explicada pelo mecanismo de antecipação, ou expectativas, por meio do qual, o sujeito se coloca no lugar de seu interlocutor (ORLANDI, 2011). Sendo assim, é possível que, a partir desse mecanismo de antecipação, as/os estudantes tenham pensado em agradar ou satisfazer, de alguma forma, a vontade da professora, colocando-se em seu lugar, imaginando os trabalhos que ela gostaria de receber. Isso pode ser justificado pela frequência com que as HQ eram usadas, durante as aulas de Biologia. A principal intenção com essa atividade de produção de texto foi a de captar indícios das leituras produzidas pelas/os estudantes, a partir dos textos utilizados durante as aulas e, dessa forma, acessar alguns
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dos sentidos construídos por elas/es, em relação aos transgênicos. Lembrando que, para a AD, tudo aquilo que significa é considerado um texto, então, uma imagem, um vídeo, uma explicação expositiva, os gestos de colegas e da professora, ou seja, todos recursos didáticos, a partir dos quais as/os estudantes puderam construir sentidos em sala, são aqui considerados textos. Além de tentar promover a emergência das leituras produzidas pelas/os estudantes, a intenção foi, também, permitir uma produção livre, ao propiciar condições de se desprenderem da autoridade da imagem da professora, para elaborarem produções que pudessem expor o que pensam sobre os transgênicos e expressarem a ideia que defenderiam sobre o tema, sem se fixarem, necessariamente, à apresentação de um texto repleto de conteúdos conceituais que, geralmente, seria levado em consideração para aferir uma nota. Sendo assim, acreditamos ter dado espaço para que as/os estudantes assumissem a condição de autoria, a partir da ampliação de suas histórias de leituras durante as aulas de Biologia. Possibilitando uma abertura maior para a polissemia dos sentidos que, de acordo com Orlandi (2003), acontece quando temos deslocamento e ruptura nos processos de significação. Desse modo, na polissemia, os estudantes não reproduzem diferentes reformulações do dizer do professor, eles refletem sobre os assuntos discutidos e opinam criticamente sobre eles. Em várias HQ, é possível perceber que os estudantes não reproduziram uma supervalorização nem mesmo a simples repetição do conteúdo conceitual sobre os transgênicos, muito além disso, nossas análises indicam uma reelaboração sobre o assunto, com uma explanação da relação entre os transgênicos e os aspectos sociais, políticos e econômicos. Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2002) afirmam que é preciso superar a tradicional transmissão de conhecimentos escolares, abandonando um modelo de ensino orientado para a memorização e supervalorização de conceitos distantes da realidade dos alunos.
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Figura 1. Digitalização de HQ produzida por M
Fonte: Do estudante (2018)
Na figura 1, por exemplo, percebemos que o estudante expressa suas filiações de sentidos em relação aos aspectos sociais da alimentação, ao relacionar a falta de opção das pessoas de baixa renda - que não possuem poder aquisitivo para comprar produtos de origem crioula mesmo que conheçam as vantagens e desvantagens dos transgênicos, e se veem na obrigação de consumi-los, por estarem presentes na maioria das opções de alimentação de valor mais acessível à população em geral. Partindo do pressuposto que nossa proposta didática foi permeada pelos ECTS, que manifestam como preocupação central a discussão dos aspectos sociais decorrentes da prática científica e tecnológica, vinculada diretamente à formação da cidadania (KOEPSEL, 2003), podemos destacar na HQ produzida pelo estudante a presença dos sentidos menos ingênuos, assim como os presentes nas relações CTS, vinculados aos aspectos sociais, uma vez que sua produção textual traz indicativos
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de que a ciência e a tecnologia estão longe de atender todas as demandas da sociedade. Analisando a partir da perspectiva da linguagem, é possível perceber que as/os estudantes expressam em suas HQ, paráfrases nas quais apresentam os sentidos que construíram sobre a temática OGM. Para a AD, nos processos de paráfrase, em todo dizer há sempre algo que é mantido, ou seja, os processos parafrásticos contemplam a memória (ORLANDI, 2003). Sendo assim, podemos afirmar que a partir dos discursos da professora sobre os OGM, em sala de aula, há sempre algo que as/os estudantes guardam para si e, assim, constroem sentidos. De alguma forma, esse discurso ou parte dele, estará em sua memória, e poderá ser apresentado ou exposto em momentos diversos, seja numa de avaliação, no caso da escola, ou de aplicação do conhecimento, no exercício da cidadania, em vários espaços e âmbitos, para além da escola. De acordo com Orlandi (2003) a paráfrase é a matriz do sentido, pois não há sentido sem repetição. Os sujeitos e os sentidos, pela repetição, estão sempre tangenciando o novo, o possível o diferente, ou seja, é a partir da repetição do discurso pedagógico, construído por meio de outros discursos, que as/os estudantes constroem suas memórias e seus sentidos. Os sentidos construídos pelas/os estudantes são passíveis ao movimento, devido à incompletude do sujeito, dos sentidos e da linguagem. Entretanto, existem também injunções à estabilização, que podem bloquear o movimento da construção de sentidos e, nesse caso, ele não flui e o sujeito não se desloca, não constrói novos sentidos, novos conhecimentos. Ao invés disso, ele é fixado em lugares já estabelecidos, em um imaginário em que sua memória não reverbera, ela estaciona, e só repete (ORLANDI, 2003). Sendo assim, a AD propõe a distinção por três formas de repetição: a) a empírica, que é a do efeito papagaio. Em que só há uma simples repetição; b) a formal, que se constitui em outro
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modo de dizer o mesmo; c) a histórica, que corresponde àquela que se desloca, que permite o movimento, pois historiciza o dizer e o sujeito e faz fluir o discurso, “trabalhando o equívoco, a falha, atravessando as evidências do imaginário e fazendo o irrealizado irromper no já estabelecido” (ORLANDI, 2003, p. 54). Observando as HQ produzidas pelas/os estudantes podemos inferir que a paráfrase, por eles apresentada, se aproxima da repetição histórica, pois é possível observar movimentos de sentidos, e não apenas um efeito papagaio de repetição empírica do discurso da professora, nem mesmo dos textos utilizados em sala de aula. Esses discursos tampouco se resumem em uma preocupação de proferir o mesmo discurso, com outro modo de dizer, apresentando, assim, uma ressignificação dos conteúdos abordados em sala. Em continuidade às nossas análises, destacamos a figura 2 — em que um estudante textualiza a produção de tomates transgênicos para a alimentação humana - uma construção de sentidos em relação à ciência e à tecnologia, que aponta para os discursos que as potencializam, e colocam como ferramentas para resolver problemas sociais relacionados à fome. Figura 2. Digitalização de HQ produzida por L
Fonte: Do estudante (2018)
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Dessa maneira, consideramos que as proposições fundamentais dos ECTS, no Ensino de Biologia, que permearam a proposta didática e possibilitaram a atividade de autoria das/os estudantes, viabilizaram a construção de sentidos, em relação à manipulação genética dos organismos, pois identificamos, na materialização de seus desenhos e suas histórias contidas nas HQ, um movimento em relação aos sentidos presentes na fala da professora/pesquisadora e dos textos utilizados em sala de aula. Notamos, também, nas figuras 3 e 4, uma preocupação dos estudantes com a formação da população, no sentido de as pessoas se tornarem aptas a participarem de forma crítica das tomadas de decisões sobre processos que envolvem a ciência e a tecnologia, e poderem interferir na sociedade. A partir do conteúdo das HQ, podemos afirmar que as/os estudantes se apropriaram dos conteúdos científicos suficientes, para compreenderem como a ciência e a tecnologia podem afetar em suas escolhas no dia-a-dia, sejam elas relacionadas à alimentação, saúde ou bem-estar. Figura 3. Digitalização de HQ produzida por M. e E
Fonte: Dos estudantes (2018)
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Figura 4. Digitalização de HQ produzida por C
Fonte: Do estudante (2018)
São ainda relevantes, nas figuras 5 e 6, a presença dos sentidos sobre as relações CTS. Destacamos, aqui, a criticidade das/os estudantes sobre a identificação dos transgênicos nas embalagens e, a partir dessa observação, podemos inferir pensamentos críticos-reflexivos, em relação à preocupação com o consumo desses produtos. Figura 5. Digitalização de HQ produzida por Ca
Fonte: o estudante (2018)
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Figura 6. Digitalização de HQ produzida por J
Fonte: o estudante (2018)
Isso comprova que essas/es estudantes construíram sentidos sobre os conceitos científicos relacionados à produção e comercialização dos OGM, e, a partir de suas reflexões, demonstram ter ampliado os seus conhecimentos sobre o produto, suas vantagens e desvantagens, pois, instigam o leitor, propondo um posicionamento sobre ser contra ou a favor aos transgênicos. Para a AD, a leitura e a escrita estão relacionadas às diferentes compreensões e interpretações, inerentes à linguagem, processos esses assumidos, na medida em que há interação, com os textos e ainda com outros sujeitos, no caso da proposta desenvolvida, como colegas e a professora, já que as relações sociais e históricas sempre se dão entre os pares (ORLANDI, 2003). Os diferentes sentidos apresentados pelas/os estudantes acerca dos transgênicos só são possíveis porque cada estudante se constitui de diferentes memórias discursivas durante as aulas e em suas experiências de vida, possuem diversificadas histórias de leitura, apesar de compartilharem muitas delas. Essas memórias configuram uma história de sentidos que, pela incompletude do sujeito, dos sentidos e da linguagem, podem apontar deslocamentos, que os estudantes tiveram a oportunidade de expressar, durante seus momentos de autoria.
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Figura 7. Digitalização de HQ produzida por K
Fonte: o estudante (2018)
Ainda, em um processo de reflexão crítica, analisado a partir dos materiais produzidos, na figura 7, os estudantes problematizam a produção e o consumo dos transgênicos e, por meio de questionamentos, direcionam a uma reflexão sobre as vantagens e desvantagens do consumo desses produtos. Percebemos, neste processo de constituição de sentidos, o desenvolvimento de uma leitura crítica da realidade, a partir da qual as/os estudantes poderão lidar com diferentes problemas, relacionados aos produtos da ciência e da tecnologia. Já, a figura 8 parece se associar à intencionalidade de demonstrar a compreensão da existência de posicionamentos políticos, ambientais, econômicos, e mercadológicos, presentes em grupos da sociedade, em relação aos transgênicos. E, ao mesmo tempo, parece ter a intenção de provocar uma preocupação relacionada ao posicionamento crítico, das pessoas que não sabem em qual lado se posicionar, talvez pelo fato de ainda não existirem pesquisas que comprovem os malefícios da ingestão dos produtos transgênicos, pelos seres humanos. Esse quadrinho, parece, ainda, apontar para um posicionamento particular, do discurso dos estudantes, como autores. Orlandi (2003) explicita que o indivíduo é sujeito à língua e à história, pois é afetado por essas quando produz sentidos, e ele necessita disso, pois se não produz sentidos, não se constitui como sujeito. Sendo assim, nesta produção, es-
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ses estudantes parecem se sentir pressionados a posicionarem seu discurso em relação ao discurso do outro, uma vez que ele está inserido em um tempo e espaço social. Figura 8. Digitalização de HQ produzida por P. e J
Fonte: os estudantes (2018)
Em razão disso, entendemos que as/os estudantes são sujeitos socializados que discursam de acordo com suas marcas sociais já que, em muitos momentos, durante as aulas, várias/os estudantes se sentiram como o cidadão representado na figura 8 — que levanta a placa com os pontos de interrogação, argumentando que não sabem como se posicionar, já que os alimentos transgênicos são mais baratos, e, portanto, acessíveis à maioria da população e, principalmente, pelo fato de se da-
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rem conta que já comiam transgênicos todos os dias, sem mesmo problematizar esse consumo. Porém, sabem que esse mesmo produto que pode auxiliar na qualidade de vida de muitas pessoas, pode provocar prejuízos ambientais. Posto isso, destacamos, aqui, a importância das discussões sobre assuntos sócio-científicos no Ensino de Biologia, embasadas nos referenciais dos ECTS, as quais possibilitam posicionamentos de maior criticidade sobre os produtos provenientes da ciência e da tecnologia, além de ajudarem a ponderar nos processos de decisão e escolha sobre sua utilização ou não. Ainda, em nossas análises escolhidas, na figura 9, a HQ apresentada pelo estudante reflete, ao nosso olhar, uma apreensão/compreensão de conteúdos conceituais sobre o pareamento das bases nitrogenadas; da dupla hélice do DNA; do papel do cientista nos processos de manipulação da molécula e do que são os produtos transgênicos, definidos durantes as aulas. Figura 9. Digitalização de HQ produzida por Ma
Fonte: o estudante (2018)
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Vimos, nessa análise (Figura 9), também, uma fuga ao sentido único da formação imaginária de cientista, já que esse não foi representado no padrão de normatividade eurocentrada da ciência cartesiana/Moderna e, portanto, hétero-cis-patriarcal-judaica-cristã. Ou seja, nos desenhos dessa HQ não há uma representação de uma figura clássica, quase uma caricatura do sentido dominante do “fazer ciência”, de um homem branco, de jaleco branco, realizando pesquisas de maneira individual e objetiva, em um laboratório, bem como a HQ indica que o cientista foi a campo conhecer as condições de produção de sua pesquisa, para poder desenvolver a tecnologia e colocar em prática suas ideias e projetos. Além disso, observamos que há um processo rebuscado que envolve a perspectiva da linguagem, os ECTS e Ensino de Biologia, pois as/os estudantes constroem sentidos sobre a parte conceitual do conteúdo durante as aulas e, associado a isso, demonstram compreender a existência de aspectos econômicos relacionados à ciência e a tecnologia quando, por exemplo, representam uma maior produção de tomates e relacionam isso ao barateamento desse fruto. Ao percebermos que os estudantes construíram sentidos sobre os conteúdos científicos relacionados ao DNA, propostos no currículo do 1º ano do Ensino Médio e, ademais, construíram sentidos sobre aspectos sociais, políticos e econômicos, em relação aos produtos desenvolvidos pela ciência e a tecnologia, podemos afirmar que abordar uma educação CTS no Ensino de Biologia não requer, em momento algum, o abandono do conteúdo científico curricular, pelo contrário, as/os estudantes demonstram maior interesse em aprender os conteúdos conceituais, por meio das relações com a ciência e a tecnologia, assim como maior identificação com a disciplina de Biologia. Sendo assim, corroboramos com Bocheco (2011), quando ele afirma que o Ensino de Ciências baseado nos pressupostos da educação CTS requer uma sólida abordagem conceitual e, concomitantemente,
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deve concentrar o planejamento didático-pedagógico, no desenvolvimento das inter-relações político-sociais existentes entre a ciência, a tecnologia e a sociedade.
Algumas considerações Ao destacarmos a importância dos ECTS no Ensino de Biologia, constatamos também a necessidade de se levar em consideração a linguagem e os diferentes sentidos que as/os estudantes podem construir, a partir dos discursos inerentes à sala de aula e à escola. Sendo assim, refletir sobre a perspectiva discursiva no ensino nos fez pensar sobre a importância de se levar em conta, em sala de aula, as condições de produção dos discursos acessados e produzidos por cada estudante, suas histórias de vida e experiências sócio-históricas e culturais, que interferem em suas histórias de leituras, em seus processos de autoria e no modo como os sentidos são construídos em sala de aula. Em relação ao referencial teórico dos ECTS, destacamos aqui a importância de suas reflexões, pois nos fez pensar sobre os nossos desafios educacionais e problemáticas regionais, e não apenas problemáticas impostas por currículos universais. Com tudo isso, podemos inferir que a proposta didática, permeada por estratégias dos ECTS, proporcionou condições para que as/os estudantes pudessem construir sentidos relacionados aos assuntos discutidos em sala aula, contribuindo, também, para o desenvolvimento de processos de argumentação e o desenvolvimento do senso crítico dessas/es estudantes, estimulando posicionamentos sobre questões científicas e tecnológicas que venham a interferir na sociedade em que estão inseridas/os. Dessa maneira, acreditamos, em convergência às ideias de Rodrigues, Cassiani e Linsingen (2019), que o ensino de conceitos científicos possa ser adequado, para que haja uma compreensão
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de maneira mais apurada do contexto em que fazemos parte, em prol de uma formação cidadã. Levamos em consideração a incompletude da pesquisa, bem como deste texto que foi fruto da mesma, mas estamos cientes da abertura de um espaço, para que possamos instigar o desenvolvimento de estratégias de pesquisa e ensino para abordagem de uma Biologia menos conteudista, memorística e fragmentada, facilitando os processos de ensino-aprendizagem, e possibilitando a produção de uma gama ampla de sentidos sobre os assuntos abordados em sala de aula.
Agradecimento Agradecemos à CAPES pela bolsa concedida ao longo do mestrado.
