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AQUELA TÉNUE FRONTEIRA

MARIA ANTÓNIA FRASQUILHO

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Tem 63 anos. É mãe de 3 filhos, casada.

Foi médica de família. Fez pós graduação em medicina do trabalho. Tornou-se especialista de psiquiatria tendo obtido todos os graus. Exerceu clínica psiquiátrica hospitalar. Realizou actividade de apoio à gestão na ARS-LVT. Foi directora Clínica do grupo Hospitalar psiquiátrico de Lisboa. Foi docente de psiquiatria e saúde mental na Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa e professora na Escola Nacional de Saúde Pública. Mestre em Ciências da Educação, na área da educação para a saúde. Tem formação em Storytelling. Sub-especializou-se em psiquiatria forense e tem a competência de Avaliação do Dano Corporal.

Actualmente apenas exerce na sua clínica privada - ALTERSTATUS, em Algés. Áreas de interesse: clínica psiquiátrica, stress e burnout, programas de apoio ao trabalhador, promoção da saúde mental, psiquiatria forense e perícias de avaliação do dano corporal.

Pinta e escreve. Faz teatro amador.

AQUELA TÉNUE FRONTEIRA. DA SAÚDE À DOENÇA MENTAL.

Eu sinto-me a cair no poço… desespero, mas sorrio.

Quando estou no trabalho, eu Alice, sou estupenda. Sou diligente, vivaça, sempre a parecer alegre e até tenho uma performance acima da média.

Alguns colegas da contabilidade andam cinzentos, quezilentos. Li num livro que há gente tóxica, que extermina todos quantos estão á sua volta. Tenho uma chefia superior assim. Acho que se dá mal com a mulher e vem embirrar connosco. Mas eu sou de força, aguento. No departamento pelo qual sou responsável já houve 3 pessoas que meteram baixa psiquiátrica. Inadmissível como lhes dão importância! Dizem que estão em “burnout” por causa dos gritos e ameaças dele. E também por causa do sistema, acho eu. Uma delas voltou ao fim de 6 meses de descanso, no bem bom. É claro que as colegas não a suportam, que preguiçosa! Ainda por cima vinha com uma declaração médica para tarefas melhoradas, qual quê?!...

Não fui eu, mas puseram-na noutra secção, numa secretária lá para os fundos virada para uma parede. Está com a área dos armazéns e exportação, mete para lá uns dados, mais mal que bem. Raramente fala. Também não terá muitos com quem falar. Todos a evitam. Já dei com ela com ar aluado, de boca aberta como uma patega, se calhar a fazer a gestão dos estoques em imaginação com o Exel

projectado e os números a bailar na parede. Ah, ah! A Manuela, a manager do departamento de sales, já me disse que ela estava a passar-se de dia para dia. Só a presença dela arrepia. Nem sabemos se será perigosa. Vá lá que se passa assim numa fúria e ataca alguém… Viu o filme “O Joker”? Não é para brincadeiras… e ainda por cima nem os

julgam como responsáveis. Todos desejam que ela enlouqueça de vez a um fim de semana. Que saia de cena. Pelo menos não nos dava chatices.

Em casa é um bocado pior. Não tenho a mínima paciência para os miúdos. Não me apetece fazer aquelas chatices domésticas… mas também tenho direito a isso. O meu marido que se chegue à frente, não acha?! A verdade é que nem o posso ver. Cada vez que me toca enxoto-o. Coisas íntimas? Nada, nadinha. Há meses de dieta, entende? Também já estou a ir para os 50. Nem ele é o “action man” com quem casei, portanto eu também já não sou a “barbie”. Deve ser da prémenopausa. Tenho de lhe pedir umas análises às hormonas. Ah, mas olhe que a tomar qualquer compensação é só algo natural!

A vida tem sido um pouco madrasta, mas eu defendo que não temos de estar com queixinhas. Atiro para trás das costas. Reprimo o rancor. Temos é de fazer por nós, pela nossa saúde. Eu vou todos os dias ao ginásio, suo lá as desilusões. Controlo o peso ao grama, só como dieta saudável. Convivo pouco, é certo. O tempo não estica e o trabalho ocupa-nos muito.

Gosto de ir lendo as coisas no Google, isto de remédios é preciso muita cautela. A indústria farmacêutica controla o mundo, e os médicos, desculpe lá, também estão cercados sem darem por isso. O doutor é boa pessoa mas tem de compreender que é mesmo assim. Os químicos fazem bem a uma coisa e mal a muitas mais. Já viu o que diz naquele remédio que me mandou tomar no mês passado? Aquele da serotonina, sim. É uma lista gigante de contraindicações. E os efeitos secundários? É melhor nem falar. E eu, que até sou rija, tive quase todos. Nem pensar… foge! Ao fim de cinco dias acabei logo com ele.

