Revista Cruviana n 2

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Ano 2. Ed. 2. jan - jun 2012 - Mossor贸 - RN - Brasil

ISSN 2238 - 331X


PacĂ­fico Medeiros

PacĂ­fico Medeiros


Revista

Cruviana caderno virtual de contos

ISSN: 2238-331X

Mossor贸 - RN


www.revistacruviana.blogspot.com


Revista Cruviana Caderno virtual de contos Segunda edição - jan. - jun. 2012 Edições semestrais Mossoró - RN - Brasil revistacruviana@gmail.com

Selo: Cruviana Editor-chefe: José de Paiva Rebouças Editoração, diagramação: José de Paiva Rebouças Capa, contracapa e designer: José de Paiva Rebouças Revisão: Regiane Santos Cabral de Paiva Apoio editorial Sarau das Letras Fotografia: Pacífico Medeiros Ilustração: Anchieta Rolim Colaboração de foto: Fred Veras

Conselho Editorial: Clauder Arcanjo - poeta, escritor e editor. David de Medeiros Leite - advogado, escritor e professor da UERN. Regiane Santos Cabral de Paiva - professora da UERN e cronista.

Colaboração (por ordem de apresentação) 1ª parte José de Paiva Rebouças Demétrio Vieira Diniz Pedro García Lavin Arlete Mendes Costa Joaquim Dantas Minicontos Carlos Gildemar Pontes André Ricardo Aguiar Nina Rizzi Clauder Arcanjo Kydelmir Dantas Triunvirado Elilson José Batista Exposição Anchieta Rolim 4° parte Eduardo Quives Pedro Fernandes de o. Neto Eliana Klas Samuel de Oliveira Paiva Anchieta Rolim Antonio Francisco de Morais Neto Fotografia Pacífico Medeiros

Distribuição eletrônica e gratuita. É expressamente proibida a sua comercialização. Os textos aqui publicados podem ser reproduzidos em quaisquer mídias, desde que seja preservada a face de seus respectivos autores bem como o seu lugar de publicação. As imagens que integram esta edição estão referendadas com seus respectivos autores.


O autor é único responsável pelo texto enviado. Portanto, a Revista Cruviana não se responsabiliza em caso de plágio ou cópia das obras enviadas.


10 APRESENTAÇÃO......................................................................................... 15

O arroto............................................................................................................................... José de Paiva Rebouças

17

As Idas e Vindas de São Serapião................................................................................ Demétrio Vieira Diniz

19

El quiste............................................................................................................................ Pedro García Lavin

22

Paixões e ventanias ........................................................................................................ Arlete Mendes

24

“Suspirativa” .................................................................................................................. Joaquim Adelino

MINICONTOS

29

Delírios............................................................................................................................. Carlos Gildemar Pontes

30

Apartamento................................................................................................................... André Ricardo Aguiar

31

Luxo e halitose ................................................................................................................ Nina Rizzi

32

Azuis ................................................................................................................................. Clauder Arcanjo

33

Só pode ter sido .............................................................................................................. Kydelmir Dantas

34

O andarilho...................................................................................................................... Triunvirato

35

O valentão e o oposto ..................................................................................................... Elilson José Batista


37 EXPOSIÇÃO...................................................................................................................... Abstrato – Anchieta Rolim 45 A Virgem Sagrada ............................................................................................................ Eduardo Quives 48 De como vaca morta se formou .................................................................................... Pedro Fernandes de o. Neto 50 Dorcelino ........................................................................................................................... Eliana Klas 52 Operação Papai-Papel ................................................................................................... Samuel de Oliveira Paiva 54 O banquete ........................................................................................................................ Anchieta Rolim 56 Filósofos das ruas ............................................................................................................ Antonio Francisco de Morais Neto 61 FOTOGRAFIA .................................................................................................................... Textura – Pacífico Medeiros


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Apresentação Apenas aqueles que, ao escrever, tiram a matéria diretamente de suas cabeças são dignos de serem lidos. Schopenhauer

Nenhuma concepção do ato de escrever será suficiente. Escrevemos ou porque precisamos ou porque pensamos saber. O que importa é pensar. Entrar pelo mundo não é uma escolha, fazê-lo como é, também não. Porque escrever seria uma? Não há resposta que resolva essa questão por mais absurda que pareça ser. Escrevemos e pronto, se poderia dizer. Mas não é bem assim. Esperamos pelo outro que nunca vem e, por isso, quase sempre desistimos. Prensar palavras não ficou para todos, costumam dizer, mas isso é arbitrário e egocêntrico. Pensar é para todos, embora só alguns exerçam. E pensar é também escrever, mesmo quando com mediocridade. Há muitas cadeias e as mais intrusivas são as que não vemos. A palavra é a pior delas, portanto, precisamos pensar e traduzir o pensamento com nossas próprias palavras, do contrário, morreremos no cárcere alheio. Não importa o quanto escrevemos ou quando, mas que escrevamos


sempre que assim nos for necessário. Há os que escrevem o tempo todo e os que escrevem somente quando as palavras lhes transbordam. Para ambos, sempre haverá interesse. Porque o que importa não é a palavra enfileirada na frase ou a ausência de elementos que a embelezem ou a torne branca e aristocrática, mas o pensamento que a conduz. Porque a palavra jogada não tem peso, mas quando pensada e lançada aos montes cresce e floresce nas calçadas. José de Paiva Rebouças Editor da Ideia



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O arroto Jardilina acordou diferente. A casa era a mesma e o silêncio das moscas das manhãs seguintes ainda figurava o ambiente. A cama vazia. Marido e filhos já perambulavam. Ela os olhou desatenta. Parecia cansada quando entrou no banheiro e demorou mais do que de costume. Um silêncio sepulcral denunciava alguma falha na máquina do cotidiano. O tempo demonstrava atraso no café e nas tarefas diárias. O filho mais velho aguardava a torrada para se deslocar ao trabalho. A filha menor, as ordens para ir à escola. O marido não esperava nada. Jardilina mexeu as panelas e ligou a cafeteira. Seus olhos pareciam fechados assim como seus ouvidos. Aprontou uma mesa feia e pães aguados. O café sem açúcar torceu as caras nos primeiros goles. À mesa, a sobrinha agregada ainda perguntou algo, mas não obteve resposta. O filho puxou conversa, mas Jardilina ficou calada e não lhe deu sequer um gesto. Sentou-se com todo mundo, tomou café como de costume, abriu o jornal que era do marido. Leu as notícias de polícia, passou as colunas, viu a política, passou os classificados, viu os preços; folheou os anúncios, as mesmas festas. No cinema os mesmos filmes e o signo era repetido da semana passada. Jardilina soluçou expelindo gases. Notava-se aí que ela poderia estar doente. Talvez um chá de boldo para acalmar os nervos, foi o que alguém pensou, mas só ela sabia como fazê-lo. Ofereceram-lhe um antiácido. Não obtiveram resposta. As pessoas já se acostumaram a não obter respostas. Jardilina cuspiria essa filosofia se quisesse falar. Voltou para seu quarto em busca de um livro e esqueceu a cozinha um instante. Mas os livros são feitos por dois motivos: ou sem propósito algum para deixar as pessoas extasiadas com o nada, empreitando uma tentativa torpe de entender o que não foi dito, ou puramente para fazer lucro e fama. Jardilina lançou gases pela boca e se sentiu como se estivesse inchando. Pensou no que tinha comido nos últimos dias e na noite anterior. Sua cabeça, como ela, não dizia nada. Lembrava apenas dos rótulos garantidos pelos estudos científicos e pelo Conselho de Autorregulamentação Publicitária. Estava segura. Entre a sala e a cozinha, existia muito barulho. As meninas carregadas de conversas sobre as palavras alheias. O marido perguntando coisas a elas que respondiam monossilabicamente. Um retrato diferente do que se expunha na estante, onde todos se abraçavam com sorrisos largos. Quando se fazia De súbito, Jardilina expulsou os gases do medo de já passar dos 40 com uma família comum demais para os padrões das novelas. Havia desistido de tudo que acreditava e quase não tinha sonhos. Aparecia sempre alguém para lhe dizer que não possuía talento ou sorte e ela foi abrindo mão dessas coisas e se entregando à tranquilidade de não ter ambição para ser apenas um nome com o sobrenome do marido, mais velho e aposentado com um salário de fome. Nunca deixou de fazer nada de comum aos outros, mas sempre se achou à margem da vontade alheia. Não que se sentisse infeliz, nunca se sentiu, só não queria comprometer-se e deixar de ser a única coisa que conseguira ser. Acostou-se na cama como quem não pensa em nada e cochilou tranquila os sonhos que não se lembra. Acordou algum tempo depois ouvindo gargalhadas que vinham da sala. Lembrou-se das antigas reuniões familiares. Dos filhos pequenos. O filme da locadora, o marido lendo a sinopse. O livro infantil lido e relido a pedido dos pequenos enquanto ela preparava os quitutes. O nome mãe soando a cada minuto com uma sonoridade infantil e inocente. O sorriso do marido que ainda era forte e vigoroso como o próprio corpo que a abraçava com força pela cintura. O telefone que tocava como por coincidência apenas para ouvir aquela algazarra farta de pão.


Jardilina sorriu no canto da boca e esforçou-se para levantar, mas estava pesada de mais para se mexer com pressa. Os gases saiam agora por todos os orifícios. Quando Jardilina atravessou a casa lembrou-se das mãos enrugadas. Os pés nas pantufas arrastavam toneladas pelos cômodos sujos. Ninguém saíra de casa como se fosse domingo e como se não houvesse contas a pagar. Jardilina chegou à sala e encontrou a família indiferente esparramada na televisão. Olharam-na com espanto e medo. Ela estava enorme, inchada, parecia dois. Os lábios não se fechavam e os olhos saltavam esbugalhados. Iria explodir. Sob a agonia dos seus, recolhidos no imenso sofá azul, Jardilina levantou a cabeça apontando o teto, escancarou a imensa boca que agora possuía e abriu-se num arroto interminável. Aí foi desinchando, desinchando, desinchando e ficando magra e magra e magra até que seu corpo caiu feito um saco de pele e osso do chão.

