Resistir, (Re)existir e Reinventar II - Capítulo 15

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DOI: doi.org/10.29327/565971.1-15

A Arqueologia do arqueólogo: estudo da constituição do sujeito e práxis do profissional The Archeology of the archeologist: study of the constitution of the subject and practice of the professional Washington Ferreira1 Karine Sanchez Ferreira2 1 Oceanógrafo, Mestre em Oceanografia, Doutor em Educação Ambiental. Laboratório de Gerenciamento Costeiro, Instituto de Oceanografia, FURG – Universidade Federal de Rio Grande. Rio Grande, RS, Brasil. E-mail: chingksw@gmail.com / ORCID: http://orcid.org/0000-0003-3377-024X 2 Arteducadora, Mestre e Doutora em Educação Ambiental. Professora da Rede Pública Municipal, Prefeitura de Rio Grande. Rio Grande, RS, Brasil. E-mail: kkasanchez@yahoo.com.br / ORCID: http://orcid.org/0000.0001.5919.6894

Resumo: Neste ensaio, sobre processos formativos e práticas pedagógicas de pesquisadores/educadores em ciências, buscamos demonstrar a possibilidade e pertinência da aproximação entre o instrumental reconstitutivo de processos e atividades humanas (através da Arqueologia Histórica) e a história dos sujeitos (através da História do Tempo Presente), utilizando como Estudo de Caso a análise da trajetória pessoal e profissional de nosso sujeito de pesquisa, que conduziram à sua opção profissional e imersão na formação acadêmica em Arqueologia. Para tal, desenvolvemos uma abordagem etnográfica sobre as influências do seu “universo vivencial”, ou pertencimento às duas categorias profissionais/culturais complementares (marítimo/portuário e arqueólogo), que contribuíram, decisivamente, para esse processo formativo. Paralelamente, procedemos à “prospecção” e “escavação”, entre as múltiplas camadas de informações dos vestígios materiais de seu acervo pessoal, diretamente associado ao tema desta pesquisa. Posteriormente, procedemos à análise de correlações entre o conjunto de cenários e circunstâncias formativas, com aqueles vestígios materiais e simbólicos, reveladores da afetividade/efetividade do pertencimento do sujeito de pesquisa às referidas categorias. A partir destas correlações, inferimos a adaptabilidade de tais procedimentos para análise de espaços/processos formativos de professores/pesquisadores em Ciências. Palavras-chaves: Arqueologia. Constituição do Sujeito. Processos Formativos.


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Introdução

N

ESTE conjunto de análises, práticas e reflexões sobre os processos formativos de pesquisadores/professores em Ciências, propomos nossa integração ao tema coletivo, através da discussão de um locus profissional específico nesta grande área - a Arqueologia -, mas que entendemos ser pertinente para o quadro geral de situações vivenciadas por estudantes e profissionais em Ciências.

Procedimentos Metodológicos Para esta aproximação, utilizamos como Estudo de Caso (YIN, 2005), a análise da trajetória pessoal e profissional de nosso Sujeito de Pesquisa (Jeferson Martins Sanchez, doravante JMS)107, que conduziram à sua imersão na formação acadêmica em Arqueologia; a elegibilidade do Sujeito de Pesquisa deriva de nossa proximidade pessoal/profissional com o mesmo108, que nos proporcionou a oportunidade para a contínua Observação Participante (MALINOWSKI, 1976) sobre o seu “universo vivencial” e pertencimento à determinada identidade cultural. Paralelamente, procedemos à “prospecção” e “escavação” entre as múltiplas “camadas” de informações do seu acervo pessoal, associado ao tema desta pesquisa, sistematizado em 03 categorias: a) Biblioteca de referência: livros e capítulos de livros; artigos técnicos e científicos; estudos monográficos; b) Referenciais do Curso de Arqueologia da FURG: disciplinas cursadas; c) Objetos pessoais. Destes sinérgicos contextos e vestígios, buscamos resgatar elementos descritores de três situações complementares: a) Processos Formativos Pré-Arqueologia; b) Atuação Profissional; c) Processos Formativos na Jeferson Martins Sanchez (nascido em Setembro/1965 e falecido em Junho/2020), atuou profissionalmente junto a diversas agências de navegação, e foi estudante de graduação em Arqueologia, pela FURG – Universidade Federal de Rio Grande (Rio Grande, RS). 108 Os autores ratificam seus vínculos familiares (Karine Sanchez, como filha de JMS) e profissionais (Washington Ferreira, como co-orientador de pesquisa do mesmo). 107


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Arqueologia. Posteriormente, procedemos à análise de correlações entre o conjunto de tais cenários, circunstâncias e vestígios109. Nesta integração, logramos demonstrar a efetiva aproximação e fluidez entre a Arqueologia Histórica e a História do Tempo Presente, de modo análogo à proximidade e interdependência entre a constituição do sujeito e a sua práxis profissional, como elementos pertinentes para a investigação dos processos formativos de educadores/pesquisadores em Ciências.