E agora? Contínuo sem ser eu. Não durmo em condições. Tenho suores. Dói-me tudo, doí-me a barriga. Os intestinos estão desarranjados. Começo a chorar que nem uma desgraçada. Assim de repente. Sem razão. Eu disfarço. Que isto não saia daqui: até já pensei em desaparecer. Qual o propósito para isto tudo?

Tenho um cansaço tão grande. Não acha que posso estar com um cancro? Pode ser da idade? Ou será que estou com um esgotamento? É melhor dar-me umas vitaminas.

Definitivamente: não me fale em antidepressivos. Não vou tomar. E aquela ideia do psiquiatra até me enerva, então acha que estou maluca? Eu, não!

Um psicólogo? Oh, doutor, eles são mais doidos que os doentes.

Pois é, as histórias são composições com raízes na realidade. Uma história tem aquele poder: desvenda a vida, desencobre-nos também a nós.

E que tal jogar sobre a saúde e a doença mental centrados nesta ficção? Vamos fazê-lo de modo muito estruturado em torno de desafios. Se for a dois ou a três, melhor.

MITOS

(o desafio é encontrá-los no texto)

a) As pessoas com doença mental são fracas, preguiçosas e não trabalham.

Errado três vezes. A maioria das pessoas com doença mental – psiquiátrica - estão activas no trabalho. Não são fracas ou fortes, zelosas ou preguiçosas. São como qualquer outra pessoa que pode adoecer independentemente do seu vigor e da sua vontade. Por vezes é necessária uma baixa médica, enquadrada no tratamento. E também pode fazer parte deste, o planificar dum regresso ao trabalho adequado, com uma atribuição de tarefas compatíveis com a sua capacidade ao momento. Tal e qual como o que se faz com outra doença qualquer.

b) Ter saúde mental implica responsabilidade. Os doentes mentais são irresponsáveis.

Errado. Claro que a melhor saúde mental exige responsabilidade ( mas também há pessoas muito sãs que a têm pouco). Porém, pessoas com doença psiquiátrica também podem ser muito responsáveis no dia a dia. E se foi cometido algum delito, a maior parte dos casos de doença psiquiátrica não impede a responsabilização pelos actos praticados, a menos que a pessoa esteja incapaz de compreender, tenha a consciência afectada ou não tenha a possibilidade de compreender e controlar o seu comportamento. A perigosidade não é uma cláusula da doença mental. c) Pior que ter uma doença física é ter uma doença mental.

Não se deve desvincular doença física da doença mental. Frequentemente as pessoas com doenças psiquiátricas têm também sintomas físicos. A própria hipocondria (fantasia aterrorizadora de ter certa doença), ou a somatização do sofrimento psíquico que acontece nas doenças psicossomáticas, são apresentações comuns de doenças psiquiátricas. Na ansiedade e na depressão as queixas físicas são vulgares e das primeiras a surgirem. Quem sofre destas patologias queixa-se de ser menosprezada e até prejudicada por as ter. Por isso, às vezes, dizem que é pior passar pela doença mental porque o sofrimento não é reconhecido pela sociedade, não beneficiam do apoio do próximo e, realmente, sofrem vexames e discriminações quando se torna conhecida a sua doença. Os próprios profissionais da especialidade também são estigmatizados.

d) O “burnout” acontece porque as pessoas não sabem desprender-se dos problemas. O esgotamento é que é trabalho a mais. Uma pequena pausa resolve.

Errado. A nossa energia vital não esgota. Pode é estar-se a viver de forma desumanizada e entrar em perda severa. O “burnout” definese pela exaustão emocional, a insatisfação profissional e a despersonalização. Não é culpa do trabalhador. Este não deve ignorar o que sente e deve por limites firmes às

exigências profissionais avassaladoras. E as condições de trabalho não podem ser um perigo para o trabalhador.

e) Ter saúde mental é estar sempre bem

Errado. Ter saúde mental é ter diferentes emoções, comportamentos, pensamentos conforme as circunstâncias em que se vive. É acima de tudo ter consciência de si, do que sente e faz, e do modo como se relaciona com os outros. É não fazer de conta. É reconhecer as dificuldades. É compreender o mundo e ter um propósito para a vida. É conseguir ser funcional e acrescentar algo à comunidade onde se vive. Saber discernir o que é adequado, gerir bem as emoções, ser flexível, não pensar “a preto e branco”, não querer controlar tudo, conseguir adaptar-se quando se deve ajustar, mudar aquilo que pode ser mudado. É ser criativo, lidar bem com os desapontamentos, e ser capaz de pedir e aceitar ajuda quando não se sente saudável. Ter um bom estilo de vida ajuda, mas não basta ir ao ginásio e ter cuidados alimentares. Há que praticar “ginásio emocional, cognitivo e comportamental”.

f) O psicólogo é para os casos menos graves e o psiquiatra trata dos loucos.