*** JOSÉ DE PAIVA REBOUÇAS - nascido em Mossoró-RN, 1982, e criado em Apodi-RN, é jornalista, contista, poeta e articulista do Jornal de Fato/Mossoró (www.defato.com), onde escreve reportagens para o caderno “Estado” e para a Revista Contexto, crônicas no caderno “Sua Vida Mulher” e dicas de livros para o caderno “Comida, Diversão e Arte”. Responsável pelo projeto-blog Aspiritas Urubus (www.aspirinasurubus.blogspot.com) é também idealizador e editor da Revista


As idas e vindas de São Serapião Quando deixou Lisboa, Serapião não viu o Tejo envolto em neblina, nem a mulher se exercitando, num frio duro de inverno, na calçada que margeia o rio. Embora santo, nada pôde ver ao seu redor, despachado que fora numa caixa grande de madeira. Vinha de uma freguesia perto de Fátima, um local de santeiros e viajava para o Brasil, depois de comprado por alguns contos de réis. Constrangido pelo encerramento, encaixotado com pó de serra e rapa de carvalho, sentiu voltarem à tona os sentimentos aflitivos de outrora. Por conta de suas idéias fora banido pelo imperador Constantino. As quatro cartas de Santo Atanásio, escritas no deserto em seu socorro, o livraram dos perigos do desânimo. Agora, mil e seiscentos anos depois, os velhos impulsos voltaram com força, angustiando-se ante a vontade repentina de saltar nas águas do Atlântico. Dessa vez, salvou-o da intempestividade a missão de levar a fé católica às terras d´além-mar, bem como a recordação de seus próprios escritos, segundo os quais se devia renunciar às alegrias efêmeras e aos prazeres do mundo. Chegando ao Brasil, desembrulhado e posto num andor, foi para seu desagrado apresentado à nova paisagem. Em nada se parecia com Alexandria, sua terra natal, lembrando-se do farol e do porto coalhado de navios. Tampouco recordava os vinhedos de Portugal, onde o esculpiram. Franziu o nariz e as maçãs do rosto ao ver uma terra de pedregulhos, as cercas de varas tortas e pontudas, vacas que mostravam as costelas mal se sustentando entre redemunhos de varejeiras, e um calor dos infernos. Disseram-lhe, na tentativa de confortá-lo, que aonde fosse o sertão era assim. No seu primeiro dia no país, adentrando a capela construída por um fazendeiro, que pretendia com a carolice se livrar dos perduráveis efeitos do remorso, tombou e caiu no chão. No acidente, quebrou um pé, que se partiu e nunca mais foi encontrado. Atribuíram o sumiço a um carroceiro, cujo filho sofria de elefantíase. O homem teria guardado o pedaço da estátua para servir de ex-voto e oferecê-lo depois ao Padre Santo, porque não acreditava que Deus desse poderes a um santo preto. A imagem saíra da casa-grande, passara pelo curral dos bois, o chiqueiro das cabras, circundara o açude, e chegou em romaria à pequena igreja. Segundo o povo, Serapião caiu de propósito, recusando-se a passar o resto de sua vida naquele terreno amaldiçoado, o mesmo onde, antes de levantarem a igreja, um homem fora esquartejado por causa de uma paixão. Liduína, uma moça muito bonita, curou-se de sua obsessão por um rapaz que ela nunca conhecera, no dia em que Roberto apareceu na fazenda. Educado, sabendo escrever e fazer conta, lembrava pelo olhar o homem por quem ela se alucinara através de uma simples fotografia, guardada em segredo nas páginas de um exemplar do ¨Lunário Perpétuo¨. Tão logo pressentiu o farnezim do novo amor, Liduína rasgou o retrato e atirou no fogo o velho almanaque. Nenhum outro vaqueiro ou filho de fazendeiro que a pretendeu atiçou como Roberto as labaredas de sua imaginação. Sonhava com ele a noite toda, entregava-se aos beijos, perdia nos delírios do sono a virgindade, e pela manhã ditava para o beija-flor estacionado no ar, na janela de seu quarto, o nome do vaqueiro repetidas vezes. Mas sabia que o pai jamais concordaria em vê-la casada com um negro, considerado um pé-rapado, ocupado em curar bicheira e botar creolina em chifre de vaca. Os dois fugiram de madrugada, no primo canto do galo. E logo de manhã cedo, foram localizados numa casa de taipa abandonada, a três léguas de distância. Liduína dormia com as pernas abertas, as coxas sujas de sangue. Antonino Silveira, seu pai,


evitou olhar para o vaqueiro. Roberto foi retalhado no terreiro da casa. Com precisão de marchante, cortaram nas juntas, deixando-o ainda vivo, esvaído em sangue, só com a cabeça e o tronco. Os olhos aflitos do rapaz, na hora da morte, giravam conforme o círculo do vôo dos urubus, mas não disse uma palavra pedindo misericórdia. Morreu em silêncio, submetido como um carneiro. Liduína despediu-se do mundo e se trancou, governando com secura a casa e, depois da morte do pai, com igual aridez, a fazenda. Findou moça-velha, magra como uma vara e nunca mais sorriu. Na época, espalhou-se o boato de que São Serapião à noite, mesmo com um pé só, dava voltas no pátio e ia confortar a alma revoltada de Roberto. A fumaça do boato surgiu porque Rosalina, a beata encarregada de espanar as imagens, passou a encontrar, pela manhã, São Serapião em diferentes posições no nicho. O santo saía para conversar com Roberto, lembrando ao infeliz a falta de sorte dos pretos por essas terras. O vaqueiro lamentava mais a perda do amor de Liduína que propriamente a forma desumana como o mataram. Antes de darem por sua falta no nicho, São Serapião foi visto, numa noite de lua cheia, desfrutando no riacho do aroma doce dos bogaris, pesaroso e com saudade de Portugal. Teria confessado a um pescador seu desejo de fazer o caminho de volta, do riacho ao rio, do rio ao mar, do mar ao Tejo, do Tejo à sua freguesia perto de Fátima. Sabia que nenhum milagre seria capaz de operar numa terra de gente seca, de muita reza e pouca doçura, naquele sertão de moscas e espinhos. A sua segunda pátria era amena, o vento soprava nos olivais e vinhedos, e o fado trazia o langor da saudade. Alguns dias depois, um motorista ladrão de areia achou no rio Jundiaí a estátua do santo, afundada até o pescoço na água. Já sabiam, por ouvir dizer, de sua estória, do desgosto com a terra para onde primeiro o destinaram no Brasil, e de sua fama de consolador, adquirida devido aos refrigérios dispensados à alma de Roberto. Mas foi uma velha da cor de cobre, em trajes de cigana, e nunca vista naquele lugar, que, espiando pela boléia do caminhão, reconheceu o santo: - É São Serapião de Mombaça – exclamou. Em poucos dias, começou uma nova romaria. Dessa vez, eram os que lamentavam, numa lamúria diária, os amores acabados. Os que bebiam e fumavam noites sem fim, entupindo de boleros e sambas-canções as coloridas radiolas de ficha, na esperança de verem entrar pela porta, de uma hora para outra, o homem ou a mulher por quem foram tatuados. Lucas Marinheiro, um quarentão com sorte nos negócios e azar no amor, havendo perdido de uma vez só a esposa legítima e a concubina, tratou de construir um santuário. Nele os abandonados recorriam a São Serapião com um buquê de promessas, sabendo já por intuição ou experiência própria, que os namoros, as paixões, os enganchamentos, seja lá o que for, uma vez desfeitos, só por milagre se consertam.

*** DEMÉTRIO VIEIRA DINIZ nascido em Alexandria/RN, é poeta e escritor. Autor de Ferrovia e Sob o Céu de Natal, entre outros.


El quiste El abuelo no dice nada, pero todos sabemos que está sufriendo mucho y, por lo que el médico del pueblo dijo, si no se lo opera de inmediato tenemos que esperar lo peor. Hoy lo trajeron a Buenos Aires y ya lo internaron en el Hospital Alemán. El problema es el quiste en su abdomen, si no se lo quitan, éste seguirá creciendo hasta comprometer otros órganos. Estuvo en observación todo el día y le han hecho varios estudios. El cirujano dijo que si los análisis de sangre dan bien, mañana a las ocho entra en quirófano para que le extirpen su mal. Estamos todos muy preocupados, si bien el abuelo ya está viejo, siempre queremos tenerlo un tiempo más entre nosotros. Nos gustaría, por lo menos, que podamos el año que viene festejar su cumpleaños número ochenta. Por compromisos de trabajo mamá tuvo que quedarse en el pueblo y no pudo viajar para acompañar a su padre. Cuando supe que el abuelo estaba jodido y que lo derivaban de urgencia a Buenos Aires, no tuve problemas de hacerme cargo de él y de todo lo que haga falta mientras estuviese en la ciudad. Son las seis de la tarde y ya tenemos todo lo necesario. El médico Fernández, después de varias idas y venidas, ha confirmado que está estable y que mañana lo operarán. Corrí a llamar a mamá para decirle que estaba todo encaminado, que abuelo esta muy calmo y sólo nos queda tener fe y esperar. Mañana, a eso del medio día, tendremos el parte médico y sabremos como salió la operación. Eran las ocho de la noche cuando vino la enfermera a la habitación, me llamó al pasillo para decirme algo, parecía no traer buenas noticias. Obedecí y salí con ella. Había recibido un llamado del medico Fernández avisando que se suspende la intervención quirúrgica. -¿Por qué, si hoy a la tarde estaba todo en condiciones? Le dije. -Dice el medico que ha revisado nuevamente los análisis y algo extraño ha sucedido, surgió un inconveniente que antes no había notado, replicó la enfermera. -Discúlpeme, ¿Qué pasó? El médico me dijo hace dos horas que no habría inconveniente, le dije. -El quiste que estaba ya no está, me respondió. -¿Cómo que no está? -Lo que le digo señorita, no está. El abuelo, que escuchó todo desde la cama, me chistó para que volviera al cuarto. Entré en la habitación y me dijo apoyándose la palma de una de sus manos en la frente y con expresión de culpa. -¡Uh nena, me lo olvidé en el pueblo! Pensé que lo tenía conmigo. Pedile disculpas a esta gente y decile a tu madre que me lo mande urgente por encomienda. Que le diga a don Cholo que es para mí, seguro lo tenemos acá para antes de las siete. No pude pegar un ojo en toda la noche. Iba de la cama al baño, salía al pasillo en busca de café o al patio a fumar un cigarrillo, luego volvía a la cama. Así, una vez tras otra. Contaba las gotitas del suero, escuchaba las conversaciones de las enfermeras que estaban cumpliendo su labor. Recorrí el hospital de punta a punta como un guardia en el muro de una cárcel. Una y otra vez el mismo recorrido. Una vez tras otra, ir y venir. Estar de vuelta acostada y levantarme y volver a ir hasta la última habitación, hasta el último consultorio, hasta la última sala llevando conmigo el pesado bolso de la incertidumbre. La idea de que ese maldito quiste no llegase a tiempo no me dejaba en paz. ¡Todo va a salir bien, todo va a salir bien! Me decía a mi misma para no desesperarme.


Ya entrada la madrugada, quizá por el cansancio, quizá porque dejé de pensar, me di cuenta que no solucionaba nada estando despierta deambulando por el hospital. Me quedé dormida en el sillón de la habitación del abuelo, arriba de las mantas y con la ropa puesta cuando ya estaba amaneciendo. Horas más tarde, a eso de las siete menos veinte, me avisó una enfermera que llegó el tan esperado paquete. Corrí a buscarlo y don Cholo me lo entregó diciéndome que había llegado tan rápido como podía. Entré ansiosa, con temor de que algo no estuviera bien. Que estuse mal; mal otra vez. Nerviosa, casi dormida y con un humor de perros busqué al médico Fernández y le dije que teníamos todo. Insistió en ver el quiste. Se lo mostré. Frunció el ceño, lo miro de arriba abajo y dijo que estaba en condiciones. Se lo entregamos al abuelo y él lo colocó donde bien sabía que era su lugar. Estaba todo listo. Lo ingresaron al quirófano y se dispusieron a operarlo. Volví a la angustia y a la espera. No me levanté del asiento hasta que se abrieron las puertas de la sala de operaciones. El cirujano pidió hablar conmigo, me tranquilizó y me dijo que la operación había sido un éxito. En una bolsa tenía el maldito tumor, se ofreció a mostrármelo, le dije que no hacía falta. Al medio día llamé a mamá para comentarle que todo ha salido muy bien, que en cinco días le dan el alta y que el abuelo podrá volver a la tranquila vida de pueblo.

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PEDRO GARCÍA LAVIN, nació hace 31 años en la ciudad de Azul (Pcia. de Buenos Aires), vivió toda su vida en Saladillo (Pcia. de Buenos Aires), excepto cuando fue por estudios a la ciudad de Buenos Aires, donde recibió el título de Administrador Agropecuario. Actualmente vive en Saladillo, donde trabaja y desempeña actividades en relación a sus intereses artísticos que van desde la escritura y la fotografía, hasta la música y la pintura. Publicó en el año 2006, un libro de poemas al que tituló "otra vez donde otras veces". Hoy por hoy está escribiendo, pintando y con varios proyectos más, como, por ejemplo componer canciones.


