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Organização José de Paiva Rebouças

2014


Ficha catalográfica

Cruviana. / Organizador José de Paiva Rebouças -- Mossoró, Cruviana, 2013. 130 p. ISSN: 2238-331X Literatura brasileira – Contos. 2. Literatura potiguar - 3 - Literatura internacional 4 - Contos. 5. Coletânea. I. Título.

Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT)

Printed in Brazil, 2014 Cruviana (Selo independente) Rua Antônio Lopes dos Santos Costa e Silva, Mossoró-RN CEP 59625-572 Contatos: revistacruviana@gmail.com jottapaiva@gmail.com


Cruviana A Revista Cruviana, caderno especial de contos, é um projeto independente que tem como objetivo reunir contistas novos e experientes do Brasil e do mundo. Os trabalhos enviados são submetidos a um conselho editorial, formado por uma equipe de parceiros com experiência literária e editorial. Para participar basta escrever um conto inédito e enviar para o endereço da revista: revistacruviana@ gmail.com.br.

Responsabilidade O editor deste projeto é isento de toda e qualquer informação que tenha sido apresentada de maneira equivocada por parte dos autores aqui publicados, bem como de possíveis práticas ilícitas como plágio e outras.

Expediente Organizador: José de Paiva Rebouças (jornalista, poeta e escritor) Co-autor: Pedro Salgueiro (escritor) Revisão: Regiane Santos Cabral de Paiva (Professora de língua e literatura espanhola da UERN) Comissão editorial: • Pedro Salgueiro (Escritor/CE) • Luciano Bonfim (Escritor e professor da UVA/CE) • Sid Summer (Escritor/BA) • Carla Duarte (Contista/PT). Contato revistacruviana@gmail.com



“O portão fica aberto o dia inteiro”

Ledo Ivo



www.revistacruviana.com



Índice portões abertos DA AMIZADE SINCERA DE UM URUBU 19 José de Paiva Rebouças SUPLÍCIO 24 Sânzio de Azevedo Covidados CULPA

27 Mariel Reis

34 DOSTOIÉ vs KI Luciano Bonfim

UM OLHAR SOBRE ISTAMBUL 39 Patrícia Tenório Incursões BODE CEGO 44 André Tartarini DOMINGO MAIOR 52 Vania Vasconcelos O BEIJO DO SAPO 55 Lúcio Flávio Gondim da Silva ASTÚCIA. ASTUTA... 59 Dênis Melo


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CAMINHADAS E ILUSÕES HUMANAS Francisco Carlos

internacional

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ENCONTROS MARCADOS Ana d’Oliveira

IRENE NÃO VIVE MAIS AQUI Manuel Casqueiro

inventividade

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Alexandre Brandão

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Ilton Paiva

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O ALAZÃO TROCADO DIA ARMAS DE CAÇA Paula Izabela de Alcantara

UMA NOITE NA TAVERNA Umbelino Neto

BREVIDADES ONÍRICAS DO SENHOR MACHADO Chico Pascoal SELEÇÃO 2ª parte

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fábuletas

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AQUI JAZ UMA IDEIA OU REFUGOS DO AMOR DIVINO Julia Godoy

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FÁBULA PÓS-MODERNA: “TATUAGENS FABULOSAS” Carlos Trigueiro

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A REDE Silas Falcão

MURCHA E SECA COMO O PRÓPRIO CRÂNIO Kennedy Cabral Nobre

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ALGUM OUTRO LUGAR Magno Araújo

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EDITORIAL Palavras sobre a 6ª edição A Revista Cruviana, Caderno Especial de Contos, - em sua versão digital - chega a sua 6ª edição ainda maior. Não estou falando de formato ou quantidade de páginas, mas de participações e parcerias. Nesta edição, contamos com a coautoria do escritor cearense premiadíssimo, Pedro Salgueiro, que abriu as portas para muitos outros autores, inclusive nomes fortes da literatura brasileira, grande parte premiada e com livros publicados. A participação de Pedro neste projeto é de fundamental importância porque ajuda a consolidar aquilo que defendemos como meta principal desta Revista: aproximar pessoas através da literatura. O mundo literário não tem fronteiras e isso fica cada vez mais óbvio através deste projeto que, a cada edição, tem ampliado sua roda de amigos. Salgueiro é um dos editores da revista Caos Portátil, de edições impressas, que, assim como a Cruviana, também quer abrir espaço para a escrita, tirando da marginalidade muitos nomes que começam a surgir na literatura, brasileira ou não. Essa parceria, que esperamos que continue viva, nos coloca em posição agradável entre as revistas literárias do Brasil. Três outros nomes foram também importantes para a 6ª edição da Cruviana. Os escritores Luciano Bonfim e Sid Summer, um do Ceará e outro da Bahia,

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nos deram a chance de chegar a lugares ainda não alcançados, como em Manaus, por exemplo. Importante citar também a colaboração da portuguesa Carla Duarte que nos apresentou outros escritores da terrinha de Cabral. Ela que publicou pela primeira vez na Cruviana, tanto na digital como na impressa, agora integra o seleto quadro de amigos que formam o Conselho Editorial. Juntando tudo isso, está aí mais uma Cruviana pronta para ser consumida, explorada e distribuída pelo mundo, afinal o espaço cibernético não tem limites.

Capa A capa desta edição é outra foto minha. Trata-se de um trabalho que venho realizando minuciosamente e que, num tempo ainda não previsto, deve se tornar uma exposição chamada “Inventário de Locomotivas”. Veremos. José de Paiva Rebouças Organizador CRUVIANA

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port천es abertos

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DA AMIZA DE SINCERA DE UM URUBU

José de Paiva Rebouças Nunca fui muito fã de animais domésticos, mas isso é trauma de infância desde que um maluco entrou na casa de meus avós e sequestrou nosso papagaio. Foram semanas chorando, sem comer e sem ir para a escola. Tentaram me consolar com outros mimos e, como naquela época não era proibido criar bichos do mato, possuí muitas outras aves: rolinhas, canários, galos de campina e periquitos, mas os que não voaram quando grandes, os gatos comeram por pura maldade. O pior é que a culpa era sempre minha. De tanto ser acusado de negligência, abandonei as aves por um tempo, até encontrar o Zeca. Foi CRUVIANA

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um achado. Tudo aconteceu quando eu passarinhava pelo juremal e confundi o seu ninho com os de um anu-branco. Lá estava o meu novo amigo doméstico. Parecia uma bolinha branca de pelos. Prometi cuidar e respeitá-lo até os últimos dias de sua vida e foi com esse pensamento que o roubei da natureza. O possuí algumas semanas escondido na casinha do viveiro até meu avô descobri-lo: — Joga fora essa porcaria agora! Que susto tomei! Tive de correr para não vê-lo atirar o Zeca no terreiro. Nunca compreendi tamanha fúria de um senhor do mato. Minha avó também se desesperou e não só obrigou-me a retirar o viveiro de perto da casa, como também espalhou, com antecedência ao costume, as cinzas de junho ao redor da casa. Depois, ela me explicou que não se podia criar um urubu. — Esse bicho dá azar! reclamou ela. Confesso que até eu fiquei surpreso quando descobri que Zeca, até então anu, era na verdade, um urubu. Mas aí já era tarde, já tinha me apegado a ele. Levei o viveiro para detrás do curral e lá, o mantive num recanto bem cuidado. Não demorou muito para o Zeca começar a escurecer e ficar mais exigente. Dos restos de comida com que o alimentava, ele só queria a carne. Vi-me obrigado a passarinhar para matar a fome do meu bicho de estimação e isso eu não gostei. Comecei a ficar chateado com ele a ponto de deixar a comida e abandoná-lo imediatamente só para que sentisse o meu desdém. Um dia me cansei. Já não gostava do Zeca como no começo. Ele estava cada vez mais reclamão. Nem me via direito e já cobrava mais comida. Com raiva resolvi soltá-lo. Abri a portinha do viveiro que parecia ter encolhido para o

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seu tamanho e me afastei para que arrancasse do chão e planasse como asa delta. Mas não, o Zeca não voou. Espantei-o. Ameacei atacá-lo de pau e até o joguei para o ar, mas ele voltou para os meus pés. O Zeca não voou. Não porque não soubesse, ele não voou porque estava acostumado comigo. Fiquei emocionado. Senti remorso de ter pensado em me livrar daquele bicho, a primeira vista feio, mas agora tão bonito, robusto, imponente e o melhor: carinhoso a ponto de emprestar-me a cabeça para um afago. Estava arrependido e apaixonado de novo pelo meu bicho de estimação. Não tranquei mais o viveiro. Deixei aberto para que ele pudesse ir e voltar se quisesse. Ele não foi. Ficou me esperando e deu para procurar-me na hora das refeições. Era muito lindo vê-lo correr desengonçado ao meu encontro. O problema é que comecei a atrasar. Às vezes, perdido com as coisas da escola, às vezes com o passaredo. A demora incomodava o Zeca que começou a avançar mais do que era permitido. Gritava e chegava ainda mais próximo do terreiro da casa, até que foi visto pelo meu avô. Não sei o que deve ter dito, mas quando ouvi o estardalhaço, sabia que era tarde. Ele estumou o nosso cachorro sobre Zeca e foi aí que me lembrei de nunca tê-lo ensinado a defender-se de ataque de cachorro. De nada adiantou o meu grito na direção do cão desgraçado. Ele rasgava o meu amigo como faz com qualquer caça. Quase perdi meu braço, mas tomei o Zeca dos dentes caninos e sumi na capoeira. O avô ameaçou-me com uma corda crua e cumpriu, mas o Zeca estava seguro e assim ficou. Ficou e não voltou mais para mim. Sei que ele queria voltar, mas eu mesmo não voltaria. Ficamos assim amigos das lembranças e cúmplices dos olhares distantes. Eu de cá e ele do meio do seu novo mundo. Encontrou uma turma e dedicou-se a ela. E foi bom porque os CRUVIANA

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outros o protegiam. Melhorou logo do ataque do cão, embora tenha ficado trôpego e voasse torto; nem sei como conseguia. Parecia sempre estar caindo e nunca teve o prazer de pairar a sua liberdade de urubu. Eu nunca perdoei o nosso cão, mesmo sabendo que ele não tinha culpa de seu ato animal. Não pude vingar-me dele em vida, mas como se diz: tudo que vai volta: e voltou. O nosso cão errou o cálculo na macambira e rasgou os vazios. Teve de ser sacrificado pela espingarda de meu avô que depois me obrigou a arrastá-lo aos urubus. Não relutei porque aquele último trajeto do cachorro arrastado sobre a terra seca foi o meu desforro. Levei-o aos poucos e entreguei-o aos famintos. Entre as aves, vi o Zeca, torto, mas altivo e forte. Ele levantou o pescoço em minha direção e entortou a cabeça como faz um velho amigo. Ficamos assim parados algum tempo, até eu dar-lhe as costas e partir. Foi nesse dia que nos vimos pela última vez.

JOSÉ DE PAIVA REBOUÇAS é de Apodi (RN), mas nasceu em Mossoró (RN). É jornalista, poeta e escritor. Editor e organizador da Revista Cruviana, é também responsável pelo projeto Aspirinas & Urubus (www.aspirinasurubus.blogspot.com). Escreve semanalmente a coluna Balada do Impostor (Jornal de Fato e Defato.com) e mantém coluna fixa no Substantivo Plural (www.substantivoplural.com.br). Vencedor do 12º Prêmio Literário da Livraria Asabeça, 2013, na categoria poesia.(jottapaiva@gmail.com).

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SUPLÍCIO

Sânzio de Azevedo Anos 50. Naquela tarde, Afonso estava particularmente ansioso: seu irmão mais velho, atarefado com uns projetos urgentes, pedira-lhe para levar um livro a Helena, que morava num bairro distante. A ansiedade se explicava: Helena, moça de uns vinte e cinco anos ou mais, que chamava a atenção de todos pela beleza, há algum tempo ocupava, com seus cabelos louros e ondulados, os devaneios daquele rapaz de dezessete anos, extremamente tímido. Era só nela que ele pensava quando, trancado no banheiro, se entregava à mais desbragada fan-

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tasia... Por isso, ao encaminhar-se para o ponto do ônibus, enquanto contemplava a beleza das nuvens no céu, coisa a que nunca dera atenção antes, buscava ensaiar mentalmente as palavras que diria àquela semideusa que sempre o ignorara. O percurso parecia não ter fim, o ônibus trepidando nas ruas mal calçadas. Mas, ao se encontrar em frente à casa de Helena, desejou que a viagem se tivesse prolongado mais, como se isso lhe houvesse dado coragem para enfrentar a hora de falar com a mulher dos seus sonhos. Bateu palmas, e quando ela, deslumbrantemente risonha, veio recebê-lo, chamando-o pelo nome e convidando-o a entrar, sentiu as pernas trôpegas e entregou-lhe o livro, balbuciando palavras que ela certamente não entendeu. Helena puxou-o pela mão e, ao chegarem à sala, fê-lo sentar-se: — Sabe que estou sozinha? Saíram todos. O rapaz, que tanto esperara aquele momento, não conseguia encontrar o que dizer e, em vez de prazer, experimentava um imenso desconforto. Afinal, apesar de sentir um peso enorme nas pernas, levantou-se com dificuldade e articulou um “Vou-me embora”, olhando para o chão. Helena segurou-o pelos ombros e olhou-o fixamente nos olhos: — Nada disso! Pôs na vitrola um disco de Bing Crosby e, sem a menor cerimônia, convidou o rapaz para dançar. Afonso quase não acreditava no que estava acontecendo e, maldizendo sua timidez, que transformava em suplício o que deveria ser um instante de prazer, alegou que precisava estudar para uma prova no colégio. Além disso, confessava não saber dançar. CRUVIANA

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A moça demorou-se um pouco olhando-o e, com uma expressão que, para ele, parecia revelar certa dose de desprezo: — Tem certeza de que é isso o que você quer? Ir embora? O jovem balançou a cabeça afirmativamente e saiu, tonto, oscilando entre o alívio de se sentir só e o peso do arrependimento de haver sido tão tímido. Pelos tempos afora, sempre que se lembrava de Helena, ele fazia força para se convencer de que não houvera nenhuma malícia na pergunta da moça e de que não havia desperdiçado naquela tarde o que talvez tivesse sido o momento mais glorioso de sua vida...

SÂNZIO DE AZEVEDO é Doutor em Letras pela UFRJ e foi professor de literatura da Universidade Federal do Ceará por mais de 30 anos. Publicou quase 30 livros (historiografia literária, biografia, crítica e poesia). Membro da Academia Cearense de Letras. Como contista, aparece apenas em jornais e em revistas, não pretende publicar suas histórias curtas em livro.

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CULPA

Mariel Reis Se ela não tivesse visto o que viu talvez estivesse viva aqui conosco comigo Se ao menos tivesse fugido quando a vi, resistido, dito que não tinha visto ou escutado; que não era ela que era outra que não estava ali ou era engano Se ela erguesse a mão esbofeteasse o meu rosto recobrasse meu bom senso para não contrariá-la, não questioná-la ou argumentar contra o que parecia verdade. Ela era importante para mim e para as crianças, mesmo que mortas. Por que ela não fugiu? O que ela queria? Eu nunca tive juízo nunca Ela sabia muito bem que casou com um homem sem miolo nenhum Se ela tivesse fugido ou distraída não espiasse pelas frestas da parede de tapume e não ficasse atenta ao que não lhe dizia respeito. Ela se disse magnetizada hipnotizada imantada à cena grudada ao que via ouvia. Nojo, revolta, desprezo, amor, ela não sabia o que sentia e não decidia pelo quê O olho arregalado, a fresta, os pés pesados, a respiração intranqüila. Os meninos, todos mortos, arrumados sobre a cama como CRUVIANA

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que dormindo e o menor de colo deitado no berço chorava Irritado quis calá-lo Não consegui Esganei o coitado Ela não conseguiu tirar os pés do chão correr de tão pesados Filhos? Eu não queria filhos. Atrapalham. Ela não me ouviu Sou um sujeito sem paciência sem muito jeito Sozinho e silencioso Quando engravidou do primeiro, pedi: tira Ela disse ser contra as leis de Deus. Parava pouco em casa, dirigia caminhão, não era problema. O garoto era bonito, parecia comigo. A convivência só prestava quando ele estava quieto. Ele chorava e ela corria para ver o que estava acontecendo: se sujo ou com fome. Chorava apenas por essas duas coisas. Eu a via uma vez ou outra, o resto do tempo na estrada e o garoto cresceu. Os outros três, com uma história muito parecida. Juntava dinheiro para comprar uma casa melhor mudar sair daquele fim de mundo dar uma vida melhor a ela quando engravidou do segundo filho pedi para tirá-lo ela se recusou mais uma vez Eu argumentei que a vida ficaria mais difícil Ela disse não se pode contrariar as leis de Deus Perguntei se Deus pagava as contas da casa? Se Ele colocava comida à mesa? Ela pare de blasfemar, homem Não me contive e dei nela com a correia da calça, dei para ela aprender que Deus não tinha nada com a minha vida. Ela me pedia piedade, piedade. Disse a ela, chama por seu Deus, vê se Ele vem tomar a surra por você. Pare de blasfemar, homem. Me bata e não blasfeme. Batia para ela aprender a parar de chamar por Deus, por esse sujeito intrometido que impedia de ela tirar os filhos, porque tinha lá as suas leis que não significavam nada para mim. Toda marcada, ela voltou para a cozinha sem dar um pio, sem nem mesmo praguejar ou me ameaçar de polícia ou envenenamento. O filho vai mudar você, homem, advertia enquanto me servia um prato de comida. Parece tão esperto

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para as outras coisas, ela pontuava, e não gosta dos próprios filhos. Não gosto de filhos, nunca tive vontade de tê-los O mais velho não conversava muito, parecido mesmo comigo. Comia a pouca comida, calado. O mais novo, nos peitos da mãe, com o choro irritante. Vezenquando o mais velho viajava comigo, gostava dele. Era quieto, falava pouco -, só o necessário. Se ela não tivesse visto o que viu a gente podia sair por aquela porta passear tomar um sorvete ir ao cinema namorar ir para um hotel e tudo seria tão diferente... Perguntei a ela o que você viu? Nada. Nada? Ela tremia. Não vi nada E os seus filhos? Você não os botou para dormir? Estão dormindo, sim Os três e o menor Eu sei, homem, eu sei Sabe mesmo? Sim Vá se lavar a gente vai sair Não tô com vontade de sair Não tá? O resto do dia está livre E a gente vai sair Tá bem, vou me lavar Ela foi tomar a chuveirada no banheiro atrás da casa, tirou o vestido florido, pendurou em uma das paredes improvisadas Lavou a longa cabeleira enegrecida Parecia mais jovem quando se banhava. Ficava outra mulher. Tranquei a porta de casa, não sem antes tirar de lá uma trouxa de roupa. Ela tomava um banho demorado. Talvez o medo, talvez. O tempo todo eu parado olhando ela pelada pisando sobre as tábuas - a água do banho empoçando - a espuma do sabonete escorrida por entre o capim Fechou o chuveiro A água fria parecia tê-la feito recobrar a calma. Recomposta pediu as roupas Escolheu meu vestido, é? Quanto tempo você não me escolhe roupa Eu ri, alisei minha barba, olhei aquela bunda bonita sumir dentro do tecido A casa ficará trancada. Os meninos não vão ter necessidade Ela não discutiu Penteou-se diante de um caco de espelho preso a CRUVIANA

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parede dos fundos da casa Se ela ao menos ela tivesse fugido Não fugiu Agia naturalmente Cadê o perfume? Não precisa de perfume nenhum Tinha esquecido a colônia que dei para ela de presente de aniversário O cheiro era bom Eu gostava Gosto de cheiro de mulher, despistei assim, ela olhou para trás com aqueles olhos que o meu filho caçula parecia ter herdado Não tá demorando demais não? Calma, se tá tudo bem, por que a pressa? As crianças dormindo. A noite é nossa Se ela me esbofeteasse para recobrar o bom senso se tivesse interferido Eu nunca tive juízo nunca Passou pela estrada um caminhão anunciando na agremiação a festa da noite É lá que nós vamos? Sim. Sem calcinha sem sutiã com uma sandália de salto vestido leve Os seios espetavam o tecido Era uma boa mulher, apesar dos filhos todos. Me esforcei para estragá-la Não consegui Parece uma menininha, aquela que conheci na estrada, em minha primeira viagem Cobrava pouco mais de trinta reais para se deitar num colchão à beira da estrada no meio do mato para o amor apressado Parecia, mais uma vez, aquela menina: Sonho em ser mãe Eu não gosto de crianças Você não tem um, quando tiver... Deus não vai me castigar dessa maneira Criança não é castigo Apaguei as luzes, peguei a bicicleta. Ela na garupa Os seios roçavam às minhas costas, agarrava a minha cintura O mais velho me voltava ao pensamento: ele parecia mesmo comigo, parecia. Ela perguntou o que deu em mim Vontade de ficar sozinho com você. Sozinho com você e com o mundo. Por que não me pediu isso antes? Você ocupada com os filhos: eles em primeiro lugar. Não podia montar em você: A, B , C ou estavam acordados ou não tinham jantado ou não estavam limpos. Agora a gente tá aqui. É, a gente tá aqui.