Resultados e Discussão O sujeito de pesquisa Jeferson Martins Sanchez (JMS), terceiro de cinco filhos, nasceu em 19/Setembro/1965, na cidade de Rio Grande, RS. No seu universo familiar, os vínculos com o ensino e pesquisa, e a atuação profissional da navegação e agenciamento marítimo, foram recorrentes: sua mãe, Janini Marins Sanchez, foi professora-alfabetizadora da rede de ensino estadual e orientadora de aprendizagem. Seu pai, Mário Cardoso Sanchez, obteve na juventude, o Certificado de Segundo Condutor Motorista da Marinha Mercante, habilitação para condução de embarcações (embora não tenha exercido a atividade, mas tenha atuado como funcionário da Refinaria de Petróleo Ipiranga). Sua avó materna, Nair Martins de Martins, foi proprietária e administradora de uma empresa (Martins e Martins), prestadora de serviços de lanchas no Porto de Rio Grande. Desde tenra idade, JMS compartilhou com o pai as pescarias (esportivas), conheceu os serviços marítimos (Fig. 1), frequentou a praia e os naufrágios da região (Fig. 2). Sobre os profundos laços de identidade cultural marítima e do ethos da cidade, e região pesqueira/portuária/industrial de Rio Grande (RS), a mesma é reconhecida pelo epíteto de A Noiva do Mar; esta característica será determinante, também, nos conflitos socioambientais, com as novas Rainhas do Mar, o cartel de grandes empresas de navegação e comércio exterior, que monopolizaram o contexto de estudo. 109

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Figura 1. lancha da empresa Martins e Martins (sobrescrita pela mãe de JMS, Janini Marins Sanchez, sd)

Fonte: acervo pessoal Jeferson Martins Sanchez Figura 2. JNM, naufrágio do navio Altair (praia do Cassino, Rio Grande, RS: Janeiro/1977)

Fonte: acervo pessoal Jeferson Martins Sanchez


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As relações de JMS com o mundo “antigo” e com os temas relacionados à navegação foram intensas e estreitas. Fez coleções diversas ao longo da vida e tentava, dentro de suas habilidades, restaurar tais peças, quando as mesmas demandassem estes cuidados; para isto, montou um pequeno estúdio/oficina com uma bancada de ferramentas. Dava muito valor, e possuía imensa curiosidade, em relação aos seus ancestrais, interessando-se em construir árvores genealógicas, buscar documentos diversos e resgatar fotos e vídeos antigos de família. De toda a família, sempre foi o mais cuidadoso em guardar os mais variados objetos e papéis de valor histórico e afetivo. Como conhecedor da história da sua cidade, JMS contava com orgulho como seu avô colaborou na construção do moinho da Praça Tamandaré, e como a matriarca do clã marinheiro auxiliou a financiar a construção da Igreja do Salvador (católica, de confissão Anglicana; neste templo, diversas gerações de familiares foram batizados e frequentaram seus cultos habituais), além de muitas outras histórias interessantes sobre a imigração de familiares. Na adolescência, aprendeu a operar um laboratório fotográfico analógico, dominando técnicas de revelação e ampliação, produzindo imagens da família e mosaicos temporais (reproduções de fotos que marcam o tempo: mesmas pessoas, mesmo cenário, com anos de diferença); também organizou uma pequena coleção de câmeras fotográficas e acessórios. Possuía forte ligação com a música, como ouvinte e como instrumentista, papel que lhe dava muito prazer e agradava quem pode ouvir; chegou também a construir alguns instrumentos. Sobre as relações de trabalho junto às empresas de navegação e comércio exterior, nas novas “Rainhas do Mar”, contrariamente às antigas empresas familiares, seus “colaboradores” com problemas de saúde significam tão somente isso, problemas; e problemas se eliminam (na lógica do capital interacional), com demissão e substituição. JMS passou por esse processo e lutou na justiça, para ter os seus problemas de saúde reconhecidos como decorrentes das condições inadequadas de