Paixões e ventanias Pegara amor àquela singela criatura. Não sabia se a amava por sua pequeneza ou por sua altiveza, porque o que tinha de nanica tinha de brava. Marandová. Era peladinha. Dentes pontiagudos. Latido esganiçado. Muito inquieta. Não podia ninguém encostar no portão, que a danada já latia. Além disso, adorava se atracar nos calcanhares das visitas. Alguns até se intimidavam. Outros nem se importavam. Saiam arrastando pela barra da calça. Era invocada. Mas com o dono não. Podia, se quisesse, fazê-la de encosto de porta, bibelô de estante, esquenta pés, pelo dono aceitaria qualquer sorte, boa ou má, o que fosse. Não. Isto não faria nunca. Era muito bem tratada. A mulher enciumava. Também pudera. O marido regulava até o dinheiro da tintura. Pra que gastar dinheiro com tanta pintura nessa cabeça. Já a faceira ia pro banho e tosa de quinze em quinze. Voltava toda-toda. Vaidosa que só ela. Era a coisa linda do pai. Caminhava com o bicho todas as noites, quando chegava do trabalho. Ia parando nas calçadas para prosa rápida com os vizinhos. As crianças não se atreviam. Dali se achegava no bar para contar umas lorotas e tomar umas antes da janta. Depois seguia rumo à padaria. Comprava pão um dia antes para adiantar o dia seguinte. A cadela ganhava o biquinho do pão passado na margarina. Num salto abocanhava o naco no ar. Ela acompanhava até o portão. Fitava seu dono até que ele desaparecesse na dobra da esquina. Durante o dia ficava de peitica com os demais. Chegara até rosnar para as crianças. À mulher, então, a esta nem dirigia o olhar, quiçá um latido. Via nela uma rival. Era recíproco. Só não fazia mal a ela por medo de enredarem os malfeitos pro marido. A bichinha era esperta. Acharia um modo de delatá-la. Deixava estar. A cachorra adivinhava a chegada do dono. Dada a hora, pregava no portão. Pois, dali a pouco, partiriam para o passeio de costume. Era assim que ela exibia o dono para os cães de rua. Magros, mancantes e cheios de rabugem. Heróis da resistência canina. Esses tinham de saber sobreviver por si só. Por vezes, ganhavam sobras, mas a vizinhança não via a cachorraiada com bons olhos. Eram sempre enxotados. A cadelinha continuava altiva em seu passeio pelas calçadas tomadas por sacos de lixo e entulho de construção. Mas nem por isso a soberba da cachorra diminuía. Desfilava vaidosa. Mal encarada feito as modelos de passarela. Naquele fim de tarde o dono tardava a chegar. Estava atrasado para o passeio. O tempo começara a fechar. O vento já agitava a copa das árvores presas às calçadas. Pegou a cadela e foi-se. Dali a pouco uma ventania levantava as tampas das caixas d'água, desprendia as roupas dos varais e partia pequenos galhos. Percebendo o mau tempo, apertou o passo e puxou a corrente do animal, que teimou, por alguns instantes, em não ir. Cheirava um pé de ipê. O vento já varria as folhas com fervor. Um redemoinho se formara misturando sacolas plásticas, lixos leves e folhas das árvores. O homem apressou-se numa marcha que mais parecia uma corrida. A cadela andava apressada, um pouco à frente do dono. Num zas-zus de ventania o redemoinho girou mais carregado. Forte-veloz levou a cachorra escapulida da corrente. O homem, atabalhoado, tentou agarrar a corrente, mas tinha areia em suas vistas. Quando conseguiu abrir os olhos avistou do outro lado da rua o corpo minúsculo estrebuchando. Um carro atropelara a cadela


voadora. Contou o incidente na padaria. Todo choroso, o homem foi consolado por um copo d'água. Encabulados com a história, os presentes se entreolhavam. Como pôde a cadela sair voando? Pegou os pães e voltou para casa. Desta vez só.

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ARLETE MENDES COSTA mora em São Paulo. É mestre em Letras. Professora de Língua Portuguesa na rede municipal de ensino. Tem participado de alguns concursos literários e publicou crônicas e contos no blog “aspiniras e urubus”: www.aspirinasurubus.blogspot.com.


“Suspirativa” eu amo a idéia de você. a idéia, e somente ela. você... você não é mais que isso aí me olhando, se perguntando, em dúvida o tempo inteiro. eu amo o tempo que não estou com você. cada fagulha. e ele é somente das lembranças, das coisas que eu te fiz e que você me fez. mas, para além disso... o ato de te fazer um bem ou mal ou uma agonia na orelha... não me é importante mais do que ler o jornal aos domingos. quando você aparece e despedaça as coisas, e transmuta as idéias. hábito que nem mesmo tenho, esse de amor. mas a idéia de você é tão bela e forte... suspirativa. ah, como eu amo a idéia de você. você para mim não significa mais do que para qualquer médico que não tenha nenhuma indicação amorosa pro teu lado. mas essa idéia que tenho de ti... e é por isso que eu não posso te falar em minha língua, isso que eu tenho para dizer agora e que te causa tanta dúvida... e que não é exatamente para você, mas sim para a idéia de você que eu enclausuro em mim. e que não é exatamente de mim, mas da idéia que, esquizofrenicamente, faço de mim. essa que é também tão pomposa e fulgurante. tenho que falar numa língua que esses corpos, essa sua audição sem graça e a minha, não entendam. tenho que ser discreto com os seus olhos. eles não podem nem desconfiar uma leitura labial. que ninguém leia no vento... muito menos essa moça desconjuntada no mundo que é você... o significado oculto das minhas sentenças sonolentas. é que eu preciso mesmo assim de suporte, de uma linguagem, que você não compreenda. e a linguagem é a própria coisa, é a própria idéia em carne. preciso, pois não sou nem gostaria de ser telepata, uma qualidade inútil de transformação linguística. isso seria fácil de arrumar, essa língua desconhecida aos teus olhos, visto que você não tem lá muita instrução, mesmo um russo poderia servir a essa minha necessidade, mas não é bem por aí que as coisas funcionam. é preciso ser discreto também com os russos ou alemães ou até mesmo os húngaros. essas minhas palavras serão densas demais para escapar à intimidade desse momento perplexo, dessa hora absurda, se assim preferir... que você engendra agora, em imediatismo, na cabeça. não, não estou falando em compor as frases orações períodos compostos por subordinação objetivos diretos reduzidos do gerúndio através de uma língua outra... outra língua que não essa nossa. estou falando em destruir essa minha linguagem em uma língua que não é nem mesmo minha, nem mesmo sua, avalie nossa. e que também não é de ninguém. não pode haver nessa linguagem nada de morfológico referente a outros falares, nem mesmo ao aramaico já tão morto e enterrado, ou meramente fonológico, dessas referências fonológicas tão dissociáveis da voz, mesmo que essas fossem reproduções do som surdo de uma gaivota planando. entenda, não deve haver nada formal, estrutural, nessa linguagem que se relacione com qualquer outra, pois, em sendo as coisas a própria linguagem, em sendo inexistente a idéia e somente restando a linguagem, o que tenho a dizer aqui é totalmente novo. não, você não entende, você não entende, não pode haver nessa fala nada mais concreto do que a própria fala, nada mais significativo ou denotativo, ou mesmo conotativo, do que a própria linguagem, nascendo e morrendo no momento da enunciação, sem influências, sem outras vozes que a sigam ou que a expliquem, ou que a prolonguem citem parafraseiem: nada. tem de ser um enunciado mais puro do que o próprio gemido nascedouro de adão... esse parto vácuo. nem mesmo adão poderia, nem deveria, entender isso que tenho pra te dizer agora. isso é ainda mais velho. e agora, estúpida que é, inegavelmente é, você me pergunta que importância pode ter uma fala que não será entendida. ora, e você tem a plena consciência de que entendimento tem algo a ver com isso que nos ocorre, que nos cerca, que me faz ter movimentos labiais faciais e corporais... você acha, sinceramente, que importa o significado convencionado de todas essas pequenas coisas, como você chama


mesmo?, palavras, dentro do universo que eu aqui te apresento? inegavelmente uma idiota perdida. não. o significado se perderá junto com a última articulação de idéias, assim como eu perco a ideia de você no momento exato em que você existe. você despedaça. e agora, por culpa dessas suas dúvidas e perguntas sem fundamento, eu quase violo a pureza disso que tenho para te dizer, a natureza selvagem dessa coisa, essa coisa selvagem que mora aqui nesse meu corpo e nessa idéia de mim mesmo que tenho. ah, aí está o motivo de ser necessária uma linguagem tão antiga, pois não será propriamente nova essa linguagem. não. essa linguagem em que quero me expressar deve ser circularmente antiquíssima, circunavegantemente pré-histórica, do tempo em que ainda as linguagens eram finitas. esse tempo em que nem deus e seu descomeço meio e infiniilismo pairava no vazio. e isso tudo assim o é, porque eu também não posso ouvi-la, não posso significá-la. sou tão desgraçado quanto você é em essência, e só importa a compreensão por parte da idéia que tenho de mim. somente ela pode. se nem mesmo eu ou você, mas somente nossas idéias fabricadas no âmago mais íntimo da inconsciência animal que nos rege podem reagir belamente ao que será dito (dito?) aqui, então não haverá de ser uma linguagem qualquer de alemão ou russo ou mesmo húngaro, como você esperava, que servirá ao meu propósito. não. você tem que perceber isso. e pare com essa cara duvidosa, já! faltam as artimanhas, mesmo a mim que sou tão instruído, mesmo a você que é tão instintiva, para realizar essa façanha. mas é preciso, no sentido de focalização mais do que no sentido de necessidade, já esses mesmos impuros de significâncias, o rasgo que ampliará a pupila da idéia que eu tenho de você, e que tanto amo. dói, machuca recriminar meu próprio corpo, em especial a minha língua, não o músculo mas a mãe, para poder expressar, ou me deixar ser expressado, por essa linguagem guardiã e destruidora dos infernos. e quando eu começar a finitar as coisas você talvez desaprenda a própria coisa. é disso que eu falo, “finitar”, é quando uma palavra começa a metamorfosiar-se em outra, e uma coisa desleixa cabelos nos peitos nus de outra. mas veja bem, essa transmutação erótica ainda é, pelo próprio movimento natural, impura, vestida de novidade antiquíssima, mas repleta de retomada e paráfrase. não, as idéias só se apresentarão em prática quando a referência à palavra, ou às palavras que conhecemos (nós, seres humanos viventes desde adão e até o último que morrerá), estiver totalmente perdida, ou encontrada em sua linhagem mais distante e descompassada. quando a idéia que faço de mim, tão pensativa, retroceder aos pontos mais distantes de linguagem, e ainda assim achar esse elo perdido psíquico, somente então será possível descarnar a idéia, a idéia que me ocorre, mas que eu não compreendo nem devo compreender. a idéia mais santa do que a própria desventura dessa linguagem-desmembro. talvez eu não consiga, e você continuará com essa cara a vida inteira, até a sua morte... talvez as idéias nossas fiquem no ar estáticas, estéticas, em quadros suspensos, pois que essa coisa que tenho a dizer não saia através desse momento. talvez seja impossível para mim, ou mesmo para a idéia que tenho de mim, engendrar isso que aqui mora. sua ajuda não completaria nada, seria somente vazio. e pare já de querer falar. você não sabe de nada. só a idéia que eu tenho de você sabe, somente ela. ah, quão fácil seria poder falar em bom português, mas é impossível. eu disse impossível. será que... será que somente o ato satisfaria essa necessidade, essa precisão? mas qualquer mudo poderia ler isso, e mesmo aqueles que falam... assim eu só enganaria os cegos, o que não é precisamente importante no momento. não. o ato já é propriamente mais linguístico do que a palavra “ato”. e que desespero isso me causa, se o próprio movimento respiratório é também modo maneira de expressão ideológica (no sentido de idéia, e não de ideal). e você aí, obstruindo a visão translúcida (palavra tão pouca) da sua idéia, enquanto eu mesmo dissolvo o tato transcendental (palavra ainda tão mirrada diante da coisa que


representa ainda uma palavra mais forte) de minha idéia de mim. procuro uma infinalidade, e que seja essa temporária, uma finitude, e que seja essa definitiva, uma antiguidade universal bárbara dançante indômita sacana e imparcial, e que seja essa também mais destruidora e mais ácida do que essas palavras que rasgo em mãos agora (e não tem como não o ser, diante de tão chula linguagem humanizada). e que seja ainda bem mais do que tudo o que acima eu disse, pois isso já se perdeu em tolice e paulatina aberração de meu corpo. que seja só sangue, que manche as paredes, banhando-as em vermelhidão indefinida, e que as consuma, e que se perca, e que evapore incensório no segundo seguinte, quem sabe até no milésimo de milésimo de segundo seguinte ao tiro, à rajada que sairá daqui da minha idéia para se chocar suavemente como prego em bolhas com a sua, e que não se deixe percebida no ar ou nas artérias ou mesmo nas memórias, condição imprópria, de qualquer pessoa. que seja essa, essa hora, o berço e a lápide marmorificadas de uma idéia que se pretende.

