JORNAL PEDAL Nº13

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Pedal #13 Página 11

Alleycat Texto: João Bentes Ilustração: Luís Favas luisfavas.com Alleycat, corrida para gatos de rua ou provas que medem agilidade e a garra das pessoas que têm punhos de ferro e força no pedal. A corrida, a competição, o prazer do desafio para alcançar uma meta é uma prática corrente que nasce talvez da natureza animal de medir forças com o próximo. Em bicicleta não é diferente. Desde cedo que se verificam as corridas entre os seres sábios do guiador, organizadas em recintos fechados ou percorrendo distâncias entre cidades. Provas oficiais que mostram heróis com pernas pesadas, cheias de quilómetros. Estas corridas de rua têm tudo e nada disso. São antes acontecimentos praticamente secretos sem rota previamente anunciada onde se medem forças num campo minado real, a cidade. O prémio é o respeito. O registo da primeira destas corridas acontece em Toronto, nos Estados Unidos da América a 30 de Outubro de 1989, organizada por estafetas de bicicleta, uma profissão produto do cycle boom dos anos 80 que colide com a expansão e aumento exponencial de densidade urbana das grandes cidades, diversificando o uso da bicicleta e a aplicação da mesma a tarefas urbanas. Assim, o conceito por trás da corrida tem por base a forma como os estafetas de bicicleta desenvolvem a sua actividade diária na distribuição de encomendas pela cidade. Isto é, têm vários pontos de passagem para entregas, obtêm ainda novas moradas para recolha e tudo isto tem que ser feito o mais rápido possível, onde os percursos são escolhidos conforme as necessidades, adoptando muitas vezes atalhos não convencionais (passagem pelo recinto de edifícios como escolas, campos desportivos ou parques recreativos) de forma a tornar mais eficaz a sua actividade. A corrida em si nasce da vontade destes estafetas se reunirem numa actividade lúdica onde podem mostrar a sua habilidade com o propósito de se divertirem. Note-se que para desempenhar a tarefa de estafeta, vale sobretudo a vontade de ciclar. É um trabalho duro, fisicamente exigente e de alto risco acrescentando ainda o facto de não ser remunerado à altura desse risco. A recompensa é conseguir sobreviver a ciclar e a alleycat é uma forma de manifestar esse objectivo que envolve capacidade física, conhecimento urbano e agilidade. Como princípio, respeitando o modelo original, trata--se de uma corrida informal em bicicleta, sem que sejam encerradas ruas, sem que sejam definidos percursos sem qualquer aviso às entidades oficiais. São dadas indicações, muitas vezes cobertas de secretismo, de onde é o ponto de encontro. Nesse ponto de encontro podem ser feitas as inscrições e o recibo começou por ser uma carta de Tarot, ficando entalada entre os raios da roda traseira de cada participante, o que actualmente evoluiu para cartões especificamente desenhados para os eventos. Depois de terminadas as inscrições, a corrida desenvolve--se em cenário urbano em que há uma lista indicativa do percurso que é revelada minutos antes da partida, através de um “manifesto”. Neste “manifesto”, normalmente uma simples folha de papel, estão indicados os checkpoints (semelhante a uma folha de distribuição de um estafeta), um conjunto de moradas por onde o participante é obrigado a passar. Assim, apenas em minutos, o participante terá que organizar a sua rota da forma mais eficiente até ao sinal de partida. Finalizado o tempo para a organização dos checkpoints, os participantes dispersam, assumindo rotas diferentes de forma a atravessar os vários pontos obrigatórios.

Nos checkpoints, o participante encontra elementos da organização que carimbam o manifesto e, assim, sucedendo nos vários checkpoints até à meta onde terá de entregar esse comprovativo com todos os carimbos. O objectivo é ser o mais rápido possível passando por todos os pontos, valendo sobretudo a orientação e conhecimento de uma cidade para além da capacidade física. Os desafios em corridas de rua foram ganhando popularidade pela América do Norte, tomando lugar nas épocas do Halloween e Dia de São Valentim, destacando-se as cidades de São Francisco, Chicago e Nova Iorque, sendo sobretudo organizadas por

