“Mas como causar pode seu favor / nos corações humanos amizade, / se tão contraditório a si é o mesmo Amor?”
Bebam e deliciem-se, ó barões assinalados, nesta formosa poesia que nos deixou Camões e que é tanto mais do que “somente” Os Lusíadas. Escreveu tanto sobre a beleza da amada, como sobre a feiura do Homem, refletiu tanto sobre a serenidade da natureza, como sobre a tempestade que envolve a condição humana e exaltou tanto uma nação, como expôs e criticou todas as nações.
É de salientar, a vertente amorosa de Camões, na qual o eu lírico se embebeda na figura da sua amada, esculpindo a mais detalhada estátua de mármore, com a mais dura e resistente ao tempo das pedras – a palavra. É, ainda, de notar que a mesma figura formosa que tanto o eu fascina, o tormenta, também, sendo vários os poemas onde se sofre, pela única coisa por que vale a pena sofrer. (“Verdes não o são / no que alcanço deles; / verdes são aqueles / que esperança dão. / Se na condição, / está serem verdes, / porque me não vedes?”) Exaltava, então, Camões, à moda petrarquista da altura, a mulher à condição de ser perfeito. Ainda assim, numa sociedade profundamente racista e carinhosa para com estereótipos, um pouco como a de hoje, via Camões beleza, não só na mulher cujo cabelo reluz à luz, como fios de oiro, e cuja pele à brancura da neve se assemelha e cujos dentes valem tanto quanto pérolas, mas naquela cativa, que o tem cativo (“Pretos os cabelos, / onde o povo vão / perde opinião / que os louros são belos / Pretidão de Amor, / tão doce a figura, / que a neve lhe jura / que trocara a cor”).
Destaca-se o soneto “O céu, a Terra, o vento sossegado...”, o qual nos delicia com a primeira quadra, onde é descrito um mundo calmo e alheio (“O céu, a Terra, o vento sossegado... / As ondas, que se estendem pela areia... / Os peixes, que no mar o sono enfreia... / O noturno silêncio repousado...”) e, no seguimento do poema, nos alerta para a nossa pequenez e irrelevância, no mundo, pois, quando grita um pescador pela sua amada, responde o mar com nada mais que indiferença e impetuosidade (“Ninguém lhe fala; o mar de longe bate; Move-se brandamente o arvoredo; / Leva-lhe o vento a voz, que o vento deita.”). É curioso, ainda assim, o quão cego pode ser um homem, ao se achar mais do que aquilo que é, neste mundo tão grande. Ridículo o desejo de um qualquer de ser algo que nunca será - relevante, aos olhos do universo. Acalmem-se, portanto, os Césares, os Augustos, os Calígulas, os Neros e tantos outros que se queriam grandes, pois não são mais que os outros todos, cujo nome não ficou para a história e cuja vida deram para que a de outro pudesse ficar. Relembro, uma passagem de Rousseau, onde eu penso que se resume, muito bem, toda a absurdez que envolve o facto de que, ao longo da história, foram poucas as civilizações que dedicaram a sua existência à construção de uma sociedade equilibrada, mas muitas, ou quase todas, as que dedicaram essa mesma total existência à construção de um pedestal, onde colocar um qualquer: “O primeiro que, tendo delimitado um terreno, resolveu dizer: «isto é meu», e encontrou pessoas suficientemente simplórias para acreditar nisso, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil” (Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens, II, 1755). Imaginem, o mundo extraordinário, belo e sereno que teríamos se, em vez de termos concentrado os nossos esforços na guerra e no aprofundar das divisões, tivéssemos passado todos esses milhares de anos na construção de uma sociedade justa e conjunta. Infelizmente, o ser humano parece não ser capaz de se esforçar para a convivência pacífica com os seus iguais, como se esforça para a construção de máquinas de guerra. Ainda que uma delas dê, substancialmente, menos trabalho que a outra...