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JOAQUIM DANTAS nasceu no dia 08 de setembro de 1989. Filho de pai e mãe dedicados, foi criado em Mossoró-RN, sua terra de coração, carne e sangue. É ainda vivo. Continua escrevendo contos.



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minicontos


Delírios Eu a encontrei no ponto do ônibus, abarrotada de livros. Parecia uma deusa, sei lá, nunca vi uma, mas acho que deve ser assim. Subimos juntos e eu pousei meus olhos nela como uma sanguessuga. Descemos juntos e creio que ela percebeu o meu olhar. Fui para casa intrigado e não dormi que prestasse nesta noite. Amanhã ia repetir todos os passos e horários para ver se a encontrava. Inútil. Dias seguidos fiz a mesma coisa. Dias inúteis. Domingo, na praça, vi quando ela entrou na igreja com outra mulher. Fiz-me então o mais crente dos seres. Corri para tentar vê-la no meio daquela multidão. O padre levantava uma taça e falava que ali era o sangue do Cristo. Todos estavam contritos, menos eu, que vasculhava o salão atrás da deusa. Que blasfêmia, pensei. Mas como deusa ela poderia me proteger dos castigos, ah, delirei. Faltava um rumo na minha vida, um tom de desespero me atingia de vez em quando. Estaria ali a minha vocação? Delirei de novo. Era um ser de fatos e não de boatos e, para mim, rezar é boatar. Conversar com quem não ouve, pedir a quem não atende. O mundo é feito de prédios, pessoas, ganância, violência, pobres, como eu, e deusas. Uma porção de deusas que nos castigavam com a sua indiferença. Então, para quê religião, se tudo estava aqui, à nossa frente?! Saí da igreja e fiquei na espreita. O padre tinha começado a delirar também. E eu não suporto delírio alheio. Meu pai me ensinou a ser prático. Come-se hoje, amanhã descola. Fugi disto e procurei estudar. Que eu não queria aquilo para mim. O vizinho de frente fazia o curso de Farmácia. Disse-me que ia ser bioquímico, tratar a merda dos outros. E eu pensava na merda da nossa vida que só poderia melhorar se eu fizesse alguma coisa para não me tornar um operário autômato, como meu pai. Quando passei no vestibular, pensei que tinha sido engano dos jornais, mas lá estava eu, no meio dos que iriam chegar a algum lugar. Passei então a separar delírio de objetivos. Vou ser advogado. Vou aprender a mentir e a inventar delírio para os outros. Quando tiver rico, faço a bondade de comprar uma casa para os meus pais. Um dia, cruzei com ela no fórum, amparava uma senhora de cabelos grisalhos, mas muito bonita. Cheguei como qualquer um que quer ajudar. E nos seus olhos havia delírio. Igual ao meu naquele dia do ponto de ônibus. - As senhoras estão precisando de alguma coisa? – perguntei, mostrando um certo ar de superioridade. Foi a última vez que eu a vi. Casei-me com uma mulher mais bonita e filha de um desembargador aposentado. Juntos, temos um escritório de delírios.

*** CARLOS GILDEMAR PONTES é escritor, ensaísta, editor da Revista Acauã. Professor de Literatura da UFCG. Mestre em Letras UERN. É autor de Metafísica das partes, poesia, 1991; O olhar de Narciso, poesia, 1995; A miragem do espelho, contos, 1998; Super dicionário de cearensês, expressões regionais, 2000; Diálogo com a arte: vanguarda, história e imagens, ensaios, 2005; Da arte de fazer aeroplanos, conto, 2007; Melhor seria ser pardal, 2008, dentre outros. Recebeu alguns prêmios, dentre os quais se destacam: Prêmio Literário Cidade de Fortaleza – Conto, 1990; Vencedor do Prêmio Ceará de Literatura – Poesia, 1993; Vencedor do Prêmio Novos Autores Paraibanos – Conto, 1998; Vencedor do Prêmio Audifax Amorim de Poesia - 2005, promovido pela Prefeitura Municipal de Colatina – ES. Faixa preta de Karate Shotokan – Presidente da FKMIPB.


Apartamento Acordou com a sensação incômoda de estar sobrando no apartamento. Os músculos doíam, respirava com dificuldade. Abriu lentamente os olhos, fez um gesto de levar a mão ao rosto, mas o braço nem sequer se mexeu: estava entalado no corredor, os dedos roçando a minúscula porta do seu quarto. Notou que o mal-estar era causado pela posição (de cócoras) e por se encontrar totalmente envolto pelas paredes, teto e chão da sala, as costas voltadas para a varanda do 8º andar. Qualquer movimento mínimo, ir para frente, recuar, encolher os braços, uma tentativa que se anulava com barulho de móveis esmagados. O apartamento estava vazio? Onde se enfiara a mulher? E a governanta? Estariam do mesmo tamanho? Veio um arrepio de pânico na nuca. Lembrou apenas que tinha dormido no sofá – esmagado pelo dedão – com a tv de plasma ligada. Ali estava a tv, parecendo um desses brinquedos japoneses de ávidos miniaturistas. Quando tentou tocar com o dedo mindinho, um barulho de cream-craker: a tela em cacarecos. Sentiu todas as suas funções vitais, a respiração pausada, o coração acelerado. Começava a duvidar se aquilo ali era um apartamento, se não era uma brincadeira de amigos, uma maquete tecnológica. Bastaria arquear os ombros e a tampa sairia dos encaixes e ele apareceria no meio de rostos conhecidos ou talvez num show de mágica, sabe-se lá. Mas constatou, assustado, que o teto ruíra um pouco acima de sua têmpora. E, susto, a outra mão enfiada até o fundo da cozinha, sentia a vibração inorgânica de uma máquina de lavar. Aliás, bastava respirar um pouco mais forte: o deslocamento de ar já derrubou alguns quadros na parede. Ele não teve dúvidas. Estava numa reprodução exata do seu apartamento, um brinquedo de última geração com capacidade para simular o mais extenso aparato de uma realidade. E já estava se cansando da brincadeira e prestes a tomar uma atitude mais drástica (suas costas doíam mais e mais) quando a porta da frente fez um barulho e a maçaneta começou a girar. Agora sim, ele veria mais uma função, talvez movida à pilha. Em vez disso, entrou um dedo: fez uma pequena inspeção às cegas, encontrou uma série de botões e foi desligando pouco a pouco, a luz matinal, a corrente de ar, as vibrações do apartamento, o sistema de travas, o alarme, além da dor nas costas, a sensação de claustrofobia e – último impulso do pânico – sua consciência.

*** ANDRÉ RICARDO AGUIAR nasceu em 1969 em Itabaiana/PB. Desde os 4 anos mora em João Pessoa. Cursou Letras na UFPB Colaborou em diversos jornais e revistas, estreando na poesia com A Flor em Construção (Editora Ideia, 1993) e com Alvenaria (Editora UFPB), ganhador do prêmio Novos Autores Paraibanos. Fundou com os poetas Antonio Mariano e José Caetano o selo editorial Trema. Como contista, teve trabalho publicado em Portugal, na revista Ficções. Membro-fundador do Clube do Conto da Paraíba. Autor de livros infantis, publicou O rato que roeu o rei (Rocco, 2007) e tem no prelo Pequenas Reinações (Escrituras).


Luxo e halitose hoje a rua me ofereceu seu bafo quente. um bafo que não vinha do chão, do céu ou do ar. era intrínseco, como se sempre estivesse estado ali, e eu, por pura inércia, não o tivesse sentido a subir pelas minhas pernas, percorrer a espinha e adentrar todos meus poros e entranhas. hoje a rua estava lá. não choveu. a temperatura estava alta e minhas contrações se seguiam ininterruptas como os gritos daquela criança que corria descalça pela estação sem se fazer entender. e quanto mais sua mãe lhe espalmava, mais ela reagia. em histeria. eu gostava do pai. - não benzinho, deixe que hoje eu dou um corretivo pra essa birra. e então se trancava com ela no quarto, tirava o cinto das calças e batia nas paredes. - você tem que chorar, senão ela descobre nosso segredo. foi assim que aprendi a fingir. dissimular dores na infância e gozo quando pensavam que eu era mulher. me fiz atriz por pura sobrevivência, como um sobrinho a se fazer de doido pra fugir do imperador louco. eu sobrevivi. no meio do mar, quase a chegar na praia e ver aquele enorme, hediondo de tão enorme transatlântico. oponente. ostensivo. ele passou por mim cheios dos cristais e velas que nunca terei. eu cheguei à praia. nua. não viva, sobrevivente. passei pela rua imunda como quem passeia por um boulevard da quase-pólis-pósmoderna. mais umas baforadas e cheguei à estação. vi algumas locomotivas chegarem e partirem. quis deixar de ser os trilhos a suportar tantos vagões e sua gente requintada. miserável. eu quis ser como aquelas grades que separavam os destinos. uma grade. uma grade apenas. que apesar de forjada em ferro maciço, era oca. norte e sul. o varredor das ruas passou. ninguém o notou. ele varreu os tocos de cigarros que estavam em meus pés e que eu não havia fumado. talvez as pessoas devam mesmo jogar o lixo nas ruas e assim garantir um prato de fome pra sujeitos como ele, um ponto de ironia pra millôr. ele varreu meus pés e não me notou. eu era como ele. mesmo que de barriga cheia. de gente, não do mundo. e então o meu trem chegou.

*** NINA RIZZI (1983). Historiadora, escritora e militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Sem raízes, vive atualmente em Fortaleza/CE. É autora do livro de poemas: Tambores pra N’zinga e tem textos e poemas publicados em antologias, nas revistas VacaTussa e La Papa Ruchada (Argentina), e em várias páginas da internet, entre elas, a revista Germina, Garganta da Serpente e Balaio Porreta. Faz parte de Dedo de moça — uma antologia das escritoras suicidas (São Paulo: Terracota Editora, 2009). Edita o blogue Ellenismos e escreve no Putas Resolutas.


Azuis Ao dobrar a curva do silêncio, plantou, na planície mais longínqua do tempo, a semente arisca da espera. Na primeira colheita, de um verde irresoluto e tímido, decidiu afugentar os pássaros de agouro com um espantalho de espigas amarelas, desengonçado e maltrapilho guarda-luz. No segundo plantio, entre um vendaval e outro, imerso em arrepios cinzentos e lúgubres, arou a videira com a lâmina escura e afiada das próprias unhas; sulcos violetas, veredas de sonho, lirismo, utopia, som e banzo de truz. Meses depois, na terceira (e teimosa) lavoura, a terra, enfim, engravidou. Para, afinal, perante uma leve sinfonia de êxtase e espanto, testemunhar o branco milagre de vê-la infestada (e orquestrada) por candentes, musicais e oníricos azuis.