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DOI: doi.org/10.29327/565971.1-13
Escrevivências no ensino de Ciências: relato de uma experiência com pressupostos anticoloniais na educação popular Writings in Science teaching: report of an experience with anti-colonial assumptions in popular education Simone dos Santos Ribeiro1 Alberto Lopo Montalvão Neto2 1 Doutoranda em Educação Científica e Tecnológica, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. E-mail: zenlua@gmail.com / ORCID: https://orcid.org/00000003-0873-4474 2 Doutorando em Educação, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, São Paulo, Brasil. E-mail: montalvaoalberto@gmail.com / ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4875-646X
Introdução
T
ENDO a sua gênese relacionada a movimentos de resistência, que emergem como forma de enfrentamento às desigualdades e opressões sociais, que afligem a sociedade, em especial 85 as/os menos favorecidos socioeconomicamente, o Cursinho Popular Pré-Vestibular “Liberte-se!” se coloca como uma iniciativa proposta por movimentos estudantis, iniciada em meio às discussões político-ideológicas, realizadas ao longo dos últimos anos. Destarte, o Liberte-se! surge “[...] a partir de um movimento de militância do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)” (MONTALVÃO NETO; SILVA, 2020). Desde 2017, o Liberte-se! Neste texto, ainda que de modo não integral, tentamos adotar a utilização de uma linguagem não machista e opressora, tendo como inspiração os estudos de Castro e De La Paz (2018).
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tem atuado com o intuito de promover uma educação crítica e libertadora, a partir de uma construção coletiva e horizontal, que agrega diálogos e tomadas de decisões por parte de educadores e educandos. Isso é feito de forma a auxiliar pessoas de diferentes idades e realidades a ingressarem no ensino superior, estando entre elas, principalmente, os jovens. Possuindo como principal público-alvo a população periférica campineira, no âmbito de suas atividades, o Liberte-se! não busca apenas formar pessoas que possuam conhecimentos profícuos a respeito dos campos disciplinares, comumente cobrados nos vestibulares (Matemática, Física, Química, Biologia, História, Geografia, Língua Portuguesa, entre outros). Nessa relação, questões sociais, éticas, políticas, econômicas, filosóficas, ambientais, de saúde, entre outras, são consideradas, como parte integrante dos conteúdos a serem ensinados. Essas questões podem ser chamadas de socialmente relevantes ou sociocientíficas86, por relacionarem a Ciência às pautas sociais. Advindo de discussões que emergem em uma universidade pública, e tendo grande parte das/dos docentes relacionadas/os a ela, visto que, em geral, suas/seus professores são graduandas/dos ou pós-graduandas/dos da instituição, o Liberte-se!, a partir de diferentes movimentos de suas/seus participantes, atua sob a ótica do tripé fundamental universitário: pesquisa, ensino e extensão. Sob os moldes da pesquisa, resumidamente, podemos mencionar que alguns estudos têm sido publicados por suas/seus professoras/res, a respeito das ações realizadas no Liberte-se!, como é o caso do artigo de Montalvão Neto e Silva (2020). O Liberte-se!, também, está registrado como projeto de extensão de Formação de Professoras/res na educação popular, junto à De acordo com Martins et al. (2020, p. 221), as questões sociocientíficas “são um importante programa de pesquisa no campo da Educação em Ciências [...] envolvem questões controversas relacionadas a temas atuais e com importância pública [...] Sua compreensão envolve dimensões científicas, sociais, econômicas, culturais e políticas. Além disso, estão presentes nos meios de comunicação e redes sociais. Em outras palavras, envolvem diferentes pontos de vista e têm implicações em uma ou várias áreas do conhecimento”.
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UNICAMP, sendo alguns de seus docentes bolsistas. No que toca ao ensino, cerne das ações, os propósitos de educação popular, empregados no cursinho, têm em Paulo Freire um de seus principais referenciais. Nessa perspectiva, compreendemos que a educação popular “[...] não é neutra, pois, necessariamente, implica princípios e valores que configuram uma certa visão de mundo e de sociedade” (GADOTTI, 2012, p. 1). Ademais, Gadotti (2012) aponta que são muitas as concepções e práticas de educação, sendo algumas relacionadas aos interesses hegemônicos, por serem autoritárias e domesticadoras. Todavia, ao aderirmos a uma perspectiva de educação que segue pressupostos de uma pedagogia crítica87, não há como se eximir de um viés político que busque trabalhar com aspectos democráticos e populares. Daí, a educação popular emerge como uma forma transgressora para um (re)pensar social. Trabalhando com limites e contradições emergentes do próprio sistema político, em que estamos inseridos, a educação popular representa uma luta por direitos e por novas conquistas, marcando sua posição no espaço democrático. É fato que o vestibular é um sistema excludente, visto que seleciona apenas alguns para ingressarem no Ensino Superior, excluindo tantos outros sujeitos que não podem se dedicar aos estudos, por vários motivos, como, por exemplo, por não possuírem meios para subsidiar os custos. Por isso, cursinhos populares surgem com o papel de oportunizar o ingresso de grupos excluídos, por suas condições socioeconômicas no ensino superior. Assim, ao atuarmos na educação popular, trabalhamos numa contradição paradigmática: ao passo que reconhecemos que o vestibular é um meio ultrajante de exclusão, compreendemos que é a partir da inserção de sujeitos, com formação política e consciência social nas universidades, que podemos Por pedagogia crítica, compreendemos práxis, no âmbito do ensino, que permitam dar voz aos socialmente oprimidos, silenciados, trabalhando, assim, aspectos de solidariedade, emancipação e transformação social. Tais aspectos são enunciados por educadores como Paulo Freire (FREIRE, 1987). Nesse sentido, de acordo com Fernandes (2016, p. 483), a pedagogia crítica “vê a opressão como altamente complexa, especialmente porque reconhece a opressão como um lugar de incoerência e a libertação como um processo de coerência.”
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romper com a ordem do discurso (e com os discursos de ordem), por dentro, desestabilizando as normatividades que imperam na sociedade por meio das instituições (FOUCAULT, 1996). Como nos aponta Brandão (1982), historicamente, houve uma divisão do saber social, a partir da qual os conhecimentos foram ficando cada vez mais a cabo de determinados grupos e se tornando menos acessível aos demais. Muitas vezes, isso serviu aos interesses de grupos dominantes. Entre tantos outros fatores, Freire e Nogueira (1993) pontuam que a educação popular surge, então, a partir de grupos e movimentos populares, que percebem a necessidade de lutar por uma sociedade mais justa e igualitária. Destarte, diante dos reflexos da industrialização urbana, decorrente da expansão do capitalismo, e da insuficiência observada, em relação à formação propiciada aos cidadãos, pelos sistemas formais de ensino, a educação popular emerge como possibilidade de transformação social. Sobre a educação popular, Paulo Freire aponta: Entendo a educação popular como o esforço de mobilização, organização e capacitação das classes populares; capacitação científica e técnica. Entendo que esse esforço não se esquece, que é preciso poder, ou seja, é preciso transformar essa organização do poder burguês que está aí, para que se possa fazer escola de outro jeito. Em uma primeira “definição” eu a aprendo desse jeito. Há estreita relação entre escola e vida política (FREIRE; NOGUEIRA, 1993, p. 19).
Assim, em uma concepção freireana de educação, são os próprios oprimidos que devem trilhar o seu caminho de libertação, e educar é, sim, um ato político. Considerando essas concepções, no presente estudo, partindo da realidade dos educandos – de suas histórias de vida, objetivamos compreender como uma proposta de ensino, pautada em um entendimento anticolonial, pode ampliar as compreensões de Literatura e de Ciência, no âmbito de uma perspectiva de ensino críticotransformadora. Centramo-nos, então, em uma das oficinas, na qual, a
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partir da interação entre uma educadora convidada, um educador-mediador e as/os educandas/os, trabalhamos com uma percepção de Literatura pautada nas escrevivências, de Conceição Evaristo. Trata-se de um trabalho que amplia a percepção do conhecimento que se tem a respeito do campo literário, relacionando-a à Educação em Ciências. Nesse sentido, visamos ir contra as hegemônicas compreensões de Ciência e Literatura, possibilitando a emergência de outros entendimentos e vozes.
Literatura(s) e Ciência(s) A Literatura é uma questão que vem sendo discutida e trabalhada em meio às pesquisas da área de Ensino de Ciências, com variadas justificativas e finalidades. Uma revisão bibliográfica, realizada por Ribeiro, Gonçalves e Farias (2016), aponta que são crescentes publicações que articulam Literatura e Ensino de Ciências. Segundo os autores, a questão aparece, na maior parte das vezes, atrelada ao desenvolvimento de novas abordagens de ensino e aprendizagem. Dessa forma, comumente a Literatura é apresentada como uma ferramenta para ensinar determinados conteúdos que, em geral, são conceitos. Em defesa do trabalho com a Literatura, os primeiros autores, que se debruçam sobre a questão, assinalam que o seu uso tem o potencial de favorecer diálogos dos leitores com o mundo, e o reconhecimento de especificidades culturais e científicas, levando a possíveis interfaces que direcionam a uma complexidade de conhecimentos (ZANETIC, 2006). Mesmo com tais considerações, os textos literários, comumente selecionados para trabalhos desenvolvidos na Educação em Ciências, são reprodutores de uma Ciência higienizada, apresentando abordagens que desconsideram saberes que não são cientificamente justificados, por meio de conceitos ou de contextos científicos, implícitos ou explícitos.
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Ainda sobre o campo literário, é comum o reforço à visão de mundo que supervaloriza o pensamento científico, com reprodução de entendimentos eurocêntricos, em que natureza e cultura são tratadas de formas duais88. Isso reafirma a crença de que há um ideal científico universal, independente da história de cada civilização (MACÊDO, 2004). Ademais, pensando no contexto editorial, observamos que a produção nacional oferece oportunidade para poucos, pois deixa de fora a pluralidade de vozes e a diversidade cultural que compõem o mosaico literário brasileiro (ALVES et al., 2017). No que toca à Ciência, observamos que, em sua égide, é comum a dominação por meios não coercitivos, mas que subalterniza e desumaniza identidades, provocando a perda de identidade cultural, e levando a relações de dependência e de falta de pertencimento. Relações como essa são apresentadas por Montalvão Neto et al. (2021), que apontam que é comum que os atores das Ciências (os cientistas) sejam apresentados como autoridades, muitas vezes colocados como sujeitos “sem nome”, demarcando uma posição de neutralidade e objetividade, que coloca a Ciência como algo que fala por si. Quanto ao Ensino de Ciências, nos últimos anos, observam-se discursos relacionados à redução e superação das desigualdades e à emancipação dos sujeitos. Todavia, na prática, muitas vezes ocorre a negação, esquecimento e invisibilização de estratégias de vida e de construção de conhecimentos, que contemplem corpos negros, indígenas e pessoas com sexualidades dissidentes, de modo que essas identidades, muitas vezes, não são consideradas na educação formal. Parte das obras literárias são igualmente reprodutoras da baixa representatividade ou de modelos que funcionam como imagens controladas, que determinam o lugar subalterno para as minorias políticas (BUENO, 2020). Por exemplo, a relação “homem x natureza” apresenta essa dualidade. Apesar da polissemia do discurso ecológico, há um viés antropocêntrico, que leva a estigmatizações e objetificações da natureza, colocando o homem em uma posição ilusória, como se este não fosse integrante da própria natureza, e como se a natureza estivesse em prol de servir ao seu bel-prazer (MONTALVÃO NETO; MORAIS; SILVEIRA, 2021).
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Pensando nessas questões, neste estudo, refletimos a respeito de uma experiência de ensino, na qual buscamos trazer uma visão de mundo contra hegemônica. Para tal, apoiamo-nos no estudo de Alves et al. (2017), que destaca a insurgência de mulheres negras frente às adversidades impostas. De acordo com o autor, esse manifesto, refletido no campo literário, rasura modelos autorizados pela elite letrada, numa sociedade escritocêntrica89, que hierarquiza e inferioriza manifestações culturais que possuam o binômio oralidade/memória, como meio de difusão de saberes. Partimos da premissa de que escritoras negras criam fissuras, deixando experiências autorais registradas, em um tipo de Literatura que favorece o diálogo de saberes e o reconhecimento de experiências (ALVES et al., 2017). Considerando isso, dialogamos com a obra de Conceição Evaristo, pois, ao pensarmos sobre a intrínseca ligação entre os pressupostos defendidos, pelo referencial teórico que adotamos, e a Literatura que exalta o lugar de fala da mulher negra, provinda de comunidades, morros ou favelas, acreditamos que é possível retratar, de formas transgressoras, as vidas subalternizadas.
A escrevivência de Conceição Evaristo De origem humilde, Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em 1946, em Belo Horizonte. Estreou na arte da palavra em 1990, quando passou a publicar seus contos e poemas, na série “Cadernos Negros”. Migrou para o Rio de Janeiro, na década de 1970. Graduou-se em Consideramos importante contextualizar a classificação escritocêntrica para a sociedade ocidental, em função da negação da escrita como meio de subalternização de povos dominados. Porém, é importante reafirmar que a comunicação por registros gráficos não é única e exclusiva de populações ocidentais. Apesar da tradição oral, povos africanos estão entre os primeiros a desenvolverem sistemas de escrita. Além dos hieróglifos egípcios, existem outros sistemas de escrita desenvolvidos antes da influência árabe. Desse modo, a priorização da verbalização não deve ser entendida como a incapacidade de produção gráfica (MENEZES; CASTRO, 2007).
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Letras, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e trabalhou como professora, na rede pública de ensino básico da capital fluminense e na rede privada de ensino superior. Fez Mestrado em Literatura Brasileira, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/RJ), e Doutorado em Literatura Comparada, pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Em suas pesquisas, Conceição Evaristo estudou as relações existentes entre as Literaturas afro-brasileiras e as Literaturas africanas de língua portuguesa. O conceito de escrevivência foi criado pela autora, em sua dissertação de mestrado, em 1995 (EVARISTO, 1996). Mais do que um conceito literário, ele possui potencial de ampliar a escrita e o fazer acadêmico, com uma epistemologia desde o corpo negro (FELISBERTO, 2020). A Literatura de Conceição Evaristo é considerada impactante e explícita. O engajamento da intelectualidade afrodescendente, mobilizada pela autora, com os excluídos socialmente, ajuda a compor uma representação de determinada parcela da população, que comumente é invisibilizada (OLIVEIRA, 2009). Segundo Sena (2012), Conceição e sua escrita literária marcam um espaço que possibilita enxergarmos embates culturais, visto que a leitura de escritoras/escritores negras/negros tem colocado diferentes perspectivas estéticas, trazendo à tona a emergência de outras epistemologias. A mulher negra tem muitas formas de estar no mundo (todos têm). Mas um contexto desfavorável, um cenário de discriminações, as estatísticas que demonstram pobreza, baixa escolaridade, subempregos, violações de direitos humanos, traduzem histórias de dor. Quem não vê? (EVARISTO, 2017, p. 13).
A escrevivência de Conceição emerge por pensamentos e lutas da autora, sem neutralidade. Sua obra é marcada pela escolha de palavras, que retratam histórias de vida, desafios e corpos violados/subalternizados, em uma mistura poética e denunciativa explícita. Trata-se de uma escrita comprometida com as subjetividades, e que se mistura
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entre lembranças e memórias, originadas em um processo criativo, que emerge a partir do “eu”, “dos seus” e “dos iguais”. Assim, a autora sabe que é porta-voz da consciência de um “eu coletivo”, compreendendo a responsabilidade que assume diante de outros iguais, que não têm condições de falar. No caso das mulheres negras, as escritoras representam mulheres que procuram um lugar/grupo para identificarem-se e que as represente (FERREIRA, 2013). Em outras palavras, as subjetividades têm um papel coletivo e a ficção pode ser vivenciada naturalmente, por muitas de suas leitoras, por representar uma realidade individual e que se reproduz coletivamente, por meio da denúncia à subalternização. Na escrita de Oliveira (2009), o texto de Conceição Evaristo apresenta a possibilidade de olharmos para saberes e sabores “outros”, endossados pela escrevivência90 que se constrói a partir de “rastros” como: a) corpo; b) condição; c) experiência. O primeiro elemento reporta à dimensão subjetiva do existir negro, arquivado na pele e na luta constante por afirmação e reversão de estereótipos. A representação do corpo funciona como ato sintomático de resistência e arquivo de impressões que a vida confere. O segundo elemento, a condição, aponta para um processo enunciativo fraterno e compreensivo com as várias personagens que povoam a obra. A experiência, por sua vez, funciona tanto como recurso estético quanto de construção retórica, a fim de atribuir credibilidade e poder de persuasão à narrativa. (OLIVEIRA, 2009, p. 622).
A perspectiva da escrevivência permite um olhar anticolonial, e Mignolo (2003) e intelectuais do pensamento feminino negro, tais como Morrison (2017) e Collins (2019), colocam a necessidade de reestabelecer práticas intelectuais (subverter a ideia de intelectualidade), desde pessoas subalternizadas, que não são e não transitam em meios autoriza-
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Escrita de um corpo, de uma condição, de uma experiência negra no Brasil (OLIVEIRA, 2009).