“No mar, tanta tormenta e tanto dano, / Tantas vezes a morte apercebida! / Na terra tanta guerra, tanto engano, / Tanta necessidade avorrecida! / Onde pode acolher-se um fraco humano, / Onde terá segura a curta vida, / Que não se arme e se indigne o Céu sereno / Contra um bicho da terra tão pequeno?” (Os Lusíadas, canto I, estância 106) Curioso como o poeta que dedica uma inteira epopeia a um povo, o critica, nessa mesma. E quem critica o povo português, critica todos os povos e todos os
Homens, porque diferenças, não as há. Curioso, igualmente, como pode um homem, há, sensivelmente, quinhentos anos atrás, se revoltar com a guerra. Penso que não estaria a cair numa falácia, se afirmasse que os Homens gostam de guerra. Se não gostassem, porque a fariam? Porque perpetuariam, durante milhares e milhares de anos, algo que não gostassem? Se não gostassem, bastaria não mais a fazerem. Ainda assim, quinhentos anos depois, ainda a fazem. Deve ser porque gostam. Só pode! Porque que outra razão seria? Se calhar, depois de tantos, tantos, tantos, tantos anos, sempre a fazer o mesmo, o ser humano se tenha, somente, habituado à ideia de guerra e penso que os factos comprovam que não fez muito para contrariar esse fetiche perverso, que veio a desenvolver. Saliento a seguinte frase de Clausewitz: “A invenção da pólvora e o constante aperfeiçoamento das armas de fogo são por si sós suficientes para mostrar que o progresso da civilização nada fez de prático para alterar ou para desviar o impulso de destruir o inimigo,” (Clausewitz, “Da Guerra”, 1832)
Demorou milhares de anos até que tenha sido sentido no coração dos Homens um desejo de uma paz sólida, forte e, idealmente, perpétua. Até então, era, no entanto, de notar que no mesmo coração imperavam, somente, desejos de uma grandiosidade bélica, repugnando-lhe, até, a ideia de paz, associada à ideia de fraqueza. Em 1945, aconteceu uma coisa boa, na história da humanidade. Pela primeira vez, essa mesma humanidade, tão carinhosa para com a ideia de guerra, fartou-se dela. Ou pelo menos assim se pensava. A geração que viveu a II Grande Guerra, foi, porventura, a geração mais pacífica que já existiu, porque eles ganharam horror à guerra. E tanto se esforçaram para que ela não mais se fizesse. Tantos foram os acordos assinados, as organizações criadas, tantos foram os apelos às gerações vindouras. Mas penso que esses apelos falharam. A geração do meu pai não tem horror à guerra. A minha geração não tem horror a guerra. Tomámos a paz como certa e esquecemo-nos que, tal como a guerra, a paz é algo que se faz, não é algo caído do céu. E esquecemo-nos que, a qualquer momento, aparece um déspota qualquer e convence uma nação inteira de simplórios que tem de matar a nação vizinha, só para que ele possa ganhar um bocadinho mais de poder. Se olharmos para uma foto, por exemplo, de uma cidade alemã, no ano de 1945 e olharmos para uma foto de uma qualquer cidade ucraniana, no dia de hoje, temos o mesmo pensamento. Pensamos: se o ser humano veio ao mundo para fazer isto, mais valia não ter vindo.
As críticas feitas à sociedade de Camões são as mesmas críticas feitas à sociedade de hoje, mais coisa, menos coisa, mas vai tudo dar ao mesmo. Vai tudo dar ao mesmo. Afirmo que o mundo está desconcertado. Desiluda-se quem ache o contrário. É de salientar, no entanto, que sempre houve quem tentasse concertar esse mesmo mundo. Camões foi um deles. Tentou trazer um pouco de beleza a um mundo tão feio e tentou alertar para o que poderia ser melhorado. Num mundo tão cheio de filtros, tentou ser cru e expôr os males da sociedade, os de ontem e os de hoje. Tentou curar esta alienação crónica que sempre condenou o ser humano a legitimar, quem não merecia ser legitimado. E fez essa mesma sociedade a Camões, o que fez com todos os outros, que trouxeram uma luzinha de esperança a uma humanidade tão negra No dia 10 de junho, morreu o príncipe dos poetas, na pobreza e na miséria. Já dizia Camões, que esta sociedade parece condenar quem tenta fazer o bem e sempre recompensar quem se dedica a fazer o mal.
“Os bons vi sempre passar / no mundo graves tormentos; / e, para mais m´espantar, / os maus vi sempre nadar / em mar de contentamentos.”
- Beatriz Espada Sobral