*** CLAUDER ARCANJO é natural de Santana do Acaraú (CE), mas tem Mossoró como sua terra por adoção. Engenheiro, escritor, poeta, cronista, gosta mesmo de ser apresentado, e saudado, como professor. Um dos idealizadores do Projeto Pedagogia da Gestão, com várias realizações voltadas para gestão, educação e cultura. Cronista semanal dos jornais Gazeta do Oeste e O Mossoroense (Mossoró-RN), recebeu menção honrosa do Prêmio de Poesia Luiz Carlos Guimarães 2003, promovido pela Fundação José Augusto – Natal/RN. A reunião de contos, intitulada Licânia, marcou a sua estreia em livro em 2007. Lápis nas Veias (2009), que reúne minicontos foi o seu segundo trabalho publicado. Em 2011 publicou o seu primeiro livro de poesia: Novenário de Espinhos.


Só pode ter sido Estavam lá, os dois conversando sobre a partida... ou chegada ao ponto final daquele torneio. Dependendo do ponto de vista de cada um. - Pois foi 'cumpádi'... Do jeito que tô lhe dizendo que vi, com esses 'zóio' que a terra há de 'comê'. Quatro 'pênati' perdidos... Um atrás do outro... Parecia 'mardição'. Lembrei-me logo da 'mardita' guerra que inventáro de fazê contra eles... Aquela do tempo de nossos avôs, lembra? - Sei... Num foi aquela em que nós se juntemo aos uruguaios e argentinos pra desmantelar eles, na tá da tripaliança? - Pois foi... Só pode ter sido vingança das almas daqueles 'infitete'. O peste do 'quipa' deles pegou bola até com os 'quiba' lá dele! - E daí... Qual foi a descurpa? - As de sempre. Esses peste dos 'jogadô do Brasí' só se preocupam em ganhar muito e jogar pouco. E tavam lá, nas rádio e televisão: “É assim mermo... Quem num faz leva... futibó é uma caixa de surpresa... o negócio é levantá a cabeça e partir pra outra... E por ai vão. Só sei d'uma coisa. Contra esses tá de Paraguai, 'tumamo' no quirrimboque! E 'vortemo' pra casa com o rabo entre as pernas. - Então. Pra nós foi como se fosse outra retirada da Laguna, que nem dizia o véi meu avô? - Só pode...

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KYDELMIR DANTAS é poeta, cordelista e pesquisador, autor de várias obras nestes gêneros. Filho de Nova Floresta-PB, mora em Mossoró-RN.


O andarilho A luta é vã. É como erva daninha. A inutilidade o persegue. Cabisbaixo e solitário segue seu destino. O ar se renova entre seres maltratados. A imagem é massacrante aos olhos. O que tem de puro no outro, além de sangue e dor? Ao ver o sorriso inocente destoante da cena, ensaia uma lágrima, que evapora. A história se repete sempre. Não tem meio termo. O alimento sobreviverá como carniça ou se transformará no mais vil dos predadores. Mais adiante, encontra o movediço pântano. É cativante. Lembra o riso e o rio, com suas margens inertes e dúbias. O trágico-cômico dominando a paisagem. Algo o prende a terra. Aos poucos, a cabeça nas nuvens faz com que se liberte. Sorri. Não olha para trás. A força que o move vem de dentro. É quente. E brilha. Entre pedras ásperas, encontra um lugar para descansar. Fala e escuta a si mesmo. A palavra é cheia de silêncio, significados, movimento. É verbo. Descobre que o caminho é a sua própria presença. Onipotente. Olha o céu. Sente que não está sozinho. Tem a melodia das estrelas, nuvens e pensamentos. A lua é o seu farol etílico. O sol, a ponta do baseado de Deus. Alimenta-se deles. Inanimado, caminha errante. Ele, e quase toda a humanidade.

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TRIUNVIRATO é pseudônimo de ANA M. BATISTA, seridoense, 46 anos, admira Cervantes, Machado de Assis e Nietzsche pela ousadia e poder imagético de suas narrativas. A sua aventura na escrita surgiu através de pseudopoemas e haicais, intercalados com crônicas solitárias. Não tem formação acadêmica e publicação nesta área.


O valentão e o oposto A juriti já penou? O frofrou do susto é de perder o tiro do caçador desprecavido: a jitirana fechada, de escurecer a verdura e de se perder a vereda. A pós. E era pra menos? A afoiteza nos sorvos do mel e da água ardente na garganta o embebedou. E apois? Não arrenego o que vi. Aconteceu do jeito do acontecido. Não nego nem disnego - as acontecências foram vindo, e deu no que deu: o menos indicado para pôr fim àquele maldito, o meu pacato compadre Teotonho rasgou o cujo, Ditão das Coivaras, com a faca cega a propósito para a empreitada e o sujeito com a rodilha de fatos nas mãos a se debater, mas o ror de gente nem não aí estava para a dor daquele danho, tão mequetrefe o coiso em suas desmesuradas maldades. O outrora valentão, a choramingar, com os olhos embaçados, ainda viu a Dama da Foice se aproximar e desfaleceu pela última vez, para nunca mais.

*** ELILSON JOSÉ BATISTA é nascido em Pau dos Ferros e radicado em Mossoró. Graduado em Letras e bacharel em Direito pela UERN. É poeta e músico autodidata. É responsável pelo blog www.rapaduracult.blogspot.com


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exposição


Pela segunda vez, o artista plástico potiguar, de Areia Branca, Anchieta Rolim, envia à Revista Cruviana estudos inéditos de seus próximos trabalhos, intitulados aqui de Abstratos. Mais sobre Anchita Rolim no: www.wix.com/anchiet7/rolim


Anchieta Rolim


Anchieta Rolim


Anchieta Rolim


Anchieta Rolim


Anchieta Rolim



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A Virgem Sagrada Outros demasiados séculos se passaram antes que o Inverno imperasse na zona. Renunciara-se antes, os deuses dos sacerdotes e dos Cabrais e elegera-se o rei Ngonyama como o régulo mais rei do Deus me livre, como se antes não fosse! Mas motivara-se a sua acessão ao rei Kuhanya, como coroamento do seu trono que era promissor e demasiado aterrorizante o suficiente para proteger as terras que já eram designadas Livre-me Deus, tendo na mesma altura, se elegido duas raças humanas distintas: as donzelas e os não me toques, cujos seus deuses divergiam, igualmente. Era o princípio do fim das misturas entre as impurezas e as mulheres que seriam do futuro mais promissor da terra e inventariam um Deus me livre que trouxesse mais deuses poderosos, com potenciais para conquistar outras redondezas. Acreditara-se desde os anos descendentes que as donzelas eram as maiores e melhores feiticeiras que as terras podiam produzir com tamanha produtividade e excesso de conquistas sem fim, principalmente, se se efectuasse o sacrifício da donzela mais frondosa, oferecendo-a ao homem mais forte da zona, que não ejaculara nunca, e se uniam na noite do luar mais inominado. Todos concordavam com estas deontologias satânicas e promissoras, comprometendo-se a não abandonar as tradições mais antigas dos deuses da sorte e prosperidade. Os não me toques também foram distinguidos dos Zé-ninguém e de outros adimonizados, foi como se tivesse separado a água do óleo. Estes já nasceram diferentes. Aproximavam-se outros tempos em Deus me livre. Acompanhando o abandonar das tradições que já ganharam e tomaram espaço entre as raparigas de Maputo e doutras cidades. Passava-se da era dos acontecimentos, tendo se assinalado no próximo século com a ascensão dos não me toques e os seus respectivos deuses. Contara-se que os não me toques sempre foram intocáveis. Nunca alguém os pudesse tocar, nem eles mesmos, podiam o fazer... sob decreto nenhum! Nasceram numa altura em que o Deus mais poderoso distribuíra os poderes mais temidos da terra, por isso, foram sempre temidos e aveniados, como um ferro quente. Nunca antes se vira coisa igual! Nem mesmo o Umbeluzi, com a quantidade de crocodilos já foi tão temido algum dia, muito menos o Zambeze com a sua energia eléctrica dispersara gente da sua aproximação, contrariamente, pela natureza da desgraça, as maiores comunidades, são dependentes de tal água para sobrevivência, mesmo havendo, a cada dia, relatos de mortes. Cada vez mais a verdade se expressava na vida dos nativos. As donzelas tomaram por outro lado, o seu poder, na noite de transição onde, habitualmente, faziam-se grandes mudanças na zona. As virgens perdiam a virgindade, as corujas tomavam o espaço e outros terrores faziam-se de habitantes em todo Deus me Livre. Juntando todos os feiticeiros, desde o nordeste ao sudoeste, mesmo passando pelos céus e pelas terras, escavando qualquer verdade que fosse, mas nenhuma donzela seria descartada. Nenhuma mesmo. Mandaram encerrar todas as fronteiras, principalmente a mais infernal, do lado da vila do Leproso, para não permitir que nenhum ser humano daquela espécie se fizesse presente nas escolhas e para não aborrecer os deuses que consagrariam a distinção, tão esperada.


Seria uma cerimónia que contaria com a presença de todos os espíritos mais temidos. Prepararam todas as mulheres da zona, incluindo as mais férteis, como as esposas dos casa sessenta e cinquenta, que pareciam um jambaloeiro de tanto dar filhos, aliás, foram assim chamadas porque constituíam famílias com esses números, Sessenta e cinquenta. Essas nem mesmo os cegos as desconhecem, mas tinham que estar lá, na lista de adivinhamento das virgens sagradas. Recolheram todas as mulheres, incluindo os bebés mais recentemente nascidos. Não podiam, em hipótese alguma, a virgem não se achar. Estavam todas no centro da vila, nas palhotas da praça dos deuses, lugar sagrado que fizera a vila merecer o nome de Deus me livre, bem em frente das matas de outros Swikwembos e estavam nuas, do jeito como chegaram a aquelas terras. Todas estavam sem roupas, feitas de galinhas depenadas na sexta-feira santa! Nunca antes se vira coisa igual. Todas as mulheres estavam expostas aos olhares dos homens. Uns tinham coragem, enquanto outros tinham a esbanjar. O Padre, não tivera coragem de olhar para a mulher com a qual trai o seu deus, e por outro lado, a honra de outras raças nobres estava em causa. Todas as mulheres estavam lá. Filhos que olharam as suas mães em estado de nudez. Atormentador. E o rei Ngonyama, atento aos detalhes de cada mulher, ia apontando os detalhes que lhe interessavam. Nunca antes o corpo de uma mulher foi visto com tanta inteireza! Nada estava oculto, o rei fazia questão de confirmar. O Deus das donzelas e a virgem sagrada descobriram-se naquela assustadora cerimónia, recheada de verdades, antes obscuras em muitos olhos. Pousaram todas as mulheres do Deus me livre, algumas com peitos a bater os joelhos e outras mais lisas que uma parede. Surge uma voz repentina no meio do silêncio! - Grandes homens, mulheres e mais novos. Deuses dos Mulungos e dos Ngonyamas. Deuses dos Ngunis e outros espíritos das nossas terras. Eis as donzelas... - Faltou o invocamento dos nossos deuses! - Reclamaram de imediato os espectadores da cena. O rei silenciou-se perante os gritos que vinham de forma abstracta, mas eram vozes diferentes reclamando o invocamento dos seus deuses mais supremos. - Nós somos Ndaus, mas não ouvimos os nossos deuses! - E os Ngungunhanes, Zuid, Nwamatibsana? Nós é Changana e Ronga. – Atacavam outros. Todos e outros reclamavam, incluindo os Macuas e Macondes que também viram os seus filhos a tombarem para a libertação daquelas terras! O rei não sabia o que dizer e determinara instantaneamente: - Esta terra não é dos Ndaus, nem dos Changanas, e se mais um quer reclamar, mandarei os feiticeiros mais temidos e confiados para os amaldiçoar. Vocês são imigrantes desconhecidos. Deus me livre não é vosso – Disse. Retomando ao seu discurso e sem mais interferências, proclamara. - Daqui sairá a donzela de que se precisa para oferecer os espíritos para o sacrifício que salvará os filhos desta terra, e mais nova delas, será sacrificada para o mais poderoso homem na noite mais próxima de lua cheia. Iniciava-se assim o rito que punha a prova o feiticeiro de confiança do Rei