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O caminhão na revisão. A semana inteira ouvindo toda a gritaria das crianças toda exigência estúpida Com o caminhão no conserto, podia fazer muito pouco, não podia ir para longe, vê-los apenas de vez em quando, igual sempre fiz Estavam com a mãe, eu pensava, ou pior: não são meus filhos. Pior não, melhor. Meus filhos eram aqueles quatro – silenciosos - envolvidos na escuridão do cômodo sem a requisição constante do pai ou da mãe Aqueles quatro dormindo profundamente sob a chama da lamparina de querosene no único cômodo, imóveis, obedientes ao silêncio respeitoso do pai e de suas necessidades de homem eram os meus filhos O bando ruidoso deprimente, não Ela grudada às minhas costas Passei do clube dançante pedalei para longe das poucas luzes do lugar A estrada se tornou difícil Dócil ela levantou-se da garupa da bicicleta caminhou ao meu lado no trecho da via. Era uma estrada secundária passavam poucos veículos. Os motoristas não estranhavam em nos ver caminhando pelo acostamento Havia uma ou outra casa por perto Os faróis a assustavam. A noite, não. A gente chega já, já, falei olhando para o rosto dela na escuridão Pareceu concordar Passei a mão em sua silhueta, puxando-a para perto de mim Ela não resistiu Não reclamou feito das outras vezes não disse olhe as crianças, homem Controle-se O mais velho era mesmo parecido comigo talvez eu tivesse gostado dele Caminhamos por mais uns cem metros, apareciam pontos de prostituição. Várias mulheres na beira da estrada, iluminadas pelos faróis dos poucos veículos. Sem eles, sombras recortadas contra o fundo da noite, sem identidade. CRUVIANA

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Parei perto de uma delas Programa, moço? Pra dois é mais caro Não quero sem vergonhice Quanto você quer para ir embora daqui, arrumar outro ponto? O quê? Perguntei o quanto você quer para sumir, está surda? A putinha não gostou nada do que ouviu, reagiu aos gritos, quando a esmurrei e ela para não cair agarrou-se às minhas pernas Mais uma vez a golpeei. A putinha caída, quieta. Falei para ela tomar conta da bicicleta. Removi o corpo magro da prostituta para um lugar doutro lado da estrada, no matagal Fez um ruído seco quando a arremessei. Voltei. O colchão deve estar por perto, disse. Ela segurava o guidão da bicicleta, seguia calada pelo trecho da estrada. Um caminhão parou ao nosso lado Quanto é? Depende? Depende do quê? Você não quer conversar? O caminhoneiro desconfiado seguiu adiante. Encontramos o lugar do colchão. Pulamos a mureta da estrada, levantei a bicicleta, coloquei-a bem perto de um galão de água e um caixote com uma garrafa térmica de café e papel higiênico e uma bacia. Ela parada ali agora, minha mulher. Não era mais uma à toa. Fiz o jogo: Quanto é, dona? Pra você é de graça Assim, não Quanto é, dona? A brutalidade da minha voz a convenceu de que eu não representava. Pelo quê? Por tudo? Você não vai ter dinheiro para pagar e levantou o vestido Joguei em cima dela todo meu dinheiro Taí, agora deita. Abre as pernas. Ela deitou-se no colchão imundo. Tá sentindo o cheiro de homem, cadela? Puxei-lhes os cabelos longos e enegrecidos. Não é por aí, não. Fica de quatro. Ela obedeceu. Empina a porra da bunda, empina. Gritei. Ela voltou ao passado. Passa sempre aqui?Gosta de crianças? Não, não gosto. Coincidência, eu também não. A noite coberta de estrelas, os meninos dormiam profunda-

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mente, a gente não precisava temer que acordassem. Você tem filhos? Não, nenhum. Quer filhos? Não. Você tem marido? Não. Por que não larga a vida e vem viver comigo? Os saltos do sapato espetavam a minha barriga Os mosquitos infernizavam. A lua emprestava o romantismo possível Ela levantou-se, retirou um pedaço de papel para a higiene, agarrou a minha barba e o meu cabelo, olhou fundo nos meus olhos, Você pode passar em outra hora, tô em horário de expediente. Ajeitou o vestido, andou em direção a mureta de segurança, saltou-a. Um caminhão passava. Ela suspendeu o vestido. Os faróis iluminavam-na. Quanto é? Ouvi. Observava de longe, afastado alguns metros do colchão. Me aproximei outra vez Você aqui de novo? Ela me disse Agora, chega. Sobe aí Você vem comigo Sabe, comecei, já fui casado, tive quatro filhos O que aconteceu? Morreram em um acidente Quer ouvir minha história?

MARIEL REIS é escritor e ensaísta. Publicou os livros Linha de Recuo (contos), John Fante Trabalha no Esquimó (contos), Vida Cachorra (contos), Cosmorama (poesia), Cidade Tomada (crônicas políticas) e A Arte de Afinar o Silêncio (contos). No prelo, para lançamento em breve, Bordel de Bolso (narrativa jornalística-ficcional) e A Fábrica (narrativas). Integrou o grupo de autores publicados pela editora Lettrétage em uma antologia na Feira de Frankfurt (2013) onde o Brasil foi o país homenageado. Têm contos publicado nos seguintes países E.U.A, Inglaterra, Portugal e África.

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DOSTOIÉ vs KI

Luciano Bonfim Dostoié sempre acreditou que a origem de sua família fosse completamente russa. Dizia pertencer à estirpe dos velhos marechais, juízes e plenipotenciários de príncipes. Contudo, quando sentia alguma perturbação, vingava-se de todos cantando em voz alta as histórias que a família queria sepultadas. Contava que o seu tataravô juntou-se a ladrões de gado para aterrorizar campos e aldeias, chegando posteriormente a chefiá-los. Não esquecia de Marina, sua belíssima tia avó, acusada de matar o marido com o auxílio da irmã e do amante, enquanto seu pai legalizava um falso testamento da vítima. O avô, por sua vez, seria filho de uma criança de 12 anos e o alcoolismo sempre esteve presente na família. Ki não tinha dúvidas de que a sua família descendia de

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camponeses, comerciantes, artesãos e religiosos poloneses que abandonaram o campo para viverem em Moscou, por conta de suas características feudais, sacerdotais e familiares. Quando criança, em companhia de sua mãe, peregrinou até o mosteiro de Voznesensk, dirigido por seu parente Stefan que, apesar de leigo, compreendia com clareza os ensinamentos divinos. Nunca esqueceu a força com que sua mãe pediu para “que Deus a retire de uma Babilônia de pecados e a leve para o claro Sião, para ser admitida à adoração do Todo-poderoso”. Fortificou este sentimento ao vislumbrar a imagem da reunião dos santíssimos pais que repousam nas catacumbas da Laura de Kiev, e pelas palavras do capelão que afirmou que “Deus permite que os pagãos vençam os cristãos para que estes sejam punidos pelos seus pecados”. Noutra ocasião, os dois irmãos choraram ao ouvir a leitura do livro de Jó. Dostoié considerou que “Deus joga com o Diabo e caem, sobre o justo, desgraças imerecidas”. Ki, por sua vez, sentiu confirmar-se que “os príncipes, armados de luz, salvarão a terra”. Como se fossem dois corpos que carregam uma única alma, aos sete anos começaram, simultaneamente, a ter crises de epilepsia. Neste mesmo período, ouviram atentamente, por várias e várias noites, a leitura da História do estado russo, de Karanzine. O próprio pai, em voz alta e exigindo atenção, realizava a leitura daquele livro apreciado pelo czar. O pai carregava uma nostalgia permanente e, por medo, insegurança ou vaidade, castigava a todos. Para Dostoié, a exemplo de Nicolau I, o pai se tornou um tirano. Ki achava que o pai representava uma espécie de amor patético e sentimental. A esposa permanecia obediente. Os criados sufocados. Os servos inconformados. CRUVIANA

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Depois da morte do pai pelos empregados, Ki e Dostoié começaram a sentir umas ideias. Dostoié partiu para são Petersburgo, conheceu a resistência dos salões e as ideias liberais. Acreditou, desde cedo, que a vingança seria a cura para os seus pesadelos. Ki permaneceu em Moscou, para ele ainda familiar, aldeã e colorida – decidindo confiar nos desígnios de Deus e na leitura das vidas dos santos. O primeiro, por não possuir coragem suficiente para morrer ou matar, começou a escrever romances e a criar personagens que executariam os seus crimes quase perfeitos. Envolveu-se em reuniões contra o czar, foi denunciado e amargou alguns anos de prisão. Neste período, entregou-se aos jogos de azar, chegando quase a perder o que restava de sua vida em uma partida de cartas. O segundo aprimorou-se na leitura dos evangelhos e principiou a proclamar uma nova mística, onde a intuição se sobressairia sobre o conhecimento. Não foi entendido por seus contemporâneos e também acabou na prisão. Dostoié, depois da prisão, passou a ser visto pelos bares e prostíbulos da cidade. As suas companhias viviam carregadas de humanidade e nestes lugares a dor de sentir o mundo e as suas inquietações são vividas de maneira intensa, dizia ele. Mantinha-se selvagem e ensimesmado. Ki, durante o cárcere, se tornou bem mais velho que o irmão, apesar da mesma idade. Naquela época, com mais clareza e pujança, começou a pregar uma nova lei religiosa e moral sobre a lógica e a razão dominantes. Passando a expressar seus planos em contos e novelas, segundo ele, uma forma peculiar de preservar-se contra possíveis perseguições. Apesar da pretensa vida monástica, apaixonou-se por Kátia, amor de juventude de seu irmão, passando a sofrer com as

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tentações da carne. Kátia escutou por duas vezes: DEUS SOU EU! Por duas vezes foi obrigada a adorar os autores de tal frase. Algumas vezes foi espancada, para ter confirmada a sua adoração. Quando ouviu pela décima vez: serei um homem extraordinário, e tenho um projeto: enlouquecer! Percebeu que os homens que ela conhecera em épocas diferentes, em cidades diferentes, cada um representava, a seu modo, a metade perdida do outro - cada um, sendo o próprio outro, tornavase, ele próprio, outro pela crença na possível afirmação de si mesmo e do outro que negava não ser. Kátia gostava de Schiller, Dickens, Byron, Puchkin e Gogol. Dostoié não suportando conviver com aquela mulher que não mais conseguia fingir submissão. Resolveu casar e ter filhos – conservou-se um sonhador. Ki, mesmo em seu isolamento, não conseguiu se livrar totalmente das ardentes lembranças das noites brancas nem do amargo sentimento de culpa. Kátia, cansada dos salões de Moscou e são Petersburgo, fugiu para a Europa e se tornou dançarina em um café de Paris. Numa boate, quando esteve de férias em Turim, conheceu um professor alemão, nascido na Prússia, que se considerava polonês, chamado Friedrich Nietzsche. Para preservar a sua identidade, apresentou-se ao novo amigo com o nome de Salomé. Friedrich logo se lembrou de uma velha amizade e, prevendo refestelar-se naquela noite, gargalhou para dentro, como só ele sabia fazer. Conversaram o suficiente para não se aborrecerem um com o outro; em seguida foram para um quartinho de hotel nos arredores da cidade. Nietzsche, que até então não conhecia muito bem o martelar dos prazeres carnais, tresvariou, pelo menos, em grego, russo, francês e hebraico. Depois sentenciou: “tudo decisivo acontece apesar CRUVIANA

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de tudo”. Kátia, que ainda não sabia estar com sífilis, saiu antes de o pensador despertar; na pressa, esqueceu sobre a mesa um grande romance russo. Naquela manhã, além do treponema, o filósofo acordou com uma incontrolável vontade de potência apontada para o alto.

LUCIANO BONFIM nasceu em Crateús/CE e vive em Sobral/CE. Professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA. Mestre em Educação pela FACED/UFC. Publicou Dançando com sapatos que incomodam (2002), Beber água é tomar banho por dentro (2006), Móbiles – hestórias e considerações (2007). Possuí contos e poemas publicados em diversos sites, blogues, revistas e antologias literárias. Em 2010 foi selecionado pelo programa Bolsa Funarte de Criação Literária / Funarte-MinC, onde desenvolveu o projeto Caminhos do Sol (livro e exposição fotográfica). Em 2013 publicou Aliterar versos 20/60 + alguns instantâneos.

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UM OLHAR SOBRE ISTAMBUL

Patricia Tenório A primeira vez que vi Istambul, meus olhos semicerrados descortinavam na janela do avião uma paisagem insólita, em nada parecida com as Mil e Uma Noites, Sherazade e os Quarenta Ladrões de Ali Babá. Encontrei edifícios altos e quadrados, torres finas de mesquitas rasgando espaço entre eles até o mais alto céu, terrenos inclinados, odores e cores do Grande Bazar, onde as especiarias saltavam gotas de saliva de minhas papilas, os cinco sentidos sendo despertados involuntariamente pelos passantes e turistas. A lua cheia nunca me pareceu tão próxima. Banhava o rio do Estreito do Bósforo; meu peito apertou lembranças de quando eu era pequena e li Malba Tahan pela primeira vez. O Homem que Calculava. A imagem que me faziam os turcos não se alterara ainda. Via-os como grandes comerciantes, negociadores do Estreito, que encurtava distâncias marítimas entre o Ocidente e o Oriente. Comecei a retirar o véu da história, relembrei CRUVIANA

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Constantinopla, Alexandre, o Grande, a escrita cuneiforme. As conexões com as culturas europeias me vinham então à memória, não era apenas a conexão física: os turcos serviram de canal de pensamentos e religiões, se manifestando em alto e bom som nas mesquitas espalhadas na cidade, as palavras do Profeta: Não há outro Deus que Deus Não há outro Deus que Alá Deus é o maior Maomé é o seu Profeta Venha salvar-te Venha rezar Deus é o maior Não há outro Deus que Alá Os cantos das preces ressoam como em eco, mas são independentes e não parecem se importar comigo. Procuro entender essa cultura tão diversa da minha. Na Turquia, apesar de as mulheres não serem obrigadas a cobrir o rosto com o véu, muitas o usam por não se sentirem capazes de agir de maneira diferente da tradição. Nisso, encontro um ponto de apoio, me agarro a esse ponto para tecer o véu do pensamento, deslizando da realidade para o imaginário do artista. Entro no harém do Palácio Topkapi. Imagino-me uma das concubinas, laço um nome recém-chegado aos meus ouvidos: Ivgênia. Imagino-a de uma tez cobre, olhos verdes amplos, inquisidores. Eles querem uma resposta por estar ali aos treze anos, entre outras meninas, as mais belas, doadas ou arrancadas de suas famílias. Não entendo o que vejo, ao mesmo tempo maravilhada com os lustres de cristal vermelho, os tapetes longínquos com desenhos apenas de flores e arabescos, nos quais a figura humana não era representada por causa da religião.

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Sou dopada todos os dias para não querer fugir daquele ambiente quase hermético se não fossem as claraboias. Antigas mulheres do sultão, eunucos e filhas me vigiam, me educam, alimentam, cobrem meu corpo com óleos e véus. Se eu for rejeitada pelo sultão, serei entregue aos guardas fora do harém para ser usada como o rejeito exige. Se engravidar de um dos eunucos, na maior das impossibilidades, morremos eu, a criança e o eunuco, pois não existem eunucos que não sejam negros aqui no palácio. Sabemos tudo sobre o sultão, nós, as concubinas. Dormimos em qualquer parte, em camas de campanha, ou quando muito em quartos mais simples que o das quatro esposas de nosso dono e senhor. Beylerbeyi Sarayi (Palácio do Senhor dos Senhores) Saio do harém, não quero mais ser Ivgênia, nem me faltar o ar todos os dias, nem me tornar louca aos vinte anos. Desejo aprender as palavras soltas e cantadas nas mesquitas, os prefixos que tudo dizem e significam, numa lógica contrária à minha, me desestruturam e me fazem começar tudo novamente, vestir-me de herege, alcançar a mais alta torre para da pequena janela do avião cerrar meus olhos e sonhar com outro tempo.

PATRICIA TENÓRIO (1969) é de Recife, PE, Brasil. Intitula-se artista, abrangendo todas as áreas onde pulsar a emoção no contato com a Arte. Autora de O major – eterno é o espírito (2005); As joaninhas não mentem (2006); Grãos (2007); A mulher pela metade (2009); D’Agostinho (2010); e Diálogos (2010) entre outros; teve sua obra adaptada em curta-metragem e teatro, participou de diversos eventos internacionais com sua literatura, além de ganhar diversos prêmios literários. www.patriciatenorio.com.br patriciatenorio@uol.com.br

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Incurs천es

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Bruno Dunley

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BODE CEGO

André Tartarini O bode se deixa arrastar pela cordinha improvisada. Vai confiante, mesmo sem enxergar, imaginando (ou não imaginando nada) que é conduzido para algum lugar onde não lhe oferecerão riscos. Pela maneira como anda, ele parece saber que seu caminho é desprovido de perigo. João o puxa com pouca convicção. Caminha para casa, mas pensa que pode levar o bicho a algum lugar diferente. Interrompe o caminho para amarrar os sapatos, lembrando de Marta e da conversa que tiveram ontem. O bode continua andando até que a cordinha o enforque e faça-o ver que deve parar. Espera apático, olhando para frente sem ver nada. Vendo o bode assim, tem-se a impressão de que ele nasceu para esperar.