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trabalho. Quando, finalmente, teve êxito, a sinergia de tais problemas já estava muito agravada, e o seu tempo de vida fora muito abreviado. Apesar dos problemas, JMS sempre foi um pesquisador, especialmente daquilo que lhe despertava interesse e curiosidade, especialmente a história da humanidade. Deixou objetos de forte valor afetivo/familiar e de constituições originais, além de muitos livros, discos, ferramentas, documentos e lembranças diversas. Ficaram muitas histórias contadas, lembradas (e outras, não lembradas), nos diferentes círculos sociais onde pertenceu. Na pequena janela de oportunidade disponível, quando percebeu que não mais poderia retornar às atividades das agências de navegação e comércio exterior, mas ainda dispunha de um pouco de vitalidade e muita disponibilidade para aprendizagem, JMS decidiu-se a resgatar o interesse, de longa data, pelo estudo do passado e, especialmente, da própria cultura náutica, da qual toda sua história familiar e pessoal é parte constitutiva. Ele “mergulhou”, como pode, com idas e vindas, trancamentos e ausências, mas com o “eterno retorno” aquele espaço/tempo no qual se sentia realizado, a Arqueologia. A biblioteca de referência A coleção de livros e capítulos de livros de JMS, reflete uma diversidade de interesses: Sociologia (01), Antropologia (05), História Geral (17), Arqueologia Teórica/Técnica (09), Arqueologia Pré-Histórica (06), Mistérios (04), Fotografia (02), Filosofia da Ciência (01), Patrimônio (01), Navegação (01). Arqueologia do cotidiano: histórias de vida nos objetos pessoais Esta abordagem, embora distante dos estereótipos da atuação dos arqueólogos, encontra eco na sua práxis habitual, e nas releituras que a literatura dela propõe:


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... foi então que olhei bem o embrulho. A princípio, apenas suspeitei. E ficaria na suspeita, se não houvesse certeza. Uma das faces estava subscritada, meu nome em letras grandes e a informação logo embaixo, sublinhada pelo traço inconfundível: “Para o jornalista Carlos Heitor Cony. Em mão”. Era a letra de meu pai. A letra e o modo. Tudo no embrulho: revelava, inteiro, total. Só ele faria aquelas dobras no papel, só ele daria aquele nó no barbante ordinário, acrescentando a função, que também fora a sua (...). Apenas uma coisa não fazia sentido. Estávamos – como já disse – em Novembro de 1994. E o pai morrera, aos noventa e um anos, no dia 14 de Janeiro de 1985. (CONY, 1995, p. 10-11).

Sobre tal abordagem, os diálogos/discursos mais inusitados podem se revelar os mais precisos, por indicarem os conceitos, metodologias e interpretações da disciplina: [...] encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam [...]. - Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga. - Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte. - Você já está analisando o meu lixo! - Não posso negar que o seu lixo me interessou [...]. - Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social [...] (VERÍSSIMO, 2002, p, 2).

Os objetos pessoais ... se quisermos contar a história do mundo inteiro, uma história que não favoreça indevidamente uma parte da humanidade, não podemos fazê-lo usando apenas textos, pois, durante a maior parte do tempo, só uma fração do mundo teve textos, enquanto a maioria das sociedades não teve (...). Com os objetos, temos, é claro, estruturas de perícia — arqueológica, científica, antropológica — que nos permitem fazer perguntas vitais. No entanto, precisamos adicionar a isso um considerável esforço de

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imaginação, devolvendo o artefato à sua antiga vida, envolvendo-nos com ele tão generosa e poeticamente quanto pudermos, na esperança de alcançar os vislumbres de compreensão que ele possa nos oferecer. (MacGREGOR, s./d., p. 17).

Neste conjunto, agrupamos vestígios materiais de JMS, onde se destacam aqueles reveladores da afetividade e seus vínculos familiares, os espaços/processos formativos e do seu interesse em relação às coleções e temas históricos e arqueológicos (Quadro 1). Quadro 1. Acervo de objetos pessoais de Jeferson Martins Sanchez Categorias Familiares

Desenho arquitetônico Fotografia/ótica

Coleções

Jogos

Objetos Mecha de cabelo feminino (de uma de suas filhas?). Rubi engastado em estrutura metálica (broche feminino?). Medalhas religiosas. Figas em miniatura. Relógio de bolso Doment Quartz. Estojo para lápis e borracha, em madeira. Estojo plástico para higiene Johnson’s. Louças da avó, em porcelana com borda em ouro, Schmidt. Soldadinho de chumbo, pintado (réplica inglesa, do Uruguai). Compasso Trident para desenho. Compacta Yashica MG3 (objetiva fixa, 34 mm). Reflex TLR Rolleiflex (objetivas Carl Zeiss NR 1:3, 75 mm). Reflex SLR Minolta AL (objetiva Minolta Rokkor 1:2, 45mm). Projetor de slides Minolta Mini 35 (objetiva 2.5, 75 mm). Microscópio ótico e diversas objetivas. Cachimbos; chaves metálicas; moedas e cédulas de dinheiro, antigas e/ou estrangeiras; selos; latas de chá e biscoitos; bolinhas de gude, em vidro; cartuchos de munição (tipo “espalha-chumbo”, para caça; para revólver e para fuzil); relógios-despertadores. Uma lata de “objetos mágicos” (kit de baralhos e outros instrumentos de ilusão); jogo “pega-varetas”; jogo “1914” (estratégia militar/conquista), com manual original e fichas.