Ngonyama para adivinhar quem são as donzelas e que de seguida o faria sobre o respectivo Deus que mereceria o presente sagrado. E foi assim, até que se distinguira Mhoki, como o Deus representante mais supremo das mulheres preparadas para o futuro do Deus me livre e escondera-se a divida mulher para o sacrifício da noite de luar. Assim, as trevas estavam libertadas para dominar naquelas terras e o céu se encheu de escuro que até hoje conduz os destinos de muitos. Nem todos a reconhecem como a terra do Livre-me Deus, mas a verdade é que os dias já se passaram e a virgindade depois de passar por muita valorização, passou a ser a meta que nenhuma mulher quer atingir, e a sociedade, essa, nem se quer a valoriza mais. Mas o nyanga se responsabilizará pelo achamento da tal virgem. Seus os dias que passaram…

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EDUARDO QUIVE, é escritor, actor e jornalista moçambicano a resider em Maputo. Nasceu ao oitavo dia de sexto mês do ano 1991, no calar das armas da guerra civil de Moçambique. Activista cultural, fundador do Movimento Literário Kuphaluxa, sedeado no Centro Cultural Brasil – Moçambique. Na escrita literária navega em estórias longas e curtas, crónicas e poesia, neste último género tem no prolo o seu primeiro livro intutulado LÁGRIMAS DA VIDA SORRISOS DA MORTE. É editor da Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona, editada em Maputo e correspondente do jornal CULTURA de Angola, além de colaborar com a imprensa brasileira e portuguesa.Identifica-se, igualmente, com os pseudónimos, Cruz Salazar e Xiguiana da Luz. Blogues pessoais: Noites D'alma e Quivismo.


De como vaca morta se formou De primeiro era apenas a casa de pau-a-pique encravada ao pé dos serrotes, essas pedras gigantescas cuspidas pelo ventre seco da terra sertaneja; também de primeiro, só tinha um casal, seu Pedro e dona Maria, proprietários daqui, Fazenda Vaca Morta, que se reproduziram em oito crias, destas, três fêmeas e as demais, machas. O primeiro que nascera numa noite escura de Agosto 55 não vingara. À boca da noite, Maria perigava parir e pariu, já tarde, na friagem da noite, sob uma carroça velha que o marido havia pedido emprestada ao da fazenda vizinha para levá-la à cidade. Manoel, o Pequeno, como ficaria conhecido entre os irmãos que mais tarde viriam, nasceu já morto, para desgosto do pai: o primeiro filho homem levado pelas amarras cruéis de um destino-a-deus-pertence. O féretro fora transportado numa rede branca em lombo de jumento e enterrado feito semente numa cova, sete palmos do pequeno cemitério alojado na Fazenda Gavião, regado às lágrimas de um pai inconsolável. A mãe sequer tivera oportunidade de enterrar o modelo de gente, ficara mesmo em casa cumprindo quarentena, de repouso, sob cuidados e caldos de galinha ministrados pela irmã caçula, até recuperar as forças quebradas em seis horas de difícil e trágico parto. A fazenda então por muito tempo resumia-se a ela, Maria, quando da partida da irmã; sozinha, entre serras e serrotes, feito lagartixa ou cobra que se esconde nas locas do sertão, entregue à própria sorte, sem nenhum veneno que pudesse destilar quando se sentisse atacada, nunca se sabe, porque Pedro, este tinha de suster a ela e a casa. Deslocava-se quinzenalmente mais de quarenta e cinco quilômetros para as salinas, Macau. Às vezes, quando no período de maior produção acabava mesmo era arrastando-a do sertão à beira mar. Era melhor. Gastava-se menos. A alimentação, o mangue e o mar dava-os; deslocamento, minutos resolviam; saudades, instantes matavam-na. Houve mesmo um espaço de dois anos após a morte do primogênito que os dois armaram barraco de sapê e lá ficaram por todo esse tempo. Certa noite, quando a produção ia mal, janeiro, mês de inverno, Pedro chegou ao barraco preocupado com o peso do futuro às costas. A mulher, ainda bem, pelo menos, por enquanto, não amojara; senão como seria, nas miseráveis condições, sustentar a ela e uma cria. E pensamentos iam e viam, revezavam, bons e ruins, alegres e tristes, bonitos e feios... Mulher de bucho, sempre ouvira, deveria comer por dois, por ela e pelo bezerro, para sustê-lo no ventre. Achava que fora por isso mesmo que o Pequeno nascera morto. A falta de sustança. Da preocupação, debulhou-se em lágrimas e o consolo da mulher, uma trepa amargurada, resultaria em Antônio Francisco, feito a sêmen, óvulo e lágrima. Francisco de sobrenome porque nascera às vésperas do dia dos Chagas, aquele fiel protetor dos pobres sertanejos, imaculado em suas vestes marrons cingidas por um cordão branco, aquele que no ano seguinte receberia generosas ofertas, no Canindé, depositadas aos seus pés, não só por Maria, Pedro e Francisco, o humano, mas também do de colo José, o segundo, nascido em meados daquele ano. O casebre agora estava bem mais receptivo. Na sala habitavam uma rede para o sono de Francisco; do lado, um berço, único móvel de proveito da casa. O resto era rebotalho, onde dormia inocentemente Zezinho, mais tarde Zé Correa. A fazenda, pois, não era mais só Maria, mas o caduque seu com os filhos, o ralho com o mais velho, o cocoricó de algumas galinhas no terreiro que se criava à restos de comida. Até tinha o mugido de uma vaca, a Baiana. Menino sem leite de vaca num vinga, num fica forte. E, por isso mesmo, Pedro depositara os três últimos salários nessa vaquinha parida. As salinas de Macau ainda lhe renderiam outros frutos, outros filhos.


As quinzenas, quinze seguidas, quase um ano pós o nascimento do caçula, não vingava as trepas, é verdade, mas bastou mesmo só esse tempo para que janeiro de 68 ouvisse no silêncio da noite o berro de uma menina, a primeira, muito bem-vinda, já havia dois machos, estava mesmo na hora de nascer uma menina para a ajudar Maria com os serviços da casa e da fazenda. Batizada de Maria das Graças, essa foi a cria que quebrou os arreios de vaca parideira em Maria; ano após ano Vaca Morta veria o nascimento doutras crias: 6 de janeiro de 69, Manoel dos Reis, em homenagem aos três Reis Magos, Baltazar, Belquior e Gaspar; novembro do mesmo ano, José Nazareno, para diferenciar do primeiro José e também porque nascera próximo de outro Nazareno, o Jesus Salvador. Depois veio Josefa, nascida em junho de 70, mas registrada com nascida ao gosto de Agosto do mesmo ano. Nunca soube certo, ela, sua verdadeira data de nascimento. Mais tarde, as raízes do tempo desmistificaria seu futuro: com datas e sem data de nascimento própria foi internada num manicômio; recuperar-se-ia, mas agora vivia a vagar de porta em porta como curandeira, de ventre caído, espinhela caída, carne triada, mau olhado. Dos tempos de manicômio recordava, a longa data, a visita, segundo dizia, do Divino em pomba e pessoa, tendo aí recebido o dom de cura aos doentes. Ainda teve Paulo, nascido a 29 de junho, dia do Santo e São Pedro; fraquinho, mas as papas de farinha com água e sal e as garapas de rapadura deram bucho e sustança aquelas patas e braços frágeis. Maria achava mesmo que este também não vingaria; Dona Maria de Jesus, parteira da redondeza, que se mudara a pouco e em tempo fizera os dois últimos partos de Maria, dizia mesmo que as crias, a primeira e a última, a raspa do tacho, dificilmente vingavam: uma porque o casal não sabe compor as forças do feto, outra por de tanto fazer uso do esperma, o homem já se encontrava fraco para dá-lo sustança. O tempo, no entanto, provaria o contrário. Maria para compor aquele cenário sertanejo, não se resumiria às sete crias; aquele casebre paua-pique ainda receberia a visita de um rebento, este sim a raspa do tacho, fêmea, Maria José, que nascida na Trindade Santíssima só poderia receber os nomes laterais, Maria e José, visto ser o demais, Jesus. Desses filhos Vaca Morta não resistira apenas à casa de pau a pique. Chegaria à viela. Mas isso são outras histórias.

*** PEDRO FERNANDES DE O. NETO (1985). Poeta Nascido em Lajes, Rio Grande do Norte é mestre e doutorando em Letras. Editor da revista 7Faces e do blog Letras in.verso e re.verso e Coordenador do projeto Um caderno para Saramago.


Dorcelino Dorcelino estava indo embora. Ele não sabia para onde, mas precisava ir embora. Ir embora de todos, ir embora de tudo, ir embora pra lugar nenhum. Dorcelino queria sumir de si mesmo e tentar descobrir o lugar que era dele nesta terra. Certamente não era ali. Ele tinha os pés grossos do cascalho e da terra, tinha a pele curtida do sol nas colheitas dos cafezais, tinha as mãos ásperas e as unhas sujas. Aos 48 anos Dorcelino não tinha um único dente na boca. Mas Dorcelino era gente. Ele sabia que era gente. Ele não tinha pai nem mãe conhecida, nunca entrara em uma escola nesta vida, mas conhecia todas as letras e números. Fazia contas como nenhum outro no cafezal, escrevia versos para as noites de viola nos terreiros das fazendas. De 'ouvido' aprendera a tocar. Ele só era gente. Mas agora ele descobriu que ninguém o via como gente. Era tudo mentira. Doía naquela alma velha saber que não valia nada. Seu afeto era visto como interesse. Amava aquela gente, e os amava de graça. Ali era sua casa. Admirava aquela gente. Sorria para eles pois achava que eram gente como ele. Mas não eram. Eram feito de uma outra matéria, uma matéria que Dorcelino abominou no dia que se deu conta que existia. Descobriu que eram feitos de valores falsos, eram feitos das diversas faces da hipocricia libertadora que é bonita no discurso, mas que na pratica era puro nojo de gente como Dorcelino, pobre, preto e iletrado. Dorcelino agora precisava ir embora. Seu peito ardia de uma dor profunda, a pior que um ser pode ter: a descrença. A descrença em tudo lhe socou o estomago com fúria. Não havia nada em lugar nenhum no qual ele ainda acreditasse Dorcelino agora não acreditava mais em si próprio. Todo o esforço de sua vida fora em vão, e agora nem em si ele acreditava mais. Mas a dor maior é que agora ele não acreditava nos seus semelhantes e sem acreditar no semelhante ele não podia mais crer em Deus. Dorcelino precisava descobrir o que era a vida afinal. A vida não podia ser seus sapatos. Ele sabia que um sapato bonito garantia que ele fosse atendido mais rápido na mercearia, mas a vida não podia ser suas roupas. A vida não podia ser seus cabelos. Ele sabia que se sua mulher tivesse cabelos bonitos e cheirosos ela era melhor tratada.