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*** É preciso marcar o adversário sem afobação. Cercá-lo quando possível, aguardar um movimento para agir em resposta, e não tentar resolver num bote afoito. Não que não se possa fazer isso, mas é arriscado. Se o dono da bola tiver perícia, avançar sobre ele sem medir as consequências pode significar um drible ou ser definitivamente ultrapassado. “Você está pior que um bode cego. Calma. Cerca. Espera. Pensa primeiro e age depois.” O treinador repetia tanto que essa frase ficaria na lembrança para sempre, mas quando João dava por si já tinha avançado nas pernas do cara. O pensamento mais nítido que ficou dessa época foi a dúvida sobre o quão diferente seria um bode cego de um bode normal; bodes raramente pareciam baratinados a ponto de sair por aí correndo sem olhar em volta. Só quando a cerca se abria e alguém se colocava à sua frente. Bode só avança agressivo se sua liberdade é ameaçada. Quando criança, João imaginava que a angústia por não enxergar causasse uma loucura desmedida, e o bode talvez julgasse estar constantemente preso por causa do breu total. Por isso, saía por aí, sem pensar, avançando nos outros, tentando escapar da prisão da cegueira, como se o mundo inteiro estivesse bloqueando a saída depois da abertura da cerca. O barbeiro abriu a porta de ferro do quartinho atrás do quintal, sorridente, como se o que oferecia fosse uma joia. Os olhos do bicho, de um cinza leitoso, tornavam mais difícil ainda interpretar o que o ele sentia. Parecia não sentir nada, nem para o bem nem para o mal, como um ser inanimado, e certamente aquilo não era o bicho ideal para dar de presente a Maurinho. O barbeiro talvez soubesse disso desde o início. João poderia dizer que não aceitava o “presente” porque CRUVIANA

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geraria muitos transtornos, não se pode entregar um bicho cego aos cuidados de uma pessoa com problemas mentais. Se fosse um bode, apenas, tudo bem – Maurinho insistia por anos que queria um bicho do qual pudesse se dizer dono –, mas este exigiria cuidados demais. Mesmo sendo fácil enganar o irmão, dizendo que não tinha bode nenhum, que esquecesse aquilo, João não gostava de se valer disso, e também havia o constrangimento em recusar a suposta gentileza do barbeiro, além do fato de que Maurinho perguntava várias vezes ao dia, querendo saber quanto tempo faltava para o bode chegar. A manobra do barbeiro ficou clara no momento em que o animal apareceu deitado no chão do quartinho dos fundos do quintal. O presente, a princípio dado de boa-fé, mostrou-se outra coisa. Pelo tamanho, foi possível estimar a idade e concluir que o bicho devia ser o único que o barbeiro não conseguira vender da ninhada de meses atrás. O bode era um cavalo de Troia. *** O mais novo observa o mais velho sentado sorrindo para o nada, olhar perdido, língua grande demais para ficar dentro da boca. Uma espuma de saliva no canto dos lábios. O mais velho não fala nada. Aguarda sentado. O mais novo orienta o barbeiro sobre como deve ser o corte, o que é desnecessário, a cena se repete há anos de três em três meses, mas o barbeiro ouve com paciência, sorrindo simpático enquanto corta o ar com a tesoura. A ocasião é especial, de certa maneira, é o aniversário de vinte e cinco anos de Maurinho – o mais velho –, e este foi o limite até que ele conquistasse o direito de ter um bicho. Podia ser um gato, um cachorro. Só não podia ser muito grande,

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porque ele queria pegar o animal no colo, e era essa a conversa enquanto o cabelo era cortado. Maurinho só falou quando o barbeiro perguntou o que ele acharia de ganhar um filhote de bode, para dizer que sim. Até então, não tinha dito nada. O sorriso se ampliou no rosto e ele olhou – aparentemente pedindo permissão para sorrir – para o irmão, que observava o corte ser feito e achou que era uma boa ideia. Melhor que gato e cachorro, porque bode não é o tipo de animal que se cria dentro de casa. Seria mais fácil mantê-lo lá fora. Maurinho se levanta da cadeira com a cabeça novamente raspada e abraça o barbeiro tão intensamente que deixa uma mancha de saliva no ombro de sua camisa como marca de gratidão. *** Maurinho não sabia quando o presente chegaria a suas mãos, contar os dias sempre foi confuso, manhãs e noites se amontoam em uma sequência sem explicação e já é difícil demais manterse consciente durante a avalanche de claro-escuro que o tempo derrama sobre ele. Seria fácil para João dizer “semana que vem”, “mês que vem”, restaria ao irmão acreditar. Maurinho imaginava que o mais novo tivesse algum mecanismo secreto de administrar o tempo, porque lhe parecia impossível saber que estava chegando o seu aniversário novamente, ou que o período de frio terminaria em breve, ou que em algumas horas começaria a escurecer. Foi surpreendido ao ver o irmão entrar decepcionado com o presente cego preso à corda. – O que você quer que eu faça? Quer que eu mate o bicho só porque ele é cego? – Mas o olho desse é cinza. – Esse não vai fugir nunca. Ele só vai para longe quando você levar. Melhor que aqueles bodes que saem fugindo. Esse é CRUVIANA

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mansinho. – Mas o olho dele é cinza. Eu queria um bode manso com o olho preto. O bicho, fio de baba pendurado na boca, aguardava por um veredito impossível. – Olha, o barbeiro te deu esse bode porque gosta de você. Às vezes todo mundo precisa de alguém para tomar conta. Não é por isso que a gente vai se livrar dele, não é? Ele é bonzinho. Põe a mão aqui, faz carinho nele. A mão pesada alisava as costas do animal como se fosse um corrimão de escada. O bode agora não estava totalmente apático, parecia pensar em algo distante, algo de que o carinho insensível do dono o fazia se lembrar. Ver isso fez João pensar de novo na ideia completamente distinta que fazia do que seria um bode cego. O bicho que o irmão acariciava burocrático não se jogava em direção a nada, apesar de parecer confiante no caminho à frente, mesmo que parado. Nunca vira precipícios, facas, cercas. Armas de fogo ou predadores. Enxergar, afinal, dá medo. Desconhecer a existência do perigo talvez fizesse com que o bode fosse tão desprovido de receios, como Maurinho, que, ainda que não se atirasse em precipícios ou facas, parecia capaz disso a qualquer momento. O próprio João, aparentemente sensato, sabia que muitas vezes agia sem olhar para os lados, seguindo rumo à neblina total, sem pensar, desembestado. Até com Marta por perto, quando a afobação dava lugar à atitude oposta, prudente, o receio de avançar algumas casas e quebrar a cara fazia com que ele também se sentisse cego, não afobado, mas tateando no escuro, sem saber se o melhor a fazer é seguir ou recuar, ciente apenas de não poder parar. Enquanto o bode era acariciado com má vontade, aos poucos foi fechando os olhos com a cabeça apoiada num colo diferente, mas familiar, de certa maneira. Apesar de muito jovem,

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a cegueira lhe deixava mais respeitável, dava-lhe uma espécie de austeridade. Não era um bode jovem. Era um bode cego. *** Maurinho parecia solidário com a cegueira do bode, apesar de decepcionado, como uma criança que ganhou um brinquedo que não funciona direito. Quis levá-lo para passear no lago, e quis ir sozinho, mas o irmão achou melhor ir junto. O lago estava calmo como sempre e o sonho era com Marta deitada de costas, falando do céu, da água, do vento e das coisas de que ela costumava falar; João tentava adivinhar se aquela conversa deixava portas abertas para que ele fizesse o movimento de beijá-la. O sentimento que o impedia de seguir em frente era indefinível. Reverência, baixa autoestima, medo? Não, não. Medo, não. Não tinha medo de quase nada. Tinha medo de freira, mas dava para conviver tranquilamente com isso. Jogar-se sempre foi a tônica, não fazia sentido uma situação simples como essa tirar-lhe a capacidade de exercer sua coragem normalmente. Mas, com ela, João estava longe de ser um bode cego. Olhava em volta, cercando, procurando sinais menos vagos para avançar. E as palavras suaves de Marta aos poucos se transformaram em berros que o trouxeram do lago do sonho ao lago real. Não se pode descansar com Maurinho; você olha para o lado, ele faz das dele. O irmão sabia dos riscos e cochilava sempre com um olho aberto. Deu tempo de correr e salvar o bode. João pensou em chegar atrasado acidentalmente de propósito, seria mais simples conviver com os poucos dias de tristeza pela morte do bicho recém-integrado à família do que o fardo de cuidar dele por anos. A culpa não o deixava mentir para o irmão, a culpa não o CRUVIANA

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permitiu deixar o bode morrer, a culpa o impedia de fazer muitas coisas. Culpa, devia ser culpa o impedindo de tentar algo a mais com Marta. Alguém na infância deve tê-lo alertado de que certas atitudes com uma moça são desrespeitosas e é importante tratá-la com a devida reverência. A culpa, e não outra coisa, foi o que o fez salvar o bode. – Vamos levar ele pra casa. Você ia matar o coitado. – O olho dele é cinza... – Maurinho cabisbaixo, entre arrependido e frustrado. – O olho é cinza, mas ele entendeu o que você fez. Se eu te enforcar só porque você não consegue pensar direito, você ia gostar? Você tem culpa de não pensar direito? O coitado também não tem culpa de ter o olho cinza. O argumento era furado, e João sabia disso, porque a força do mais velho era incomparavelmente maior que a dele. Era preciso manter Maurinho calmo o tempo inteiro, para que não fosse necessário apagar incêndios maiores. Evitar a raiva é muito mais fácil que conter seus efeitos. E a atitude de um sobre o outro era simples técnica de dominação. Nessas horas, quando precisava se mostrar mais forte, João evitava pensar nas consequências de seus atos. De outra maneira, não agiria. Os prós e os contras que a consciência oferece para avaliar as implicações de uma ação podem te imobilizar. Ele crescia instintivamente para cima do irmão. Sabia que seu controle sobre o outro era simples sugestão. Sentiu uma irritação subconsciente, uma queixa muda contra o mais velho, por tê-lo acordado justo no momento em que se sentia seguro a ponto de controlar a situação e pegar Marta pela cintura, como ela já dissera que gostava, e deixar que a natureza se encarregasse do resto. Nem em sonho, tinha direito a isso. Essa irritação era uma base bastante conveniente onde sustentar a atitude de domínio. Naquele terreno, ele sabia pisar.

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*** Na volta, os irmãos veem Marta na porta de casa. Ela acena. João, com o bode no colo, sorri sem jeito e sente uma súbita corrente fria na coluna. Marta não faz ideia exata do que quer com aquele aceno insistente direcionado a ele. Maurinho acaricia o pelo do bode, repetindo em voz baixa que foi sem querer, que vai ficar tudo bem e que não tinha a intenção de machucá-lo. João manda o irmão para casa e lhe entrega o animal. Em algum lugar da consciência, Maurinho está feliz por poder carregá-lo no colo. Não tem mais vontade de matar. Quer protegê-lo e seria capaz de qualquer coisa para garantir que nada lhe aconteça. Qualquer coisa. João se aproxima de Marta e não sabe ao certo o que seu sorriso significa. Neste momento, já esqueceu que largou o irmão com o bode, aconteça o que acontecer, seu foco está nela, e somente nela. A dúvida não o impede de pegá-la pela cintura. Não está pensando em consequências, nem imaginando possíveis desdobramentos de seus atos. Não está olhando para os lados, seu olhar sem mantém fixo à frente. Ela não parece muito confortável, mas ele nem chega a pensar sobre isso. Apenas avança.

ANDRÉ TARTARINI é carioca. Lançou em 2008, “Mormaço também queima” (PTK) e finaliza seu primeiro romance: “Apetites carnais desordenados”, a ser publicado este ano. Tem textos publicados em sites (releituras.com, mojobooks etc) e revistas (Ficções, Marie Claire, Revista M, etc). É o idealizador, curador e organizador do projeto SE7E (Editora Ímã), e no momento também escreve alguns roteiros para a tevê.

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DOMINGO MAIOR

Vania Vasconcelos Inácio jamais acreditara em Deus, mas ia à missa domingo sim, domingo não, alternando com o futebol na praia, coisas do hábito familiar. A mãe era muito religiosa e, desde que ela morrera, ele cumpria o compromisso como uma homenagem. A praia de domingo é que era seu lazer de verdade. Lá, jogando futebol, às vezes conseguia se sentir um homem igual aos outros. Não jogava mal, ouvia até elogios. Somente no domingo, os colegas que encontrava o tratavam com alguma consideração e até ficava para a cerveja no bar da esquina. No trabalho era sempre motivo de riso pelos cantos, atrapalhava-se nas contas, nunca aprendia procedimentos, vivia perguntando. A sorte era Nicinha, que explicava paciente as novidades e o básico, sem divulgar o pedido. Ela era mesmo especial. Acreditou que fossem

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parecidos, tomando cafezinhos no mesmo horário. Namoraram? Não saberia dizer. Pouco falaram do que houve, mas ela foi à sua casa, depois do cinema, e dormiram juntos num sábado. Domingo, quando ele voltou da missa, ela já tinha ido embora, nunca mais tomou café com ele. Não era tão bonita, mas tinha uma pele macia e um sorriso bondoso. Depois disso, passou a evitá-lo e apenas a via com o gerente da Contabilidade. Não tinha mais a quem perguntar nada, vivia cheio de dúvidas. Foi demitido numa segunda-feira, sumariamente, sem nenhuma explicação. Disseram que a empresa precisava fazer alguns ajustes. Ajustes? Que diabos de ajustes? Então não sabia que falavam todos? Era uma injustiça que o perseguissem. Bastaria que o pusessem num setor adequado, afinal sempre trabalhara fora de sua área. Era administrador, não entendia nada de contabilidade, mas enfim, ajustes são ajustes, cacete! Chegou a pensar em matar aquele desgraçado. Comprava uma arma fácil, sabia. Não que o emprego valesse a pena ou que Nicinha fosse flor que se cheirasse. Tão certo quanto seu nome, o outro seria corno, mas nada disso importava de fato. Sentia um vazio danado, não tinha nenhum desejo, não acreditava em coisa nenhuma, nem nele, nem em ninguém. Tinha vontade de fazer um grande estrago no mundo, isso sim. Resolveu se matar porque a vida não fazia mesmo sentido nenhum. Antes, porém, iria fazer uma carta escandalosa, acusando colegas de desonestidade contra a empresa, dizendo coisas que sabia, inventando outras e colocando Nicinha na maior lama possível. Faria cópias e entregaria à Direção da empresa, mandaria e-mails para alguns colegas inimigos de outros, e também para setores da imprensa mais irresponsável. Perfeito. Então ele não era nada? Jogavam-no fora assim? Iriam ver. Comprou uma arma fácil, fácil, na feirinha do Terminal da Lagoa, planejou a morte para a outra segunda e escolheu, para o último domingo, CRUVIANA

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fazer algo diferente, qualquer coisa que lhe desse na telha. Começou bem cedo seu dia, tomou cerveja e comeu linguiça logo no café da manhã, no bar da esquina de casa, arrotou alto, esticando as pernas. Era bom ser livre. Perambulou pelo centro, rodando as praças e bares que abriam ou nem tinham fechado. Sentou-se, bebeu pinga e conversou bobagens com um travesti. Então se deu conta de que nunca comera um traveco, olha só! Aquele não era dos piores, tinha cabelo comprido natural, todos os dentes, sobrancelhas finas, e cheirava bem. Chamava-se Sharlene, com “S” e “h”. Não bebeu do copo dele, que não era besta. Fez em pé, sem pressa e convidou para almoçar. Comeram um arrumadinho no boteco, conversaram sobre a vida. Disse que tinha uma arma, ela também. Por que a gente não se junta para umas paradas? É bom. Ganharam logo a primeira carteira na rua que ficava por trás da igreja, depois da missa das 11 h. Foi fácil. Era fim de mês. O cara entregou tudo, estava com a mulher e a filhinha. Planejaram se encontrar daí a dois dias. Amanhã iria à praia. Nunca mais pensou em se matar.

VANIA VASCONCELOS é baiana, residente em Fortaleza, professora da UECE, autora do livro de crônicas Mergulhos, do livro de contos Desvios e de Chão de Infãncia, além de ter contos na coletânea Quantas de Nós e revistas literárias. O conto ‘Domingo Maior’ foi publicado originalmente no livro Desvios, vencedor do Prêmio Literário Ideal Clube de Literatura no ano de 2008.

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O BEIJO DO SAPO

Lúcio Flávio Gondim da Silva Contavam-se meses que Madalena não falava. Os desejos grandes e as necessidades mais primárias eram expressas pelo corpo, num código já conhecido da família. Duas mãos levantadas era vontade de ir ao banheiro; um aceno era um café; o olhar firme, um copo d’água. Assim, toda a casa lidava com a terrível situação da filha emudecida, enquanto procuravam alguma solução para a problemática. A mãe já receitara rezas, chás, pílulas-do-mato... O pai desacreditava de tudo e quase chegara a arrastar a filha ao médico mais caro e conhecido da cidade. Madalena tudo rejeitava, por vergonha, medo e, principalmente, raiva, após os últimos boatos que a seus ouvidos chegaram: o sapo que a mordera e a deixara muda seria uma encomenda da futura sogra. CRUVIANA

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Naquela noite, Madalena debulhava os feijões junto aos vizinhos, no terraço à frente da casa e num minuto que se agachara após reacender o lampião que luzia do alto do poste os sertanejos, sentiu um volume gelado entre os pés e rapidamente uma grande dor na nádega esquerda. Não obstante a agonia fina, não conseguia gritar e só entendeu que por um cururu havia sido mordida a partir do alarde dos companheiros que nela viam o anfíbio pregado ao corpo pelas pequenas e fortes presas. Madalena girava em torno de si espalhando os feijões ainda verdes por toda a calçada morna. O pai não sabia como agir diante do nunca-visto; as crianças dividiam-se entre gritos, pranto e risadas; a vizinha assombrada corria para dentro de casa a fim de buscar um balde d’água, jogá-lo e espantar o animal; até que a Mãe, bicho criado, avançou sobre a saia curta da vítima e com a mão esbagaçou o sapo. A partir de então, amontoaram-se dias de falatório e enfermidade. A “sinhá mordida”, como apelidaram Madalena, mergulhou num misterioso quadro doentio que lhe tirou a beleza, a sustância do corpo e as forças para o magistério que durante o dia exercia num distrito próximo. Sem tudo isto poderia subsistir, entretanto o maldito sapo também lhe tirara a voz, deixando-a absorta em gemidos inefáveis. Após o “acidente”, o pai tratou de chamar três homens para uma grande limpeza da Casa que começaria com a tosa do jardim, seguida do afastamento e limpeza dos móveis e, finalmente, o trato da Rua que, com suas matas e entulhos, ajudavam a chuva a ser a maior responsável pelo surgimento de bichos no lugar. O susto maior se deu quando perceberam que em nenhum dos locais se encontrou qualquer cururu, perereca ou mesmo rã. Tudo se mostrava estar organizado, o que classificava no absurdo o aparecimento e mordida de um sapo. Sem acreditar na inexistência animalesca ao seu redor,

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Madalena escondia-se na cama rodeada por padrinhos, pomadas e panos quentes. No quarto, entravam todos os possíveis auxiliadores, com exceção de um, o noivo da ‘sinhá mordida”. Apreensivo e saudoso, o rapaz dividia seu medo entre o silêncio barulhento da amada e a data do casamento sempre mais próxima. Todos, entretanto, já sabiam que a teimosia de Madalena a impediria de entrar na Igreja sem que estivesse absolutamente reestabelecida e diagnosticada, mas ambas as posturas mostravam-se cada dia distantes. Dentro de alguns meses, a rua contabilizava curiosos de toda a parte. Amigos – e inimigos – da família, alunos do colégio em que a futura noiva lecionava, dentre muitos. No crepúsculo de um domingo, a desgastada porta da casa de Madalena foi tocada por um velho desconhecido. Atendido pelo noivo, o homem entrou cambaleando e perguntando pela enferma até que todos confirmaram que ali vivia “Madalena-beija-sapo”. Já muito mais magra que o natural e ainda mais silenciosa, a ex-professora implorava com os olhos um remédio eficaz, pedido ao qual o homem respondeu com três palavras: “Macumba. Venham ver.”. Contrariando todos os parentes, o noivo foi o único corajoso a seguir o velho até o local onde ele os queria levar. No caminho, clareava com palavras soltas sua explicação para o caso; o jovem rapaz só entendeu, pasmo, que alguém havia preparado algo de ruim para Madalena. O tempo saltitou até que eles chegassem num grande pé de cupim, em que jaziam espalhadas peças de roupas e fotos da enferma; imediatamente, o noivo começou a tudo recolher com a promessa de incinerá-las, mas os olhos do velho denunciavam algo parecido com “irreparável”. Voltando do rápido e impressionante encontro com o suposto Mago, o noivo corria pelo caminho de pedras da cidade, chorava e sentia-se culpado pela mãe ciumenta e conhecedora CRUVIANA

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de magias negras que sabia possuir. Imaginou Madalena de pé, sorrindo-lhe dentro de grandes camadas de tecido branco, embora não conseguisse tirar da lembrança o olhar do feiticeiro e o silêncio da noiva, à porta de quem chegava agora cansando de tanto correr e, embaixo de uma fina chuva que começava, observava um sem-número de sapos rodearem junto com ele o esconderijo da amada.