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Identidade cultural marítima/portuária

Flâmula do Clube de Escoteiros do Mar, de 1996. Apito metálico de colete salva-vidas. Carimbos de empresas de navegação e agenciamento. Estojo da Associação da Praticagem da Barra. Bússola manual de geógrafo. Cilindro de madeira, vidro e bronze, de antiga bússola de navio. Cartas náuticas. Miniatura de veleiro, encapsulada em uma garrafa de vidro. Caramujo marinho Adelomelon beck Antigos, restaurados ou Fogareiro de bronze, a querosene Primus. em processo Maçarico de bronze, a querosene. Ferro de passar roupa a carvão (restaurado). Espingarda (restaurada por terceiros). Máscara contra gases da Segunda Guerra Mundial. Arqueologia Ponta de flecha em pedra, com cabo em madeira, conectados por fibra vegetal (réplica; procedente de Cuba). Fonte: elaboração dos autores

Processos formativos Pré-Arqueologia Para elencar parte das influências, conhecimentos e habilidades desenvolvidos por JMS, de modo anterior à sua “imersão” no campo formal da Arqueologia, mas constitutivos de sua formação, segue-se um extrato de seu currículo neste período (Quadro 2). Quadro 2. Extrato de Curriculum vitae de Jeferson Martins Sanchez Nível Ensino Médio

Especificidade Técnico em Agropecuária

Desenho Arquitetônico Ensino Superior Extensão Aperfeiçoamento

Bacharelado em Ciências Contábeis (incompleto) Datilografia Programação Basic I, II Operação de Microcomputador PC

Instituição / Local Conjunto Agrotécnico Visconde da Graça – CAVG (Pelotas, RS) Colégio Estadual Lemos Júnior (Rio Grande, RS) FURG – Universidade Federal de Rio Grande SENAC (RG) WB Informática (RG) SENAC (RG)

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Lotus básico e avançado DBase III Plus básico e avançado Inglês, nível 3 Sistema de Exportações Sistema de Comércio Exterior Workshop Motivação em Mudanças Organizacionais Shipping, módulos I – VI

Participação em Eventos Técnicos e Científicos

SENAC (RG; agosto-setembro/1992) SENAC (RG) CCAA (RG, Julho/1994) Empresa de Navegação Aliança (Rio de Janeiro, RJ) Câmara do Comércio (RG) Grupo Wilson Sons (RG, 02/Junho/2001) Grupo Wilson Sons (RG, 08/Agosto-21/Novembro/2001) FURG – Universidade Federal de Rio Grande

X Jornada de Estudos Políticos, Econômicos, Administrativos e Contábeis XII Jornada de Estudos Políticos, FURG – Universidade FeEconômicos, Administrativos e deral de Rio Grande Contábeis Fonte: elaboração dos autores

Atuação profissional JMS atuou profissionalmente, entre 1985 e 2005, nas atividades de escritório e/ou cais, em diversas empresas do comércio, e especialmente, de agências de navegação, despachos aduaneiros e agenciamento de cargas marítimas110, em Rio Grande, RS (Quadro 3).

Foram localizadas duas solicitações (Maio/1997): uma à Justiça Militar (de expedição de Certidão de Situação Militar), e outra, de Alvará de Folha Corrida (ao Poder Judiciário RS, Diretoria do Foro RG), ambas como provas junto à Delegacia da Receita Federal, para seu ingresso no Registro de Ajudantes de Despacho Aduaneiro. 110


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Quadro 3. Atividades profissionais de Jeferson Martins Sanchez Empresa Comércio de Bijout e Bazar Clínica de Doenças Renais RG Ltda

Atividade Comércio

Função Balconista

Serviços de saúde

Consórcio Nasser S.C. Ltda.

Administradora de consórcios Agência de navegação

Controle de estoque, arquivista, secretário Vendedor externo, treinamento de vendedores Auxiliar de escritório, contas de custeio, caixa, importação e exportação Auxiliar de escritório, exportação

Sinarius Sul S.A. Navegação e Comércio / Aliança Agenciamentos Marítimos Ltda Federal Express Despachos Internacionais Ltda / J. Guerini Despachos Internacionais Ltda Wilson Sons Agência Marítima Ltda. Maersk Brasil (Brasmar) Ltda.

Despachos aduaneiros

Agência de Auxiliar de contas navegação de custeio AgenciaAssistente de domento de cumentação cargas Fonte: elaboração dos autores

Período 02/Maio/1985-30/ Junho/1985 02/Julho/1985-11/Outubro/1985 14/Outubro/198505/Maio/1986 11/Janeiro/1988 – 03/Julho/1995

01/fevereiro/199609/Maio/1997

16/Setembro/199724/Maio/2002 03/Junho/2002 – /2005.