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dos à produção de conhecimentos. Dessa forma, práticas artísticas, literárias e poéticas podem ser consideradas fontes de conhecimento teórico e de reflexão sobre problemas que são de interesse humano e histórico, incluindo os aspectos políticos da língua (quem escreve / como escreve / de onde escreve). Com base nessas concepções, consideramos que a Literatura pode ser entendida como um lugar de conhecimento que se baseia em memórias e representações.
Uma experiência de leitura e escrita no Ensino de Ciências em perspectiva anticolonial As discussões teóricas que julgamos afinarem-se com a proposta educativa apresentada são construídas por meio da perspectiva crítica decolonialidade (Modernidade/Colonialidade), que discute a colonialidade como uma estrutura global, presente numa lógica atual de exercício do poder e que atua em três eixos: colonialidade do poder, do ser e do saber (QUIJANO, 1997). Para essas discussões, compreende-se a necessidade de (re)pensar a respeito do processo de invasão e colonização dos territórios latinos pelos europeus, a partir do século XVI. Isso, porque esse cenário levou a subjugar culturas e povos, marcando a relação entre esse continente e os demais até a atualidade, visto que os seus povos foram historicamente subalternizados (DUSSEL, 2005). Visando ir de encontro a uma lógica de educação escolarizada alicerçada em aspectos eurocentrados, mercadológicos, e que se filia às hegemonias acadêmicas91, relatamos uma experiência de leitura e escrita no Ensino de Ciências. Conforme apontam Marandino, Selles e Ferreira (2009, p. 51), em termos históricos, inicialmente as “[...] disciplinas obtêm um lugar no currículo mediante justificativas como pertinência e utilidade [...]”. No entanto, com o tempo, há a emergência “[...] de uma tradição acadêmica e de um conjunto de especialistas formados nessa tradição, fazendo que as disciplinas escolares afastem de seus objetivos primeiros e passem a ensinar conteúdos mais abstratos e distantes da realidade e dos interesses dos alunos.” É contra essa desconsideração de outros saberes que nos colocamos na perspectiva anticolonial assumida.
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A oficina teve como objetivo possibilitar outras compreensões de Ciência(s) e de Literatura(s), a partir da valorização das vivências dos educandos, de modo a relacioná-las com diferentes aspectos sociais e científicos potencialmente significativos. Ministrada pela primeira autora deste manuscrito, a oficina ocorreu de forma remota, devido ao contexto pandêmico, no dia 10 de outubro de 2020. As discussões tiveram duração de pouco mais de 2 horas, e, ao todo, 15 estudantes participaram da atividade. A oficina começou com a apresentação da audiopoesia “Tempo de nos aquilombar” (EVARISTO, 2020). Em seguida, foram explicadas questões a respeito da escrevivência, que, tal como mencionamos, tem a sua origem relacionada a práticas de mulheres negras (EVARISTO, 2017), e busca dar voz às pessoas inviabilizadas (OLIVEIRA, 2009). Nesse sentido, foi explicado às educandas e aos educandos que, ao pensarmos nas escrevivências, é fundamental pensarmos, também, a respeito de quem escreve, porque escreve e o lugar de origem daquela escrita/sujeito. Trazer uma autora negra, que enriquece o conceito de Literatura e alarga possibilidades de escrita e construção, desde corpos negros e femininos, não é tarefa simples, e exige uma compreensão filosófica para que não seja apenas uma amostra da diversidade literária. Abrir este espaço, na educação popular, é também possibilitar que as/os estudantes possam se colocar como produtoras/es dessa reconstrução do olhar para o(s) conhecimento(s). Assim, a circularidade, vista como um dos valores civilizatórios afro-brasileiros, propicia que, mesmo que virtualmente, a palavra circule sem hierarquização, na busca por desconstruir as questões hegemônicas que perpassam o campo do saber, visto que a colonialidade exerce a sua violência, impedindo que as pessoas compreendam o mundo, a partir do próprio mundo em que vivem (PORTO-GONÇALVES, 2005). Como apontam Santos e Meneses (2010), a força da colonialidade leva a uma universalização de saberes, inclusive na Ciência, inviabilizando outros saberes e conhecimentos de sujeitos
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que não estão dentro da ordem hierárquica de poderes, o que subalterniza, desumaniza e apaga raízes de ancestralidade e pluralidades/diferenças. Daí que, durante as discussões sobre a circularidade de saberes na oficina, visamos abrir margens para um (re)pensar sobre as outras formas de saber. Na oficina, após discutirmos sobre a circularidade, apresentamos concepções da escrevivência. Ato literário, político, de formação e de prática. Como diz Mignolo (2003), acreditamos que a prática literária vai além do erudito, de tal modo que ela também é uma forma de produzir conhecimentos e reflexões, a partir de interesses humanos, históricos e políticos, baseando-se em memórias e representações. Nesse sentido, nessa discussão, partimos do ponto de vista de que toda pessoa tem algo para compartilhar, e que, seja pela escrita, pela oralidade ou por expressões imagéticas, esses sujeitos podem promover a construção de diferentes sentidos, reconhecimentos e compreensões de vida. É a partir dessa visão que, nesse momento da oficina, buscamos refletir sobre como os processos que nos constituem podem inspirar formas de olhar, explicar e entender o mundo. Buscando cativar a leitura-fruição (GERALDI, 1984)92 e a percepção crítica das/os estudantes sobre as propostas apresentadas, a partir da contextualização inicial, introduzimos a leitura de alguns trechos da obra Olhos d'água (EVARISTO, 2016), lendo mais especificamente o texto “Conto Maria”. Também lemos trechos da obra intitulada “Becos da Memória” (EVARISTO, 2017). Essas leituras foram acompanhadas da apresentação de imagens da autora e, entre elas, podemos destacar a passagem, em que a autora diz: “Busco a voz, a fala de quem conta, para De acordo com Geraldi (1984), em meio a uma lógica capitalista, a escola segue moldes canônicos nos quais os alunos devem ler mais pela obrigatoriedade de atingir um dado objetivo, para inseri-lo na lógica do sistema, do que por prazer. Na fala do autor, com a leitura-fruição pretende-se “[...] recuperar de nossa experiência uma forma de interlocução praticamente ausente das aulas de língua portuguesa: o ler por ler, gratuitamente. E o gratuitamente aqui não quer dizer que tal leitura não tenha um resultado. O que define esse tipo de interlocução é o “desinteresse” pelo controle do resultado” (GERALDI, 1984, p. 30).
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se misturar à minha” (EVARISTO, 2017, p. 11). Ademais, assumindo que, por meio dessas leituras, buscamos abrir margens para a emergência de outras vozes de mulheres negras, vozes que se somam à de Conceição Evaristo, ao trazerem perspectivas estéticas que auxiliem na emergência de epistemologias outras, nesse momento, também, dialogamos com a obra de Carolina Maria de Jesus. Sobre Carolina, conforme aponta Meihy (1998), a autora outrora fez muito sucesso com a circulação de sua obra “Quarto de Despejo”. Todavia, posteriormente, por não atender às concepções hegemônicas da cultura literária erudita, ela sofreu um forte silenciamento e caiu em esquecimento, sendo apenas, mais recentemente, resgatada a sua memória. Sendo uma escrevivência, Carolina conta em sua obra sobre uma realidade vivenciada por muitos brasileiros. O preconceito que recai sobre os seus escritos, a respeito das próprias vivências, não só prepondera na época, como, ainda hoje, a sua obra encontra obstáculos para ser aceita como literária. Como menciona Meihy (1998, p. 83), “[...] a literatura estará sempre sugerindo interpretações parceladas que são limitadoras de seu alcance amplo, ficando, no máximo, restrita a uma pífia história das ideias e/ou das manifestações estéticas de um pequeno grupo que escreve para si e alguns de seus pares.” Indo de encontro à hegemônica ideia de Literatura, inspirados na obra de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, principalmente com base naquilo que dissemos sobre as escrevivências, na oficina propusemos uma atividade de escrita. Visando anunciar uma ideia contra hegemônica de Literatura, colocamos a seguinte proposta aos educandos: 1) Escreva sobre as memórias que vieram à tona quando você escutou os dois contos, nos conte e depois se apresente, dizendo o seu nome; 2) Guarde essa escrita, pois ao final a retomaremos. Após a elaboração dos escritos, alguns questionamentos foram colocados às educandas e aos educandos. Com esses questionamentos, visamos associar a possibilidade de ampliar a escrita literária, no caso,
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a escrevivência, e direcionar reflexões sobre questões sociocientíficas, pertinentes ao Ensino de Ciências. Na ocasião, julgamos ser interessante refletir sobre as relações sociais, em seu imbricamento com o científico, a partir de questões que versassem sobre a natureza da Ciência, o corpo, as relações de gênero e a respeito do tema nutrição/alimentação, considerando desigualdades/injustiças sociais que as permeiam. Perguntamos às/aos educandas/os: a) Existe conexão entre as nossas memórias?; b) É possível pensar nas relações dos textos com as nossas memórias e as ciências?; c) Todos os corpos são representados na ciência?; d) É possível determinar o lugar de um homem e o lugar de uma mulher?; e) Seria possível acabar com a fome no mundo? Para auxiliar as educandas e os educandos a refletirem sobre essas questões, visando uma prática de escrevivência, discutimos os conceitos a seguir: a) A noção de raça e a sua desconstrução como algo que possui algum tipo de fundamento científico/biológico, bem como a compreensão de como/quanto a Ciência pode ser uma atividade humana permeada por relações racistas (SCHUCMAN, 2016); b) A constante zoomorfização, comum aos clássicos textos literários, que atribui características animais para subalternizar/inferiorizar pessoas por sua classe social, raça, gênero ou outra condição que não a hegemonicamente dominante (SANTOS; ROCHA, 2018). Vinculado a isso, discutimos o epistemicídio cometido contra outras formas de saber, vinculados a sujeitos social e historicamente marginalizados, tais como periféricos, negros, mulheres, transgêneros (CARNEIRO, 2005); c) Acontecimentos históricos, tais como a eugenia, a pseudociência e o racismo, que levaram à formulação de uma Ciência socialmente higienizadora, carregada de ideias distorcidas sobre um tipo ideal de ser humano. A exemplo disso, poder-se-á referir-se a movi-
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mentos científicos que emergiram entre o fim do século XIX e início do século XX, culminando no que conhecemos por nazismo (SOUSA et al., 2014)93; d) Os conceitos de democracia racial e racismo estrutural (ALMEIDA, 2018). Sobre a última questão, de acordo com Almeida (2018, p. 38), “[...] o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional”. Quanto ao mito da democracia racial, sendo balizada pela meritocracia, principalmente quando os próprios negros passam a ser culpabilizados por sofrerem racismo, desconsiderando assim as desigualdades sociais brasileira, Almeida (2018, p. 66) aponta que, nesse tipo de discurso, “[...] a desigualdade racial – que se reflete no plano econômico – é transformada em diversidade cultural e, portanto, tornada parte da paisagem nacional”. O autor complementa dizendo que, ao contrário do que era de se esperar, a educação pode contribuir para o aprofundamento do racismo. Inclusive, isso ocorre no âmbito da Ciência, principalmente por meio de discursos biologizantes que buscam justificar equivocadamente o conceito de raça. Outrossim, essas concepções tornam-se ainda mais estruturais com o desenvolvimento do capitalismo e das tecnologias. Considerando as questões expostas, partimos da urgência de que outros modos de compreensão de Ciência emerjam, de modo que
Conforme apontam Sousa et al. (2014, p. 33), a eugenia surge a partir de uma ideologia científica, que visa levar determinados saberes a se tornarem parte do próprio pensamento científico. Assim, “[...] mais do que qualquer rigor científico, prevalecia a preocupação com a obtenção de soluções para problemas da área jurídica, a subordinação de determinadas etnias, a pureza das linhagens e a permanência de estruturas sociais vigentes. A ideia de que se poderia controlar a reprodução humana para melhorar a raça seguia um discurso ideológico que propunha que tal melhoria levaria a um ‘progresso’ das nações”.
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se desvincule de seus aspectos excludentes, numa perspectiva decolonial/anticolonial e antirracista. A partir disso, na oficina, discutimos a respeito de questões relacionadas à colonialidade, bem como sobre outras formas de opressão social. Um exemplo disso pautou-se nas discussões de gênero, que, tal como aponta Carneiro (2019), implica em pensar que as opressões sociais não são iguais para homens e mulheres, do mesmo modo que uma mulher branca não sofre as mesmas opressões que uma mulher negra. Assim, sofrendo com desigualdades que são ao mesmo tempo de gênero e raciais, a mulher negra não ocupa a mesma posição da mulher branca na sociedade, nem nas lutas feministas por justiça social (CARNEIRO, 2019). Outrossim, há de se considerar essas questões na luta antirracista, de modo a ir de encontro ao mito da democracia racial e aos aspectos que buscam mascarar a população negra por meio do embranquecimento. Não apenas questões de gênero foram discutidas, como também os aspectos socioeconômicos e étnico-raciais. Entre eles, refletimos sobre a nutrição, a fome, a produção de alimentos, a agroindústria e o nutricídio/colonialidade alimentar (ALMEIDA, 2019). Consideramos que o tema é fundamental no Ensino de Ciências, não apenas por suas questões científico-conceituais, como também por seus aspectos sociais, visto que: A alimentação é, portanto, fundante de nossa cultura e parte importante de nosso cotidiano, dividimos períodos do dia pelas refeições (manhã e tarde pelo almoço, por exemplo); temos no alimento grande protagonista de festividades; atribuímos a determinados alimentos propriedades que podem nos curar ou adoecer, etc. Dada sua complexidade e abrangência, a alimentação pode proporcionar reflexões e discussões no âmbito da saúde e meio ambiente; economia e política; história e cultura; tecnologia; mídia; ética; culinária; questões étnicoraciais, de classe e de gênero (ALMEIDA, 2019, p. 61).
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Dada a relevância do tema, na oficina, discutimos alguns desses aspectos, e solicitamos que as educandas e os educandos falassem e escrevessem a respeito das conexões que pensaram, durante as suas reflexões. Essas escritas autorais, realizadas no início da oficina, foram retomadas ao final, sendo proposto que os estudantes as reformulassem, para enviar uma versão final. Essa atividade serviu para observarmos suas aprendizagens. Diferentes escrevências surgiram, a partir dos questionamentos. Entre elas, selecionamos duas, apresentadas a seguir com nomes fictícios, e com a grafia original. Dandara: Me lembrei de duas histórias, uma de uma mulher próxima que morou na casa de uma família dos 10 aos 28 anos para fazer faxina e cozinhar. Em troca de apenas comida, roupa e estudos, que nem puderam ser concluídos. Hoje ela tem por volta de 50 anos apenas. Me lembrei também da história de meus pais, que passaram muita dificuldade no começo do casamento com um filho pequeno, o salário da minha mãe dava somente para o aluguel e meu pai estava desempregado. Meu nome é Dandara, tenho 17 anos e estou no último ano do ensino médio. Quero fazer ciências sociais na Unicamp. Milton: Quando eu era menor me lembro de ir numa loja esportiva onde havia um segurança e uma mulher afrodescendente. Depois da mulher dar uma olhada em algumas peças, ela se sentiu incomodada e foi confrontar o segurança que estava perseguindo ela. Ela perguntou porque ele estava fazendo isso e ele disse que só estava protegendo a loja. Com essa fala dele, ela saiu brava da loja. Só depois de mais velho que fui compreender o que a incomodou.