LÚCIO FLÁVIO GONDIM DA SILVA é estudante do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará, desenvolve trabalhos na área da Literatura, Teatro e Artes Visuais atuando e produzindo espetáculos e uma exposição realizados na cidade de Fortaleza. Como premiações, tem em seu currículo o 7° lugar no Prêmio UNIFOR de Literatura (2011) e 1° lugar na coletânea do Programa Papo Literário – TVC (2009).

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ASTÚCIA. ASTUTA...

Dênis Melo Bem que poderiam ser os seus nomes... Ela sempre me olhava de longe, lambia os lábios carnudos com a língua. Sua língua, sutil molusco. Toda musculatura. Era de longe que ela me via. Era de longe que ela me violava. Com sua língua - seu trinado... Oh abismo anfíbio, porto nu, penhasco. Era de longe que nos víamos. Ela, com seus olhos fundos, suas mãos alvas e finas, seus dentes voláteis. Era toda curva, e girava como a roda da fortuna... Andava nas pontas dos pés, vociferava, mas ternamente, ruminando as palavras entre os dentes... Era de longe que ela CRUVIANA

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me via e me violava. Acendia o cigarro e viajava nas volutas. Ela fumava e me olhava e a fumaça criava asas e se transformava num pássaro branco, caudaloso... me ferindo com seu bico ígneo. Penhasco, precipício... Poderiam ser os seus nomes... Era de longe que nos víamos. Sôfrego, com poemas entre os dedos, poemas amassados pela bebida e pelo fumo, eu me ajoelhava a seus pés, como um devoto louco. Depois da última vez, perdi-me completamente: não tenho nome, não tenho endereço, fé, compromisso... Depois da última vez, da última vez, quando finalmente pude alcançar sua boca, devorei o molusco de sua língua, comida a água e sal, lambuzado de sangue, minha embriaguez era feita de amor e ódio... O (DES)ENCONTRO Sabe como é ser atravessado por um olhar? Matizado pela luz da tarde, a luz amarelada do sol em declínio? Isso esteve na musculatura de nossos corpos, na tessitura de nossa voz velada... Nossa voz, na verdade um sussurro, um fio delicado estendido entre nós dois... Eu nunca sou o mesmo depois que fazemos amor: me sinto mais forte, mas vívido quando fazemos amor. Porque nessa hora alcanço os teus poros, os teus pelos, o teu púbis... Mergulho dentro de ti com voracidade e é como se mergulhasse dentro de mim, levantado na vertigem dos teus lábios... Me agarro a crina dos teus cabelos - égua destemperada, no afã do afago de tuas ancas -, me agarro a este corpo quente que destila mel por todos os poros... Sabe o que é ter a língua mutilada quando pronuncia um nome? Mas por que sou tão fiel aos teus gestos, aos teus cabelos, aos teus olhos? Por que me encosto ao teu lado como um cão perto do dono? Por que sinto o teu cheiro pelos corredores,

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reconheço a tua pisada na terra a caminho do trabalho? Por que não desisto deste amor, me enclausuro no bar mais próximo e bebo a noite inteira a saudade de teu nome? Não, não posso nada disso... Por que leio teu nome nas nuvens do céu... Vejo o teu rosto em meio às folhas verdes do jasmineiro... Nada mais sei do que aprendi nos livros de filosofia lidos em minha adolescência, quando descobri primeiro Platão. Nada mais me guia, quando pensava estar cego e por isso comecei a estudar História, ler cartas, jogar búzios, andar à roda de hereges e fratricidas... Me revolto contra as contrariedades e obviedades da vida. Mas por que pensar de maneira tão correta, de maneira tão lógica, se me falta a lógica para decidir em que página parar entre os poemas de Rimbaud?? Mas por que duvidar de Sara, mulher velha e mãe? Por que duvidar de Paulo, o Apóstolo dos gentios, quando de fato Paulo soube como nenhum outro inventar Cristo como salvador, muito mais do que Constantino?? Sabe por que penso em tudo isso? Por que o teu nome soa para mim como uma oração... Por que te considero santa e pecadora... Por que não tendo como me alimentar de espadas e adagas, de rifles e fuzis, o que me resta como paciência é a transgressão de dias vividos ao contrário. Eu sou o contrário!! Vivo ao contrário!! Por isso frequento a Igreja do Diabo! Por isso, enquanto os meus amigos andam de carro, voam de avião, bebem uísque, comem filé, vestem a moda, moram debaixo de um teto de ouro... Eu mendigo a cata de poesia, escrevo em jornais velhos, rabisco paredes, ando de bicicleta, como pão seco, mas, acima de tudo e de qualquer coisa, eu rio... Rio muito... Rio de tudo e de todos... Rio da dor, passageira da vida... Rio de sobrenomes pomposos... Vou me perdendo por aqui... Não, não me acho debaixo das folhas secas que o vento trouxe para perto da porta da casa... CRUVIANA

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Levanto o braço esquerdo e condeno Sodoma! Levanto o braço direito e abençoo Jerusalém!! Tudo isso porque fui atravessado por teu olhar convulsivo... Por que fugir? Se pudesse assumir minha identidade própria, estaria solto na floresta, animal selvagem, paródia de gente...

DÊNIS MELO é Poeta e ficcionista. Professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA (Sobral-CE). Doutor em História pela UFPE. Idealizador do Movimento “A poesia é um saco”, que acontece aos sábados no Becco do Cotovelo, em Sobral, Ceará.

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CAMINHADAS E ILUSÕES HUMANAS

Francisco Carlos Um burburinho intenso adentra à casa de Vicário. Era bem cedo ainda. Ele estava deitado em seu catre velho, feito de madeira rústica. Muitas vozes, pisadas, batidas em latas e gritos. Pareciam festejos populares. Vicário despertou atordoado. Levantou-se rápido. Passou água no rosto. Ao sair se deparou com uma multidão, caminhando em ritmos descontínuos. O sol acabava de despontar no horizonte, enchendo a rala vegetação da caatinga de intensos raios de luz. De longe uma voz gritou - Vicário, você não vai ver o Estado? CRUVIANA

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Ele está chegando ao nosso vilarejo! Vicário ficou confuso, perplexo. Talvez por nunca ter sido acordado pelo Estado. Não sabia o que era tal figura. Como seria a sua fisionomia. Tinha somente uma vaga ideia a seu respeito. Às vezes pensava nele como um monstro causador das misérias humanas. Por outras, o via como benfeitor e atento zelador da paz humana. Como homem simples preferia não refletir sobre tais questões. Tinha parca desenvoltura para com coisas da metafísica. Preferia pensar no cotidiano, na vida talhada pela labuta diária. Como poderia ele, homem nascido para o trabalho pesado, para a arte de obedecer, tecer alguma reflexão sobre o Estado. Nem Vicário e tampouco a multidão foram feitos para reflexões dessa natureza. Eram antes de tudo engrenagens e combustível do Estado. Nada mais. A voz que o chamou era a da sua amiga Marcela. Marcela sempre muito alegre e de fala fácil, transparecia uma felicidade como se fosse ao encontro de um Deus. Vicário fez um gesto, afirmando que não iria. Mas a moça era excelente nos artífices da arte do convencimento. Logo começou a mostrar a importância daquele momento. Se perdessem o evento talvez nunca mais pudessem está diante do Estado. Marcela não economizava palavras para convencer o amigo. Vicário não sabia como contrapor os argumentos da amiga. Nunca fora instruído na arte da argumentação. Nessas situações sentia-se frágil. Uma sensação de humilhação o absorvia. A opressão das palavras e dos argumentos de Marcela não deixavam brechas à hesitação. No tumulto de vozes e passadas, Vicário fechou a porta da casa e saíram, os dois, acompanhando as pessoas eufóricas e apressadas. Quantas misérias humanas não teriam sido evitadas se a tal arte do convencimento não tivesse sido inventada. O sol já mostrava toda a sua intensidade luminosa. O tumulto dos pés das pessoas agitava o chão, levantando uma nuvem

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espessa de poeira sobre o caminho. De longe parecia um grande nevoeiro de fumaça no meio daquela planície avermelhada. Era um caminhar alegre como se fossem ao encontro da terra prometida. A grossa poeira deixava as roupas pesadas de barro, dando uma nova coloração às de cor clara. De todas as sinuosidades da estrada saiam pessoas, aumentando a cada passo o volume da multidão. São como formigas operárias, certeiras no seu caminhar, levando o alimento para a rainha. A capela do vilarejo já mostrava a sua torre no horizonte. Mostravam-se as tendas armadas à espera do Estado. O pátio da capela estava cheio de bancas repletas de ervas medicinais, comidas prontas, jogos de azar, e demais produtos das feiras livres. Duas grandes tendas, restritas ao Estado, esperavam a grande hora. O momento da sua chegada, da sua fala, da sua apresentação para o povo. Vicário no meio daquele tumulto estava tenso. Não era um homem afeito às multidões. As pessoas, como num momento de intenso arrebatamento, gritavam, acenavam com bandeiras, denotavam uma alegria passageira. Fazia calor insuportável. O sol não dava trégua, como se também esperasse o momento. Talvez pelo valor performático, ou talvez para zombar dos mortais, como faziam os deuses do Olimpo. Depois de muita espera, o Estado aparece. Um homem gordo, de paletó vermelho intenso e gravata azul aparece em uma das tendas. Acena à multidão, que responde com aplausos e palavras de euforia. O Estado inicia a sua fala. Esclarece os seus deveres, poucos como é sabido de todos. Vicário faz um grande esforço para concentra-se nas palavras do Estado, tarefa difícil no meio de tantas vozes e calor. Em seguida fala das obrigações do povo. As obrigações do povo são muitas e o Estado não ameniza em acentuá-las. A multidão imersa no intenso calor humano e solar acena com as cabeças, num sinal positivo. Parece que a história do homem será sempre um eterno sim para as injustiças do Estado. Mas a multidão não CRUVIANA

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pensa dessa forma. Ela é invadida pelo Estado, pela presença da autoridade, da ingratidão legitimada. Vicário não poderia ser diferente. Ele também é multidão, é concordância. A presença do Estado causa nele uma sensação de vitória e de fracasso. Vicário sente vergonha, como se a sua presença ofendesse a grandeza do Estado. Fica inquieto e nervoso. Deseja voltar. Não pode. Está imerso na multidão. E o Estado está olhando para ele, com o seu olho de águia. Vicário se sente um ser pequeno e mesquinho diante da grandeza do Estado. Como poderia ele, tão insignificante, chegar perto de um ser grandioso e repleto de verdades. Não teria voz para dirigir ao Estado. Talvez um bilhete, se alguém escrevesse por ele, que da arte de escrever só sabia fazer o seu nome. Também para que escrever? A multidão não precisa dessa arte. Ela somente precisa trabalhar e reproduzir-se. Trabalhar para deixar cada vez mais o Estado grandioso. Reproduzir-se para multiplicar as forças a serviço do Estado. O tempo passa e o Estado acena em tom de despedida. Chegou a sua hora de ir. Pouco tempo em exposição. Não pode ficar mais. Senão torna-se comum. O Estado não aparece por muito tempo. Ele precisa esconder-se. Precisa está somente na memória da multidão, como sendo o seu guia, o seu Deus. A multidão como um boi de carga começa a entender que é hora de voltar a sua rotina. Rotina de sofrimento e de humilhações. Mas sempre compensada por uma ocasião como essa. Momento em que pode está perto do Estado. Sentir a sua magnitude de perto, a sua fome de carnificina e de produção de miséria. Porque é justamente desses dois alimentos, carnificina e miséria, que o Estado faz o seu prato mais saboroso e a sua degustação mais duradoura. A hora chega. O Estado acena com gestos de despedida. A multidão não sabe o que fazer. Uns gritam enlouquecidos, acenam como se fosse a última vez que veriam o seu criador. Outros choram, esperneiam em meio à terra seca e quente. As peles ensopadas em suor e po-

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eira parecem cadáveres mumificados. Já são cadáveres. A miséria os vez cadáveres antes da morte biológica. São apenas corpos ressequidos pelo calor e pelo sofrimento diário de conduzir vidas para alimentar outras bocas. Bocas que não são da multidão. São sim da minoria afortunada e protegida pelo Estado. As tendas vão se esvaziando gradativamente. A agitação abranda-se. As pessoas se dispersam. Umas já tomavam o caminho de volta. Outras compram comidas. Vicário no meio de todo aquele movimento pensa no Estado. Naquele homem gordo, transparecendo um ar de força e de escárnio. Não sabia bem o porquê desses pensamentos confusos e embaraçosos. Na volta para casa, Vicário pensava no sofrimento das pessoas, esquecido por um instante pela idéia de ver o Estado, de está próximo do poder, de ser o poder. Logo depois tudo voltaria a ser o que era antes. Muito sofrimento a servir de lenha à lareira do poder. Mas o homem habitua-se a tudo.

FRANCISCO CARLOS DE LUCENA é Natural da cidade do Apodi-RN. Possui graduação em ciências sociais e mestrado em antropologia social pela UFRN. É professor de Sociologia no Instituto Federal de Alagoas (IFAL). Foi editor da revista Ágora do Instituto Superior de Educação de Salgueiro - ISES.

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Irisney Bosco

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internacional

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ENCONTROS MARCADOS

Ana d’Oliveira Apaixonada por movimento desde que nasceu, não foi fácil para Ema aceitar aquele trabalho. Pesou o facto de ser na sua cidade do coração, Barcelona. Quando chegou ao apartamento, pousou as malas e abriu todas as janelas. Aquela tarde quente de verão estava a pedir janelas abertas, cigarros e vinho branco gelado. Sentou-se na pequena varanda virada para uma rua apertada, fechou os olhos, sentiu o perfume daquela tarde maravilhosa e agradeceu.

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Na tarde seguinte, decidiu ir até a uma esplanada aproveitar o sol e recarregar energias para o trabalho. Estava tão entretida a ler e a bebericar o vinho que não reparou quem se sentara à mesa ao lado. — Não acredito! Ema, és tu? Uau, estás linda. — Ema não conseguia respirar, ficou corada até à raiz dos cabelos e balbuciou: — Manel, há quanto tempo! Manel tinha sido a paixão de Ema há dez anos nesta mesma cidade. A última coisa que soubera dele foi que tinha ido viver para os EUA. — Estás fantástica, Ema! O que tens feito? Vives cá? — Perguntou Manel, claramente entusiasmado por encontrar uma cara conhecida. — Sim, Manel, voltei a viver em Barcelona. Fizeram-me uma proposta irrecusável e foi desta que assentei. Nos últimos anos viajei muito, apaixonei-me por muitos lugares por este mundo a fora, mas voltar à casa tem um gosto especial. E tu, o que tens feito? — Viajaste por onde? Quero ouvir todas as histórias. Eu emigrei para os EUA, onde tenho vivido nos últimos oito anos, mas houve uma reestruturação na empresa e eu achei que era a melhor altura para sair e decidi regressar a Barcelona. Queres beber algo? — Não obrigada, estou bem assim. — Podíamos jantar, se quiseres claro. Ema acenou com a cabeça. Ema estava eufórica. Não podia ser verdade. Ela, de volta a Barcelona, e a sua grande paixão também. Sentia-se uma adolescente prestes a ter o primeiro encontro. Jantaram na pizzaria de sempre com muitos risos à mistura. — A tua vida dava um livro. Que histórias incríveis! Eu, nos últimos anos, trabalhei demasiado. Todos os anos tirava uma CRUVIANA

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semana nas Caraíbas, mas andava tão exausto que passava mais de metade do tempo a dormir. Ema estava mais envolvida na voz de Manel do que propriamente na conversa. Passaram dez anos e continuava apaixonada por aquele homem. Os cabelos escuros, os olhos brilhantes e aquela barba de vários dias ficavam-lhe a matar. Não conseguia desviar o olhar da sua boca carnuda e vermelha. — Ema? Está tudo bem? — Hã? Ah, sim, está! Olá. Desculpa, estava a pensar, não queres ir dar uma volta? Está calor aqui dentro. — Continuas a mesma — disse Manel, a rir —. Sim, vamos. A noite estava quente e o desejo também. — Posso ver as fotografias agora? — Agora? — perguntou Ema. — Sim. — Pode ser, eu moro naquela rua — apontou Ema — vamos. Ema abriu a porta, acendeu a luz e sentiu a respiração quente de Manel no ombro. Toda ela estremeceu. Sentaram-se no sofá com centenas de fotografias, Ema foi buscar vinho e abriu as janelas. Manel, levantou-se e foi na sua direcção — Não acredito que passado dez anos ainda sinta o mesmo por ti. Leva-me a pensar se este encontro não foi marcado. Ambos sorriram e deram largas à paixão, ali mesmo, como nos velhos tempos.

ANA D’OLIVEIRA é uma fotógrafa portuguesa apaixonada por viagens e grande entusiasta das letras. Mora em Lagos (Portugal) e para ela nem o céu é o limite.