Estes jogos urbanos são provas de lazer, o seu carácter secreto eleva a categoria, como se tratasse de um mito saído do nevoeiro matinal. O perigo é um dado adquirido mas a adrenalina passa por cima de tudo. estafetas, contribuindo para uma cultura crescente que se internacionalizou em 1993 com a corrida internacional de mensageiros de bicicleta em Berlim, idealizada por Pete Lord. Várias corridas tornaram-se bastante influentes dentro da comunidade e parte integrante da mesma, fazendo viajar vários ciclista de cidade em cidade à procura da alleycat mais invejada. Os campeonatos de estafetas, do europeu ao mundial, tornam-se pontos de comunhão entre a comunidade internacional desta classe operária. Os eventos deste tipo multiplicaram-se também através dos canais de vídeo, pela divulgação da emoção que se gera em torno das provas, ganhando cada vez mais adeptos.

Neste campo, destaca-se obrigatoriamente o Festival de Cinema da Bicicleta (BFF – Bicycle Film Festival) e nessa sequência, Lucas Brunelle, o realizador que passou anos a participar neste tipo de corridas levando duas câmaras no capacete. As imagens são impressionantes e mostram a adrenalina que envolve estas provas. Com a multiplicação dos eventos, a corrida de rua em bicicleta evolui, o seu formato original adapta-se e são criadas até novas tipologias que fazem variar também as regras. Como exploração do formato, procurando uma diversidade e criando efeito surpresa, a primeira abordagem terá sido o facto de se variar o momento de revelação dos checkpoints. São, a titulo de exemplo, revelados apenas algumas moradas no início e só depois de passar por um determinado checkpoint serão revelados os restantes. Os momentos e quantidade de checkpoints variam. Outra das tipologias adoptadas é a alleycat “caça ao tesouro”. Esta mantém-se fiel ao formato original, onde, em vez de moradas para os checkpoints, são indicadas pistas para os mesmos. Estas pistas podem consistir em elementos de descodificação em texto como charada ou fotográficos de identificação directa. O objectivo é explorar também um conhecimento visual, histórico ou técnico da cidade, para além da orientação, agilidade e velocidade. Esta última tipologia, deu azo a uma outra, a “alleycat-tarefa”. Aqui, os organizadores podem pedir aos participantes para desenvolver uma tarefa como responder a questões triviais, beber shots de álcool ou picante ou ainda demonstrar um ciclo-truque. Por vezes, estas tarefas são possíveis de descartar, valendo ao participante a perda de pontos. A pontuação, sendo também uma variação do formato original, é um aspecto explorado no jogo, variando a forma de pontuar e a tarefa de pontuação. Como exemplo, em alguns formatos alleycat, as corridas têm pontuações especificas para cada checkpoint, fazendo com que o participante escolha uma rota de maior pontuação. Os prémios de jogo, na origem, eram traduzidos em orgulho e respeito. A evolução levou à atribuição de objectos de relação com a cultura da bicicleta e, muitas vezes, componentes como rodas, selins e guiadores. Em Portugal, estas corridas começam por ser organizadas pelos principais intervenientes na cultura urbana da bicicleta, as pessoas por trás das lojas assim como mais tarde as pessoas ligadas às primeiras empresas de estafetas em bicicleta e também grupos urbanos que se unem pela utilização do veículo que organizam desafios desta natureza. O movimento fixed gear traz também muitos participantes, realçando o carácter de coragem e firmeza da prova, completando-a em roda fixa e, por vezes, sem travões. A maior parte das alleycats tem sido desafiada pelas ruas de Lisboa, mas também acontece em cidades como Porto, Leiria ou Aveiro. Por cá, as alleycats ganham a morfologia dos seus habitantes ciclistas e, sendo esta nossa comunidade ainda pequena, elas costumam ser heterógeneas, vendo-se todo o tipo de concorrentes e bicicletas, afastando-se da forte marca e presença do estafeta. É, acima de tudo, uma celebração. Estes jogos urbanos são provas de lazer, o seu carácter secreto eleva a categoria, como se tratasse de um mito saído do nevoeiro matinal. O perigo é um dado adquirido mas a adrenalina passa por cima de tudo. No fim é uma comemoração de saber ciclar com garra e agilidade de gato de rua.


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