Podemos perceber, pelas falas, que as atividades da oficina levaram as educandas e os educandos a refletirem sobre as denúncias que lhes foram significativas, sejam elas relacionadas diretamente às suas vivências, sejam elas relacionadas às histórias que lhes são sensíveis, por outros motivos afetivos. O relato de Dandara, educanda afrodescendente, aponta
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para algumas questões supramencionadas, a respeito das desigualdades vivenciadas por famílias de classe social pouco abastadas socioeconomicamente. Outrossim, a educanda faz um relato a respeito de um caso (entre tantos outros), em que a questão racial, que lhe é significativa por sentir diretamente os seus efeitos, aparece com fortes aspectos de injustiça social, em condições análogas à escravidão94. Nesse cenário, há uma questão necropolítica (MBEMBE, 2016)95, que faz com que haja relações que subalternizam mulheres e homens negras/os, colocando-as/os em condições desumanas de trabalho, muito similares ao escravagismo, ainda que este tenha terminado, oficialmente, há mais de um século, no Brasil (SILVEIRA, 2020). Indo ao encontro dessas denúncias, Milton aborda uma forma frequente de expressão do racismo. Ao relatar um caso de “perseguição”, de um segurança a uma mulher negra, em uma loja, o educando deixa subentendido as suas conclusões de que, ali, presenciara um caso de racismo. Esse racismo não foi diretamente observado naquela situação, pelo fato de que se tratava de algo estrutural, normalizado, e que, por vezes, é pouco explícito, ao ponto de que as pessoas cheguem a não o identificar, em situações como a exposta. E, como essas questões se relacionam ao Ensino de Ciências? Muitos apontamentos sobre essa interrogativa poderiam ser colocados, e alguns deles foram colocados, durante a oficina. Por exemplo, ao falarmos de raça, gênero e desigualdades sociais, compreendemos que a desconstrução de aspectos hierárquicos – de uma Ciência que, historicamente, é construída por e para brancos – se torna fundamental. A Ciência que estudamos na escola, como aponta Pinheiro (2019)96, silencia outras formas de No ano de 2020 centenas de casos trabalhos em condições análogas à escravidão foram identificados. Muitos casos tratava-se de trabalhadores rurais ou de empregadas domésticas, negras, que vivenciavam a exploração de sua mão de obra sem nenhum direito trabalhista. Disponível em: https://cutt.ly/fGlhH6K. Acesso em: 08 maio 2021. 95 Pautados nos estudos deste filósofo, Montalvão Neto, Silva Filho e Rocha (2021) discutem alguns aspectos sobre as questões (necro)políticas, no cenário brasileiro, em meio à pandemia da Covid-19. 96 Em seu trabalho, a partir de uma revisão de literatura, a autora busca compreender “[...] o que nos 94
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ver o mundo, a partir de outros saberes. Outro exemplo disso são os conhecimentos ancestrais, africanos e indígenas, que, muitas vezes, são desconsiderados ou vistos como um saber inferior. Todavia, negras e negros, em África e nas diásporas, estiveram presentes no desenvolvimento do conhecimento científico e da tecnologia. Porém, tiveram seus nomes apagados e seu conhecimento roubado, sendo esses saberes muitas vezes apresentados erroneamente, como algo de origem europeia. Historicamente, foram atribuídos às/aos negras/os uma série de características racistas, a partir de significados atribuídos às questões morfofisiológicas, tais como “[...] preguiçoso, pouco inteligente, propenso ao crime, etc” (PINHEIRO, 2019, p. 342). O debate dessas questões no Ensino de Ciências se mostra fundamental para a desconstrução de relações de dominação e de preconceitos. De acordo com Santos et al. (2010), o conceito de raça, aqui compreendido como uma concepção humana e não científica/biológica, teve a sua primeira classificação por François Bernier, em 1684, e posteriormente por Carolus Linnaeus (1758), que, atribuindo características pejorativas a asiáticos, latinos e africanos (ou seja, a qualquer um que não fosse europeu), reforçou, na própria Ciência, esses preconceitos. Por fim, tal como enunciam Marín, Nunes e Cassiani (2020), sendo a Biologia um lugar privilegiado para reflexões acerca da natureza, e de nossa própria relação com o corpo, trabalhar questões relacionadas à branquitude e às expressões dissidentes de sexualidade/gênero nos parece um caminho promissor para um pensamento que se quer decolonial ou anticolonial, e voltado para a emancipação dos sujeitos. Daí, acreditamos que abordagens que tragam à tona as relações da(s) Ciência(s) com as questões sociais se tornam potenciais para uma luta antirracista, valorizando a voz dos historicamente oprimidos. trouxe até este estágio epistêmico, cosmogônico e global eurocêntrico que reduziu nossas existências e produções intelectuais a um padrão de referência único e universalizado.” (PINHEIRO, 2019, p. 329).
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Considerações finais No presente estudo, retratamos uma experiência de ensino pautada em uma proposta antirracista e decolonial/anticolonial, no âmbito da educação popular. Para isso, estabelecemos outras visões acerca de saberes eurocentrados, alargando compreensões de Ciência e Literatura. Nessa relação, consideramos que os conhecimentos são produzidos, desde a história e a experiência de seus agentes. Os resultados apontam que é possível caminharmos para outras lógicas, permitindo, assim, um trabalho com novos conteúdos, por meio de outros caminhos epistêmicos. Com isso, trazemos as escrevivências, como um outro modo de (re)pensar as estratégias de enfrentamento vivenciadas pelas/os educandas/os, a partir de suas histórias de vida, visto que, esses sujeitos, de diversas maneiras (e por muitas vezes), vivenciaram múltiplas opressões sociais, ocasionadas pelas formas de colonialidade que perpassam a sociedade ocidental. Com este relato, intencionamos “esperançar”. Esse verbo, que não existe no dicionário, é mencionado por considerarmos que, mesmo em meio a cenários adversos, tais como aqueles proporcionados em meio à pandemia da Covid-1997, acreditamos que são possíveis outras formas de significar o mundo, que visam contribuir para a sua humanização. Nesse contexto, ressaltamos o nosso pesar pelas perdas de vidas e de direitos. É, em busca de retomarmos princípios de igualdade social, indo de encontro a preconceitos e formas de dominação, que buscamos construir pensamentos críticos, a respeito do mundo em que vivemos, e abrir margens para outras formas de ser/estar nele. Assim, apesar de reconhecermos as limitações de um trabalho que gira em torno de uma única oficina, compreendemos que essa é uma (entre tantas outras) tentativa(s) Discussões a respeito desse cenário pandêmico são realizadas em trabalhos como os de Silva Filho, Montalvão Neto e Rocha (2020). A partir de uma revisão bibliográfica, os autores refletem sobre alguns aspectos concernentes àquilo que é apontado, no início da pandemia do novo coronavírus – primeiros meses de 2020, por pesquisas acadêmicas que se debruçam sobre o Ensino Remoto Emergencial (ERE). 97
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que vêm sendo idealizadas para tornar o Ensino de Ciências um lugar possível, para um (re)pensar em justiça social.
Agradecimento O presente estudo foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
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Seção V: Dialéticas Centro-Periferia na práxis científica Historicamente, a Educação em Ciências seguiu caminhos que neutralizaram subjetividades, autorias, presenças, pertenças. Com esse olhar para trás como simboliza o adinkra Sankofa -, para não invalidarmos seu trabalho, suas (in)certezas, suas convicções, suas contingências, nos colocamos, pelo lado de cá da “linha abissal epistemológica”, como nos situa o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, no lugar e na posição de pesquisadores subalternizados e de pesquisadoras subalternizadas revendo dialéticas, formações discursivas, práxis, formas-conteúdos de fazer ciência e tecnologia. Isso vai para além da concepção do “método”, e mais além do que nos foi forjado como possível, como viável. Assim, trazemos à pauta o marco de “metodologias de viver” que passaram por esse imenso e profundo Sul Global, para reorientarmos nosso olhar. Pelas metodologias contidas: nos fazeres da ialorixá Mildreles Dias Ferreira (90), que infartou em 1º de junho de 2015, vítima de intolerância religiosa. nas artes do grafiteiro Scank (Jailson Galdino Souza dos Santos, 27), espancado até a morte, em Salvador, Bahia (Brasil), na madrugada do dia 13 de fevereiro de 2020. nas artes do skatista e grafiteiro Nego Vila Madalena (Wellington Copido Benfati, 40), morto por um policial em São Paulo (Brasil), em 28 de novembro de 2020.
DOI: doi.org/10.29327/565971.1-14
Aproximações teórico-metodológicas do Processo de Bolonha: a experiência do doutorado sanduíche na Espanha Theoretical and methodological approaches to the Bologna Process: the sandwich doctorate experience in Spain Clara Martins do Nascimento1 1 Mestre em Serviço Social pela UFPE, Doutoranda em Serviço Social pela UFSC, Professora Assistente do curso de Serviço Social da Universidade de Pernambuco, Campus Mata Sul. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. E-mail: clara.martins@upe.br / ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9810-2712.
Resumo: Este trabalho trata do Processo de Bolonha e da construção do Espaço Europeu de Educação Superior/EEES a partir da experiência do doutorado sanduíche na Espanha. Reproduz, para tanto, o percurso teórico-metodológico de aproximações sucessivas com a temática, assim como as constatações e sínteses resultantes da participação nas atividades ofertadas pela Universidade de Cádiz e do diálogo acadêmico construído. Pretende, com isso, problematizar a influência do modelo educacional de Bolonha, na conformação da Universidade dependente brasileira, da primeira década dos anos 2000. Palavras-chave: Processo de Bolonha; universidade dependente brasileira; transnacionalização da Educação Superior. Abstract: This paper discusses the Bologna Process and the construction of the European Higher Education Area/EHEA from the experience of a sandwich doctorate in Spain. For this purpose, it reproduces the theoretical and methodological path of successive approaches to the theme, as well as the findings and syntheses resulting from the participation in the activities offered by the University of Cadiz and the academic dialogue built. It intends, with this, to problematize the influence of the Bologna educational model in the conformation of the Brazilian dependent University in the first decade of the 2000s.
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KEYWORDS: Bologna Process. Brazilian dependent university. Transnationalization of High Education.
Introdução
A
Los símbolos de la prosperidad son los símbolos de la dependencia. Se recibe la tecnología moderna como en el siglo pasado se recibieron los ferrocarriles, al servicio de los intereses extranjeros que modelan y remodelan el estatuto colonial de estos países. «Nos ocurre lo que a un reloj que se atrasa y no es arreglado – dice Sadosky–. Aunque sus manecillas sigan andando hacia adelante, la diferencia entre la hora que marque y la hora verdadera será creciente» (Las venas abiertas de América Latina, Eduardo Galeano).
HISTÓRIA da Universidade brasileira é marcada pela transplantação empobrecedora de modelos educacionais estrangeiros, nos moldes da senilização institucional precoce98 – a que se referiu o sociólogo militante Florestan Fernandes (1975). Neste país, o “atraso educacional” é um projeto – sua compreensão exige, portanto, o desvelamento do discurso da modernização universitária. O alerta do ilustre Galeano, sobre as ilusões do desenvolvimento científico e tecnológico, se atualiza no mais recente episódio da influência do Processo de Bolonha, na América Latina. O debate acerca do modelo educacional de Bolonha circulou na literatura educacional brasileira, da primeira década dos anos 2000, vinculado, sobretudo, à análise do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI)99. Neste
O conceito refere-se à forte dependência da Universidade brasileira dos modelos educacionais das Universidades europeias e americanas e, consequentemente, do empobrecimento da importação fragmentada destes modelos. Aprofundamos este debate em Silveira Jr e Nascimento (2016). 99 Este Programa foi instituído pelo Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007, e assumiu como meta global a elevação gradual da taxa de conclusão média dos cursos de graduação presenciais, para 90%, e da relação de alunos de graduação em cursos presenciais por professor, para dezoito. Para aprofundar consultar os trabalhos de Cislagui (2010, 2011). 98
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período, enquanto estudante de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS), da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), investigávamos a integração da assistência estudantil na Reforma universitária do governo Lula100, enquanto pauta específica daquele Programa (o REUNI)101. Na dissertação, cujo propósito foi o de apreender as principais determinações que implicaram na expansão da assistência estudantil nos anos 2000102, tendo em vista a hipótese acerca da sua funcionalidade às pautas da Reforma Universitária, proposta pelo PL 7200/2006103, atentamos para a contradição entre a significativa expansão da assistência estudantil – o aumento de sua legitimidade e alcance quantitativo – e a reconfiguração de seu histórico conteúdo político e pedagógico. Constatamos que, tendencialmente, a assistência aos estudantes caminhava para: 1) a exclusividade (e o rebaixamento) do corte de renda como critério de acesso às suas ações; 2) sua desistoricização mediante vinculação exclusiva ao REUNI; 3) a incorporação da lógica da produtividade pelos serviços e programas desenvolvidos no seu âmbito. Tal configuração foi denominada por nós, parafraseando Fernandes (1975), de assistência estudantil consentida, para reforçar a articulação deste projeto aos interesses contrarreformistas e, ademais, ressaltar os estreitamentos e/ou perdas de Luiz Inácio Lula da Silva foi presidente, no Brasil, no período de janeiro de 2003 a janeiro de 2011. Os nexos mais diretos do REUNI com a assistência estudantil aparecem nas diretrizes do Programa que, dentre outras medidas, estão orientadas para a ampliação da assistência estudantil e das políticas de inclusão. Sobre o REUNI e sua relação com a assistência estudantil, conferir Nascimento (2018, 2014). 102 A regulamentação da assistência estudantil se dá no ano de 2007, com a criação da Portaria nº39 do MEC, que institucionaliza o Plano Nacional de Assistência Estudantil e, posteriormente, o Decreto 7.234 de 19 de julho de 2010, que institucionaliza o Programa Nacional de Assistência Estudantil/PNAES. Ver Nascimento (2013). 103 O Anteprojeto de Lei da Reforma Universitária/PL 7200/2006 foi o documento mais expressivo da contrarreforma universitária, do governo Lula. Suas orientações, acerca das reestruturações nas instâncias da avaliação, financiamento, autonomia universitária (didática, de gestão e financeira), ganharam materialidade nas IFES, através de uma série de aparatos legais (decretos, leis, portarias). Neste documento, a equação assistência estudantil e “democratização” do ensino superior compôs uma seção específica intitulada “Das Políticas de Democratização do Acesso e de Assistência Estudantil” (BRASIL, 2006). 100 101
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algumas funções essenciais destas ações – uma vez que subordinadas a hipertrofia de sua dimensão instrumental. O projeto de investigar os desdobramentos teóricos da tese da dissertação, enfocando na apreensão do movimento tendencial da assistência estudantil na realidade universitária, foi aprovado pelo PPGSS, da Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC, onde iniciamos o doutoramento no ano de 2018. O enfoque do PPGSS nos estudos da América Latina104 possibilitou o salto teórico do projeto: o deslocamento das análises da assistência estudantil consentida para a Universidade dependente, compreendendo esta última, a partir do seu imbricamento com o caráter dependente do capitalismo brasileiro. Neste lugar, estávamos, na ocasião do lançamento do Edital Nº. 1/2019/PPGECT, do Projeto CAPES/PRINT, para concessão de bolsas de doutorado sanduíche, vinculadas ao subprojeto Repositório de Práticas Interculturais (REPI): proposições para pedagogias decoloniais. Os estudos realizados, pelos pesquisadores envolvidos no subprojeto REPI, problematizam os efeitos da importação de métodos de ensino/aprendizagem que desconsideram a língua, a cultura e o saber local. Segundo o REPI (PPGECT, 2019), tais práticas, ainda que reiteradas pelos discursos de superação das desigualdades sociais, muitas vezes são esvaziadas de preocupações com a preservação internacional do patrimônio cultural local e ancestral, dialógico – e com o reconhecimento de novos conhecimentos e tecnologias sociais. As mesmas expressam a face contraditória da ‘globalização’, na qual, por um lado, empreende novas tecnologias e avanços científicos edificados sobre os saberes (e as tecnologias ancestrais e tradicionais), mas, por outro lado,
Referimo-nos à nossa participação no Núcleo de Estudos e Pesquisas: Trabalho, Questão Social e América Latina/NEPTQSAL, sob coordenação do Prof. Ricardo Lara, e das reuniões de estudos dos Cadernos do Cárcere Gramsci, coordenadas pela Profa. Ivete Simionatto. Ademais, a participação nas disciplinas de: Política Social na América Latina; Teoria do Valor em Marx e Tópicos Especiais em Trabalho e Questão Social; e Método em Marx, ministradas pelos Professores Beatriz Paiva, Ricardo Lara e Jaime Hillesheim, respectivamente.
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torna ainda mais urgente a necessidade de reconhecimento, valorização e internacionalização do desenvolvimento histórico da humanidade (PPGECT, 2019). O nosso projeto de pesquisa do doutorado sanduíche partiu dos estudos do REPI, e assumiu como pressuposto que a problemática do colonialismo do saber não se explica separada da dinâmica de reprodução material da vida sob a égide do capital. Nesta direção, consideramos que o significado da dominação ideológica e da destruição das expressões sociais do território (aquele referido ‘patrimônio cultural local e ancestral, dialógico’) empreendido pela transnacionalização da educação, é, assim, a expressão mais concreta da externalização do processo alienante da vida social sob a extração de valor – que, por sua vez, está assentada na superexploração do trabalhador e na espoliação da terra, dada a dinâmica dependente e a crise estrutural do capital. A luta pela preservação da língua, da cultura, etc., perpassa, pois, a compreensão de como elas são inviabilizadas pelo ‘padrão de reprodução do capital’ (OSÓRIO, 2012), à medida que são expressões da forma como os sujeitos concretos reproduzem sua vida. Desde esta percepção, a educação cumpre papel fundamental, na conformação de novas expressões condizentes com a miséria que se acirra pela sociabilidade do capital. O nosso movimento de articular esta problemática do REPI com o objeto da tese nos possibilitou um segundo salto teórico-metodológico: o interesse em captar a processualidade da colonialidade das reformas universitárias implementadas na América Latina, na primeira década dos anos 2000. Este último tornou-se o objetivo central do anteprojeto de tese, posteriormente apresentado à banca de qualificação de doutorado, em dezembro de 2019, mês que antecedeu a viagem à Espanha.