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IRENE NÃO VIVE MAIS AQUI

Manuel Casqueiro Homem descorçoado, talvez anódino, não me insurjo mais contra as retaliações, penosas leis da vida e da natureza humana, sigo apenas o itinerário que me foi designado... Faço jus, mereço tudo afora esta divina covardia chamada velhice, melancólico vestíbulo da morte, avizinhando-se. A trajetória disso é o afundamento na ancianidade, ainda lúcido e de braços acessíveis que agora não abarcam muita coisa. Eis a tragédia: quando mulher qualquer ainda acolhe um encontro, CRUVIANA

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necessito permanecer assentado, a cauda frouxa, surpreendendo um pouco da existência que perambula lá fora, deslembrando as horas aladas que voejaram de mim ao infinito. E, Irene, não vive mais aqui. Rememoro um dia longínquo, em meio a risadas, de termos atirado ao mar seixos polidos e reluzentes ao sol, com diligência, entretenimento e zelo amoroso, para depois, o olhar perplexo, desenharmos estrelas na folha de um caderno recheando-as com frases apaixonadas, e tolas, que ela recortou e recolheu num lenço bordado, para guardá-las mais tarde no escuro de uma gaveta cheirando a naftalina; lá, jamais invocariam a ínfima reminiscência, a não ser na tarde em que, após do quase nada dito entre nós, ela foi embora sacudindo a porta do apartamento. Cara ou coroa. Cara ela fica, coroa põe-se a caminho. Como adiantasse alguma coisa, lançava ao ar a moeda e ela de contínuo partia. Era genuinamente irritante e logo não me abalançava a dormir, nem mesmo medicado temendo, outra vez, sonhar que ela se fora. Desperto, convivia mal com o perverso sonho do desamparo. Porquanto Irene não vive mais aqui. Em seguida à sua partida para lugar ignorado fui ao banheiro e dei de cara com uma abundância de diversos potes, bisnagas e frasquinhos perfilados nas prateleiras do armáriofarmácia. Aí permaneci revendo-a nua, o morrudo sexo, sempre umedecido e pronto, escorado à borda do lavatório, limpando o jovem rosto com um bocado de algodão embebido numa loção rejuvenescedora. Que dano perpetra o fútil e desnecessário dispêndio... Na vã esperança esperei, por alguns minutos, que surgisse, tal e qual uma Vênus de Botticelli dentre as emanações espumosas daquela variegada cosmética multinacional. Igualmente aguardei que arremetesse sobre mim, felina e lasciva,

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uma vez mais nas suas pernas torneadas, seios de biquinhos inteiriçados e tépidos tremores nos sensuais lábios pintados de vermelho. Inexplicável como ainda conseguia assinalar as pisadas de seus pés descalços cobertos de talco mentolado no piso azulejado e atinar na almofada seu peculiar perfume, imutável e excitante, de fêmea bem amada. Na ocasião do afastamento, ela irrompera em justificativas pueris a entoação vibrátil da voz exigindo, não a mim, mas o passado, algo mais sorumbático do que seus, agora, descoloridos instantâneos nus tirados pela minha Polaroid 1000. Deste modo, ali me achava atoleimado ante o vácuo insonoro que, desafiante, me afrontava. Por fim, como ela não retornasse, executei a fuga por minha vez. Não obstante, decidi não emudecer. E quando descerrava a boca era para falar dela aos borbotões, para tomála pela mão imaginando conduzi-la por aí, cingida a mim... Todavia, Irene não vive mais aqui. Seis meses após perdê-la ainda monologava, mas mais comedidamente. Sustivera o destino tal e qual um estoico Amadis de Gaula paladino dos folhetins medievais, algo análogo à dor excruciante de uma mãe que sofre pela morte chegada a destempo de um filho; outros seis meses acontecidos e o olvido da consternação, pouco a pouco, restringiram-me a um molusco recolhido à sua concha calcária. De fato, a evolução do esquecimento me proporcionou um livre-arbítrio que eu não alcançava usar por inteiro; talvez por não saber como. Ou por, inconscientemente, ter abdicado dele. Numa mormacenta tarde, porém, abruptamente, deixeime levar na aventura, a vontade híspida entre as pernas apertada no lado esquerdo da calça, de galantear mulheres da idade dela e de corpos parecidos com o dela. Apeteceu-me gracejar para elas, despi-las, abusá-las por CRUVIANA

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dentro e por fora para que me exibissem os fetiches e as experiências de vida e tudo o que, usualmente, encobrem ao desavisado pretendente; e bem-disposto, sacana até, pelo deslavado sentimento de suprimir a lacuna por meio delas, de magoá-la ou pegá-la desprevenida sob a máscara de outra a quem fornico feito um sátiro; afigurava-se-me com constância, e nessas ocasiões espantava-me, veladamente, expor assim a embromação que ela ocultara, essa aleivosia bem arquitetada que eu poderia facilmente pôr a mão, mas que me coagia a retroceder como se pressentisse uma ameaça ao meu amor-próprio. Lógico, que tal artifício da parte dela, decerto foi o principal pretexto da porção de conflitos interiores que eu acalentava tão esforçadamente; demorei a compreender que não conseguira compor uma imagem definida da parceira de personalidade inconstante com quem, por alguns anos, reparti o cotidiano, querendo-a demais. Por isso, quiçá, não me tenha prevenido para o fato. No relógio de parede da sala as horas vão extinguindo mais uma jornada do meu prazo de validade e a cada vez que me enxergo no espelho mais saudade tenho do jovem que fui. Contudo, comiseração de mim, esse sentimento menor não apresento! Apenas lamento o tempo que ontem não soube aproveitar e que, agora, é irrecuperável. Irene não vive mais aqui. A cada crepúsculo rumoroso, aventuro-me a espiar pela janela. Hoje, do outro lado da movimentada avenida, um homem de macacão azul empoleirado numa escada metálica cola com esmero, num muro limpo, cartazes com o rosto francamente arrogante de um candidato a deputado federal. Neste feérico período de eleições, os nomeados aspirantes da fantasia política que nos impingem pelo voto obrigatório, se pespegam como osgas ao meio-dia, enodoando a verdade, nas paredes que balizam a bela cidade. Ó flagelante enfado apresento da existência, que

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me valha São cotidiano Bromalex... E mais meses sobrevieram sorvidos pelo gasganete do nada, e tudo segue igual ao que sempre fora nos últimos três anos: breve. Possuo um emprego que é um trabalho. Tenho conhecidos com quem não falo mais e não tenho amigos para, ao menos, me deplorarem pelas costas. Não tenho mais ideologia, nem saúde, nem livros, nem paciência, nem mais música e jamais tive um cão. Eu não tenho vizinhos para além das divisórias de argamassa. O fato é que me desconstruí ao incinerar as lembranças materiais e a enterrar as espirituais no profundo da alma, no escorrer do período; não passo de uma ilha solitária circundada por um mar de desengano. Então, que oportuno e excitante gozo seria se uma mulher, ainda que desencaminhada, de batom borrado, os peitos a pular do decote, puta mesmo, batesse à porta oferecendo-se para dormir comigo... Porque, absolutamente, Irene não vive mais aqui, nem em mim.

MANUEL CASQUEIRO é africano da República Guiné-Bissau; Formado em Ciências Jurídicas e Administrativas pela Universidade de Luanda; Escritor e palestrante em Universidades e Escolas públicas; Publicou “MUZUNGU PULULU - Homem Branco Transparente” pela Editora Armazém da Cultura; Pertence à Associação Cearense de Escritores e é Acadêmico Honorário da Academia de Letras dos Municípios do Ceará.

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inventividade

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Charlotte Caron

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O ALAZÃO

Alexandre Brandão A mão na maçaneta fechava a porta com vagar. Não se vai embora a galope. Trota, alazão, trota elegante como cavalaria militar em desfile cívico. O rangido das dobradiças sem óleo pontuava o adeus com o prosaico do cotidiano. Ele nunca pingou duas gotas de óleo naquela porta. A mulher nunca o perdoou por isso. Ele nunca entendeu a razão de ela se prender a essas banalidades. Ela nunca soube por que ele não fazia uma tarefa tão simples. Andou dois passos de costas para a rua, encarando a

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porta fechada. Ouviu a chave dar a palavra final à separação. Movimento lento. Como o do cavalo que estanca e bate a perna e levanta o pescoço e balança a crina. E volta a trotar. Desceu a escada até a rua, naquele instante vazia, como se o mundo houvesse se retirado para que ele corresse até o pasto onde a grama seca não se dá à fome. Upa, cavalinho, não perca a trilha que começa no final do amor. Correr pelas ruas. Por esta, por outra que corte esta, por uma terceira e ainda por uma quarta. Não há limite, mesmo que seja limitado o número de ruas. Seu compromisso: percorrer caminhos; percorrer por percorrer. Inventá-los. A liberdade estava, nesse instante, fantasiada de desamparo. Os cavalos trotam para o riacho, mal lhes tiram a sela. O riacho dos homens é o bar. Ele não iria ao bar. O amor acaba porque falta óleo na dobradiça da porta. O amor acaba numa camisa manchada na lavagem da semana. O amor dá cambalhotas e cai de bunda onde não existe chão. O amor, essa brincadeira. A rua não está mais vazia, e ele pisa as calçadas distraidamente. Dentro dele, vão se acumulando cenas inacreditáveis. O amor é comédia escrita por um cômico inexperiente. Há um quê de pastelão, e isso não é o pior. O cômico pensa fazer rir com o terrível do comezinho. A porta range. A camisa acaba como pano de limpeza. Duas jovens passam a seu lado. Ele alcança as palavras de uma: “tô louca pelo Vini”. Se pudesse, diria a ela que um dia o Vini não cuidará das coisas práticas da casa. E que ela também não cuidará das coisas práticas da casa. E que isso ferirá de morte o desejo e a complacência, pilares do amor. Não. Não dirá, com certeza não dirá. Seria lançar palavras ao vento. O homem e a mulher foram feitos para cair em tentação e ser ludibriados pelo conto do vigário implícito na ideia do amor. Do amor miúdo, CRUVIANA

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sem pretensão de eternidade. Vão as meninas, fica o cavalo que se recolhe a uma sombra. Abana o rabo e afugenta as moscas. Pisca os olhos. O cavalo, depois da lida, solto no pasto, ao invés de aquietar-se, volta a trotar, às vezes dispara. A sina do cavalo. Se não houvesse cercas, o cavalo iria longe. Iria? As ruas se enchem das pessoas que saem do trabalho para o almoço. Na casa em que morava até ainda há pouco, frigideiras mal conservadas, panelas sujas, colheres de pau quebradas e outros tantos utensílios em estado de penúria estarão em uso intenso. As crianças precisam ir ao colégio. A mulher precisa ver os pais, contar o que se passou. Ela vai marchar como égua. Também ela. Desamparada, mas forte, capaz de levar o mundo nas costas. Os pais, já velhos, não entenderão muito a situação. Outra mulher? Não. Então por quê? Ela não poderá dizer: sabe, ele não lubrificou as dobradiças da porta, e o barulho dela abrindo e fechando, dia e noite, já estava me deixando em frangalhos. As crianças, desconfia, já não conseguiam dormir. Ela não poderá dizer nada. Nada há para ser dito a não ser entre ele e ela. Eles não se disseram — nem dirão. Empaca na mureta da praça. Cruza as pernas. O homem não passa disso, de seus gestos — e de seu silêncio. Miudeza diante do que poderia ser. Tem vontade de chamar o velho que passa em terno escuro para perguntar se há alguma coisa que a idade ensine. (Que não ouça a palavra consolo.) Na verdade, não ouvirá palavra alguma. O homem deve viver retraído. Novas ruas. Ruas com árvores. Com calçadas esburacadas. Com meninos brincando. Ruas sem saída. As ruas sem saída, o que dizem? Pedem para que se entre nelas, que se desloque até o muro, bata as mãos nele e volte ao começo, que agora passará a ser a saída da rua sem saída. Ele não tem a chance de voltar e pedir perdão. Voltar

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dizendo que trouxe do mercado “o óleo”. Duas gotas dele e todas as portas do mundo caem em silêncio profundo. Mais ainda: as camisas recuperam seu viço original. Óleo milagroso; a gota do amor. O amor é uma invenção. Brinquedo eletrônico caro pra chuchu. Para poucos. Para homens e mulheres que ainda estão por ser inventados. O brinquedo antes do brincador. A costela antes de Adão. Tudo que passa pela cabeça dele vem e vai. As incertezas são capim gordura para sua fome. E sobe e desce ruas. Vielas. Atravessa pontes, praças e uma das ruas em um pé só, como se brincasse de mamãe da rua. Como se brincasse. A lua toma lugar no céu. A cidade se recolhe; parece que todos dão a ele a chance de cavalgar nesse imenso prado que é o espaço dos sem-amor. Ele não faz por menos. Dispara. Seus cascos quebram o silêncio, nem assim alguém debruça numa janela atraído pelo pocotó sem fim. Estanca de sua desabalada corrida. Olha para cima, justamente para o céu que é negro. Traz lá de dentro um relincho de potro selvagem. Que ecoa, mas não quebra o cristal das vidas mantidas na paz do desamor, com dobradiças silenciosas e camisas impecáveis. Homens e mulheres prontos para se abraçarem resignados ao cotidiano vão levando. Todos vão. Menos o cavalo. Não mais ele, agora cansado no escuro da noite.

ALEXANDRE BRANDÃO Escritor mineiro, que vive no Rio de Janeiro, é autor de “No Osso: crônicas selecionadas” (Cais Pharoux), “A câmera e a pena” (Cais Pharoux), “Estão todos aqui” (Bom-Texto Editora) e “Contos de homem” (Aldebarã). Prêmio Bolsa de Autores, Funarte, em 2000. Mantém o blog No Osso (http://www.noosso.blogspot.com). Participa do grupo Estilingues, que tem editado livros fora do circuito comercial (https://www. facebook.com/estilingues).

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TROCADO DIA

Ilton Paiva Ueverjânia faz zzzzzzzzzz... De repente, sua pálpebra esquerda soergue-se lenta e pesadamente como um contêiner de ferro, abarrotado de mercadorias, puxado por um guindaste nas docas. São 07h40min da manhã. O despertador mecânico, o qual chacoalha em estridente Trimmmmmmmmmm... não se manifesta em seu ofício de despertá-la. Encontra-se mudo e teso por falta de reposição de pilhas novas. Contudo, o raio solar adentra pela fresta da jane-

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la, criada pelo impacto de um secador de cabelos arremessado no extravasamento de certa decepção amorosa, acordando a garota. Porém, não é eficaz a ponto de colocá-la fora da cama às 07h00min. Nesse horário, a nesga solar não havia chegado à bacia da orelha direita da jovem; esquentando-a. De um susto a um sobressalto, ela se prontifica em seu banheiro, escova à mão e o rosto vincado pelo lençol, ao qual havia se engalfinhado. Nisso, a escova marcha em sua boca: esquerda, direita, esquerda, direita... Ouve-se um balbucio, quase inteligível: - IXTÔ ATCHAXADA! O creme dental verde e espumoso escorre em sua mão esquerda cobrindo uma cicatriz em L. Um fino veio esverdeado estagna-se na cova da articulação de seu braço. Liga o chuveiro, dança um balé de alguns passos para um lado no intuito de pegar o xampu dentre as dezenas de cosméticos sobre as prateleiras. Após, emaranha-se na toalha creme, marcada com um ideograma chinês em sua borda, representando a paciência. Corre, já sabendo que perdeu a carona do colega Gerivásio, o qual passa pontualmente às 07h30min e não tolera atrasos. Pega o pacote de leite desnatado na geladeira; enche um copo de vidro estampado em peixinhos vermelhos, segura de duas em duas bolachas crocantes, arremessa-as à boca e bebe o leite em doses do modo que se tomam antibióticos em cápsulas. Azafamada, checa o conteúdo de sua bolsa. “Bem, está tudo aqui”. Ao passar pela sala, desvia-se da rede de sua avó materna, Hildária, à qual roncava e bodeja uma frase ao sentir a ventania de sua neta. Ueverjânia responde: - De nada, vovó! Ao sair pelo portão, acena para o chihuahua de pelos marrons e mancha branca na cabeça assemelhada a auréola dos anjos. O cão passeia acompanhado pelo dono - um albino que CRUVIANA

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veste a camiseta 32 dos Los Angeles Lakers -, na pressa, esquece de cumprimentar Julian, o estrangeiro de sotaque português enrolado que mora logo ali. Talvez, o fato de o pequeno Namastê olhar para ela fazendo aquela velha posição de obrar; retraindo suas 02 patas anteriores, tenha-lhe chamado a atenção. Na parada de ônibus, percebe que não havia pessoas. Agoniza-se: “será que algum ônibus passou há pouco? Estou muito atrasada!” Em 03 minutos, o ônibus, mostra seu topete laranja, surgindo em um aclive na pista bem antes da parada em que ela está. “Busão” só os cacarecos, com o tampo da frente do motor solto. Ela sinaliza apontando o dedo indicador para cima em diagonal. Movimenta a falange para cima e para baixo lembrando a cabeça de um calango. A “letreca” em forma de coletivo para. Ao subir, segura a barra lateral da porta. Leva um pequeno choque dos elétrons que partem do solo, os quais a esperavam para um passeio de montanha russa pelo seu corpo, em direção ao ônibus. Ao dirigir-se à roleta, vê uma criancinha conhecida pela janela e lhe envia um beijo pensando em voz alta: - Por que Marinalda não foi à aula hoje? Estará doente? E escuta o cobrador de imensa unha suja do mindinho esquerdo, estilo Zé do Caixão: - Deve ser porque hoje é feriado! De chofre, recebe outra carga elétrica em forma de sinapses, tomando outro choque em seu córtex cerebral. Os beijos entre dendritos e axônios faíscam no vasto e escuro campo mnemônico. As faíscas iluminam e seus estalos a fazem pensar e dizer: - Caramba! Hoje é feriado! Dia do trabalhador! Seu moço! Poderia abrir a porta traseira para que eu desça? O cobrador pacientemente a responde: - Só após o pagamento da passagem! O olhar de Uever fixa maquinalmente o aviso escrito na

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coluna do ônibus: TROCO MÁXIMO 20 REAIS. Então, ela responde: - Mas, eu subi ao ônibus equivocada! E ele: - Ah, é?! Eu mando o papo reto! Pague antes de descer! Ela pega ligeiramente uma nota vermelha de 10 reais. Segura-a como se fosse uma varinha mágica apontada para o cobrador de pele áspera e olhar rude. Seu desejo é transformá-lo em um elefante com trombose. Paga e recebe o troco. Misto de ira e vergonha percorre seu semblante e estende um outdoor em seu olhar crepitante: “AI QUE ÓDIO!” Desvencilha-se do vômito amarelado no corredor. Chateada, puxa a cordinha manifestando a intenção de descer do ônibus. Retorna para casa caminhando a distância suficiente para lhe fazer escorrer o lastro transparente de suor em seu rosto. Quando está trancando o cadeado chinês preto do portão sarapintado de ferrugem, Marinalda passa ao seu lado em sentido oposto. Cabelos loiros, crespos e assanhados pelo vento, a garotinha lhe sorri e acena com a mão espalmada. Seus 05 dedinhos se mexem como pontos de exclamação pontudos a lhe afrontar. É assim que Uever interpreta o gesto em sua frustração inquietante. - Eu vi a tia dentro do ônibus! – A criança diz alegremente. A moça apenas sorri sem entusiasmo. Vê o cachorro do vizinho com a língua molhada e gotejante estendida para fora pelo efeito da pareidolia*, é iludida pela ideia de que o animal zomba em gargalhadas da vergonha de Ueverjânia em se sentir tola pelo ocorrido. Depois de trancar o cadeado, segue em direção à porta da casa murmurando consigo: - Menina lesada! Cachorro bobo! Ao passar novamente pela sua avó Hildária, a moça escuta o bodejado rouco e os estalos de saliva, e lhe responde: - Deus lhe pague! CRUVIANA

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*Fenômeno psicológico em que o cérebro humano cria ilusões. Veem-se imagens de faces humanas em objetos, formas de animais em nuvens, janelas etc. POSFÁCIO Idades das personagens: Ueverjânia – idade representada na soma das consoantes repetidas nas onomatopéias. Gerivásio - idade disposta na soma das horas. Hildária - idade representada na soma dos minutos. Julian - idade estampada na camiseta. Cobrador de passagens - idade representada na soma dos valores monetários em reais apresentados. Marinalda - idade representada nos dedos que acenam. Namastê - idade representada nas patas acocadas.

ccccccccccccc ILTON APARECIDO DE PAIVA nascido em Santo André – SP, em 10 de setembro de 1976. Mora desde os 05 anos em Fortaleza. É concludente do Curso de Direito na UNIFOR, estudante do Curso de Letras na UFC, e trabalha na Justiça Federal no Ceará. Inspirado e incentivado pelo colega de trabalho e escritor Pedro Salgueiro, iniciou sua produção literária.