Mas a vida de sua mulher não podia ser seus cabelos. Ele precisava ir embora antes que lhe convencessem do contrário. Antes que lhe convencessem que era um medíocre e sujo pedaço de pano velho. Dorcelino apertou contra o peito a carta que seu senhor lhe dera. Fez que não viu a fingida preocupação quando lhe perguntaram para onde ia. _ Eu? Eu só vou embora “Seu Dotô”. Carece saber o meu paradeiro não. Faz de conta que morri. Faz de conta que eu nem existi “Seu Doto”. Mas não esquece de tomar seus remédios “seu doto”... ...e antes que Dorcelino tivesse terminado a frase o seu senhor já havia lhe dado as costas e entrado na Casa Grande. E Dorcelino se foi, como se nunca tivesse existido.

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ELIANA KLAS é Secretária Graduada na Universidade Nove de Julho. Sempre quis ser secretária, nunca pensou em ser escritora. Não sabe se é contista ou cronista. Sabe apenas que escrever é algo libertador. Por isto escreve.


Operação Papai-Papel “Nunca tente ensinar um porco a cantar. Você perde seu tempo e ainda perturba o porco.” (Paul Dickson) De longe, podia-se avistar uma fileirinha de pessoas à semelhança de formigas subindo o serrote que rodeava a cidade. Dois Urubus as acompanhavam do alto de seus preguiçosos vôos, esperando para comer o primeiro que tombasse. O Sol caía impassível sobre os corpos que, sem exceção, eram esbranquiçadamente doentios. Andavam curvados, tropegamente, carregando mochilas grandes e pesadas nas costas. Em pouco tempo, os pontinhos foram desaparecendo da vista das pessoas que os olhavam do chão. Eles haviam entrado numa espécie de caverna, de esconderijo, que por ser esconderijo, era secreto. — Finalmente! Eu já estava arquejando! – disse, quando adentrou na caverna, um rapaz que usava uns óculos de lente grossa. — Aqui estamos a salvo da necrosada cultura que degenera passivas vítimas de um sistema por natureza excludente e alienante! – disse um barbudo gorducho que durante a fala acumulava cuspe nos cantos da boca. — Bom... Vamos direto ao ponto. – disse um mocinho bonito que aparentava ser o líder do singular grupo. Eram dezoito membros: dez homens e oito mulheres. Não faltava em cada um aquele ar inteligível conquistado a muito custo com leituras de obras no original russo, além das de análise do discurso de genocidas e estadistas que, não raramente, se confundem. — Luís Carlos! Angélica! Acho que não precisa que eu explique mais uma vez o nosso regulamento interno... – gritou enfurecido o líder com um casal que se agarrava desesperadamente em um recanto dando continuidade à fórmula clássica de trair o partido pelo amor físico. Todos abriram as mochilas. De lá, retiraram livros volumosos, papéis avulsos, agendas, litros de uísque quente, pó de café, cachimbos e cigarros. Detalhe não menos importante era o de que todos ali eram avessos à tecnologia, no momento que não precisavam dela, claro. Colocando com sutileza o notebook sobre um tronco de árvore que havia bem no centro do esconderijo, o líder iniciou o discurso do dia. — ABC! – gritou ele. Eram as palavras, as letras, de ordem, que foram respeitosamente devolvidas em uníssono pelos membros. Na sequência, todos levaram o dedo indicador e o polegar até a boca, molhando-os de saliva, como simulacro do gesto de passar as páginas no momento de leitura. Era o cumprimento comum a modo do braço estendido dos nazistas. — Bom... Ontem saiu uma nova pesquisa e ela diz que 97% dos alunos do curso de Letras não sabem ler. 2% sabem, mas não gostam; logo apenas 1% dos alunos de Letras sabe e gosta de ler. Meus caros camaradas, nós somos esse 1% e, como exemplo que nos cabe dá, não podemos deixar a coisa como está. A oratória foi interrompida por salvas de palmas. — Então, com a preciosa ajuda do nosso serviço de inteligência, criamos um plano que dentro de pouco tempo fará com que toda a população de nosso país se volte para a leitura, não somente nossos colegas de curso! – continuou o líder, para ser novamente interrompido por palmas e gritos de ABC.


— A operação se chamará “Papai Papel”, como o nome sugere, invadiremos as moradias durante a madrugada, depositaremos clássicos da literatura como Shakespeare, Dostoievski, Tolstoi, Joyce e também escritores brasileiros como Machado de Assis, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, entre outros. Em troca disso, surrupiaremos livros de auto-ajuda, best-sellers tens, astrologia e aqueles resumões para concursos e vestibulares. — ABC! ABC! ABC! ABC! – esbravejava todos, fazendo tejos e pebas evacuarem das brechas das rochas amedrontados. — Hoje será o primeiro dia de ação, então, vocês têm o dever de invadir pelo menos uma única moradia. Boa sorte a todos e avante! E os gritos de ABC não mais pararam. *** Mal sabiam eles que o plano terminaria tragicamente. *** A coisa se deu por volta das três da manhã, o barbudo do cuspe nos cantos da boca invadiu a casa de um pastor, não encontrando ali livro de auto-ajuda, nem de concurso, nem best-sellers juvenis. Decidiu por levar uma bíblia de edição luxuosa, cujas letras da capa eram de ouro. No seu lugar, deixou “Decamerão” de Giovanni Boccaccio. Até ai tudo transcorria dentro da normalidade, embora o barbudo tenha ficado em dúvida se a bíblia encaixava-se ou não na lista negra da operação. — Eu não tenho medo de você Satanás! – disse de supetão o pastor que levantava-se ao ouvir um barulho vindo da sala. O pastor segurava um martelo na mão direita. — Meu Deus é o Deus do impossível Satanás! Fazes, pode fazer essas suas caretas! – disse novamente o pastor que se aproximava do vulto que tentava, sem sucesso, voltar pelo buraco no telhado que entrara. Como as banhas não eram capazes de passar entre uma ripa e outra do telhado e vendo que não escaparia o barbudo esboçou uma tentativa de explicação. —Mas... Mas... Eu não sou o Satanás, sou só um estudante de Letras... — Não importa com que disfarces vos traveste-se traiçoeira criatura! Cairá sobre ti o peso do martelo divino, o martelo que ao mesmo tempo em que controla abençoa o mundo! Ouviu-se uma pancada seca ribombar no silencio da noite. Era a cultura que, desamparada, morria.

*** SAMUEL DE OLIVEIRA PAIVA nasceu em 14/12/1992, natural de Rafael GodeiroRN. Acadêmico do curso de Direito pela UERN, Mossoró. Desde 2009 publica os mais variados tipos de produções literárias no blog pessoal (http://oefeitocafeina.blogspot.com/), já teve poesias publicadas no jornal Gazeta do Oeste. Publicou em março deste ano, em parceria com outros autores, o livro “Poesia Clandestina” pela Editora Queima-Bucha, com selo do Jornal Clandestino.


O banquete A paisagem é desoladora, não há uma árvore sequer que dê um pouco de sombra. O solo rachado, por falta d'água e da temperatura escaldante, parece com as rachaduras que tanto doem em seus pés, fazendo com que ele caminhe lento. A energia do seu corpo já está se esgotando, mas não pode parar, embora as dores sejam cada vez maiores. Em seus cálculos, faltam uns trinta e poucos quilômetros para a próxima cidade e a única alternativa é seguir adiante, porque lá, quem sabe, ele encontre um pedaço de chão para recomeçar sua vida. O sol castiga-lhe o rosto que, aos poucos, vai soltando pedaços de pele das bolhas de queimaduras. Os lábios estão secos, a saliva não é mais suficiente para umedecê-los. Caminha mais um pouco e toma a última gota de água que resta na cabaça. Agora sim, está à mercê da própria sorte, sem comida, sem água e sozinho. Começa então uma confusão entre o seu eu e o seu inconsciente. Dúvidas e mais dúvidas passam pela sua cabeça. O que eu fiz para merecer estar aqui nesse fim de mundo? Eu sou um pequeno agricultor e apesar das dificuldades eu adorava minha vida. Por que eu perdi a propriedade que herdei de meu pai, que com muita dedicação me ensinou seu ofício? Lembra-se também da ultima refeição: farinha com rapadura e um pouco de coco seco, aquilo sim, foi um almoço e, o melhor ainda, foi o belo copo d'água que eu bebi depois ha, ha, ha... Sua gargalhada de desespero corta como uma lâmina de samurai o silêncio daquela paisagem assustadora. Ele continua viajando em seus delírios. Lembra-se da mulher e da filha que ficaram para trás. Não aguentaram os percalços da longa jornada. A mulher morreu de picada de cascavel, que estava com o bote armado para um preá, quando, por azar, ela cruzou o seu caminho. Levou uma noite inteira e parte da madrugada para poder morrer. Era uma mulher de fibra, lutou até o fim pela vida. Foi uma morte dolorida, nenhum bicho merecia tamanha dor, quanto mais um ser humano. A filha morreu de fome. Para ele foi pior que a morte da esposa, se é que existe uma morte melhor ou pior que a outra. A criança em sua inocência recusava a comida, por ter dentes cariados. A rapadura e a farinha causavam-lhe dores insuportáveis e ela não podia mastigar, embora a fome fosse de morte. A pobre menina não aceitava aquele alimento e assim foi até morrer. Ele ficou tão desesperado pela perda da filha que não teve coragem de enterrá-la. E assim foi, seguindo a própria sina. De vez em quando, olha para cima e vê uns urubus que, por semanas, o seguem como se previssem sua morte. É o instinto do animal. Em um certo momento de lucidez, ele lembra-se de uma discussão travada entre homens bem vestidos, dentro de um prédio da prefeitura, para ver quem ficaria com o melhor pedaço de chão, alegando que os posseiros que ali estavam não possuíam as devidas escrituras e teriam de ser despejados de suas próprias terras. Lembra-se também de um poço que tinha nos fundos de sua propriedade de onde tirava água para o consumo da sua família e também para o sustento dos seus animais. E continuava com seus delírios: belas cabras, pena que não tinha pasto, mas elas, por outro lado, comiam de tudo e ainda davam o leite para minha filhinha. Perdido em seus pensamentos, ele se distrai e tropeça em uma cabeça de vaca que há anos está ali: seca e incrustada no chão como se fosse uma pedra. O chifre atravessa-lhe a perna como uma faca cega e ele, já esgotado de tanto sofrimento, desaba no chão aumentando ainda mais a ferida. Depois de muita luta, consegue, enfim, tirar o osso de suas entranhas. O sangue jorra em grande quantidade, então, ele tira os restos de trapos que lhe serviam de camisa e faz uma espécie de atadura. Enche o ferimento de areia para estancar o sangramento e depois enrola a perna com


os trapos sujos. Ao lado do esqueleto existe um pedaço de madeira, um cabo de enxada. Ele o pega e, logo, improvisa uma muleta. Segue em frente agora com passos mais lentos ainda e muito mais exausto devido ao ferimento de sua perna, do cansaço do corpo e, principalmente, das dores da alma. Em poucas horas bate-lhe uma febre alta devido a infecção que se alastra pelo seu organismo e ele começa a tremer de frio. Para e senta-se um pouco para descansar. Então, começa a contemplar aquela paisagem. Fica impressionado, tinha mais esqueleto de bicho morto no chão do que pedras. As árvores, todas secas, não tinha uma folha sequer para dar um colorido àquele imenso deserto tão sem vida e com cheiro de morte. Dá-se conta que durante todo esse tempo, estava andando em círculos e vê ao seu lado o corpo de sua mulher e os restos mortais de sua querida filha, ali bem diante de seus olhos. Cai num pranto de dor tão grande que Jesus Cristo encheu os olhos de lágrimas e em sua misericórdia resolveu aliviar sua dor. Ao chegar perto de suas amadas, o pobre homem ajoelha-se e segura a mão de cada uma delas e deita-se entre as duas, sentindo em seguida uma sensação de alívio e paz. Entrega-se a morte que o espera. Agora o banquete para os urubus está servido. Uma bela refeição para os faxineiros naturais da terra, que apenas cumprem sua missão. Para os abutres, quando algo não nos nutre, eles comem. Há poucos quilômetros dali, os homens respeitados daquela cidade, que faziam em cartórios escrituras públicas frias das propriedades rurais, comemoravam com suas mulheres e crianças a realização de seus novos investimentos. Um desses homens ficou com uma propriedade que era protegida por enormes cães de guarda alimentados do mais puro leite de cabra. Um poço, nos fundos da propriedade, jorrava água para encher a bela piscina da sua chácara. Enquanto isso, era servido um belo churrasco de cabrito regado a whisky com água de coco e outras guloseimas mais, que faziam a alegria dos que ali estavam. Quando o ponteiro do relógio acusou doze horas da noite, ele e seus ilustres convidados se cumprimentavam e agradeciam a Deus pelo sucesso de suas vidas. E mais uma vez, Jesus Cristo indignado, chorou.