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Aproximações sucessivas com o objeto da Tese Chegamos no doutorado, na Universidade de Cádiz, em uma dupla condição105: enquanto doutoranda da UFSC, com a carga horária de disciplinas e estágios cumprida, projeto de tese qualificado e em fase de escrita da tese. E, enquanto estudante do primeiro ano do doutorado em Comunicação, com a carga horária de 600 horas a cumprir! A segunda condição motivou nossa imersão no universo da Comunicação e, consequentemente, provocou alterações no projeto de tese – na direção da análise do discurso de Bolonha, a partir das contribuições metodológicas da Análise Crítica do Discurso (ACD), cujos principais expoentes são Fairclough (2012) e Van Dijk (2010). Este movimento fez com que o ano de atividades no estrangeiro fosse dedicado aos estudos do Processo de Bolonha. Quando a pandemia do Covid-19 se alastrou pela Europa, a nossa aproximação da Universidade espanhola perpassava as impressões construídas através da participação nos Seminários organizados pela Escola de Doutorado da Universidade de Cádiz (EDUCA) e pela Comissão Acadêmica do Doutorado em Comunicação, assim como as orientações acadêmicas e conversas informais com o Prof. Víctor Manuel Marí, orientador no exterior. Tais atividades106 aproximou-nos das questões latentes acerca da estruturação e tendências do ensino e da pesquisa na Universidade, acirradas no contexto da operacionalização do Processo de Bolonha na Espanha – com destaque para: a chamada cultura da avaliação conduzida, na Espanha, por órgãos de avaliação Justificada pela tentativa de firmar um acordo de cotutela entre a UFSC e a UCA, o que nos exigiu inscrição no processo seletivo de doutorado da UCA e integração no Programa de Comunicação, sob a orientação do Prof. Víctor Manuel Marí Saéz. 106 Participamos de 4 Seminários, 2 cursos de formação e 2 Congressos. Trabalhamos na elaboração de 3 esboços de artigos. Apresentamos 2 trabalhos em eventos acadêmicos. Participamos de encontros sistemáticos de orientação com o Prof. Víctor Manuel Marí Saéz, assim como estivemos presente na reunião de planejamento das atividades da Revista Commons - Revista de Comunicación y Ciudadanía Digital de la Universidad de Cádiz. Trabalhamos na elaboração do anteprojeto de tese, apresentado e aprovado pela Comissão acadêmica do doutorado em Comunicação da UCA, em abril de 2020. 105
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como a Agência Nacional de Avaliação da Qualidade e Acreditação (ANECA), o produtivismo acadêmico, a pressão pela internacionalização universitária, a cultura do paper, as tendências de hiperespecialização temática (Martínez-Nicolás, 2020) e JCRcentrismo (RUIZ-PÉREZ; DELGADO; JIMÉNEZ-CONTRERAS, 2010) – o privilegiamento do Journal Citation Reports (JCR), como parâmetro central da qualidade da atividade científica (REIG, 2015). Construímos, para tanto, um plano de estudos (que resultou na posterior estruturação de um artigo publicado na Revista Triple C), com o propósito de problematizar a tendência mundial de mercantilização da educação superior, na particularidade da pesquisa em Comunicação, na Espanha: os fatores de impacto das revistas, o papel crucial da ANECA e a progressiva imposição de ferramentas de avaliação específicas, como a publicação em revistas de alto impacto (SAEZ; NASCIMENTO, 2021). Na UCA, ainda chamou-nos atenção: 1) a existência de uma modalidade de doutorado empresarial, assim como as especificidades do seu plano de internacionalização, com o estímulo à mobilidade acadêmica (os estágios internacionais), cuja execução agrega uma Menção Internacional à tese; 2) a diversidade de estudantes sobretudo provenientes da América Latina e, 3) no âmbito de Programa do doutorado em Comunicação, a exigência de publicação de artigos em revistas com JCR-Scopus, como critério para a conclusão do doutorado. Nesta oportunidade, questionávamo-nos sobre a influência do modelo de Bolonha na configuração da Universidade europeia e pensávamos que a própria vivência do doutorado sanduíche lançaria luz sobre algumas das nossas questões. Contudo, a pandemia do Covid-19 diminuiu significativamente a possibilidade da apreensão empírica (via observação e convivência com a comunidade acadêmica), e potencializou o trabalho investigativo parcialmente solitário (não fosse a sistemática orientação do prof. Víctor Marí, na UCA, e da Profa. Ivete Simionatto,
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na UFSC) na condução da pesquisa bibliográfica e documental. Abril de 2020, inaugurou a fase virtual do doutorado sanduíche. Num período de incertezas exponenciais, onde “tudo que era sólido se desmancha no ar (...)”, aludindo à máxima de Marx e Engels (2010), as atividades acadêmicas assumiram outro ritmo. Via modalidade online, tocamos a pesquisa e, seguramente, esta nova e imponente condição deu um rumo distinto às investigações. As sínteses que construímos são, deste modo, demarcadas pela profunda e generalizada crise humanitária, a virtualização do ensino, da pesquisa e das relações (sociais) acadêmicas, como condicionamento histórico. Assim, as aproximações teórico-metodológicas do Plano de Bolonha (enquanto mediação para captar a processualidade histórica da colonialidade presentes nas reformas universitárias brasileiras) está perpassada pelas profundas alterações na instituição Universidade em tempo real, online. Em cima, consideramos que as pesquisas, sendo feita por sujeitos reais, carregam suas perspectivas teóricas, suas concepções de mundo, limites e criatividade. Apesar de todo o discurso falseador da neutralidade científica, as investigações portam as marcas do tempo histórico da realidade e do sujeito que se debruça sobre ela.
O Processo de Bolonha O ano de 2019 demarcou os 20 anos da Declaração de Bolonha. A data provocou o lançamento de balanços, avaliações e publicações teóricas. Este foi o caso da publicação de Palma (2019) – um dos primeiros “achados” significativos da pesquisa bibliográfica e documental sobre o tema em destaque, durante o doutorado sanduíche. Num primeiro momento, essa publicação nos oportunizou fazer um mapeamento da estruturação de Bolonha: recuperar seus antecedentes, situar o contexto de proposição de um modelo unificado europeu de ensino superior, elencar suas principais propostas, seus eixos diretivos, organismos representativos etc. Num segundo momento,
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enfocamos, nas considerações que a autora levantou, acerca da implementação do Processo de Bolonha na Espanha. Uma breve apresentação do Processo de Bolonha, a partir das leituras de Palma (2019), nos habilita a defini-lo enquanto uma proposta de construção de um marco comum europeu de ensino superior, firmada num acordo (a Declaração de Bolonha de 1999) entre 29 países da Europa. A Declaração é uma espécie de carta de intenção, sem poder legal, em torno da necessidade de mudanças no sistema europeu no que tange à estruturação dos: Títulos compreensíveis e comparáveis, 2. estrutura de titulações (ciclos), créditos ECTS, 4. Mobilidade, 5. Garantia de qualidade, 6. Dimensão europeia (PALMA, 2019). O que a Declaração de Bolonha propõe? Propõe alterações na estrutura e no conteúdo dos currículos universitários, no sentido de modelo de aprendizagem por competência, a partir do desenvolvimento de metodologias docentes, com enfoque na aprendizagem e no estudante. O objetivo seria uma formação orientada para o desenvolvimento de competências e habilidades (transversais e específicas) requeridas pelos empregadores, instituições, mercado de trabalho e setores produtivos, visando a empregabilidade dos estudantes. Qual a sua contextualização? A proposta de construção de um EEES está associada ao programa econômico da Agenda de Lisboa 2000, estabelecido pelo Conselho Europeu, no qual a Universidade é chamada a cumprir função estratégica na resposta à crise europeia: formação e modernização das instituições de ensino superior (através do cumprimento das medidas acordadas pela agenda de Bolonha), no sentido da “Europa do Conhecimento”, da economia dinâmica e competitiva, capaz de garantir crescimento econômico e criação de empregos. Em suma, responde aos diagnósticos que circulavam, no final dos anos 1990, sobre a perda da capacidade atrativa das universidades europeias em relação, por exemplo, às Universidades norte-americanas (ROBERTSON, 2009).
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E os seus antecedentes? Dentre as iniciativas que antecedem Bolonha, e que foram fundamentais para a estruturação da proposta da criação do EEES, destaca-se o Programa Erasmus. É consensualmente apontado pela literatura do tema como sendo o mais expressivo (de mobilidade estudantil) e o mais representativo da política educacional global da União Europeia: devido a sua contribuição para o reconhecimento e compatibilização de títulos na U.E. Segundo Palma (2019, p. 15, tradução nossa), em três décadas, 9 milhões de estudantes se beneficiaram das suas bolsas. Em 1987, foram 3000 estudantes beneficiados, de 11 países. Em 2016, foram 678 000 estudantes de 33 países. Qual o léxico de Bolonha? O discurso hegemônico, que fundamenta a proposta de Bolonha, está amparado no chamado novo paradigma da sociedade da informação e do conhecimento (SCHAFF, 1995), as tecnologias informacionais, a globalização e a internacionalização, a formação ao longo da vida e a aprendizagem permanente. E a sua implementação? Um balanço divulgado pelo o documento Trends 2010, sobre a primeira década de vigência do Processo de Bolonha, emitiu a seguinte avaliação sobre o grau de implementação da nova estrutura de carreiras no EEES (PALMA, 2019): - destacou que não houve grandes renovações nos planos de estudos; - considerou a insuficiência de informações sobre os egressos que oportunizassem o levantamento acerca da empregabilidade das novas titulações; - destacou a tendência dos estudantes de prosseguir com os estudos de mestrado após a graduação; - apontou a insuficiência de recursos para operar a mudança de paradigma na direção de uma aprendizagem centrada no estudante, ainda que reconhecendo os seus avanços;
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- avaliou criticamente a utilização do sistema de créditos ECTS, considerando o seu uso ainda limitado para as transferências e o excessivo caráter administrativo dado ao Suplemento Europeu ao Título, ao não contemplar suficientemente as competências adquiridas no marco da qualificação. - avaliou positivamente o desenvolvimento dos marcos nacionais de qualificação, ainda que ressaltando o caráter deficitário com relação à sua compreensão e uso por parte das instituições educativas. No que tange à operacionalização da Reforma de Bolonha, na Espanha, o nosso interesse nas investigações teve como ponto de partida uma exigência formal de publicação na área da Comunicação, feita pelo Programa de doutorado em Comunicação, da UCA, para habilitar a solicitação de cotutela entre a UFSC e a UCA. Nesta oportunidade, abordamos os dramas da pesquisa na Espanha, sua integração subordinada aos ditames do Processo de Bolonha, e os impactos na pesquisa comunicacional. Nas orientações com o Prof. Víctor Marí foram constantes as inquietações acerca do atual modus operandi da pesquisa na Espanha e a sua contribuição para a conformação do pesquisador, sintonizado com as mais recentes transformações universitárias. Capaz de confrontar hipóteses através de dados quantitativos. Produzir informações. Aprender a divulgá-las nos meios acadêmicos mais reconhecidos. Operar com programas que oportunizem a agilidade da escrita, e a sistematização de dados. Integrar-se ao mundo acadêmico internacionalmente reconhecido – que domina o inglês. Dar publicidade aos temas de investigação nas revistas de impacto. Estar conectado com as demandas dos novos tempos, ser moderno, criativo, empreendedor e produtivo. Esse é o perfil de investigador da Universidade espanhola atual. O nosso objeto de investigação também foi sendo enriquecido pela crítica a este perfil.
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A transnacionalização do Modelo de Bolonha O contato com as elaborações teóricas de Bianchetti (2015) – cuja produção tomamos conhecimento no momento da pesquisa bibliográfica dos títulos que tratassem das relações de Bolonha com a América Latina – nos possibilitou avançar na direção da problematização do tema da transnacionalização do modelo de Bolonha e seu alcance na América Latina. Diferente do texto de Palma (2019), que compartilha do léxico de Bolonha (os seus fundamentos na suposta sociedade do conhecimento, o modelo de aprendizagem por competências etc.), a crítica recuperada por Bianchetti (2015), estando baseada em autores como Robertson (2009), avança no debate acerca da suposta “transnacionalização da educação superior”. Denuncia, para tanto, a relação da Universidade com o mundo empresarial e as conexões institucionais e entre países e blocos econômicos, no âmbito da globalização do modelo de Bolonha (BIANCHETTI, 2015). Seus estudos apontam que o Plano de Bolonha integra as estratégias de retomada da hegemonia europeia (abalada particularmente no pós-Segunda guerra), através da criação de um Espaço Europeu de Ensino Superior (EEES) – a fim de tornar as Universidades competitivas, frente ao processo de internacionalização requerido pelos processos de globalização econômica e financeira. Nesta direção, a Reforma de Bolonha converge com os desígnios do mercado sob o discurso de modernizar a educação superior, adaptar a universidade, tornando-a mais operacional e fluida. Amparado em Robertson (2009), este mesmo autor chama atenção para as relações entre a Estratégia de Lisboa para a educação superior, e a sua materialidade via Reforma de Bolonha. Esta relação entre Bolonha e a Agenda de Lisboa revela a interação entre os setores da educação e as políticas econômicas. Constitui-se, enquanto estratégia, no sentido de aumentar a atratividade da Europa, como mercado global de
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educação superior. Se incorpora aos esforços da UE para melhoria da posição econômica europeia e influência no mundo, anunciando a necessidade de modernizar a gestão universitária, seu financiamento e estrutura curricular e de pesquisa, para atração de mentes e mercados (ROBERTSON, 2009). Da nossa parte, o contato com a supramencionada literatura instigou-nos a investigar as determinações que explicam o fato de o processo de Bolonha ter se tornado base para reestruturação interna da Universidade brasileira da primeira década dos anos 2000, um modelo para a construção de novos projetos educacionais. Interessou-nos compreender as motivações socioeconômicas da extensão da sua influência para outros países e continentes – o modo através do qual este modelo educacional, baseado na aquisição de competências e habilidades comuns (no sentido do desenvolvimento de titulações comparáveis e compreensíveis), foi amplamente disseminado na América Latina e Caribe, a partir de Programa como o Alfa-Tuning.
*** Através de contato via e-mail com o Prof. Lucídio Bianchetti, tomamos conhecimento do Centro de Investigação de Políticas do Ensino Superior (CIPES), vinculado à Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação (FPCE) da Universidade do Porto. A nossa integração no CIPES se deu no período de outubro a dezembro de 2020, sob orientação do Prof. Antônio Magalhães (formalizada pela cooperação entre a Universidade do Porto e a Universidade de Cádiz, para o estágio internacional). Tal experiência oportunizou-nos a aproximação da produção de conhecimento portuguesa sobre a Reforma de Bolonha, uma vez que, assim como a Espanha, Portugal assume uma condição não dominante na condução do Processo de Bolonha.
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Dos estudos motivados pela participação no CIPES, destacamos as principais problemáticas referenciadas em Magalhães e Veiga (2018), Courtois e Veiga (2019), Veiga (2019): - A relação entre economia e educação. A influência que produz na estruturação de uma geopolítica do conhecimento, na qual, a construção e implementação de modelos educacionais está correlata com os diferentes estágios de desenvolvimento social, econômico, cultural e político dos países onde as reformas educacionais são implementadas. As relações de poder que caracterizam o Espaço Europeu de Ensino Superior e a Área Europeia de Investigação, e como decisões políticas (a exemplo do Brexit) impactam nestas relações. - Os dilemas da “integração diferenciada” (VEIGA, 2019), na construção do EEES, os entraves educacionais resultantes da “modernização dos sistemas de ensino superior”, da tendência de mercantilização das estratégias de internacionalização universitária (aumento das privatizações e, cultura da avaliação, quantificação de resultados e mudanças de valores cooperativos para valores concorrenciais), da inovação tecnológica e, especialmente, como estes fatores afetam as diferentes configurações nacionais do ensino superior. - A maneira através da qual, discursivamente, os principais eixos da Reforma de Bolonha (a saber, compatibilidade e comparabilidade dos sistemas de ensino superior) são moldados a partir de interesses políticos específicos produzindo impactos substanciais nas configurações universitárias dos diferentes países, sobretudo daqueles “não dominantes” na geopolítica da educação, como é o caso de Portugal, Grécia, Romênia. - O novo lugar, e as novas funções sociais, ocupadas pela educação superior europeia após a crise econômica e financeira de 2008. O estreitamento das políticas educacionais com a lógica da regulação do mercado. As reformas curriculares para o desenvolvimento de competências digitais e empresariais. A racionalidade econômica que perpassa as articulações entre educação, pesquisa e inovação.