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ARMAS DE CAÇA

Paula Izabela de Alcantara “Se eu fosse jovem fugiria desta cidade.” Elephant Gun, Beirut.

1. Algo estranho, planejado pelos vizinhos, aconteceu em minha casa. Em meu quarto sempre acontecem estranhezas. Mas aquela era vaga, imprecisa, como a suspensão de todas as coisas sobre um pântano de borracha verde. A vida não fazia sentido. CRUVIANA

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2. As águas da chuva invadiram as casas e não havia sol para secar as calcinhas no varal. A correnteza levou nossos remos e nosso caiaque estava à deriva quando passamos por uma igreja ocupada por crianças abandonadas. Uma caranguejeira que flutuava sobre as águas pulou em meu rosto. 3. Um elefante caminhava resoluto em direção à piscina. Com esforço consegui levá-lo para dentro do hotel e trancá-lo em nosso quarto. Quando voltei para o estacionamento, pude vê-lo atirar-se do último andar. Retornei para o quarto de tesoura na mão e fui recebida pelas tesouradas dela. 4. Antes de fugir, fui à casa da minha melhor amiga me despedir. Conversamos sentadas no sofá de sua sala, confessei-lhe tudo. Antes de ir embora pedi para fotografá-la com seus bebês. Quando planejava o clique pelo visor seu marido entrou na sala. Seus pais, seus irmãos, seus colegas de trabalho, todos entraram silenciosamente com taças nas mãos para brindarem meus segredos. 5. Quando entrei na casa dos meus pais encontrei uma mulher enforcada na sala de jantar. Sobre a mesa da cozinha, roupas retiradas do varal ainda molhadas queimavam em altas chamas. Por toda parte, garrafas cheias de álcool. 6. O carro subia na calçada e esmagava a cabeça de minha filha de cinco anos. Eu recolhia as partes do seu crânio, suas órbitas, tentando reconstituir sua face. Flores brancas e amarelas eram atiradas para nós. Em vão eu gritava por uma ambulância. 7. Ganhamos muitas batalhas. A comemoração da nossa vitória

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era sempre interrompida por outro ataque. Foi assim por séculos consecutivos. Até que as crianças acompanhadas por cães de caça renderam o pior dos inimigos. - Mein Gott! – murmurou o psiquiatra. - O que significa? – a pergunta era para o além, duvidava que ele compreendesse. - É alemão. - Me referia aos sonhos. - Senhora G, teremos que aumentar sua medicação. Se continuar afundando assim... em breve estará no Japão. Ou tentará contra a própria vida novamente. - Se eu fosse jovem, fugiria desta cidade. Dr. Santos entregou outra receita que rasguei ao sair do consultório. Só havia uma chance para minha cura: matar o Gato.

PAULA IZABELA DE ALCANTARA é escritora, professora de Literatura e produtora cultural. Graduada em Letras e especialista em Literatura Brasileira, reside em Juazeiro do Norte (CE), sua terra natal. Publicou contos, crônicas e poemas em sites, revistas e antologias. Escreveu a novela “Gatoeira para cães e ratos”, ainda inédita. Mantém o blog autoral “Viver me despenteia”.

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UMA NOITE NA TAVERNA

Umbelino Neto Eu vaguei pela vida sem conforto, Esperei minha amante noite e dia E o ideal não veio... Farto de vida, breve serei morto... (“Um canto do século”, Álvares de Azevedo)

Estava ali diante dele: o decote desesperador fitando seus olhos. Ele era um verme diante de tanta perfeição: cabelos loiros, pele alva, mãos delicadas e farto busto. Ele os desejava tanto! Queria pegá-los, mordê-los...

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Pintá-los, lambê-los... Passara noites e noites sonhando vidrado: de madrugada se fazia vulcão, suas mãos Pompéia – Pompéia afogava-se na lava quente, ele então ia lavar toda a gente que ali jazia. Enfim estava ali diante daqueles seios. Perguntou por que ela estava a rir daquela maneira. A esfinge respondeu: “Por que estás aqui?”. A resposta dele era uma certeza: “Tu sabes o porquê.”. “Sei?”, ela riu. Tomou-lhe as mãos entre as dele, que as descobriu frias. Vazar seu desejo seria como retirar a espinha de peixe que engasga o gordo glutão. Engoliu tudo o que queria dizer a ela, e disse: “Se te amar tanto assim é pecado, estou aqui, entregue ao diabo.”. “Não diga mais nada, já ouvi tudo. Outro que me ama esteve aqui enquanto você entretinha seu amigo devasso. Pedi-lhe uma prova e a você faço o mesmo. Duelem. Ele espera no quarto ao lado”. Seu desejo era sua espada e seu escudo: foi de encontro ao inimigo. Ao passar pela porta da arena já se encontrou golpeado no chão. Sua v...d... ...escorria pelo chão imundo do lugar.

JOSÉ UMBELINO GONÇALVES NETO Nascido em Marabá-PA, criado em Contagem-MG e crescido em Fortaleza-CE, graduado em Letras (2007) e Psicólogo Analista do Comportamento (2013) graduado pela Universidade Federal do Ceará. Desde cedo perplexo com o que fazemos e desfazemos com as palavras.

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BREVIDADES ONÍRICAS DO SENHOR MACHADO

Chico Pascoal Aquela típica manhã carioca de sol e calor o senhor Machado decidiu que precisava ir à Rua do Ouvidor comprar um pince-nez novo, posto que a sua memória, dantes prodigiosa, dera para negar-se a revelar onde diabos ele o havia posto o outro, de armação de ouro ao qual seus olhos já estavam afeiçoados. Avisando que estaria de volta antes do almoço, tomou, às oito horas em ponto, o bonde que o levaria do Cosme Velho ao centro da cidade e, como é comum àqueles a quem os anos já põem cangalha, torceu para não se ver incomodado por algum daqueles rapazolas aspirantes a bardo que lhe quisessem mostrar sonetos açucarados; ou por conhecidos e vizinhos e leitores dos seus livros e folhetins, abusados em uma pretensa intimidade,

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propensos à tagarelagem e ao paparico. Daria de boa vontade o seu reino eterno pela brevidade de um cochilo. Na inclinação de uma curva, o Senhor Machado, que então molementemente cabeceava, acordou sabe-se lá como em outro bonde: este o de Santa Teresa - que achou um tanto malcuidado, e indignado não se conteve em resmungar um quase ininteligível impropério contra o descaso cada vez mais descabido dos administradores municipais para com os bens públicos e o desrespeito aos cidadãos, ao povo. Cruzavam já, por esta altura, os Arcos da Lapa. Os lugares daquele coletivo, ao contrário do outro, achavam-se todos ocupados. Pingentes imprudentes e amontoados dependuravam-se às pencas nos estribos. Os passageiros, pelo descontraído e o exótico do vestuário, malgrado estivessem já em meados de maio, pareciam ter saído direto de um corso carnavalesco. O sol que na sua magnitude incidia forte e banhava de ouro a incomparável geografia da Capital Federal, como em quase todos os dias, era de uma beleza sem par; embora lhe parecesse - estranha impressão - que algo não estava a ocorrer como de fato devia. A atmosfera algo insólita, a mixórdia de sotaques e línguas, aquele Cristo de braços abertos erigido sobre o Morro do Corcovado e que antes, podia jurar, ali não estava... Como podia um homem que se dizia bem informado como ele, escritor de renome, não ter ficado a par de tal novidade? Questionou-se. Como um parvo Tomé, atordoado por um bem aplicado coice de mula, o senhor Machado disfarçadamente beliscou-se no dorso da mão esquerda para ver se não estava a devanear. E constrangeu-se ao ser surpreendido pelo sorriso bonito da rapariga que ao seu lado sobraçava uma edição de luxo do seu “Dom Casmurro”. “O Senhor parece-se muito com ele”, ela disse apontando a sua photographia na contracapa. “Esculpido e encarnaCRUVIANA

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do”. O Senhor Machado viu-se por um instante tentado por um laivo de vaidade a revelar sua identidade secreta, mas se conteve a tempo. A moçoila, no entanto, foi em frente, e ele não teve como não admirar sua audácia: “Decerto fuma e tem ideias próprias” conjecturou. “Que a Maestrina Chiquinha Gonzaga, dizem, anda por aí a fazer escola”. Outro solavanco e um eclipse imprevisto espargiu um tinteiro inteiro sobre a aquarela do dia; e o Senhor Machado viu-se pela segunda vez acordado (dentro de outro sonho?). “Ora, ora se não é o Senhor Machado!”, saudou-o jovial o Senhor Tavares, talentoso homem de letras recém-chegado de Lisboa, e que na noite anterior fora merecidamente homenageado em sessão extraordinária na Academia Brasileira de Letras por ele presidida. “Vamos! Vamos!” ofereceu-lhe o braço o Senhor Tavares. “Permita-me que o acompanhe! Usufruamos juntos das benesses que esta cidade por Deus abençoada generosamente nos oferece!”. E seguiram ambos os dignos cavalheiros em seu passeio: o português a sentir-se como se conhecesse o Bruxo do Cosme Velho de outro tempo, de outra vida; o Senhor Machado, ainda botando nos eixos as vagonetas descarriladas dos seus breves sonhos e tentando recordar-se do que tinha vindo mesmo fazer no centro da cidade.

CHICO PASCOAL é cearense de Crateús e radicado sem São Paulo, foi finalista do I Concurso de Contos do Bunkyo 2012, do Concurso de Contos Rota das Letras de Macau, China, e do Concurso de Contos Caminhos do Fantástico, ambos em 2013. http://microrelatosdocheeko.blogspot.com

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fabuletas

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Sayaka Ganz

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AQUI JAZ UMA IDEIA OU REFUGOS DO AMOR DIVINO

Julia Godoy Foi num desses momentos letárgicos de fim de tarde, em que tudo o que dava sentido à sua vida eram os seres que habitavam seus sonhos, palavras que sumiam ao abrir os olhos e toda sorte de coisas inatingíveis, que Drusila pensou em morrer. Ruminou essa ideia por algumas horas. Não, dias. Drusila, virginiana assumida, pensava muito antes de tomar qualquer decisão. Pensava ainda mais se dessa decisão pudesse derivar uma atitude. Finalmente decidiu-se por um dramático salto do quinto andar, como houvera um dia feito uma atriz francesa, com um lindo, dramático e francês corte de cabelo. Não que ela gostasse de chamar atenção, longe disso. Drusila preferia aos holofotes estar na plateia, encolhidinha, apenas assistindo e, vez por outra, CRUVIANA

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emitindo uma opinião, daquelas bem modestas, sem pretensão alguma de ser ouvida. Era pessoa humilde, e da sua humildade se orgulhava, e inflava o peito e se agarrava quase com prazer àquele único orgulho. Por isso escolheu dar seu salto em direção à morte numa madrugada de setembro quando todos, menos ela, estariam dormindo. No dia marcado em seu calendário, seguiu à risca sua rotina, de forma que ninguém notasse seus planos secretos. Isso supondo que alguém a notasse. Acordou às cinco e vinte, lavou o rosto com esmero, examinando no espelho incômodas rugas, que pareciam se multiplicar a cada dia. Serviuse de um café amargo e separou meticulosamente os grãos de feijão que esparramou sobre a mesa. Já vestida com sua roupa de segunda-feira, regou com carinho as plantas, sussurrando o nome que dera a cada uma delas enquanto aparava suas folhas velhas. Varreu cada milímetro do chão, trancou, destrancou e tornou a trancar cada uma das portas, entoando preces para seus mortos em cada um dos quartos assombrados. Lavou as mãos pela quinta vez e já eram nove horas. Chegara aquele momento da manhã em que não havia nada para fazer, então Drusila apanhou seu binóculo e debruçou-se na janela onde muitas horas mais tarde teria início sua morte. Estava entediada ao vigiar seus vizinhos. Flórida, aquela desmiolada, quase pisou em fezes humanas enquanto caminhava tonta e bamboleante, trocando os pés. Drusila sacudiu a cabeça em desgosto ao ver tal cena. Jamilton foi quem salvou a moça, desviando seu corpo malemolente dos dejetos. Mas Drusila sabia se tratar mais de um gesto aproveitador do que uma boa ação. Jamilton era sabidamente um rapaz faceiro e de modos vulgares, embora algumas moças tolas acreditassem que ele fosse requintado e galante. Jamiel estava lá, no lugar de sempre, devorando pãezinhos doces às centenas enquanto Lúcio exibia seus dotes com o pífano. Dedinhos gordos preenchendo cada buraco. Os cabelos negros e

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oleosos penteados precisamente para o lado esquerdo do seu rosto redondo. Drusila suspirou. Perdera a vontade de anotar os acontecimentos matinais para comentar mais tarde com suas amigas. Nem sabia mais porque ainda se sentava na calçada todas as tardes com aquelas velhas fofoqueiras que, pensando bem, sequer eram suas amigas de verdade. As amizades verdadeiras morrem na infância, anotou Drusila em seu bloquinho, se sentindo poética. Recordou-se de Moema, a única amiga que tivera, ingênua e terna, com suas bochechas rosadas e salientes, emolduradas por mechas de seu cabelo perfeitamente cacheado. Drusila sentiu uma pontada de remorso ao se lembrar das maldades que fizera com a menina. Mas esse sentimento passou de súbito quando da janela Drusila notou, pela primeira vez em dez anos, algo completamente novo. Não estava na rua principal, onde quase todas as coisas acontecem. Em vez disso, como algo proibido, se esgueirava pelo Beco das Formigas, onde morrera Abrantes, sufocado pela própria bebedeira. Pensando no falecido, perdeu de vista a criatura e passou aquela excitação momentânea e inoportuna. De volta à velha melancolia, Drusila fechou a cortina e seguiu para a cozinha, quase dez minutos atrasada para o preparo do almoço. Mas enquanto cortava pequenas rodelas de abobrinha um estranho pensamento invadiu sua mente, subtraindo-lhe primeiro a atenção e depois a ponta de um dedo, justamente o indicador direito, que usava para apontar. E mesmo enquanto desfiava um naco de carne, o sangue dela e do bicho misturando-se entre seus dedos ainda inteiros, aquele pensamento perdurava, sorrateiro e descarado como um bandido. O feijão no fogo, borbulhando e lá estava ele, o pensamento no desconhecido ser que vira antes. O cheiro do feijão queimado invadiu a cozinha, a sala e todo o andar, alarmando a Carmelita Cubana que, curiosa qual um gato, veio imediatamente saber do que se tratava. Nunca antes queimara um feijão, CRUVIANA

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desculpou-se constrangida Drusila, às lágrimas. Carmelita, falsa que só, consolou a vizinha com um sorrisinho mal dissimulado no canto dos lábios. Convidou-a, como um golpe final, para almoçar em sua casa. Teria leitão assado, mas com tomates no lugar das vísceras, porque a Cubana estava empenhadíssima em uma dieta inspirada nas atrizes francesas em voga. Foi nesse almoço que Telúria, cunhada de Carmelita, contou a novidade. Acontece que um grupo de dissidentes desmazelados se apossara do terreno baldio atrás do prédio. Um ultraje! Carmelita censurou a moça, estapeando-a com uma mão enquanto a outra habilmente besuntava em gordura uma fina fatia de tomate. Sabe-se lá com que tipo de drogas estranhas estariam contaminando a terra infértil enquanto praticavam todo tipo de atos obscenos impensáveis. Telúria enrubesceu discretamente quando, mesmo sob o ataque da cunhada, proferiu essas palavras. O assunto proibido terminara ali. Mas é claro que logo todos os vizinhos estariam sabendo. Drusila se sentiu estranhamente excitada com a novidade. Estaria ficando louca? Envergonhou-se ao pensar que algum dos presentes pudesse notar em suas feições aquilo que sentia. Mas Carmelita já cochilava recostada na cadeira, babando como uma lesma. As crianças matavam-se umas às outras repetidas vezes, como numa dança macabra, bizarramente harmoniosa. Teobaldo devorava ruidosamente o que sobrara da carne, como um suíno em um tenebroso ato de canibalismo. E Geofredo dedicava-se com afinco às apalpadelas que dava nas coxas de Telúria sob a toalha, acreditando, ele e a jovem esposa, que ninguém notava. Talvez ninguém notasse mesmo, pensou Drusila, observando ao redor todos envolvidos em seus próprios pecados. Sem se despedir, levantou-se e voltou ao seu apartamento. Foi quando percebeu que não havia comido nada. Como o dia não estivesse estranho o suficiente, apanhou indolente uma maçã, escapando pela primeira vez da sua

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rotina, e de repente se viu descendo cada degrau e deixando o prédio, sem destino certo. Mentira. Havia um destino. E Drusila intimamente sabia qual era, mas não ousava admitir nem para si mesma, muito menos para o Nathanael, que fazia às vezes de porteiro, e cumprindo o que julgava ser a função de um porteiro, questionou, com uma rebuscada mesura, para onde a dona ia sem seu guarda-chuva. Foi só então que ela notou que chovia. Ignorando o pobre louco e as poças que já se formavam na calçada, caminhou em largas passadas e, quando deu por si, estava correndo, encharcada, atravessando a rua sem sequer olhar para os lados, numa imprudência sem precedentes. Despida da vergonha que naquele instante parecia nunca ter habitado aquele corpo, Drusila ergueu os braços como se almejasse alcançar o céu e rodopiou como uma criança, preenchendo-se com a água da chuva, que caia sem trégua. Enlouqueceu, sussurravam os vizinhos que naquele momento espiavam de suas janelas com seus binóculos. Pobre alma, diziam. E repetiam o sinal da cruz mecanicamente, fazendo crer, a um incauto qualquer que por ali passasse, que se apiedavam da mulher que brincava na chuva. Mas, na verdade, ninguém sente piedade e o destino de Drusila não era nem a chuva nem o redemoinho que se formava em sua saia. Aquilo era só um atalho, e ninguém além dela sabia. E quando o céu finalmente secou e as nuvens se abriram para o esplendor do vaidoso sol, e as pessoas retornaram aos seus afazeres, esquecendo-se que um dia houvera no meio da rua uma imprudente, louca e encharcada mulher de meia idade, ela já se enfiara no Beco das Formigas, fosse um cão sem dono à procura da refeição diária. Entrincheirou-se entre os montes de entulhos, a respiração suspensa, à espera do fantasma. E por tanto tempo esperou, que adormeceu e lá ficou, nunca soube por quanto tempo. Acordou sobressaltada com um pontapé. Quem desferiu o golpe não era o fantasma de seu marido, ou CRUVIANA