Ao longo deste período, JMS desenvolveu e ampliou uma série de conhecimentos e práticas específicas, mas que habilitaram-no também na análise e processamento de informações, além da capacidade de compreensão sistêmica dos processos envolvidos, os quais viriam a ser muito importantes na etapa posterior de sua vida, com a “imersão” nos espaços e processos formais da Arqueologia.

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Processos formativos na Arqueologia O Curso de Bacharelado em Arqueologia da FURG No perfil profissional proposto para os futuros egressos do curso de Graduação (Bacharelado) em Arqueologia da FURG – Universidade Federal de Rio Grande, a instituição assim se posiciona: [...] o curso de Arqueologia tem como objetivo formar profissionais comprometidos com a produção do conhecimento e com a interdependência entre as diferentes áreas do saber, considerando a diversidade cultural como princípio básico (...). O arqueólogo está apto a desenvolver suas atividades em qualquer espaço que necessite de sua intervenção, prestando serviços técnicos e de consultoria especializada em qualquer instituição vinculada, direta ou indiretamente, à proteção, documentação, conservação, pesquisa e difusão do patrimônio material da humanidade. (FURG, 2020, p. 1).

Disciplinas cursadas na Arqueologia da FURG No período entre 2010 e 2016, JMS cursou as disciplinas exigidas do curso de Arqueologia da FURG (Quadro 4)111, restando apenas a entrega final e apresentação do Trabalho de Conclusão de Curso (projetos estes interrompidos por seus problemas de saúde).

Para detalhes da estrutura e disciplinas do curso de Arqueologia, ver o Quadro de Sequência Lógica (QSL) 098111. FURG - Universidade Federal de Rio Grande, sd. Disponível em: https://www.furg. br/graduacao/arqueologia (acesso em: 04/Julho/2020). 111


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Quadro 4. Disciplinas de Arqueologia, cursadas pelo Sujeito de Pesquisa Disciplinas Fundamentos de Antropologia Introdução à Arqueologia Introdução ao Estudo da Cultura Material História Antiga I Arqueologia do Mundo Antigo Filosofia da Ciência Teoria Antropológica I Geologia Básica para Arqueologia Arqueologia Pública Fundamentos de Estratigrafia Arqueológica Topografia I Bioarqueologia Arte e História Arqueologia do Capitalismo I Educação Patrimonial na Arqueologia ArqueoBotânica Metodologia da Pesquisa Arqueológica I Teoria Antropológica II EtnoHistória Fundamentos de ZooArqueologia Teorias da Arqueologia I Teorias da Arqueologia III Arqueologia do Capitalismo III Modernidade e Capitalismo História e Cultura AfroBrasileira Diversidade e Identidade(s) Brasileira(s) História Contemporânea Tecnologia das Louças, Vidros e Metais Formação da Sociedade Brasileira Língua Francesa Instrumental I Fonte: elaboração dos autores

Períodos 2010/01

2010/02

2010/02 - 2011/01 2011/01

2011/02

2012/02 2013/02 2015/02 2016/01 2016/02

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Participação em Eventos Técnicos e Científicos da Arqueologia Durante o Curso de Arqueologia, JMS interessou-se por artefatos e história antiga, escavações, resgate e recuperação; visitou as ruínas da fábrica Rheigantz, participou de escavação no sítio “Totó” Locus 4 (Praia do Laranjal, Pelotas, RS, Maio/2010), e na elaboração do projeto Sítio Arqueológico “Charqueada dos Carreiros” (LIPINSKI et al., 2011). Também participou de eventos relacionados: I Ciclo Sul-Americano de conferências de Arqueologia Pré-Histórica / II Semana Acadêmica de Arqueologia, Maio/2010; I Semana dos Povos Indígenas / II Seminário de acesso e permanência de estudantes indígenas, Outubro/2010; III Semana Acadêmica de Arqueologia – Arqueologia Pública; uma dívida social, Maio/2011); Ciclo de Palestras Arqueologia Subaquática e Navios Negreiros: Cotidiano e cultura material – Embarcações primitivas, Abril/2013; I Garatuja Arqueológica, Novembro/2015. Produção Acadêmica em Arqueologia do Sujeito de Pesquisa Depois de cursar a maior parte das disciplinas do bacharelado, JMS decidiu, no seu projeto de Trabalho de conclusão de Curso, recontar a transição entre a Arqueologia e a História dos naufrágios (Fig. 3) que habitam os vestígios materiais e o imaginário coletivo dos habitantes desta contraditória (porque humana) cidade e região pesqueira/portuária/industrial.


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Figura 3. Incêndio/naufrágio do navio Avante, no canal entre Rio Grande e São José do Norte, RS (s./d.)