Errado. Ambos são especialistas na área da mente. O psiquiatra é médico, faz um diagnóstico médico (que inclui a vertente psíquica), pode diferenciar a doença segundo a sua origem (por exemplo, há doenças endócrinas, neoplásicas, até cirúrgicas que se revelam no inicio apenas por sintomas mentais) e pode decidir por tratamento medicamentoso, psicossocial ou psicoterapêutico, ou todos em conjunto. Sabe e pode fazê-los. O psicólogo faz o diagnostico psicológico (personalidade, características da pessoa e dos seus contextos, avaliações psicométricas) e pode fazer aconselhamento e psicoterapia. Deverão trabalhar em equipa tanto para doenças graves como para situações mais banais. E mais importante: ambos fazem muita falta para a prevenção das doenças e promoção da saúde.

g) Os fármacos psiquiátricos são drogas que devemos evitar.

Errado. Hoje em dia já se conhecem os mecanismos neurobiológicos implicados nas doenças psiquiátricas. E também já há retratos imagiológicos e marcadores genéticos do que se passa em patologias especificas (se bem que para a clínica, no geral, não façam grande falta). Os medicamentos fornecem ao organismo o equilíbrio que está em falta em cada um dos casos. A serotonina, a noradrenalina a dopamina e muitos, muitos outros são químicos biológicos (sim, a natureza, o universo, nós somos químicos). Quando estão desestabilizados no nosso organismo os psicofármacos permitem alcançar esse melhor balanço. E na maior parte dos casos nem provocam efeitos secundários graves, incómodos e/ou habituação. Os benefícios são evidentes, e são como outro qualquer medicamento que tem de ser tomado sob vigilância médica.

h) As questões de doença mental são insignificantes. Sempre houve problemas na vida e cada um tem de os enfrentar por si.

Errado. A doença psiquiátrica é muito comum: 1 em cada 4 pessoas sofrera na sua vida de episódios de doença mental. Nos locais de trabalho é hoje em dia a segunda causa de adoecer e prevê-se que devido aos altos stressores psicossociais se torne brevemente na primeira. No topo de perda de qualidade dos dias vividos estão as doenças mentais e ficam caríssimas aos estados e representam perdas enormes para as organizações e um peso tremendo para as famílias. Parte das causas da doença é biológica e hereditária(simplesmente médica) mas uma parcela significativa tem a ver com todas as circunstancias de vida actuais, A insegurança, a competição, o cada vez maior isolamento, o sentimento de não pertença, a desumanização promovem o sofrimento psíquico. Fazer face a esta calamidade exige coesão, capacitação pessoal e medidas transversais a diversos sectores sociais, muito além do sistema de saúde.

APÓS O JOGO, OUTRO GRANDE DESAFIO:

Vamos combater estes mitos. É uma questão de valor social, diria mesmo um imperativo para o bem- estar e a dignidade.

Constatamos, então, que esta história da Alice representa bem a condição de fraca saúde mental tão generalizada ainda. Afirmo até que há evidentes sintomas e sinais de doença depressiva que a Alice recusa admitir.

Quererão descobri-los no texto?

É como um quadro de fantasia de omnipotência, de querer formatar uma realidade por medo do que existe. Lembram-se do clássico livro de Lewis Carroll? Alice no país das maravilhas.

Há muitas pessoas a irem para trás do espelho. As aventuras, os amigos, a juventude eterna, todas as possibilidades desejadas estão abertas. Contudo, é tudo imaginário e faz falta lidar com a realidade sem fugir para paraísos artificiais, sem reprimir, não fazendo de conta.

E mais falta ainda faz compreender-se e não ajuizar pejorativamente. Faz falta um pensamento que acolha a complexidade. Também faz falta a humildade de nos reconhecermos humanos, e como tal frágeis a precisar uns dos outros.

É bem-vinda a fantasia depois do conhecimento e da sabedoria. Será o sortilégio bem dominado que nos permite flutuar entre as fronteiras da saúde e da doença sem perder o fio condutor. E que ténues são essas fronteiras e que frágil esse filamento.

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