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qualquer fantasma, tampouco o vulto que vira mais cedo. Era um indigente, ela via agora, desembaçados já os olhos após o sono mal dormido. Um verdadeiro indigente, que a chutara justamente com seu único pé calçado. Suas costelas doíam, mas ela estava muito mais curiosa do que zangada. Ainda tonta, rolou para o lado, desvencilhando-se de uma montanha de lixo que, tinha certeza, não estava lá antes. Foi então que o indigente, que ela chamou de Carlos, apanhou do chão onde ela antes estivera deitada um cacho de bananas semiapodrecidas, recriminando-a com o olhar. Foi esse mesmo olhar que fascinou a podre Drusila, deixando-a hipnotizada. Olhos verde-amarelados, profundos e imponentes, como os de um cigano, ela pensou, embora nunca tivesse visto um. A criatura selvagem fugiu, antes que ela pudesse dizer qualquer palavra. Não que ele fosse entender, pensaria mais tarde, com seus botões. Drusila foi encontrada na manhã seguinte recostada à entrada do beco, as roupas imundas e esfarrapadas, olhos vagos e distantes, murmurando qualquer coisa incompreensível. Pelo menos foi isso o que Carmelita segredou a todos no bairro, jurando que era verdade. Alguns acreditaram, outros não, a Cubana era uma notável mitomaníaca. Mas o fato é que ninguém parecia se recordar de ter visto Drusila, ou quem quer que fosse, brincando desvairadamente na chuva do dia anterior. Nem mesmo Nathanael, que afirmou solenemente ter passado toda a segunda-feira trabalhando de garçom para o senhor Prestes, já que o Lúcio estava ensaiando para um concerto. É claro que ninguém duvidou do homem, um pouco pela forma rebuscada com que ele detalhava os acontecimentos, mas principalmente porque o próprio Prestes confirmara a veracidade dos fatos, devidamente registrados pelo escrivão Praxedes, autenticados pelo tabelião Arquimedes e arquivados por Eleonora, a secretária. A própria chuva fora posteriormente negada pela maior e mais sensata parcela da comu-

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nidade local, inclusive por Jamiel que, como de costume, passara todo o dia na mesinha em frente ao bar-restaurante do Prestes. As pessoas, àqueles tempos, eram muito afeitas aos costumes. Quanto à Drusila, após um banho demorado e uma canja de galinha, estava quase recuperada do seu pequeno surto. Mas não se esquecera do olhar felino do Carlos, que atribuiu imediatamente a um sonho. Fora, afinal, uma noite estranha, decorrente, sem sombra de dúvidas da nefasta fuga da rotina, que ela prometeu a si mesma que nunca se repetiria. Mas algo nela havia mudado, embora não estivesse disposta a admitir. Enquanto tomava seu café vespertino e refletia sobre os planos suicidas adiados por forças desconhecidas, recordou-se vagamente da história louca de Telúria sobre a suposta colônia de indigentes que se estabelecera no terreno baldio. Só um boato, pensou. Olhou de relance para o relógio de parede em forma de cesto de frutas, um presente de extremo mau-gosto que o finado Abrantes recebera no amigo-secreto da firma, há bem uns dez natais. Já passava da hora de descer e se encontrar com as amigas na calçada. Drusila não costumava se atrasar, mas estava tão distraída ultimamente que passara pelo menos duas horas tentando sem sucesso ler as notícias antes de perceber que se tratava do jornal de ontem. Enrolou o jornal e fingiu matar uma barata. Lá embaixo estavam Jemima e sua irmã Arouca, Turmalina, com seu torso negro na cabeça e a velha Antífona, que mal conseguia acompanhar a conversa, e sequer se locomovia sem a ajuda de sua sobrinha Grigia, mas permanecia indo aos encontros diários por força do hábito. E como um acréscimo inesperado, a estranha garota de nome Flégias, que se mudara para lá na semana passada, mas que já sabia de mais fofocas do que a própria Drusila, que, no momento em que apareceu, pareceu causar certo constrangimento entre as demais. Talvez tenha sido só impressão, mas elas se entreolharam e pareciam ter interCRUVIANA

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rompido bruscamente qualquer assunto. Drusila preferiu ignorar a estranha sensação de não pertencimento e sentou-se na calçada entre Grigia e Turmalina. Foi Grigia quem imediatamente notou que do seu dedo enfaixado pingava sangue e só então Drusila percebeu que se esquecera de trocar as ataduras, que estavam negras de sujeira e cobertas por uma secreção purulenta. Desenfaixou ali mesmo o toco de dedo, sem se importar com a repulsa que causou às outras. Levou à boca e sugou o dedo quase podre, cuspindo um líquido esverdeado. Mais uma vez lembrou-se do olhar cigano do Carlos. Nunca antes uma criatura de sonho permanecera por tanto tempo em sua lembrança e, por isso, Drusila decidiu que não fora um sonho. Despediu-se das mulheres com a desculpa da visita iminente de uma prima do interior. Coitada, precisa tanto da minha ajuda, justificou, sentindo-se envaidecida como se tal prima realmente existisse. Nos dias que se passaram, Drusila adicionou à sua lista de atividades diárias uma visita à colônia de indigentes, por caridade, ela disse a Carmelita, quando esta a sacudiu desvairadamente, exigindo uma explicação para comportamento tão absurdo. Carregando uma bacia de restos, coberta por um pano de prato ricamente bordado, ela descia cautelosamente a estreita encosta esquecida ao lado do prédio. O mato alcançava seu quadril, provocando cócegas. Insetos zumbiam ao redor de sua cabeça, mas ela não podia espantá-los sem derrubar a bacia e seu precioso conteúdo. Já podia ouvir os gritos dos pequenos. Boquinhas imundas e famintas, Drusila cantarolava, enquanto adentrava o terreno baldio. Dezenas de crianças se enroscavam entre suas pernas, algumas mordiscando suas panturrilhas rechonchudas, outras dependuradas, divertindo-se com o balançar desajeitado de cada passo daquela estranha mulher. Mas quando Drusila iniciava o ritual de despejar pelo chão as sobras, todas corriam, amontoam-se e lutando por qualquer migalha. Era sempre nesse

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momento que Drusila olhava ao redor. Os adultos do bando a encaravam com seus olhos desconfiados, quando era um par específico de olhos que ela buscava. 1. A primeira batata atingiu com força seu ombro, desequilibrando-a. Enquanto caía, Drusila pensou ter visto um rosto conhecido em meio à turba. Poderia ser o Carlos, mas seu olhar era enfurecido e ele carregava uma batata. Ergueu o punho e lançou. O tubérculo acertou em cheio o rosto da mulher, turvando-lhe a visão. Sentiu que a vida lhe deixava, mas estava feliz como uma criança. 2. Imersa em lodo, Drusila lutava para se manter em pé. Não havia crianças. Não havia ninguém. Agarrou-se ao braço escuro e ossudo do Carlos. Não era mais um braço. Nunca fora nada além de um galho seco. Afundando completamente, Drusila despediu-se da luz. A morte era quente e viscosa. 3. Avançou em meio à multidão de indigentes até alcançar o Carlos. Lançou-se em direção ao seu abraço e entre seus braços úmidos permaneceu até se afogar. Morreu de amor. Deixando ao leitor a escolha do desfecho, Drusila entregou-se ao inevitável fim.

JULIA GODOY é paulista, mora na Bahia, formada em publicidade, escritora esporádica.

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FÁBULA PÓS-MODERNA: “TATUAGENS FABULOSAS”

Carlos Trigueiro Saibam quantos lerem esta Fábula ou dela notícias tiverem por qualquer meio nacional ou estrangeiro, eletrônico, virtual, táctil, oral, mecânico, sensitivo, caritativo ou eleitoreiro que em tempos pós-modernos há objetos, geringonças, módulos, dispositivos, códigos de barra, tarjas, chips, lentes, imagens e tatuagens que enxergam, espionam, filmam, gravam, mapeiam e se comunicam sem limitações de meridiano, fuso horário, idioma, emoções ou decência; e que o diálogo a seguir é de máxima boa-fé e corresponde à conversa de duas tatuagens glúteas, aqui nomeadas LIBÉLULA e DRAGÃO, sendo as ditas cujas alocadas em portadores distintos conforme se verá:

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LIBÉLULA – Finalmente o casal aí dormiu de bruços. Agora podemos conversar. Estava sufocada nessa cama de motel. Muito prazer, eu sou Libélula! E você é um Dragão! Mas por que foi tatuado no grande glúteo do marmanjo aí? Só vi dragões em espáduas, braços, ombros e peitoral dos clientes dessa periguete aí que me usa, a Rosineide... DRAGÃO – Oi, Libélula, prazer! Fui tatuado no glúteo do Mário Costa, esse marmanjo que dorme aí, por causa de uma promessa que ele fez. Mário era um escritor nacional pobre, honesto e infeliz até que topou com a Dalva, uma periguete emergente, num bar de Ipanema. Desde então, há coisa de dois anos, aquele encontro mudou o destino dele. Hoje, Mário Costa é um escritor rico, não exatamente feliz, mas, bem, promessa é promessa... LIBÉLULA – Valeu! Adoro histórias com promessas no meio! E como já vi que sou uma tatuagem mais antiga do que você, não precisa me dizer que nós, tatuagens, refletimos o que se passa no corpo e na alma dos nossos usuários. Vamos lá, desembucha o resto da história. DRAGÃO – Bem, o Mário Costa, publicara catorze livros nos últimos vinte anos, porém não vendia nada. Os livros ficavam encalhados nas livrarias ou voltavam às editoras que os transformava em papel picado para reciclagem. LIBÉLULA – Mas todo mundo sabe que ficção nacional não dá pra competir com a realidade exuberante do país e, pior ainda, não tem a menor chance de enfrentar os tijolaços de grana e marketing da ficção estrangeira!

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DRAGÃO – Foi o que aconteceu. O coitado do Mário Costa, desiludido com a venda ínfima dos seus livros, bem como decepcionado com o silêncio das mídias sobre a sua arte, e descrente da opinião e dos conselhos de jornalistas, editores, críticos e agentes literários sobre como escrever um Best-seller, acabou recorrendo ao sobrenatural por sugestão da periguete Dalva. LIBÉLULA – Já sei, o recurso sobrenatural deu certo, e aí o Mário cumpriu a promessa de mandar tatuar um dragão no seu grande glúteo direito. DRAGÃO – Mas teve uma espera. Primeiro, no bar de Ipanema, o Mário e a periguete tomaram umas caipirinhas. Depois foram pro motel, assim como a Rosineide faz, deram uns tapas num baseado noite adentro, trocaram beijos, afagos, sabe-se lá mais o quê e, finalmente, dia claro, vieram as lamúrias dele. LIBÉLULA – Estou curiosíssima, me conta logo os “finalmente”! DRAGÃO – Bem, o marmanjo desabafou com a periguete que os seus livros não vendiam e eram incinerados. Foi então que ela aconselhou ao Mário uma sessão de tarô com uma cartomante da periferia, Madame Chateaubriand, que sabia das coisas e poderia ensinar-lhe como abrir caminhos para o sucesso. LIBÉLULA – Que história fascinante! Estou morrendo de curiosidade! Ele foi lá mesmo visitar a cartomante? E o que foi que ela disse de extraordinário que fez mudar o seu destino de escritor? DRAGÃO – Bem, o que vou te contar aconteceu antes do meu aparecimento. Eu sei de tudo porque ouvi a história da boca do escritor em rodas de amigos. E, claro, estou entranhado na sua

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pele, sei seus segredos, emoções e desejos. LIBÉLULA – Mas é para esconder e desvendar segredos da alma alheia que nós, tatuagens, existimos! Me conta como foi a tal sessão com a cartomante! DRAGÃO – Ela embaralhou as cartas, mandou o Mário cortar o baralho em sete montes e, em uma hora de sessão, virando e interpretando as cartas, deu o resultado da consulta. LIBÉLULA – Não me mata de curiosidade, o que foi que ela disse? DRAGÃO – Ela disse que o Mário escrevia direitinho, tinha bom vocabulário, estilo clássico, mas que abordava temas sérios, coisas que faziam pensar, e que isso hoje está fora de moda, pois a tecnologia resolve tudo... E sugeriu que o Mário escrevesse histórias óbvias, com títulos inconvenientes, enredos banais, mas escabrosos, personagens pornográficos ou violentos, até citou o Nelson Rodrigues, pois o aconselhou a adotar o estilo “óbvio ululante” do erotismo e da sensualidade. Porém, frisou ela, tudo escrito com muita frescura e, no fecho das histórias, que colocasse aquilo que chamam de “água com açúcar”. LIBÉLULA – Mas isso é lógico demais, não tem nada de sobrenatural! DRAGÃO – Calma! Agora vem o lado esotérico da história. Ela mandou o Mário assinar os seus futuros livros com o nome modificado, parecendo estrangeiro, e sugeriu virar o “M” de Mário de cabeça pra baixo, ficando um “W”, mudar o acento agudo do “a” de Mário para um trema, assim “ä”, trocar o “i” por “y” e CRUVIANA

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colocar mais um “o” no final do nome para ficar “Wäryoo”! LIBÉLULA – E o que ela sugeriu com o “Costa”? DRAGÃO – A Madame disse pra ele escrever “Costa” assim: “Köztta”. LIBÉLULA – Então, o Mário Costa passou a assinar Wäryoo Köztta? DRAGÃO – Exatamente. E assim Wäryoo Köztta escreveu em três meses o seu décimo quinto livro que em menos de um semestre vendeu três milhões de exemplares, tem várias propostas para teatro, cinema e minissérie de TV. LIBÉLULA – Mas e a promessa de tatuar o Dragão no grande glúteo? DRAGÃO – Calma! A cartomante, além de cobrar caro a consulta, exigiu um ritual satânico para o Wäryoo fazer quando terminasse de escrever o novo livro. Mandou-o imprimir cópias dos originais e tocar fogo página por página numa frigideira untada com azeite extra virgem e pimenta rosa numa noite de lua cheia. Feito isso, instruiu-o como mastigar e engolir com o auxílio de uma colher de sopa as cinzas do estranho refogado até o amanhecer. LIBÉLULA – Mas onde entrou a promessa do Dragão? DRAGÃO – A cartomante disse que a digestão do Wäryoo passaria a ser muito difícil depois do ritual de queimar as páginas e comê-las, mas esse transtorno lhe daria a ideia genial para o título do livro. E se desse tudo certo ela exigiu, como promessa

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a ser paga, que o Mário Costa, aliás, o Wäryoo Köosta tatuasse um dragão cuspindo fogo no local do corpo mais apropriado para neutralizar as reações fisiológicas provenientes do estranho ritual. LIBÉLULA – Estou pasma! Ainda não entendi a ligação entre o ritual de comer cópias dos originais untadas com azeite e pimenta rosa e o título do livro... E você também não me disse até agora qual o título do tal livro que arrebentou o mercado e vendeu milhões! DRAGÃO – Vais entender tudo: o desconforto digestivo previsto pela cartomante deu ao Wäryoo inspiração para o título literalmente estrondoso do seu livro que está arrebentando o mercado: “50 PUNS DE CINZAS”.

CARLOS TRIGUEIRO nasceu em Manaus (1943) onde viveu literalmente “Meus oito anos” de Casimiro de Abreu. Depois de uma temporada em Santarém e Belém do Pará, mudouse para Fortaleza, Ceará, onde viveu até os 13 anos. Mudou-se em 1956 para o Rio de Janeiro. Conhece todos os estados do Brasil onde chegou por terra, água ou ar. Estudou Administração Pública na Fundação Getulio Vargas e fez pós-graduação em Disciplinas Bancárias na Universidade de Roma, Itália. Entre 1980 e 1996 viveu em Madri (Espanha), Macau (China), Roma (Itália) e Chicago (EUA). Publicou ficção, artigos e ensaios no Brasil e Exterior. Mantém um site quase literário www.carlostrigueiro.com

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A REDE

Silas Falcão A rede é lançada. A expectativa para capturar boas quantias de peixes termina e Cruz puxa a rede. Ela não vem. Repuxa. Outra tentativa intensa. Mais uma. Inutilmente, o velho pescador mais antigo da fazenda olha para a água barrenta querendo testemunhar o que acontece com a rede. Na esperança de recolher a rede, ele respira fundo convocando suas forças que não emergem a rede. Cruz chama os pescadores. Forças jovens se enfileiram. “Vamos lá, gente! Eu amarrei esta corda na rede. Quando eu der o sinal, a gente puxa com toda força”, propõe Cruz. Como as montanhas ao redor da fazenda, a rede permanece fixa. Olhares incrédulos se interrogam. Calisto, outro pescador experiente, recupera da memória: “Mas como isso pode acontecer? Ontem eu pesquei neste mesmo local e sozinho retirei esta rede cheia de peixes!”. Mais pessoas são arregimentadas. Essa expressiva

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soma de potência não move a rede. Cruz chama um trator de implementos agrícolas. A corda é amarrada ao trator. “Mas que peso tem nessa rede que não saí deste açude?”, pergunta o tratorista irritado, após a quarta tentativa. Olhares interrogativos submergem em direção a rede. Alguém propõe mais um trator no momento em que um volumoso barulho metálico se aproxima. “Me contaram o que está acontecendo”, afirma, descendo do trator de esteiras, Ludugero, o fazendeiro de linho egípcio. Os dois tratores se emparelham e a um só tempo trepidam cansativos esforços. Incrédulos, o sol pesado, o vento e os pescadores não entendem como essas forças mecânicas não puxam uma velha rede. Novas ondas de dúvidas se formam em todos. Na abertura da noite, os trabalhos são interrompidos. Dentro de todos os claros e escuros da fazenda não se comenta outro assunto. Dia seguinte, sentindo-se provocado por uma humilde rede, o latifundiário Ludugero contrata um guindaste móvel portuário. Uma multidão de curiosos — a notícia correu a região como forte ventania de inverno —, na expectativa de ver a rede, se decepciona ao presenciar as toneladas do guindaste silenciarem seus esforços. Angustiado, Cruz mergulha. Purgatória espera. Ele retorna: “A rede não está presa em nada. E totalmente vazia”.

SILAS FALCÃO é cearense de Crateús. Publicou Por quem somos?, livro de crônicas. Inédito O colecionador de dedos, livro de micro contos selecionado pelo edital da Secretária Municipal de Educação de Fortaleza/2012. Segundo lugar no concurso estadual de contos do SESC/Crato, 2012 com o conto fantástico A pasta azul. Com o apoio da Fundação Demócrito Rocha (Jornal O Povo) pesquisa a obra literária do cronista cearense Milton Dias. Autor do selo editorial Lua azul.