Fonte: acervo pessoal Jeferson Martins Sanchez. ... as regiões mais densamente povoadas e industrializadas das diversas culturas humanas tendem a se concentrar nestas áreas estuarinas; por esta mesma razão, as áreas estuarinas em geral e o Estuário da Lagoa dos Patos, de modo particular, podem ser interpretadas como um potencial sítio arqueológico, pela inevitável ocorrência de séries de eventos de naufrágios de embarcações, associados aos padrões de circulação eólica e hídrica regional: em 1846, o Governo Imperial criou a Inspetoria da Praticagem da Barra, servida por práticos conhecedores das tradições antigas da barra e por grande número de marinheiros (...); mesmo com essa sinalização, eram frequentes o longo tempo de espera às condições propícias, tanto para a entrada, como para a saída dos navios, além de muitos naufrágios, embora tenha sido reduzida a ocorrência de tais sinistros (Kuniochi; Telles, 2012, p. 5, grifos nossos). (SANCHEZ; KUNIOCHI; FERREIRA, 2014, p. 4).

Neste processo, integram-se tanto a identidade cultural de JMS, o perfil pesqueiro/portuário/industrial da cidade e região, como a grande disponibilidade de fontes dos referidos vestígios arqueológicos e históricos de tais naufrágios, para o desenvolvimento das pesquisas empíricas propostas.

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Considerações Finais Os vestígios materiais contidos no acervo pessoal de JMS revelam um continuum temporal: a estratificação de diferentes “camadas de informação”, com elementos bem mais antigos (“arqueológicos”), sobrepostos por outros mais recentes (“históricos” e/ou contemporâneos), das quais provém um aporte de pistas reveladoras das imbricações entre a personalidade do sujeito e seu processo formativo. Arquétipos profissionais ... o modelo de Arqueólogo enraizado no senso comum se origina do personagem cinematográfico “Indiana Jones”. Com uma atuação arqueológica bastante ímpar, o personagem cruza o mundo por desertos, mares e florestas, lutando contra aqueles que atravessam seu caminho em busca de grandes achados arqueológicos, ou na recuperação desses, sendo ao mesmo tempo, herói e professor universitário. O arquétipo da imagem de arqueólogo-herói criado pela indústria hollywoodiana e difundido internacionalmente é, com certeza, o oposto da realidade enfrentada de fato pelos arqueólogos atualmente... (PINNOW, s./d., p. 17).

Sobre o papel da autoimagem e as influências dos contextos e objetos constitutivos do universo vivencial nas escolhas e opções individuais, destaca-se que: [...] (Foucault) acompanhará as suas análises a percepção de que estas relações entre sujeito e objeto constantemente se modificam, evoluem, dentro dos discursos científicos e jogos de saber, que constituem, por exemplo, as próprias ciências humanas. (PETERS; BESLEY, 2008, p. 16-17 apud GIACOMONI; VARGAS, 2010, p. 119, grifos nossos).


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Experiência, práxis laboral e relações trabalhistas Na trajetória de JMS, ficaram bastante claras duas questões complementares: por um lado, ficou demonstrada a “eficiência” do padrão tradicional de escola e de estabelecimentos empresariais, concebidos como formadores de mão-de-obra para o “mercado de trabalho”, ao proporcionar um currículo teórico-prático, direcionado e compatível com a inserção de jovens trabalhadores (neste caso, nos espaços comerciais e de agências de navegação) e a assunção progressiva de habilidades e responsabilidades crescentes nestes setores. Diversas habilidades desenvolvidas por JMS durante a sua formação de nível médio (domínio das línguas portuguesa e inglesa, datilografia, estatística gráfica, informática e programação, além do desenho arquitetônico) iriam se somar ao aprendizado das técnicas financeiras e de registro contábil (nos períodos iniciais do curso de graduação em Contabilidade). Este conjunto lhe proporcionaria o ingresso no mundo do trabalho, em estabelecimentos comerciais e, especialmente, em uma série de agências de navegação. Desde outro ângulo, pode-se constatar a história da sucessão de diversas pequenas empresas familiares, por novos atores sociais, representantes locais de grandes trustes internacionais; no caso em análise, ao final da década de 1970, já eram claras as evidências de colapso e insolvência de muitas daquelas pequenas empresas familiares de navegação, e logo as remanescentes foram sendo rapidamente absorvidas pelo poder político-econômico de grandes grupos externos, criando um cartel do setor de navegação e comércio exterior, as novas “Rainhas do Mar”.