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O contato com essa problemática, permitiu-nos apreender o nosso objeto de pesquisa, a Universidade brasileira dependente, a partir das seguintes chaves analíticas: - As relações de poder que conformam o discurso hegemônico de Bolonha interferem, significativamente, na configuração dos modelos educacionais dos países de economia periférica) – considerando o potencial que possuem de acirrar os processos de dependência científica e tecnológica. É necessário compreender tais processos como resultado do direcionamento político dado aos temas da modernização, da inovação e da internacionalização baseados na racionalidade econômica necessária ao processo de financeirização do capital (a formação baseada em competências digitais e empresariais, a própria educação como nicho de mercado: o modelo de Universidade-empresa). - A influência das determinações econômicas, sociais e políticas de Bolonha nas realidades educacionais latino-americanas (mais especialmente, o Brasil) a partir da mobilização de antigos laços coloniais. A análise da hegemonia discursiva que conforma o eixo “dimensão europeia” da Reforma de Bolonha, nas suas mais recentes tentativas de expansão do Plano de Bolonha, para além do EEES. - O tema da transnacionalização do modelo educacional de Bolonha. As necessidades históricas de domínio da ciência e tecnologia para aumento da competitividade dos países do EEES. As motivações políticas e econômicas, as tendências do seu desenvolvimento. Tais dimensões teóricas foram possíveis de serem exploradas, em entrevista concedida pela Prof. Amélia Veiga, cujos principais resultados apontam para a seguinte direção: os caminhos que este debate vem tomando em Portugal, reforça a noção de que o trato de Bolonha exige particularidades resultantes do estágio do desenvolvimento econômico e social dos países e sobretudo do lugar que eles ocupam nas tendências de estruturação mundial do conhecimento.
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De um modo geral, o doutorado sanduíche permitiu-nos aproximações das mediações teóricas que dão conta de explicar as contradições da implantação de Bolonha, dentro do próprio EEES. Pressupomos que a apreensão dos interesses políticos e econômicos que conformam este processo, seja uma chave analítica de suma importância para avançar nas análises acerca da influência de Bolonha na Reforma universitária brasileira, dos anos 2000.
Sobre as contribuições do Doutorado Sanduíche para a Tese O interesse em investigar as principais diretrizes, orientações e estratégias de implantação da Reforma de Bolonha no contexto europeu, e os seus desdobramentos na América Latina, justifica-se pelo fato de esta Reforma ser um marco das mais recentes transformações nas Universidades, em escala mundial. A promoção da chamada “dimensão europeia” aparece na Declaração de Bolonha de 1999, como um dos objetivos para criação do Espaço Europeu de Ensino Superior. Esta estratégia, cuja operacionalização prevê a integração a programas de estudos, nacionalmente e internacionalmente, o fomento de cooperação interinstitucional, a mobilidade estudantil e docente, acena para o interesse de “promoção do sistema europeu em todo o mundo”. A globalização do modelo de Bolonha, como parte dos esforços do eixo da dimensão europeia, é uma estratégia que vai ganhando corpo teórico nos Comunicados dos organismos gestores de Bolonha, amparada nos conceitos de “educação transnacional”, ou educação superior transfronteiriça. Tal como consta no Comunicado de Praga, de 2001, e no Comunicado de Lovaina, de 2009. As decisões da Comissão Europeia (C.E.) de expandir o modelo educacional de Bolonha para outros continentes podem ser evidenciadas na influência do Programa Tuning Europeu, nas reestruturações
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curriculares internacionalmente, orientadas pelos modelos das competências. Na sua versão latinizada, o chamado Projeto Alfa-Tuning, expressa as primeiras tentativas de integração latino-americana ao processo de Bolonha, a partir da “transplantação” deste modelo à América Latina. O objetivo seria o de estabelecer um parâmetro para homogeneizar os currículos, sob o enfoque da metodologia das competências. O Programa Alfa-Tuning foi aprovado, em 2002, por um grupo restrito de representantes de Universidades europeias (07) e latinoamericanas (08), e, somado ao fato de não ter sido amplamente difundido na comunidade universitária, a sua representatividade é questionável. No caso brasileiro, por exemplo, não existem registros de uma adesão governamental ao projeto. A sua projeção internacional se deve ao fato de ter contado com apoio institucional e financeiro da C.E. (FERREIRA, 2014). Contudo, os estudiosos do tema consensuam sobre a significativa expressividade do Alfa-Tuning, para compreender as direções das reformas universitárias latino-americanas. No caso brasileiro, o ritmo lento da operacionalização do Programa, seguramente, não acompanhou a projeção mais acelerada das suas ideias. O ideário das competências, como modelo formativo, ganhou espaço nas Universidades brasileiras, vinculado à concepção de modernização da educação superior. Na primeira década dos anos 2000, o Projeto Alfa-Tuning influenciou o modelo universitário da chamada Universidade Nova, que por sua vez, repercutiu no REUNI (o programa mais expressivo da expansão universitária, promovida pelo governo federal no âmbito das IFES). Aludimos à proposta do sistema de créditos colocada pelo REUNI, também presente no modelo da Universidade Nova, para evidenciar esta influência. Ou podemos recuperar aos projetos pedagógicos e ementas curriculares dos cursos, para demonstrar como o direcionamento de competências e habilidades aparecem aglutinados – conforme nos
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aponta Ferreira (2014), ao defender na dissertação, de 2014, que o Projeto Alfa-Tuning não é uma realidade concreta (em se tratando da efetividade da sua operacionalização), mas a existência de movimento favorável à sua adesão indica a necessidade da sua constante problematização pela comunidade acadêmica. No âmbito do debate em torno da necessidade de reformar a Universidade brasileira, a proposta de uma nova “arquitetura curricular”, criada e defendida pelo reitor da Universidade Federal da Bahia, o Professor Naomar, referenciada nas chamadas “competências pedagógicas” do Projeto Alfa-Tuning – foi amplamente disseminada, em território nacional. É significativo considerar que a proposta de modelo universitário que obteve ampla circulação no Brasil, da primeira década dos anos 2000, faz menção direta ao Processo de Bolonha (junto ao modelo norte-americano): incorporou o seu léxico – os conceitos de competência, flexibilidade da formação, mobilidade estudantil, autonomia estudantil – e propôs a reestruturação curricular, a partir da introdução do sistema de ciclos, no âmbito do chamado bacharelado interdisciplinar. No Brasil, um dos principais programas de reestruturação universitária, o REUNI, teve inspiração direta de Bolonha – no que tange às alterações propostas no sistema de créditos, no impulso à mobilidade e à internacionalização. Ou seja, encontramos nos estudos de Bolonha uma mediação teórica fundamental para a compreensão das políticas educacionais brasileiras dos anos 2000, no seu caráter dependente. O doutorado sanduíche nos permitiu ampliar as possibilidades da apreensão deste debate, por dois principais motivos: 1. Integração na Universidade de Cádiz e participação nas atividades acadêmicas sob orientação do Prof. Víctor Marí, articulação com o GAPES (Grupo de Análise de Políticas Educativas) e CIPES (Centro de Investigação de Políticas do Ensino Superior); e 2. em termos empíricos, nos permitiu acompanhar a particularidade da operacionalização do processo de Bo-
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lonha, na Espanha e em Portugal, tendo em vista a condição não hegemônica destes países no ditame das diretrizes e orientações que conformam o modelo educacional (de Bolonha), nos quais, o tema da dependência da ciência e tecnologia, com relação aos países centrais, toma forma, dentro dos próprios limites do EEES. A própria experiência da mobilidade internacional encontra um fim em si mesma, uma vez que a internacionalização é um dos eixos principais de Bolonha. Neste sentido, a condição de estudante internacional, nos permitiu observar, inclusive, a gestão da mobilidade dos alunos estrangeiros, pelas Universidades europeias. Por fim, com relação à contribuição direta do estágio internacional para a tese, destaco duas principais chaves analíticas que, no momento de escrita deste artigo, vêm sendo desenvolvidas nos estudos da tese: 1) a análise da hegemonia discursiva que conforma o eixo “dimensão europeia” da Reforma de Bolonha, nas mais recentes tentativas de expansão do Plano de Bolonha para além do EEES; 2) a transnacionalização deste modelo educacional. As necessidades históricas de domínio da ciência e tecnologia para aumento da competitividade dos países do EEES. As motivações políticas e econômicas, as tendências do seu desenvolvimento. O presente texto, portanto, sendo fruto dos debates e experiência alcançada no âmbito do Projeto Print-Capes, reitera o fecundo processo analítico desenvolvido nos estudos da temática. Estes estudos foram enriquecidos pela realização do doutorado sanduíche, cuja vivência permitiu-nos a construção de novas sínteses e questionamentos na captura do movimento específico do objeto de pesquisa da tese.
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Agradecimento Meus sinceros agradecimentos aos professores do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e em Educação Científica e Tecnológica, da UFSC, especialmente Ivete Simionatto, Beatriz Paiva, Simone Sobral, Patrícia Giraldi e Suzani Cassiani. Aos técnico-administrativos da UFSC, especialmente Gabriela Martins, Salézio Schmitz e Fábio Baltazar. À Universidade de Pernambuco. Ao Prof. Víctor Manuel Marí Saéz, orientador na Universidade de Cádiz. Às colegas Aline Rodrigues, Nalá Caravaca e Cris Sabino. ...Por oportunizarem e compartilharem comigo a experiência do intercâmbio.
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DOI: doi.org/10.29327/565971.1-15
A Arqueologia do arqueólogo: estudo da constituição do sujeito e práxis do profissional The Archeology of the archeologist: study of the constitution of the subject and practice of the professional Washington Ferreira1 Karine Sanchez Ferreira2 1 Oceanógrafo, Mestre em Oceanografia, Doutor em Educação Ambiental. Laboratório de Gerenciamento Costeiro, Instituto de Oceanografia, FURG – Universidade Federal de Rio Grande. Rio Grande, RS, Brasil. E-mail: chingksw@gmail.com / ORCID: http://orcid.org/0000-0003-3377-024X 2 Arteducadora, Mestre e Doutora em Educação Ambiental. Professora da Rede Pública Municipal, Prefeitura de Rio Grande. Rio Grande, RS, Brasil. E-mail: kkasanchez@yahoo.com.br / ORCID: http://orcid.org/0000.0001.5919.6894
Resumo: Neste ensaio, sobre processos formativos e práticas pedagógicas de pesquisadores/educadores em ciências, buscamos demonstrar a possibilidade e pertinência da aproximação entre o instrumental reconstitutivo de processos e atividades humanas (através da Arqueologia Histórica) e a história dos sujeitos (através da História do Tempo Presente), utilizando como Estudo de Caso a análise da trajetória pessoal e profissional de nosso sujeito de pesquisa, que conduziram à sua opção profissional e imersão na formação acadêmica em Arqueologia. Para tal, desenvolvemos uma abordagem etnográfica sobre as influências do seu “universo vivencial”, ou pertencimento às duas categorias profissionais/culturais complementares (marítimo/portuário e arqueólogo), que contribuíram, decisivamente, para esse processo formativo. Paralelamente, procedemos à “prospecção” e “escavação”, entre as múltiplas camadas de informações dos vestígios materiais de seu acervo pessoal, diretamente associado ao tema desta pesquisa. Posteriormente, procedemos à análise de correlações entre o conjunto de cenários e circunstâncias formativas, com aqueles vestígios materiais e simbólicos, reveladores da afetividade/efetividade do pertencimento do sujeito de pesquisa às referidas categorias. A partir destas correlações, inferimos a adaptabilidade de tais procedimentos para análise de espaços/processos formativos de professores/pesquisadores em Ciências. Palavras-chaves: Arqueologia. Constituição do Sujeito. Processos Formativos.
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Introdução
N
ESTE conjunto de análises, práticas e reflexões sobre os processos formativos de pesquisadores/professores em Ciências, propomos nossa integração ao tema coletivo, através da discussão de um locus profissional específico nesta grande área - a Arqueologia -, mas que entendemos ser pertinente para o quadro geral de situações vivenciadas por estudantes e profissionais em Ciências.
Procedimentos Metodológicos Para esta aproximação, utilizamos como Estudo de Caso (YIN, 2005), a análise da trajetória pessoal e profissional de nosso Sujeito de Pesquisa (Jeferson Martins Sanchez, doravante JMS)107, que conduziram à sua imersão na formação acadêmica em Arqueologia; a elegibilidade do Sujeito de Pesquisa deriva de nossa proximidade pessoal/profissional com o mesmo108, que nos proporcionou a oportunidade para a contínua Observação Participante (MALINOWSKI, 1976) sobre o seu “universo vivencial” e pertencimento à determinada identidade cultural. Paralelamente, procedemos à “prospecção” e “escavação” entre as múltiplas “camadas” de informações do seu acervo pessoal, associado ao tema desta pesquisa, sistematizado em 03 categorias: a) Biblioteca de referência: livros e capítulos de livros; artigos técnicos e científicos; estudos monográficos; b) Referenciais do Curso de Arqueologia da FURG: disciplinas cursadas; c) Objetos pessoais. Destes sinérgicos contextos e vestígios, buscamos resgatar elementos descritores de três situações complementares: a) Processos Formativos Pré-Arqueologia; b) Atuação Profissional; c) Processos Formativos na Jeferson Martins Sanchez (nascido em Setembro/1965 e falecido em Junho/2020), atuou profissionalmente junto a diversas agências de navegação, e foi estudante de graduação em Arqueologia, pela FURG – Universidade Federal de Rio Grande (Rio Grande, RS). 108 Os autores ratificam seus vínculos familiares (Karine Sanchez, como filha de JMS) e profissionais (Washington Ferreira, como co-orientador de pesquisa do mesmo). 107
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Arqueologia. Posteriormente, procedemos à análise de correlações entre o conjunto de tais cenários, circunstâncias e vestígios109. Nesta integração, logramos demonstrar a efetiva aproximação e fluidez entre a Arqueologia Histórica e a História do Tempo Presente, de modo análogo à proximidade e interdependência entre a constituição do sujeito e a sua práxis profissional, como elementos pertinentes para a investigação dos processos formativos de educadores/pesquisadores em Ciências.
Resultados e Discussão O sujeito de pesquisa Jeferson Martins Sanchez (JMS), terceiro de cinco filhos, nasceu em 19/Setembro/1965, na cidade de Rio Grande, RS. No seu universo familiar, os vínculos com o ensino e pesquisa, e a atuação profissional da navegação e agenciamento marítimo, foram recorrentes: sua mãe, Janini Marins Sanchez, foi professora-alfabetizadora da rede de ensino estadual e orientadora de aprendizagem. Seu pai, Mário Cardoso Sanchez, obteve na juventude, o Certificado de Segundo Condutor Motorista da Marinha Mercante, habilitação para condução de embarcações (embora não tenha exercido a atividade, mas tenha atuado como funcionário da Refinaria de Petróleo Ipiranga). Sua avó materna, Nair Martins de Martins, foi proprietária e administradora de uma empresa (Martins e Martins), prestadora de serviços de lanchas no Porto de Rio Grande. Desde tenra idade, JMS compartilhou com o pai as pescarias (esportivas), conheceu os serviços marítimos (Fig. 1), frequentou a praia e os naufrágios da região (Fig. 2). Sobre os profundos laços de identidade cultural marítima e do ethos da cidade, e região pesqueira/portuária/industrial de Rio Grande (RS), a mesma é reconhecida pelo epíteto de A Noiva do Mar; esta característica será determinante, também, nos conflitos socioambientais, com as novas Rainhas do Mar, o cartel de grandes empresas de navegação e comércio exterior, que monopolizaram o contexto de estudo.