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MURCHA E SECA COMO O PRÓPRIO CRÂNIO

Kennedy Cabral Nobre A noite ia ao declive: a orgia há muito findara. Os convivas ainda dormiam, à penumbra. Um dos tais, nos braços de Hipnos, quedava-se presa de seu filho: estava em sua própria alcova e buscava dormir, mas o choro convulso da virgem ao pé da lápide lancinava-lhe os ouvidos. Era a mesma forma branca, o mesmo cantar pungente que vira e ouvira há anos. O rosto estava encoberto pelas mãos, mais alvas ao luar. O corpo adivinhavase límpido, por baixo das diáfanas vestes brancas. Desta vez não o jovem hesitou, afastou o cortinado, levantou-se do leito, esquivou-se das lápides, esmagando vigorosamente as urzes do cemitério e foi ter com a virgem. Não desperdiçaria uma segunda chance. Mas estacou ao ler, laconicamente cunhado da pedra tumular diante da qual chorava a moça:

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SOLFIERI 1831-1852 Desperto, deixou a taverna. Um ano, noite após noite, dormira sobre as lajes que a cobriam, até o momento em que ela começou a manifestar-se, aos poucos no início. Começou com pesadelos, cujas alucinações transpuseram os oníricos umbrais, passando a segui-lo em vigília, também. Não a via, mas muitas vezes se percebia ouvindo seu riso de insânia; outras vezes escutava a mesma melopeia que outrora, de seu palácio, a virgem cantara. Mas era seu choro o ruído mais assombroso. Não raro, ouvia os três simultaneamente, até o momento em que já era insuportável jazer ali, em companhia daquela sua Inês, com quem, dizia em embriaguez, era desposado. Longe do túmulo que arranjou à mulher, houve tempo de calmaria, mas a partir daquela noite na taverna, em que fez submergir do lodo de seu passado a evitada lembrança daquela donzela, não mais pode esquivar-se dos clamores de riso e choro em aberta desarmonia. Mal cerrava os olhos corporificava-se a imagem dela, saliente às janelas do palácio, ou ajoelhada diante do túmulo, ou pálida em seu ataúde, ou frenética em seus braços, ou calcificada no frio mármore. Se, longe dela, sua lembrança o molestava, não havia razão que o impedisse a voltar ao paço onde a sepultou. Quem sabe o espírito desta mulher estivesse penando no desígnio de um jazigo cristão – não faltavam histórias semelhantes no repertório de contos populares de mortos que reclamam funeral e sepulcro em conformidade com a liturgia cristã. Mas, pensava Solfieri, cumprir com os sagrados ritos poderia representar o fim perpétuo de tão vivas imagens. Ainda que inegavelmente perturbativas, as alucinações de que sofria eram o elo mais CRUVIANA

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tangível que tinha com a moça, mais que a estátua fria e coberta de poeira, mais que as flores sem olor que lhe exasperavam perenemente o peito. Voltou ao seu abandonado lar. Agora ele está bem ali, em frente ao leito onde por somente dois dias teve regozijo ímpar que prostituta ou donzela alguma lhe favoreceu. Ainda não sabe se vai, após tanto tempo, violar o improvisado túmulo. Traz o sono protelado e percebe agora que em lugar algum no mundo poderá restituir a paz de que precisa, senão naquele leito. Antes, porém, busca a estátua. Desnuda-lhe do véu que lhe resguarda à poeira. De tão perfeita a imagem, quisera ele ter a virtude de soprar-lhe a vida. Num gesto impensado, extrai de si a grinalda e com ela veste a estátua. E vai dormir em seguida, o mais denso dos sonos, em muito tempo. “Dormiste tão tranquila e sossegadamente que cheguei a pensar, por vezes, que estiveste morto”, falou a mulher às sua frente, assim que acordou, “mas bastava eu olhar mais atentamente que te via voltar a respirar”. “Não é um delírio, isto?”, foi o máximo que conseguiu verbalizar, passado o primeiro instante de perplexidade. “O quê?” “Estás viva!” “Às vezes penso o mesmo, o fato de estarmos vivos é verdadeiramente um delírio”. “Não me refiro a estar vivo, de uma maneira geral, e sim ao fato de tu estares viva!”. “O que tem de delírio nisto? Tu estás vivo e nem por isso me espanto. Nem tu te espantas por estares vivo!”. “Eu sempre estive vivo, mas tu estavas morta! Ou pelo menos estiveste!” “Não seria a primeira vez que me encontro como morta, tu o sabes.”

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“Não estavas morta àquela ocasião, tiveste catalepsia. Além disso, faz quase dois anos desde que inumei teu corpo, desde que cavei, sob este leito, teu túmulo.” Apontava o leito sob o qual enterrara a moça. “Aquele corpo, sim, não tem vida; mas ainda vivo como podes ver. A vida, ao contrário do que pensas, não é somente a reunião de moléculas ao acaso.” “E é o que, então?” “Não sei. Sei que vivo. Também sei que me tiraste, por duas vezes, da latência que me suspendia à vida, que me tornava etérea.” “Loucura!” “Vida e morte, loucura e lucidez, talvez o mal dos homens seja compreender as coisas de forma opositiva, quando na verdade não o são.” “Se o corpo em que outrora residiste continua aqui sob este leito – decrépito, portanto – como podes trazer as exatas feições que tinhas há dois anos?” “Não mandaste mesmo fazer a estátua à imagem e semelhança do que fora meu corpo?” Não havia mais estátua na alcova. Na verdade, a mulher postava-se exatamente no lugar em que estava a escultura. “És a estátua?” “Não sou a estátua, mas posso afirmar que lhe fui hospedeira durante um tempo.” Solfieri mirou melhor a moça, viu-a usar a grinalda. Não ousava, porém, tocá-la. Seja por temor, seja por desvelo. O fato é que acreditava estar em sonho, e qualquer movimento brusco poderia despertá-lo. “O que era pedra fria tornou-se carne? Cálida e viva?” “Creio que sou um pouco gélida ainda, sente. Passei muito tempo no mármore, demoro a acalentar-me”. A moça CRUVIANA

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aproximou-se e estendeu o braço. Ainda incrédulo, Solfieri apalpou-lhe o pulso. Fria, sim, mas não tinha a consistência dura de pedra de mármore. Foi somente nesse instante que percebeu ser de mármore as vestes que cobriam a mulher. “Estou mesmo muito desconfortável.” Falou ela, desvencilhando-se da singular roupa, mal o rapaz comentou a esse respeito. Nua, por pouco a forma pálida não se confundia, efetivamente, em estátua de mármore. A mulher, ainda fria por ter sido, há pouco, constituída de puro calcário, perdia tal particularidade ao absorver o calor que emanava do rapaz. Não demorou até que os mancebos perdiam-se em ritos de luxúria. Não houve beatitude maior para Solfieri. A moça, ao contrário de há dois anos, deixava-se levar, sobriamente, pelo mancebo. Se, por vezes, lhe causava penar a sensação de não ter dominado sua lubricidade, aproveitando-se da vulnerabilidade da moça àquela ocasião, agora testemunhava e experimentava de sua lascívia; podia beber, sem culpa, o mais deleitoso dos vinhos. “Qual o seu nome?” Perguntou-lhe Solfieri, quando, sôfrego, pode respirar. “Importas-te com uma palavra quando sente que meu amor lhe queima assaz os lábios?”, respondeu a moça. Ofegante. De fato, não havia por que prodigalizar aquele tão sublime momento. Haveria tempo depois para inquirir-lhe, dissipar a nebulosa que envolvia aquela mulher – e que talvez a deixasse mais bela. Talvez fosse um desacerto saber quem era a moça, ou por quem ela chorara aquela noite. Ela nascera novamente, uma vida incorrupta, portanto. Aliás, ele, Solfieri, a fizera renascer. “Devo ter-lhe restituído a vida quando lhe pus o diadema”, calculava ele, entre afagos. “É possível. Não posso precisar-lhe, contudo.” “Nunca o tire”.

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Foram horas de êxtase, até caírem, ambos, exauridos. ... “Dormiste tão tranquila e sossegadamente que cheguei a pensar, por vezes, que estiveste morto, mas bastava eu olhar mais atentamente que te via voltar a respirar”. Ouviu da mulher, ao acordar, mas, ao procurá-la, ela não estava lá. No local de sempre, uma escultura de mármore. Suplantado por tão autêntica ilusão, Solfieri quedou-se em prantos. Cria que, pouco a pouco, enlouquecia. Aquelas duas distantes noites, pensava, sorveu a loucura que consumiu aquela mulher em seus forçados beijos. Era justa a insânia. Agora entendia que o remorso não lhe daria repouso até que se redimisse. Voltou a pensar em um funeral cristão. Se isso não trouxesse paz a uma alma supostamente em purgação, poderia trazer a ele um pouco de tranquilidade, do contrário morreria da mesma febre que lhe levou a moça. Repetindo o gesto de há quase dois anos, arrancou as lajes de sua alcova e cavou na busca do cadáver. Outrora tal mister pareceu menos oneroso aos seu músculos. Continuava cavando, frustradamente, pois não havia vestígio de despojo algum. Não seria possível que os vermes o tivessem devorado por inteiro, não em dois anos. Voltou a temer por sua sanidade; chegou a duvidar de tudo isso, do encontro com a mulher no cemitério, o rapto de seu cadáver, de tudo o mais que se conhece. Seria a estátua fruto de um delírio? Pelo inferno que não, a grinalda era prova cabal de que efetivamente vivera tudo isso. E, ao buscar novamente sua relíquia, percebeu-lhe verde, as flores viçosas e perfumadas.

KENNEDY CABRAL NOBRE. De Morada Nova - CE. Professor e pesquisador, tem publicado alguma coisa – mas em teor e estilo acadêmicos.

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ALGUM OUTRO LUGAR

Magno Araújo Em uma cidade há muitos postes. Os postes, os condutores e isoladores servem para sustentar a rede de distribuição de energia elétrica. Quanto maior e mais moderna uma cidade, maior o número de fios e cabos que ficam sustentados sobre nossas cabeças. Há vários tipos de postes, com alturas e formatos diferentes. Alguns têm, ao longo de sua estrutura, vários buracos que são utilizados pelas equipes de manutenção para facilitar o acesso à extremidade superior onde descansam os cabos em sua constante tarefa de levar energia de um lugar para outro. Mas naquela cidade havia um poste especial, no qual havia um buraco especial. Visto de longe o poste era como qualquer outro, cinza e sem atrativos. Como todo o resto naquela

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grande metrópole atropelada de carros e stress, de gente preocupada com o amanhã e de gente que passa e não dá bom dia. O poste ficava próximo a um viaduto movimentado e sem cor. Exceto por uma pequena pintura caricatural de alguém de cabelos coloridos. Um pequeno grafite, desbotado e tão escondido que mal podia ser reconhecido pelos velozes passantes. Foi Mundinho, garoto pobre, morador da Várzea, caminhante da cidade de concreto, estudante de chinelos e mochila desgastada, doada de segunda mão pela madrinha ausente, irmão de Luquinha, Chiquinho, Fatinha e Gracinha, observador do inusitado e cientista do cotidiano, quem descobriu pela primeira vez a especialidade daquele gigante cinza cheio de furos. Foi numa destas tardes comuns, nas quais não se imagina nada de novo e tudo flui com tanta normalidade que as pessoas não pensam sobre a vida para evitar perceber o nó que a angústia fez nas almas e assim não ouvir o grito abafado dos sonhos esquecidos. Mundinho e Chiquinho voltavam da escola, o primeiro a observar cuidadosamente aquele grafite quase escondido, o segundo a pensar nas tapiocas que sua mãe fazia toda sextafeira. E foi com uma agilidade sem igual, que Mundinho então engendrou uma experiência matemática, ótica ou mesmo psicológica, destas que não tem pé nem cabeça, mas que fazem todo sentido aqueles menos preocupados com os resultados do que com os processos. Perguntava a si mesmo, aquele desenho seria diferente se visto por entre a circunferência do buraco do poste? E tendo em vista que todos os recursos necessários já estavam a sua disposição, atirou-se como um raio e escalou o poste como um pequeno macaco, posicionando-se de tal forma que este fosse sua luneta, mirada na curiosa gravura. Mas foi aí que os olhos de Mundinho se-lhe-abriram com CRUVIANA

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flashes fulgurantes e seu semblante irradiava emoção jamais vista. Nem mesmo quando, nas noites de natal, com a família reunida em torno do baião-de-dois se abriam os raros brinquedos. Era uma perspectiva completamente diferente da cidade, ou melhor, outro lugar que a começar pela viva figura de cabelos de fogo, espalhava cores por todos os lados num capricho estético sem proporções que deixariam Dalí de bigode em riste e Miró simplesmente sem palavras. Viva também era a cor do céu, que variava do azul ao lilás. As árvores exalavam perfume delicado e Mundinho enchia o peito sorvendo aquele frescor com ares de sorvete e marshmallows. E podiam-se ver as faces rosadas dos passantes que deslizavam de um lado ao outro em algo como pranchas flutuantes. Havia sorrisos e carinhos em toda uma atmosfera especial de comunidade que faziam com que os problemas ficassem quase invisíveis, miúdos e apagados diante das mãos estendidas, braços abertos, olhar compreensivo, palavras de afirmação e amizade. Mundinho desconfiava se era possível captar tudo isto apenas com o olhar, mas era o que sentia em sua pele, em todo o corpo, como se a luz dos seus olhos estivesse nele inteiro. E ele chorava de alegria, pela natureza mística da vivência, pela certeza da existência de mundos paralelos, por todas as matemáticas que se haveriam de transformar diante da novidade, pela convicção de seria possível, quem sabe, passar por aquele orifício? Mas também chorava de tristeza, por haver nascido na terra cinza e fumacenta, na cidade dura e de poucos amigos, por Chiquinho estar já há algum um tempo, puxando sua perna e lhe chamando pelo nome, para que voltasse à corrida habitual. E lhe custava atender ao irmão, a sequer olhá-lo ou dizer alguma palavra, que pudesse desmanchar a majestosa visão.

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Intuitivamente gritou! Desesperadamente chamou por ajuda, na esperança de que o som, assim como a luz, escorregasse deste para aquele universo e fosse então socorrido, não apenas ele, mas outros irmãos e irmãs, sua mãe e seu pai. Podia agora imaginá-los reunidos em outro natal, com outras ceias, em aconchego e satisfação. Como seria acordar de manhã na terra do encanto? Quantas aventuras haveria de fazer? Mas já não podia conter seu irmão, que com grande esforço re sgatava Mundinho de seu estranho transe, fazendo com que ambos caíssem pela calçada. Algum transeunte, ainda ralhou com os garotos e as fardas se mancharam da poeira permanente que cobria todas as coisas. Mundinho desvencilhou-se de seu resgatador e subiu novamente obstinado em sua experiência, mas a graça daquela brincadeira havia passado e mesmo com repetidas tentativas, tudo que se podia ver era o óbvio real. Por alguns dias, Mundinho ficou calado. Fazia tudo quanto devia a atendia quando solicitado, mas não estava lá. Sua mãe andou preocupada, pensou em procurar um serviço de psicologia. Teria o filhote usado alguma droga? Batera ele a cabeça em alguma travessura? Mas tudo isto lhe negava Mundinho que seguia questionando seu mundo faltoso e incompleto. Por vezes refazia o percurso de volta da escola, tentando lembrar todo detalhe que pudesse estar relacionado com o que vivenciou. Subia no poste e olhava pelo buraco, mas nada acontecia. Contudo, certa vez, enquanto Mundinho chorava de raiva, frustrado por nãos ser capaz de reviver a magia anterior, de não poder cruzar aquela fronteira imaginária, percebeu algo diferente na velha caricatura. Pequenos detalhes que haviam ou surgido da noite para o dia, ou que nunca haviam sido realmente notados. E como não eram tão visíveis àquela distância, resolveu chegar mais perto. Era preciso esperar o momento certo, pois a imagem CRUVIANA

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estava ilhada em meio aos rios do furioso trânsito dos carros. Era dar um passo em falso e parar dentro de um caixote. Mas Mundinho não era mesmo destes que fogem do perigo. Armou-se de seu entusiasmo original e arremeteu pela avenida no intervalo que achou mais apropriado. Ouviram-se pneus cantando sua irônica sinfonia, alguém gritando raivosamente. Mas o menino, rápido como uma cotia, escapou da morte certa, alcançando a margem segura sob a borda do viaduto. Ali, pela primeira vez diante da gravura, submeteu-a a um exame cuidadoso, sentindo borboletas voarem dentro de si. Tocou-a com seus dedos finos e pôde compreender o tamanho de sua dor, que era como a do artista de rua, também inconformado com a amargura desta cidade e das pessoas sem rosto e que um dia expressou-se naquele muro. Em meio aos detalhes apagados, recobertos de fuligem e poeira, o desenho crescia e alcançava enormes proporções. Todo o recanto fora pintado de uma paisagem surreal e trazia inscrições de luta e esperança. Algo ressoava nos pensamentos de Mundinho, acordado pelas cores adormecidas, sonhava agora outro lugar possível. Uma inscrição em especial dizia “é possível, se acreditar”! É possível fazer desta, uma cidade diferente, algum outro lugar no qual as pessoas cultivem novos começos, no qual as cores possam fazer parte, não apenas das paredes, mas dos nossos relacionamentos. Havia ainda outras formulações possíveis resultado da semente e utopia que contaminara o pobre menino, mas estas já estavam para além de sua capacidade filosófica e pareciam perde-se longe, no mar da especulação. E Mundinho não queria isso. Gostava de nutrir-se do que havia de bom em seu mundo de sonho e de acordar todas as manhãs na terra da esperança, recusando-se a aceitar as coisas como são e fazer da sua história algo mais interessante.

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Foi assim, um tempo depois, não se sabe quanto, nem como, nem bem porque, aquele poste amanheceu um dia pintado de várias cores, gravuras e inscrições. “Se acreditar é possível”, podia ler-se na lateral. E não é que alguns passantes menos apressados se admiravam daquela arte. De fato, poucos paravam para olhar e tinham reações diferentes, uns mais frios, outros mais quentes, alguns indignados, outros emocionados. E Mundinho, seguia contente e descontente, apegado no plano de fazer deste um lugar diferente.

ELIEZER MAGNO DIÓGENES ARAÚJO ou simplesmente Magno Araújo. Nascido em Fortaleza, Ceará, em novembro de 1977. Estudou na Escola 7 de Setembro, no centro, e cursou Psicologia na UNIFOR. Hoje, vive em Sobral, Ceará onde atua como psicoterapeuta e professor. Escreve poesias, contos e crônicas e é contador de histórias infantis. Pai de três lindas garotas que já pegaram gosto pelas histórias. elimagno@gmail.com http:// cardealescritor.blogspot.com.br/

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Esta Revista foi composta na fonte Trebuchet e GlasgowLH e utiliza tecnologia ISSUU. 2014 CRUVIANA

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e nada adiantou o meu grito na direção do cão desgraçado. Ele rasgava o meu amiguinho como faz com qualquer caça. Quase perdi meu braço, mas tomei o Zeca dos dentes caninos e sumi na capoeira. O avô ameaçou-me com uma corda crua e cumpriu, mas o Zeca estava seguro e assim ficou. Ficou e não voltou mais para mim.

www.revistacruviana.com 2014

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