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Referências/influências acadêmicas No caso de JMS, além do aprendizado cotidiano com o conjunto de professores e colegas, pode-se constatar duas grandes referências/influências ao longo do seu processo formativo acadêmico, que iriam determinar a aderência às respectivas áreas de estudo/atuação: a) Professora Beatriz Valladão Thiessen, coordenadora do LEPAN e do curso de Arqueologia da FURG, especialista em Arqueologia Industrial; b) Professora Marcia Naomi Kuniochi, especialista em Memória e Identidade; orientadora do projeto de Trabalho de Conclusão de Curso de JMS, sobre os naufrágios no Estuário da Lagoa dos Patos, RS. As delimitações das áreas de pesquisas, destas autoras, e, especificamente dos seus respectivos temas preponderantes, (a) Patrimônio Cultural e Arqueológico em Zonas Portuárias e (b) Memória e Identidade na Cidade Moderna, são convergentes à identidade cultural e histórico familiar de JMS. Na sua síntese pessoal entre tais temas, os seus projetos convergiram para a Arqueologia do Capitalismo, onde também desenvolveu estudos de análise de vidros e cerâmicas. ... o ponto de partida deste trabalho é a ideia de que há uma correlação entre lugares, memórias, pessoas e grupos. Um lugar, de certo modo, é uma construção social que resulta no enraizamento de um ou mais indivíduos, geralmente motivada por dinâmicas sociais diversas num eixo espaço-temporal comum e, por isso, convertendo-se em elemento fundamental na construção de memórias e narrativas que emolduram o passado, o presente e o futuro. (MOTTA, 2010, p. 209).

Sobre a pertinência e relevância do tema proposto para seu TCC na Arqueologia, relativo aos naufrágios de embarcações na região, destaca-se que, ... no período de 1775/2005, a barra do Rio Grande apareceu com o maior número de indicações de acidentes marítimos [do litoral RS] (61,6%), seguida dos segmentos Mostardas-Barra (12,0%); Verga-Chuí (8,2%) e Quintão-


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Mostardas (7,8%); Barra-Verga (7,5%) e Torres-Quintão (2,9%) (...). No primeiro período, até 1911, os encalhes nos bancos arenosos submersos foram a maior causa de acidentes na barra da Lagoa dos Patos. A formação de bancos a cerca de 4 km da SSE dos pontais (Bicalho et al., 1883), com posição e profundidade variáveis, impediam a navegação franca através da barra. Isto constituía grande preocupação aos pilotos da época, particularmente no contexto da navegação mercantil do séc. XIX (Vereker, 1860). Em condições de tempo muito ruins (...), as embarcações que demandavam o porto do Rio Grande eram muitas vezes obrigadas a esperar do lado de fora, até que fosse assegurada sua transposição em direção aos canais de acesso ao porto (Pimentel, 1944). Deste modo, veleiros e vapores mercantes, provenientes de todas as partes do mundo em demanda ao porto de Rio Grande, no séc. XIX e princípio do séc. XX, tornavam-se perigosamente susceptíveis às condições meteorológicas adversas, sem baías abrigadas ou outra alternativa em condições de tempo e mar adversas. (TORRES, 2005, p. 41-43).

Aportes para a Formação de Professores/Pesquisadores em Ciências Entendemos que a formação de professores/pesquisadores em Ciências representa um ideário que, à semelhança dos postulados de Foucault, se inscreve no processo de constituição da análise arqueológica e da história das ideias: ... a arqueologia busca definir não os pensamentos, as representações, as imagens, os temas, as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos discursos, mas os próprios discursos, enquanto práticas que obedecem a regras; A arqueologia não procura encontrar a transição contínua e insensível que liga, em declive suave, os discursos ao que os precede, envolve ou segue. Não espreita o momento em que, a partir do que ainda não eram, tornaram-se o que são; nem tampouco o momento em que, desfazendo a solidez de sua figura, vão perder, pouco a pouco, sua identidade; A arqueologia não é ordenada pela figura soberana da obra; não busca compreender o momento em que esta se destacou do horizonte anônimo. Não quer reencontrar

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o ponto enigmático em que o individual e o social se invertem um no outro (...); Finalmente, a arqueologia não procura reconstituir o que pôde ser pensado, desejado, visado, experimentado, almejado pelos homens no próprio instante em que proferiam o discurso. (FOUCAULT, 2008, p. 157-158).

Sobre as implicações do fazer Ciência, do seu sentido de Pertencimento, Identidade Cultural e Responsabilidade Sociopolítica, que se espera dos professores/pesquisadores de Ciências, ouçamos as sábias palavras de um arqueólogo Latino-Americano, desde el Sur: ... entonces el concepto cultura sí nos ayudaba a entender las diferencias, cuanto el concepto de historia, nos permitió entender las generalidades, las cosas comunes. Y así fue como de una u otra manera fuimos caminando hasta la construcción de un tipo de arqueología que no es antropológica, a pesar de que todos éramos antropólogos, y sí histórica. Una arqueología donde se construyen los procesos de organización de la sociedad a partir de las relaciones sociales que en ella se estableció, y no algo en la cual hubo acuerdos de distinta naturaleza. Tenemos compromisos categoriales con una manera de ser religioso; una manera de comer; con una manera de vestirnos, etc. Y creo que hacemos cosas culturalmente diferentes. (LUMBRERAS, 2019, p. 491-492).