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Figura 1. lancha da empresa Martins e Martins (sobrescrita pela mãe de JMS, Janini Marins Sanchez, sd)
Fonte: acervo pessoal Jeferson Martins Sanchez Figura 2. JNM, naufrágio do navio Altair (praia do Cassino, Rio Grande, RS: Janeiro/1977)
Fonte: acervo pessoal Jeferson Martins Sanchez
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As relações de JMS com o mundo “antigo” e com os temas relacionados à navegação foram intensas e estreitas. Fez coleções diversas ao longo da vida e tentava, dentro de suas habilidades, restaurar tais peças, quando as mesmas demandassem estes cuidados; para isto, montou um pequeno estúdio/oficina com uma bancada de ferramentas. Dava muito valor, e possuía imensa curiosidade, em relação aos seus ancestrais, interessando-se em construir árvores genealógicas, buscar documentos diversos e resgatar fotos e vídeos antigos de família. De toda a família, sempre foi o mais cuidadoso em guardar os mais variados objetos e papéis de valor histórico e afetivo. Como conhecedor da história da sua cidade, JMS contava com orgulho como seu avô colaborou na construção do moinho da Praça Tamandaré, e como a matriarca do clã marinheiro auxiliou a financiar a construção da Igreja do Salvador (católica, de confissão Anglicana; neste templo, diversas gerações de familiares foram batizados e frequentaram seus cultos habituais), além de muitas outras histórias interessantes sobre a imigração de familiares. Na adolescência, aprendeu a operar um laboratório fotográfico analógico, dominando técnicas de revelação e ampliação, produzindo imagens da família e mosaicos temporais (reproduções de fotos que marcam o tempo: mesmas pessoas, mesmo cenário, com anos de diferença); também organizou uma pequena coleção de câmeras fotográficas e acessórios. Possuía forte ligação com a música, como ouvinte e como instrumentista, papel que lhe dava muito prazer e agradava quem pode ouvir; chegou também a construir alguns instrumentos. Sobre as relações de trabalho junto às empresas de navegação e comércio exterior, nas novas “Rainhas do Mar”, contrariamente às antigas empresas familiares, seus “colaboradores” com problemas de saúde significam tão somente isso, problemas; e problemas se eliminam (na lógica do capital interacional), com demissão e substituição. JMS passou por esse processo e lutou na justiça, para ter os seus problemas de saúde reconhecidos como decorrentes das condições inadequadas de
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trabalho. Quando, finalmente, teve êxito, a sinergia de tais problemas já estava muito agravada, e o seu tempo de vida fora muito abreviado. Apesar dos problemas, JMS sempre foi um pesquisador, especialmente daquilo que lhe despertava interesse e curiosidade, especialmente a história da humanidade. Deixou objetos de forte valor afetivo/familiar e de constituições originais, além de muitos livros, discos, ferramentas, documentos e lembranças diversas. Ficaram muitas histórias contadas, lembradas (e outras, não lembradas), nos diferentes círculos sociais onde pertenceu. Na pequena janela de oportunidade disponível, quando percebeu que não mais poderia retornar às atividades das agências de navegação e comércio exterior, mas ainda dispunha de um pouco de vitalidade e muita disponibilidade para aprendizagem, JMS decidiu-se a resgatar o interesse, de longa data, pelo estudo do passado e, especialmente, da própria cultura náutica, da qual toda sua história familiar e pessoal é parte constitutiva. Ele “mergulhou”, como pode, com idas e vindas, trancamentos e ausências, mas com o “eterno retorno” aquele espaço/tempo no qual se sentia realizado, a Arqueologia. A biblioteca de referência A coleção de livros e capítulos de livros de JMS, reflete uma diversidade de interesses: Sociologia (01), Antropologia (05), História Geral (17), Arqueologia Teórica/Técnica (09), Arqueologia Pré-Histórica (06), Mistérios (04), Fotografia (02), Filosofia da Ciência (01), Patrimônio (01), Navegação (01). Arqueologia do cotidiano: histórias de vida nos objetos pessoais Esta abordagem, embora distante dos estereótipos da atuação dos arqueólogos, encontra eco na sua práxis habitual, e nas releituras que a literatura dela propõe:
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... foi então que olhei bem o embrulho. A princípio, apenas suspeitei. E ficaria na suspeita, se não houvesse certeza. Uma das faces estava subscritada, meu nome em letras grandes e a informação logo embaixo, sublinhada pelo traço inconfundível: “Para o jornalista Carlos Heitor Cony. Em mão”. Era a letra de meu pai. A letra e o modo. Tudo no embrulho: revelava, inteiro, total. Só ele faria aquelas dobras no papel, só ele daria aquele nó no barbante ordinário, acrescentando a função, que também fora a sua (...). Apenas uma coisa não fazia sentido. Estávamos – como já disse – em Novembro de 1994. E o pai morrera, aos noventa e um anos, no dia 14 de Janeiro de 1985. (CONY, 1995, p. 10-11).
Sobre tal abordagem, os diálogos/discursos mais inusitados podem se revelar os mais precisos, por indicarem os conceitos, metodologias e interpretações da disciplina: [...] encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam [...]. - Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga. - Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte. - Você já está analisando o meu lixo! - Não posso negar que o seu lixo me interessou [...]. - Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social [...] (VERÍSSIMO, 2002, p, 2).
Os objetos pessoais ... se quisermos contar a história do mundo inteiro, uma história que não favoreça indevidamente uma parte da humanidade, não podemos fazê-lo usando apenas textos, pois, durante a maior parte do tempo, só uma fração do mundo teve textos, enquanto a maioria das sociedades não teve (...). Com os objetos, temos, é claro, estruturas de perícia — arqueológica, científica, antropológica — que nos permitem fazer perguntas vitais. No entanto, precisamos adicionar a isso um considerável esforço de
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imaginação, devolvendo o artefato à sua antiga vida, envolvendo-nos com ele tão generosa e poeticamente quanto pudermos, na esperança de alcançar os vislumbres de compreensão que ele possa nos oferecer. (MacGREGOR, s./d., p. 17).
Neste conjunto, agrupamos vestígios materiais de JMS, onde se destacam aqueles reveladores da afetividade e seus vínculos familiares, os espaços/processos formativos e do seu interesse em relação às coleções e temas históricos e arqueológicos (Quadro 1). Quadro 1. Acervo de objetos pessoais de Jeferson Martins Sanchez Categorias Familiares
Desenho arquitetônico Fotografia/ótica
Coleções
Jogos
Objetos Mecha de cabelo feminino (de uma de suas filhas?). Rubi engastado em estrutura metálica (broche feminino?). Medalhas religiosas. Figas em miniatura. Relógio de bolso Doment Quartz. Estojo para lápis e borracha, em madeira. Estojo plástico para higiene Johnson’s. Louças da avó, em porcelana com borda em ouro, Schmidt. Soldadinho de chumbo, pintado (réplica inglesa, do Uruguai). Compasso Trident para desenho. Compacta Yashica MG3 (objetiva fixa, 34 mm). Reflex TLR Rolleiflex (objetivas Carl Zeiss NR 1:3, 75 mm). Reflex SLR Minolta AL (objetiva Minolta Rokkor 1:2, 45mm). Projetor de slides Minolta Mini 35 (objetiva 2.5, 75 mm). Microscópio ótico e diversas objetivas. Cachimbos; chaves metálicas; moedas e cédulas de dinheiro, antigas e/ou estrangeiras; selos; latas de chá e biscoitos; bolinhas de gude, em vidro; cartuchos de munição (tipo “espalha-chumbo”, para caça; para revólver e para fuzil); relógios-despertadores. Uma lata de “objetos mágicos” (kit de baralhos e outros instrumentos de ilusão); jogo “pega-varetas”; jogo “1914” (estratégia militar/conquista), com manual original e fichas.
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Identidade cultural marítima/portuária
Flâmula do Clube de Escoteiros do Mar, de 1996. Apito metálico de colete salva-vidas. Carimbos de empresas de navegação e agenciamento. Estojo da Associação da Praticagem da Barra. Bússola manual de geógrafo. Cilindro de madeira, vidro e bronze, de antiga bússola de navio. Cartas náuticas. Miniatura de veleiro, encapsulada em uma garrafa de vidro. Caramujo marinho Adelomelon beck Antigos, restaurados ou Fogareiro de bronze, a querosene Primus. em processo Maçarico de bronze, a querosene. Ferro de passar roupa a carvão (restaurado). Espingarda (restaurada por terceiros). Máscara contra gases da Segunda Guerra Mundial. Arqueologia Ponta de flecha em pedra, com cabo em madeira, conectados por fibra vegetal (réplica; procedente de Cuba). Fonte: elaboração dos autores
Processos formativos Pré-Arqueologia Para elencar parte das influências, conhecimentos e habilidades desenvolvidos por JMS, de modo anterior à sua “imersão” no campo formal da Arqueologia, mas constitutivos de sua formação, segue-se um extrato de seu currículo neste período (Quadro 2). Quadro 2. Extrato de Curriculum vitae de Jeferson Martins Sanchez Nível Ensino Médio
Especificidade Técnico em Agropecuária Desenho Arquitetônico
Ensino Superior Extensão Aperfeiçoamento
Bacharelado em Ciências Contábeis (incompleto) Datilografia Programação Basic I, II Operação de Microcomputador PC
Instituição / Local Conjunto Agrotécnico Visconde da Graça – CAVG (Pelotas, RS) Colégio Estadual Lemos Júnior (Rio Grande, RS) FURG – Universidade Federal de Rio Grande SENAC (RG) WB Informática (RG) SENAC (RG)
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Lotus básico e avançado DBase III Plus básico e avançado Inglês, nível 3 Sistema de Exportações Sistema de Comércio Exterior Workshop Motivação em Mudanças Organizacionais Shipping, módulos I – VI Participação em Eventos Técnicos e Científicos
SENAC (RG; agosto-setembro/1992) SENAC (RG) CCAA (RG, Julho/1994) Empresa de Navegação Aliança (Rio de Janeiro, RJ) Câmara do Comércio (RG) Grupo Wilson Sons (RG, 02/Junho/2001) Grupo Wilson Sons (RG, 08/Agosto-21/Novembro/2001) FURG – Universidade Federal de Rio Grande
X Jornada de Estudos Políticos, Econômicos, Administrativos e Contábeis XII Jornada de Estudos Políticos, FURG – Universidade FeEconômicos, Administrativos e deral de Rio Grande Contábeis Fonte: elaboração dos autores
Atuação profissional JMS atuou profissionalmente, entre 1985 e 2005, nas atividades de escritório e/ou cais, em diversas empresas do comércio, e especialmente, de agências de navegação, despachos aduaneiros e agenciamento de cargas marítimas110, em Rio Grande, RS (Quadro 3).
Foram localizadas duas solicitações (Maio/1997): uma à Justiça Militar (de expedição de Certidão de Situação Militar), e outra, de Alvará de Folha Corrida (ao Poder Judiciário RS, Diretoria do Foro RG), ambas como provas junto à Delegacia da Receita Federal, para seu ingresso no Registro de Ajudantes de Despacho Aduaneiro.
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Quadro 3. Atividades profissionais de Jeferson Martins Sanchez Empresa Comércio de Bijout e Bazar Clínica de Doenças Renais RG Ltda
Atividade Comércio
Função Balconista
Serviços de saúde
Consórcio Nasser S.C. Ltda.
Administradora de consórcios Agência de navegação
Controle de estoque, arquivista, secretário Vendedor externo, treinamento de vendedores Auxiliar de escritório, contas de custeio, caixa, importação e exportação Auxiliar de escritório, exportação
Sinarius Sul S.A. Navegação e Comércio / Aliança Agenciamentos Marítimos Ltda Federal Express Despachos Internacionais Ltda / J. Guerini Despachos Internacionais Ltda Wilson Sons Agência Marítima Ltda. Maersk Brasil (Brasmar) Ltda.
Despachos aduaneiros
Agência de Auxiliar de contas navegação de custeio AgenciaAssistente de domento de cumentação cargas Fonte: elaboração dos autores
Período 02/Maio/1985-30/ Junho/1985 02/Julho/1985-11/Outubro/1985 14/Outubro/198505/Maio/1986 11/Janeiro/1988 – 03/Julho/1995 01/fevereiro/199609/Maio/1997 16/Setembro/199724/Maio/2002 03/Junho/2002 – /2005.
Ao longo deste período, JMS desenvolveu e ampliou uma série de conhecimentos e práticas específicas, mas que habilitaram-no também na análise e processamento de informações, além da capacidade de compreensão sistêmica dos processos envolvidos, os quais viriam a ser muito importantes na etapa posterior de sua vida, com a “imersão” nos espaços e processos formais da Arqueologia.
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Processos formativos na Arqueologia O Curso de Bacharelado em Arqueologia da FURG No perfil profissional proposto para os futuros egressos do curso de Graduação (Bacharelado) em Arqueologia da FURG – Universidade Federal de Rio Grande, a instituição assim se posiciona: [...] o curso de Arqueologia tem como objetivo formar profissionais comprometidos com a produção do conhecimento e com a interdependência entre as diferentes áreas do saber, considerando a diversidade cultural como princípio básico (...). O arqueólogo está apto a desenvolver suas atividades em qualquer espaço que necessite de sua intervenção, prestando serviços técnicos e de consultoria especializada em qualquer instituição vinculada, direta ou indiretamente, à proteção, documentação, conservação, pesquisa e difusão do patrimônio material da humanidade. (FURG, 2020, p. 1).
Disciplinas cursadas na Arqueologia da FURG No período entre 2010 e 2016, JMS cursou as disciplinas exigidas do curso de Arqueologia da FURG (Quadro 4)111, restando apenas a entrega final e apresentação do Trabalho de Conclusão de Curso (projetos estes interrompidos por seus problemas de saúde).
111 Para detalhes da estrutura e disciplinas do curso de Arqueologia, ver o Quadro de Sequência Lógica (QSL) 098111. FURG - Universidade Federal de Rio Grande, sd. Disponível em: https://www.furg. br/graduacao/arqueologia (acesso em: 04/Julho/2020).
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Quadro 4. Disciplinas de Arqueologia, cursadas pelo Sujeito de Pesquisa Disciplinas Fundamentos de Antropologia Introdução à Arqueologia Introdução ao Estudo da Cultura Material História Antiga I Arqueologia do Mundo Antigo Filosofia da Ciência Teoria Antropológica I Geologia Básica para Arqueologia Arqueologia Pública Fundamentos de Estratigrafia Arqueológica Topografia I Bioarqueologia Arte e História Arqueologia do Capitalismo I Educação Patrimonial na Arqueologia ArqueoBotânica Metodologia da Pesquisa Arqueológica I Teoria Antropológica II EtnoHistória Fundamentos de ZooArqueologia Teorias da Arqueologia I Teorias da Arqueologia III Arqueologia do Capitalismo III Modernidade e Capitalismo História e Cultura AfroBrasileira Diversidade e Identidade(s) Brasileira(s) História Contemporânea Tecnologia das Louças, Vidros e Metais Formação da Sociedade Brasileira Língua Francesa Instrumental I Fonte: elaboração dos autores
Períodos 2010/01
2010/02
2010/02 - 2011/01 2011/01
2011/02
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Participação em Eventos Técnicos e Científicos da Arqueologia Durante o Curso de Arqueologia, JMS interessou-se por artefatos e história antiga, escavações, resgate e recuperação; visitou as ruínas da fábrica Rheigantz, participou de escavação no sítio “Totó” Locus 4 (Praia do Laranjal, Pelotas, RS, Maio/2010), e na elaboração do projeto Sítio Arqueológico “Charqueada dos Carreiros” (LIPINSKI et al., 2011). Também participou de eventos relacionados: I Ciclo Sul-Americano de conferências de Arqueologia Pré-Histórica / II Semana Acadêmica de Arqueologia, Maio/2010; I Semana dos Povos Indígenas / II Seminário de acesso e permanência de estudantes indígenas, Outubro/2010; III Semana Acadêmica de Arqueologia – Arqueologia Pública; uma dívida social, Maio/2011); Ciclo de Palestras Arqueologia Subaquática e Navios Negreiros: Cotidiano e cultura material – Embarcações primitivas, Abril/2013; I Garatuja Arqueológica, Novembro/2015. Produção Acadêmica em Arqueologia do Sujeito de Pesquisa Depois de cursar a maior parte das disciplinas do bacharelado, JMS decidiu, no seu projeto de Trabalho de conclusão de Curso, recontar a transição entre a Arqueologia e a História dos naufrágios (Fig. 3) que habitam os vestígios materiais e o imaginário coletivo dos habitantes desta contraditória (porque humana) cidade e região pesqueira/portuária/industrial.
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Figura 3. Incêndio/naufrágio do navio Avante, no canal entre Rio Grande e São José do Norte, RS (s./d.)
Fonte: acervo pessoal Jeferson Martins Sanchez. ... as regiões mais densamente povoadas e industrializadas das diversas culturas humanas tendem a se concentrar nestas áreas estuarinas; por esta mesma razão, as áreas estuarinas em geral e o Estuário da Lagoa dos Patos, de modo particular, podem ser interpretadas como um potencial sítio arqueológico, pela inevitável ocorrência de séries de eventos de naufrágios de embarcações, associados aos padrões de circulação eólica e hídrica regional: em 1846, o Governo Imperial criou a Inspetoria da Praticagem da Barra, servida por práticos conhecedores das tradições antigas da barra e por grande número de marinheiros (...); mesmo com essa sinalização, eram frequentes o longo tempo de espera às condições propícias, tanto para a entrada, como para a saída dos navios, além de muitos naufrágios, embora tenha sido reduzida a ocorrência de tais sinistros (Kuniochi; Telles, 2012, p. 5, grifos nossos). (SANCHEZ; KUNIOCHI; FERREIRA, 2014, p. 4).
Neste processo, integram-se tanto a identidade cultural de JMS, o perfil pesqueiro/portuário/industrial da cidade e região, como a grande disponibilidade de fontes dos referidos vestígios arqueológicos e históricos de tais naufrágios, para o desenvolvimento das pesquisas empíricas propostas.
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Considerações Finais Os vestígios materiais contidos no acervo pessoal de JMS revelam um continuum temporal: a estratificação de diferentes “camadas de informação”, com elementos bem mais antigos (“arqueológicos”), sobrepostos por outros mais recentes (“históricos” e/ou contemporâneos), das quais provém um aporte de pistas reveladoras das imbricações entre a personalidade do sujeito e seu processo formativo. Arquétipos profissionais ... o modelo de Arqueólogo enraizado no senso comum se origina do personagem cinematográfico “Indiana Jones”. Com uma atuação arqueológica bastante ímpar, o personagem cruza o mundo por desertos, mares e florestas, lutando contra aqueles que atravessam seu caminho em busca de grandes achados arqueológicos, ou na recuperação desses, sendo ao mesmo tempo, herói e professor universitário. O arquétipo da imagem de arqueólogo-herói criado pela indústria hollywoodiana e difundido internacionalmente é, com certeza, o oposto da realidade enfrentada de fato pelos arqueólogos atualmente... (PINNOW, s./d., p. 17).
