Espaços livres públicos (e book)

Page 145

de tudo aquilo que é irreal, de tudo aquilo que é ficção, de tudo que é representação de uma realidade. Estava armado o espetáculo invertendo o real, transformando-o em produto: O espetáculo que inverte o real é efetivamente um produto. Ao mesmo tempo, a realidade vivida é materialmente invadida pela contemplação do espetáculo e retoma em si a ordem espetacular à qual adere de forma positiva. A realidade objetiva está presente dos dois lados. Assim estabelecida, cada noção só se fundamenta em sua passagem para o oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Essa alienação recíproca é a essência e a base da sociedade existente (DEBORD, 1994, p. 15).

Toda a cidade de Taperoá esteve direta ou indiretamente possuída pelo espetáculo, de modo que todas as horas desses seis meses estiveram ligadas, de alguma maneira, às gravações, fosse pela proibição de barulho imposta à cidade durante elas ou pelas festas promovidas pelos atores nas ruas, fosse pelas noites insones de seus moradores travestidos em beatos, cangaceiros e cavaleiros medievais, que participaram de um grande teatro ou, simplesmente, pelo fato de todas as pessoas, população, atores e produção estarem todos os dias e todas as horas coabitando um espaço público espetacularizado. O espaço único, realidade da cidade cenográfica, era, na verdade, a comunidade Chã da Bala, travestida, sitiada pelos refletores, técnicos e artistas e transformada em um estúdio da Rede Globo de Televisão a céu aberto. De forma semelhante, a realidade vivida de Taperoá se transformou, pela ordem espetacular, no momento em que foi tomada pela contemplação do espetáculo. Se de um lado, a cidade teve sua realidade alterada pela ficção do espetáculo, por outro, a realidade mais objetiva que existia era exatamente a ficção, executada pelo trabalho dos técnicos, artistas, artesãos e figurantes. A outra realidade ordinária, contida no espaço privado, ficou em segundo plano, pois todos os horários foram alterados em função do estado das ações ocorridas no espaço único. Dessa forma, o cotidiano espetacularizado se estabeleceu no cotidiano ordinário pela contemplação do espetáculo ou pela incorporação dele. Podemos dizer que MG e MA representam a resistência dos moradores à posse dos seus territórios. 288

No entanto, durante o processo de resistência, MG foi incorporada ao trabalho espetacular. Ela fornecia água, dava entrevistas, fazia lanches para os diretores e, ainda, era figurante. Enquanto MA representava a resistência mais radical, recusava-se, a todo o momento, a tomar parte em qualquer ato do espetáculo; no meio do processo, ela também foi tomada pelo espetáculo, quando parou seus afazeres cotidianos para contemplar as cenas e admirar o trabalho plástico dos artesãos, até, finalmente, movida pela fé que sempre teve, terminar como figurante de uma missa. De uma forma mais clara, o espetáculo se tornou real para a cidade de Taperoá, quando as horas vividas foram compartilhadas entre a fusão de dois sistemas: o real e o fictício, o público e o privado, e coexistem pela contemplação espetacular, causando uma alienação recíproca aos que coabitam o mesmo espaço urbano tornado cenográfico.

A DIEGESE DA RUPTURA ESPACIAL II A segunda Ruptura Espacial iniciou-se a partir do dia 22 de dezembro, quando finalizaram as gravações, e duraram exatos seis meses, até a derrubada da cenografia sobreposta às casas dos moradores. Esse segundo momento tem início com uma Cena de Comunicação Política, o grande showmício, que teve a presença do Governador do Estado da Paraíba, Cássio Cunha Lima, o Prefeito de Taperoá, Deoclécio Moura Filho, Ariano Suassuna e o diretor da minissérie, LFC. O evento festivo tinha uma finalidade: representava um novo momento para Taperoá, no qual recebia oficialmente sua identidade como cidade cenográfica, ao mesmo tempo em que se transferia para os moradores a responsabilidade de preservação da cenografia. Até o final do dia 23, toda a equipe de produção, atores e técnicos da minissérie deixaram Taperoá. De modo que esse segundo momento é caracterizado pela posse da cenografia pelos moradores. O retorno da comunidade à vida cotidiana será totalmente influenciado pelas mudanças espaciais criadas pela presença da cenografia sobreposta. Esse retorno se caracterizou pela volta da comunidade ao espaço privado de suas residências, mas, especialmente, irão perceber que ele também é público e espetacular. 289


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.