Neste sentido, a construção de miniaturas de embarcações, contidas no interior de garrafas de vidro (das quais JMS era admirador e adepto), têm muito a nos ensinar sobre a formação de professores/pesquisadores em Arqueologia (e Ciências, de modo mais amplo): [...] aprendí el arte de meter barcos dentro de botellas de un viejo capitán de barco escoces, cuando yo era un muchacho. Con el incontrolado entusiasmo de esa edad, hice tres modelos, que acabaron en desastre, pués más bien parecían diferentes etapas de la destrucción de la goleta Hesperus (...). La habilidad se adquiere a base de decepciones, frustraciones y una infinita paciencia para superarlas. La artesanía y el cuidado, la disposición a tomar riesgos y experimentar, y la seguridad con el ojo y la mano son


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esenciales para lograr un modelo de primera clase. No hay atajos ni soluciones aseguradas. En un libro sobre antigüedades victorianas, el autor que describía los barcos dentro de botellas como una curiosidad ligera para la diversión dominical de las damas y niños pequeños, estaba bastante equivocado; eran, y siguen siendo, objetos de colección para expertos y amantes de los barcos. (BERCHEM, 1994, p. V-VI).

Neste ensaio, ainda mais elucidativa foi a constatação da estreita correlação entre os processos formativos com a abordagem Decolonial, Pós-Colonial e/ou Transnacional, pois que, atuando profissionalmente nas empresas de navegação, JMS submerge no universo de contradições de tais espaços, constituídos como pontes avançadas do capitalismo mundial sobre os territórios periféricos a serem continuamente explorados. As cidades e regiões portuárias são emblemáticas destas contradições, pois, que vivem à serviço dos piratas e mercenários que dominam o mercado internacional, e para eles agenciam os seus préstimos. [...] a burguesia, como classe, está condenada, quer se queira, quer não, a ser responsável por toda a barbárie da História, as torturas da Idade Média e a Inquisição, a razão de Estado e o belicismo, o racismo e os esclavagismo, em suma, tudo contra o que protestou em termos inolvidáveis, no tempo em que, classe ao ataque, encarnava o progresso humano. Os moralistas não podem impedi-lo. Há uma lei de desumanização progressiva, em virtude da qual, de futuro não haverá, não pode haver agora, senão a violência, a corrupção e a barbárie na ordem do dia da burguesia. (CÉSAIRE, 1978, p. 56).

Nas imbricações entre o capital privado e a formação acadêmica, as muitas “parcerias” que viabilizam os saberes e fazeres de grande parte de professores/pesquisadores de Ciências, também encontraremos amplos vestígios “arqueológicos” da cooptação estrutural

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da maior parte das instituições de ensino (ditas) públicas, com interesses outros, muito distantes de suas respectivas comunidades, mas bem mais próximos e convergentes àqueles dos seus “representantes” elitizados. Neste sentido, vale relembrar que: [...] descolonizar as estruturas de conhecimento da universidade ocidental vai requerer, entre outras coisas: Reconhecimento do provincialismo e do racismo/sexismo epistêmico que constituem a estrutura fundamental resultante de um genocídio/epistemicídio implementado pelo projeto colonial e patriarcal do século XVI; Rompimento com o universalismo onde um (‘uni’) decide pelos outros, a saber, a epistemologia ocidental; Encaminhamento da diversidade epistêmica para o cânone do pensamento, criando o pluralismo de sentidos e conceitos, onde a conversação interepistêmica, entre muitas tradições epistemológicas, produz novas redefinições para velhos conceitos e cria novos conceitos plurais com ‘muitos decidindo por muitos’ (pluri-verso), em lugar de ‘um definir pelos outros’ (uni-verso). Se as universidades ocidentalizadas assumirem estes três pontos programáticos, deixarão de ser ocidentalizadas e uni-versais: essas se transformarão, de uni-versidades ocidentais, em pluri-versidades decoloniais. Se os projetos modernos eurocêntricos, racistas e sexistas de Kant e Humboldt tornaram-se a fundação epistemológica delas desde o século XVIII, como resultado de 300 anos de genocídio/epistemicídio no mundo, a transmodernidade de Enrique Dussel constitui a nova fundação epistêmica para a pluri-versidade decolonial, cuja produção de conhecimento deve estar a serviço de um mundo, para além do ‘sistema-mundo capitalista, patriarcal, eurocêntrico, cristão, moderno e colonialista.’ (GROSFOGUEL, 2016, p. 46).

Por fim, entendemos que esta digressão possa se constituir em contribuição ao processo analítico sobre características e contradições inerentes aos processos de formação e qualificação de professores/pesquisadores de Ciências (a partir do exemplo, da Arqueologia). Perceber, assumir e discutir tais contradições é o primeiro passo para uma efetiva trans(form)ação dos mesmos, de modo que nossa práxis seja realmente um espelho e estímulo dos ideários propagados e possa atuar na reconstrução cotidiana do mundo.


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