Sobre o papel da autoimagem e as influências dos contextos e objetos constitutivos do universo vivencial nas escolhas e opções individuais, destaca-se que: [...] (Foucault) acompanhará as suas análises a percepção de que estas relações entre sujeito e objeto constantemente se modificam, evoluem, dentro dos discursos científicos e jogos de saber, que constituem, por exemplo, as próprias ciências humanas. (PETERS; BESLEY, 2008, p. 16-17 apud GIACOMONI; VARGAS, 2010, p. 119, grifos nossos).
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Experiência, práxis laboral e relações trabalhistas Na trajetória de JMS, ficaram bastante claras duas questões complementares: por um lado, ficou demonstrada a “eficiência” do padrão tradicional de escola e de estabelecimentos empresariais, concebidos como formadores de mão-de-obra para o “mercado de trabalho”, ao proporcionar um currículo teórico-prático, direcionado e compatível com a inserção de jovens trabalhadores (neste caso, nos espaços comerciais e de agências de navegação) e a assunção progressiva de habilidades e responsabilidades crescentes nestes setores. Diversas habilidades desenvolvidas por JMS durante a sua formação de nível médio (domínio das línguas portuguesa e inglesa, datilografia, estatística gráfica, informática e programação, além do desenho arquitetônico) iriam se somar ao aprendizado das técnicas financeiras e de registro contábil (nos períodos iniciais do curso de graduação em Contabilidade). Este conjunto lhe proporcionaria o ingresso no mundo do trabalho, em estabelecimentos comerciais e, especialmente, em uma série de agências de navegação. Desde outro ângulo, pode-se constatar a história da sucessão de diversas pequenas empresas familiares, por novos atores sociais, representantes locais de grandes trustes internacionais; no caso em análise, ao final da década de 1970, já eram claras as evidências de colapso e insolvência de muitas daquelas pequenas empresas familiares de navegação, e logo as remanescentes foram sendo rapidamente absorvidas pelo poder político-econômico de grandes grupos externos, criando um cartel do setor de navegação e comércio exterior, as novas “Rainhas do Mar”.
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Referências/influências acadêmicas No caso de JMS, além do aprendizado cotidiano com o conjunto de professores e colegas, pode-se constatar duas grandes referências/influências ao longo do seu processo formativo acadêmico, que iriam determinar a aderência às respectivas áreas de estudo/atuação: a) Professora Beatriz Valladão Thiessen, coordenadora do LEPAN e do curso de Arqueologia da FURG, especialista em Arqueologia Industrial; b) Professora Marcia Naomi Kuniochi, especialista em Memória e Identidade; orientadora do projeto de Trabalho de Conclusão de Curso de JMS, sobre os naufrágios no Estuário da Lagoa dos Patos, RS. As delimitações das áreas de pesquisas, destas autoras, e, especificamente dos seus respectivos temas preponderantes, (a) Patrimônio Cultural e Arqueológico em Zonas Portuárias e (b) Memória e Identidade na Cidade Moderna, são convergentes à identidade cultural e histórico familiar de JMS. Na sua síntese pessoal entre tais temas, os seus projetos convergiram para a Arqueologia do Capitalismo, onde também desenvolveu estudos de análise de vidros e cerâmicas. ... o ponto de partida deste trabalho é a ideia de que há uma correlação entre lugares, memórias, pessoas e grupos. Um lugar, de certo modo, é uma construção social que resulta no enraizamento de um ou mais indivíduos, geralmente motivada por dinâmicas sociais diversas num eixo espaço-temporal comum e, por isso, convertendo-se em elemento fundamental na construção de memórias e narrativas que emolduram o passado, o presente e o futuro. (MOTTA, 2010, p. 209).
Sobre a pertinência e relevância do tema proposto para seu TCC na Arqueologia, relativo aos naufrágios de embarcações na região, destaca-se que, ... no período de 1775/2005, a barra do Rio Grande apareceu com o maior número de indicações de acidentes marítimos [do litoral RS] (61,6%), seguida dos segmentos Mostardas-Barra (12,0%); Verga-Chuí (8,2%) e Quintão-
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Mostardas (7,8%); Barra-Verga (7,5%) e Torres-Quintão (2,9%) (...). No primeiro período, até 1911, os encalhes nos bancos arenosos submersos foram a maior causa de acidentes na barra da Lagoa dos Patos. A formação de bancos a cerca de 4 km da SSE dos pontais (Bicalho et al., 1883), com posição e profundidade variáveis, impediam a navegação franca através da barra. Isto constituía grande preocupação aos pilotos da época, particularmente no contexto da navegação mercantil do séc. XIX (Vereker, 1860). Em condições de tempo muito ruins (...), as embarcações que demandavam o porto do Rio Grande eram muitas vezes obrigadas a esperar do lado de fora, até que fosse assegurada sua transposição em direção aos canais de acesso ao porto (Pimentel, 1944). Deste modo, veleiros e vapores mercantes, provenientes de todas as partes do mundo em demanda ao porto de Rio Grande, no séc. XIX e princípio do séc. XX, tornavam-se perigosamente susceptíveis às condições meteorológicas adversas, sem baías abrigadas ou outra alternativa em condições de tempo e mar adversas. (TORRES, 2005, p. 41-43).
Aportes para a Formação de Professores/Pesquisadores em Ciências Entendemos que a formação de professores/pesquisadores em Ciências representa um ideário que, à semelhança dos postulados de Foucault, se inscreve no processo de constituição da análise arqueológica e da história das ideias: ... a arqueologia busca definir não os pensamentos, as representações, as imagens, os temas, as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos discursos, mas os próprios discursos, enquanto práticas que obedecem a regras; A arqueologia não procura encontrar a transição contínua e insensível que liga, em declive suave, os discursos ao que os precede, envolve ou segue. Não espreita o momento em que, a partir do que ainda não eram, tornaram-se o que são; nem tampouco o momento em que, desfazendo a solidez de sua figura, vão perder, pouco a pouco, sua identidade; A arqueologia não é ordenada pela figura soberana da obra; não busca compreender o momento em que esta se destacou do horizonte anônimo. Não quer reencontrar
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o ponto enigmático em que o individual e o social se invertem um no outro (...); Finalmente, a arqueologia não procura reconstituir o que pôde ser pensado, desejado, visado, experimentado, almejado pelos homens no próprio instante em que proferiam o discurso. (FOUCAULT, 2008, p. 157-158).
Sobre as implicações do fazer Ciência, do seu sentido de Pertencimento, Identidade Cultural e Responsabilidade Sociopolítica, que se espera dos professores/pesquisadores de Ciências, ouçamos as sábias palavras de um arqueólogo Latino-Americano, desde el Sur: ... entonces el concepto cultura sí nos ayudaba a entender las diferencias, cuanto el concepto de historia, nos permitió entender las generalidades, las cosas comunes. Y así fue como de una u otra manera fuimos caminando hasta la construcción de un tipo de arqueología que no es antropológica, a pesar de que todos éramos antropólogos, y sí histórica. Una arqueología donde se construyen los procesos de organización de la sociedad a partir de las relaciones sociales que en ella se estableció, y no algo en la cual hubo acuerdos de distinta naturaleza. Tenemos compromisos categoriales con una manera de ser religioso; una manera de comer; con una manera de vestirnos, etc. Y creo que hacemos cosas culturalmente diferentes. (LUMBRERAS, 2019, p. 491-492).
Neste sentido, a construção de miniaturas de embarcações, contidas no interior de garrafas de vidro (das quais JMS era admirador e adepto), têm muito a nos ensinar sobre a formação de professores/pesquisadores em Arqueologia (e Ciências, de modo mais amplo): [...] aprendí el arte de meter barcos dentro de botellas de un viejo capitán de barco escoces, cuando yo era un muchacho. Con el incontrolado entusiasmo de esa edad, hice tres modelos, que acabaron en desastre, pués más bien parecían diferentes etapas de la destrucción de la goleta Hesperus (...). La habilidad se adquiere a base de decepciones, frustraciones y una infinita paciencia para superarlas. La artesanía y el cuidado, la disposición a tomar riesgos y experimentar, y la seguridad con el ojo y la mano son
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esenciales para lograr un modelo de primera clase. No hay atajos ni soluciones aseguradas. En un libro sobre antigüedades victorianas, el autor que describía los barcos dentro de botellas como una curiosidad ligera para la diversión dominical de las damas y niños pequeños, estaba bastante equivocado; eran, y siguen siendo, objetos de colección para expertos y amantes de los barcos. (BERCHEM, 1994, p. V-VI).
Neste ensaio, ainda mais elucidativa foi a constatação da estreita correlação entre os processos formativos com a abordagem Decolonial, Pós-Colonial e/ou Transnacional, pois que, atuando profissionalmente nas empresas de navegação, JMS submerge no universo de contradições de tais espaços, constituídos como pontes avançadas do capitalismo mundial sobre os territórios periféricos a serem continuamente explorados. As cidades e regiões portuárias são emblemáticas destas contradições, pois, que vivem à serviço dos piratas e mercenários que dominam o mercado internacional, e para eles agenciam os seus préstimos. [...] a burguesia, como classe, está condenada, quer se queira, quer não, a ser responsável por toda a barbárie da História, as torturas da Idade Média e a Inquisição, a razão de Estado e o belicismo, o racismo e os esclavagismo, em suma, tudo contra o que protestou em termos inolvidáveis, no tempo em que, classe ao ataque, encarnava o progresso humano. Os moralistas não podem impedi-lo. Há uma lei de desumanização progressiva, em virtude da qual, de futuro não haverá, não pode haver agora, senão a violência, a corrupção e a barbárie na ordem do dia da burguesia. (CÉSAIRE, 1978, p. 56).
Nas imbricações entre o capital privado e a formação acadêmica, as muitas “parcerias” que viabilizam os saberes e fazeres de grande parte de professores/pesquisadores de Ciências, também encontraremos amplos vestígios “arqueológicos” da cooptação estrutural
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da maior parte das instituições de ensino (ditas) públicas, com interesses outros, muito distantes de suas respectivas comunidades, mas bem mais próximos e convergentes àqueles dos seus “representantes” elitizados. Neste sentido, vale relembrar que: [...] descolonizar as estruturas de conhecimento da universidade ocidental vai requerer, entre outras coisas: Reconhecimento do provincialismo e do racismo/sexismo epistêmico que constituem a estrutura fundamental resultante de um genocídio/epistemicídio implementado pelo projeto colonial e patriarcal do século XVI; Rompimento com o universalismo onde um (‘uni’) decide pelos outros, a saber, a epistemologia ocidental; Encaminhamento da diversidade epistêmica para o cânone do pensamento, criando o pluralismo de sentidos e conceitos, onde a conversação interepistêmica, entre muitas tradições epistemológicas, produz novas redefinições para velhos conceitos e cria novos conceitos plurais com ‘muitos decidindo por muitos’ (pluri-verso), em lugar de ‘um definir pelos outros’ (uni-verso). Se as universidades ocidentalizadas assumirem estes três pontos programáticos, deixarão de ser ocidentalizadas e uni-versais: essas se transformarão, de uni-versidades ocidentais, em pluri-versidades decoloniais. Se os projetos modernos eurocêntricos, racistas e sexistas de Kant e Humboldt tornaram-se a fundação epistemológica delas desde o século XVIII, como resultado de 300 anos de genocídio/epistemicídio no mundo, a transmodernidade de Enrique Dussel constitui a nova fundação epistêmica para a pluri-versidade decolonial, cuja produção de conhecimento deve estar a serviço de um mundo, para além do ‘sistema-mundo capitalista, patriarcal, eurocêntrico, cristão, moderno e colonialista.’ (GROSFOGUEL, 2016, p. 46).
Por fim, entendemos que esta digressão possa se constituir em contribuição ao processo analítico sobre características e contradições inerentes aos processos de formação e qualificação de professores/pesquisadores de Ciências (a partir do exemplo, da Arqueologia). Perceber, assumir e discutir tais contradições é o primeiro passo para uma efetiva trans(form)ação dos mesmos, de modo que nossa práxis seja realmente um espelho e estímulo dos ideários propagados e possa atuar na reconstrução cotidiana do mundo.
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POSFÁCIO
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Chegamos na academia, enfim… Parece estranho, mas chegamos após vários séculos de inexistência programada. Superamos brancos muros, altos, portões e portais de arquitetura que mais intimidam do que convidam. Nossas cantorias, sussurros e vozes, sopradas por nossos ancestrais, finalmente passaram a entremear os textos e códices sagrados da “santa” academia. As profecias das avós e sonhos de gerações começaram a pingar nas infiltrações das paredes coloniais. É uma chegada tardia que busca romper com a monocultura, com sua plantation de história única, com a negação das outras “palavrasmundo” e com a violência silenciadora da guerra de mundos que impõe um cosmicídio. Uma guerra que perdemos e continuamos a perder, mas que podemos ganhar se compreendermos que o “futuro é ancestral” e que a flecha atirada no tempo atravessa os corpos que hoje se fazem semilleros de outros mundos. Outros habitares, outres corpes, outras palavras, léxicos, gramáticas, linguagens, tempos e cosmovisões de existências sintonizadas com o Cosmos. Mundos que pulsam e reverberam como os tambores dos ogans, as folhas cantadas e a fumaça da erva sagrada soprada no cachimbo. No petyngua do pajé se anunciam as vozes que se tecem na polifonia do “grito da terra” e que seguram o céu, onde paraquedas coloridos nos fazem flutuar seguindo o curso dos rios e que nos permitem contemplar a Terra. As águas, montanhas e as nuvens, como parentes, anunciam a outridade radical. A Terra Viva, em estado de Abya Yala, fértil e grávida de gente, fala conosco como sempre nos ensinaram nossos bisavós sem nome. Agora, é irreversível e não dá mais… estamos aí, existimos, terrexistimos!
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O som do leguero, dos atabaques, das congas, quenas e maracás ensurdecem a sinfonia do compasso quadrado e ditam uma paisagem sonora que instaura a síncope como elemento de luta. A pausa e o silêncio eloquente que gingam e compõem o ritmo do coração da terra. Ginga e síncope andam juntas no desfazimento das injustiças coloniais presentes em corpes rebeldes. O momento e o gesto anunciam a coreografia da luta no corpo pintado, incorporado como o Dis-curso dos que não se rendem; dos que permanecem de pé; dos que (re)existem com seu tumbao al caminar, dos que celebram o kuarup, dos que jogam com o martelo, o rabo de arraia e a tesoura, dos que sobem e descem as ladeiras dos morros; das favelas; dos que serpenteiam em canoas pantaneiras; dos que invertem a ordem do “status quo”; dos que sambam nas avenidas e na cara da sociedade; dos que, com seus corpes subversives e insubmisses, insurgem na indisciplina criativa e provocativa da rebelião. Corpos rebeldes denunciam “museus de grandes novidades” e anunciam que o “tempo não para”. Método, cruz e credo, preconceito, tortura, subjugação, pilhagem e condenação, enfrentarão a força da vitalidade da Terra e do gingado de seus povos. Cada esquina, roda de jongo, capoeira, samba, pajelança, grito de guerra, será testemunha do erguer do povo antigo, da realização das profecias, do encontro do Condor com Quetzalcoatl, do Yvymareí da terra sem males e o céu se erguerá outra vez. Necropolíticas da ordem, nunca mais....dizem os/as esfarrapados/as do mundo. Queremos entrar nessa tal universidade com nossos corpos, turbantes e cocares. Nossas lendas e conhecimentos tem de estar ali. Reivindicamos outridade. Desse modo, a universidade transformar-se-á em “pluriversalidade” colorida. Com corpos livres de correntes e quebrantos, disponíveis para o amor e a solidariedade.
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Resistir, (re)Existir e (re)Inventar passa por esse des-caminhar, desaprender e reaprender. As linhas tecidas nesse lindo projeto de livro anunciam o grande encantamento. Somos agentes dessa travessia e já colocamos o pé entre a porta da casa grande. A periferia é o centro que agora mira ao Sul. A bússola que aponta ao m-orte não nos serve mais. Nos guiamos no magnetismo da vida, pelo direito a Ser, Estar e Existir, usufruir e fluir com a vida, pela vida e em defesa da vida em “terrexistência”! Façam da gira decolonial a grande festa das interculturalidades. É disso que se trata este livro… Por: Celso Sánchez (ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5634-023X) Poeta. Cantor. Compositor. Membro da banda musical Dysrhythmia in Blues. Artista Plástico. Presidente da Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (ABRAPEC). Líder do Grupo de Estudos em Educação Ambiental desde el Sur (GEASur). Professor-pesquisador da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Membro da Rede Internacional de Estudos Decoloniais na Educação Científica e Tecnológica (RIEDECT). Conselheiro do Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena do Estado do Rio de Janeiro. Diretor da ADUNIRIO, seção sindical ANDES.
Bruno A. P. Monteiro (ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8933-5816) Compositor. Membro da banda musical Dysrhythmia in Blues. Professor-pesquisador do PPG em Educação em Ciências e Saúde, do NUTES, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Líder do Grupo de Pesquisa em Linguagens no Ensino de Ciências (LINEC-UFRJ). Membro da Rede Internacional de Estudos Decoloniais na Educação Científica e Tecnológica (RIEDECT).