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ANCHIETA ROLIM é filho de Areia Branca/RN. Artista plástico e poeta, comete alguns contos sempre abordando o viés filosófico tendo como referência a vida e os seus contrassensos.


Filósofos das ruas É outono. A época mais esplendorosa do ano. As folhas amarelo-avermelhadas caem numa maestria que só a natureza sabe reger. Dizem os poetas que o outono é o portal para o paraíso. E este portal... É nossa alma. Três jovens contemporâneos: Apolo, um exímio guerreiro no campo das ideias, caminha com seu jeito desconcertado de andar; Zenas, boêmio, com um charme natural jamais visto em qualquer jovem antes dele e Justus, misterioso e com um grande dom de brincar com as palavras. Todos estudantes de filosofia, descem uma alta rua e é noite, a fração de um dia inteiro mais divinal possível. Nesta noite, a lua está magnífica e desafia qualquer beleza a um duelo. Apolo leva em sua mão direita uma boa garrafa de vinho nobre. Zenas, já com as pernas que não respondem aos comandos de sua mente e cantarolando alguma melodia celta, caminha apoiado em Apolo. Justus sorri das palavras que saem com dificuldade da boca do amigo. Chegam a uma praça, no centro, vê-se uma fonte, os três amigos sentam-se. Justus olha para o relógio e vê que já passa da 1h da manhã. – Cavalheiros, é hora de nos recolhermos, afinal, todo sábio tem direito ao seu sono reparador – diz Justus, ficando em pé e com os braços abertos. – Sábio? Eu? Ora, amigo Justus, não sou apenas um sábio, sou a pura essência da sabedoria - murmura Zenas, com ironia. – E o que o amigo entende sobre o saber? - pergunta Justus testando a lucidez de Zenas. Apolo, notando que o diálogo chegaria ao mais alto nível de êxtase verbal, não pôde deixar de participar deste banquete e responde à frente de Zenas: – A loucura é a sanidade do sábio, caros colegas. Somos fragmentos de um texto composto por átomos, moléculas e outras substâncias perdidas no universo, logo, somos todos sábios. – Concordo plenamente contigo, Apolo – elogia Justus chegando mais perto do amigo - Como sempre você nos presenteando com suas formidáveis palavras jogadas ao vento, e que soa harmoniosamente como a doce “voz” de um pássaro a cantar aos nossos ouvidos. – Obrigado por reconhecer meus humildes pensamentos, amigo Justus. – Agora vamos descansar amigos. Nossa mente, nosso corpo e nosso espírito necessitam estar prontos amanhã para mais um dia de luta intelectual. Os “Filósofos das ruas”, como eram conhecidos os três jovens, deixando a garrafa de vinho com as últimas doces gotas do sangue da terra, suave e vermelho escarlate ao lado da fonte, saem para casa. Zenas continua sua música celta. Para esses jovens filósofos, o amanhecer é mais uma oportunidade de mostrar que analfabetos são os que aprendem ler e não leem. Segunda. Pessoas andam pelos corredores da Universidade como se fossem os únicos seres etéreos criados por Deus, alheios ao que acontece no mais íntimo do coração de cada homem que compõe o espaço em que vivem. Justus chega antes de Zenas e Apolo. Vem com um leve sorriso no rosto, seus óculos, pequenos e redondos, deslizam suavemente por seu nariz esguio; os olhos, tão brilhantes, parecem espelhos da mais pura alma humana; ele usa uma camiseta preta e uma calça jeans rasgada. Entra na sala e senta-se atrás de todos, como um espectador de uma peça, onde os atores são os homens reais em uma vida real. Nota que pela primeira vez, em três anos do curso, não chegara atrasado para a aula. Para Justus, o atraso é uma virtude nos personagens importantes de qualquer encontro.


Não. Ele não havia chegado cedo esta manhã, o professor Sóstenes tinha sido substituído por outro e este é que tinha perdido a hora. – Bom dia, classe. Justus ouve pela primeira vez a voz daquele excêntrico homem com um olhar penetrante, vestindo uma camisa que faltava alguns botões e uma gravata com um nó semelhante a um feito no escuro, a barba por fazer, cabelos que teve seu corte no verão último, usando uma calça social preta e tênis. – Meu nome é Mileto. Não vou ensinar filosofia para vocês como uma disciplina acadêmica, vou ensinar que filosofia é sangue, célula, núcleo, alma, coração e mente. Com um salto, Mileto pula em cima de sua mesa e grita: – Filosofia é vida. Filosofia é você! Aplausos e assobios de jovens eufóricos invadem toda a sala. Vibram com a atitude nada convencional do mais novo professor de Filosofia da Linguagem. Justus apenas observa a algazarra que acaba de se formar na sala de aula. Chegam Zenas e Apolo e, de súbito, Zenas comenta: – Como é lindo e utópico o mundo dessas “crianças”. Um mundo onde não há dor, nem choro e ranger de dentes. Um mundo onde a solidão é para os fracos e os fracos nem existem no mundo dessas “crianças”! Como o mundo dessas “crianças” é diferente. Elas pensam que tudo é azul. – O azul que os deuses criaram e que nunca permitiram (nós, meras peças de xadrez em um universo onde a mola que faz tudo girar é o sonho de um louco criado por um alguém que nunca existiu) apreciar com nossos pequenos, mas ávidos olhos completa, Apolo, o pensamento do amigo. – É, nobres colegas, desta vez, o problema não está nessas “crianças”. O mal está em... Justus acena com a cabeça para Mileto. Os dois jovens olham em direção a aquele que mudaria a vida dos três a partir daquela manhã de segunda. Com os ânimos acalmados, todos se sentam e o professor começa a aula com uma pergunta digna de uma discussão pragmática. – Alguém que está neste recôndito de concreto e que os homens cismam em chamar de sala de aula poderia me responder o que é o óbvio? O professor olha em todas as direções procurando uma mente capaz de responder esta aparente simples pergunta. Os olhos de todos estão fixos nele, mas ninguém tem a coragem de falar, alguns têm até algo em mente a dizer, mas o medo os deixa calados naquela situação. Uma mão ao fundo da sala é erguida. – Bom, vejo uma mão. Levante-se rapaz e diga-me seu nome – diz Mileto. Todos olham para Justus e ficam aliviados por ter sido ele, e não outro, a ter se levantado para representar a turma, pois sabem de sua capacidade em falar em público e a altura ao que o professor deseja saber. – Justus, esse é meu nome. – Pois bem, Justus, fale-nos, o que é o óbvio? – Professor, para o senhor, o que é isto? - apontando para o teto da sala. – Um ventilador meu jovem rapaz. – Qual a sua finalidade aqui nesta sala? – Aumentar a pressão do ar através de sua energia mecânica de rotação aplicada em seus eixos – responde o professor. – Isto é o óbvio - satisfeito com a demonstração dada, Justus foi sentar-se. Todos olham para Justus, certos de que ele havia dado uma resposta adequada ao professor. Alguns alunos até o aplaudem. – Obrigado. Quantos concordam com a resposta de nosso nobre colega? Pergunta Mileto olhando novamente para a sala. As mãos começam a se levantar, inclusive as de Apolo e Zenas, que conhecem muito bem o companheiro e


sabiam da importância do feito que seu amigo acabara de realizar. Justus, com o semblante sereno, mantém o olhar fixo no professor, pois ele mesmo sabia que poderia ter explorado mais a sua oratória, mas preferiu analisar Mileto com a resposta que dera. – Digo-vos que ele não está totalmente correto. “Como não? Justus nunca erra!” Pensam as pequenas mentes brilhantes do curso de filosofia. – Venha aqui, por favor - diz Mileto convidando outro aluno a sentar-se em uma cadeira que ele puxara para o centro da sala. O aluno senta-se e Mileto fala com muito êxtase. – Isto é o óbvio. O óbvio não está em apenas sabermos descrever algo ou em saber sua finalidade, o óbvio está na essência do sentir “o objeto”. Por exemplo, se eu perguntasse o que seria isto, vocês me responderiam que era uma cadeira e se fosse perguntado qual sua utilidade, vocês responderiam satisfatoriamente que é útil para se sentar. Mas o óbvio não está em isto ser uma cadeira ou servir para sentar, o óbvio está em vocês sentirem a finalidade do objeto. Descrever o processo de esta cadeira chegar até aqui, não significaria nada se não a utilizássemos. Olhares atônitos de alunos que pareciam estar mortos diante de seus futuros, agora parecem cobrir o professor, para tentarem assimilar o que acabaram de ver e ouvir. Uma chama de amor, por algo que eles já haviam enterrado no mais íntimo da mente, novamente começa a queimar em seus corações. Encerra-se a aula. Os alunos saem da sala conversando sobre Mileto e tudo que acabaram de ver. Uma aula que eles nunca haviam visto até aquele outono. – Amigos, a aula de hoje foi certamente uma insigne apresentação do que há de mais mágico nesse novo professor. Zenas quebra o silêncio de intermináveis minutos, que acabara de se formar entre eles após a aula de Mileto. – O que vimos era o que faltava para... – Não podemos nos precipitar amigos – Justus interrompe Apolo. – Justus, você não entende, falta pouco para concluirmos nosso projeto e Mileto mostrou-se perfeito para o que precisávamos. O que acha Zenas? – Justus, Apolo tem razão. Só nos resta mais um ano para nos formarmos e convenhamos que Mileto é o melhor que poderíamos ter para a conclusão de nossa tese. – Companheiros, hoje eu o testei, ele saiu-se bem, mas, peço-vos, que me permita fazer uma última análise com ele amanhã. Apolo e Zenas concordam com Justus e os três vão para casa. Justus sabia perfeitamente quão valiosa era a mente do professor para o projeto que os três jovens filósofos estavam desenvolvendo, afinal, tudo que Apolo e Zenas sabiam sobre filosofia aprenderam com Justus. Ambos tinham sido seus projetos um dia.

*** ANTONIO FRANCISCO DE MORAIS NETO é cronista, compositor e poeta, nasceu em Apodi, RN, em 1988. Atualmente cursa Bacharelado em Teologia no Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia – SALT/BA, e é organizador do blog Vire a Página (vireapagina.wordpress.com)



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fotografia


Com participação na primeira edição da Revista Cruviana, o fotógrafo Pacífico Medeiros, um dos melhores do Rio Grande do Norte, com prêmios nacionais e internacionais, volta com um novo trabalho. Explorando as cores e a textura natural, o artista cria uma composição própria que redefine a imagem em todas as suas possibilidades, numa sincronia distinta e particular.


PacĂ­fico Medeiros


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Fred Veras


Fred Veras

Um produto independente, organizado e diagramado por José de Paiva Rebouças - jottapaiva@gmail.com com o apoio da editora Sarau das Letras Esta obra foi composta em Verdana, Bulky e Georgia Refuse Type. Publicada com tecnologia Issuu e blogger. Todos os direitos reservados a José de Paiva Rebouças.




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