Jornal Pedal n.º4

Page 11

11 jornal pedal

número 4 . abril 2012

De que sentes falta quando andas de bicicleta? Até há pouco tempo, sentia falta de algum civismo por parte dos outros veículos na estrada. Ultimamente a utilização da bicicleta começa a tornar-se mais banal e há cada vez menos automobilistas que se irritam com a nossa presença. Poderei referir uma série de situações que facilitariam a utilização da bicicleta na cidade, como ciclovias nas principais artérias da cidade, transformação das faixas BUS em faixas mistas para bicicletas, alteração da lei da prioridade ou do sentido proibido com excepção a ciclistas. Mas acho que o essencial será sempre uma maior massificação da bicicleta como transporte quotidiano. Desse modo estarão sempre asseguradas maiores condições de segurança para as bicicletas. Moras no Barreiro mas muito do teu tempo é passado em Lisboa. Que diferenças sentes entre as duas cidades? Por acaso, o Barreiro acaba por ser uma cidade paradigmática, porque é uma cidade onde a bicicleta tem uma utilização bastante massiva. Sendo uma cidade relativamente pequena e plana, e como tem uma tradição de uma classe média mais remediada, as pessoas usam a bicicleta com uma grande frequência, mais aquela onda das bicicletas de montanha que compras no supermercado e que vais utilizando no teu quotidiano de uma forma bastante simples e intuitiva. Aqui em Lisboa nota-se que a cultura é um bocado diferente, é uma cultura mais urbana, mais próxima de cidades grandes como Londres ou Barcelona. É engraçado notar essas diferenças. O teu percurso musical é bastante curioso. Como chegas ao piano? O piano surgiu quase como uma bóia de salvação. Antes de tocar piano, tocava essencialmente guitarra eléctrica e estava mais ligado a um universo indie-rock, ou o que tu lhe queiras chamar. Mas andava a sentir-me bastante frustrado porque não sentia que tivesse uma identidade muito forte com o instrumento. A guitarra é um instrumento muito ingrato a esse nível porque tem um universo bastante alargado. Muitos músicos já experimentaram muitas coisas e depois chega a uma altura em que te sentes um pouco limitado com o próprio instrumento. Como eu tinha tido aulas de piano quando era muito novo, com a minha avó, achei que poderia ser um desbloqueio interessante abordar um instrumento que tem uma tradição mais académica, mas eu não o iria abordar por essa perspectiva. Assumi desde o início que ía fazê-lo de uma forma autodidacta e pela aventura que isso iria significar, de me atirar a um instrumento sem qualquer tipo de preparação. E pela ligação que tinha ao meu passado, achei que poderia ser uma forma interessante de me redescobrir e criar uma identidade mais forte e encontrar uma coisa que pudesse dizer que era mais minha. De facto também existe um certo isolamento que é inerente a esta circunstância. A Merzbau, na altura, foi um catalisador brutal de criatividade para conhecer montes de músicos e montes de pessoas a fazer coisas completamente diferentes. Na altura em que começo a Merzbau, devia ter uns 19/20 anos mas não tinha muita vivência com a cena musical do Barreiro ou de Lisboa. A Merzbau é que me abriu um pouco esse contacto com as pessoas e com os concertos, com o estar presente e conhecer coisas diferentes, foi um boost criativo que eu recebi incrível.

Sprint

Que bicicleta? Neste momento tenho uma Estoril III da Órbita. É uma bicicleta bastante utilitária e acho que está bastante bem preparada para uma utilização numa cidade como Lisboa. Tem mudanças externas, não é estupidamente pesada e tem tudo o que necessito para o dia-a-dia. Tenho também uma Brompton que neste momento está encostada por motivos técnicos, ainda não lhe dei a atenção necessária para resolver isto. Já tive uma pasteleira clássica que tive de vender por falta de espaço. Já foste dar um concerto de bicicleta? Fui sim. Acredita que é a maior sensação de liberdade. Das vezes que fui, fui na minha clássica pasteleira portuguesa. Meio na brincadeira, dir-te-ei que o meu próximo disco será um disco de piano solo para poder fazer esta tour de bicicleta.

Com o passar dos tempos, senti a necessidade de também investir um pouco mais na minha própria carreira, no meu próprio percurso musical e fui-me concentrando mais no piano e afastando-me um pouco dos próprios círculos. Hoje em dia talvez me vejas menos em concertos do que me vias há cinco anos, não sei exactamente ao certo porquê, mas é uma coisa que eu noto. Talvez também tenha outro tipo de interesses que me vão puxando nesta altura. E a música enquanto vivência numa cena cultural acaba por estar um pouco mais para segundo plano.

naturalmente e não teres vergonha de assumir isso e de o fazeres. Todas essas questões acabam por estar intimamente ligadas com a minha própria abordagem ao piano e para mim fez todo o sentido pegar nessas questões que ele aborda nos livros e transformar aquilo em música. Ao fazê-lo, tentei fazê-lo não de uma forma muito narrativa. Tentei pegar nestas bases que são as referências ideológicas dele e tentei transformar isto num exercício estético, partindo deste pressuposto: que a estética é um exercício também de valores.

O teu último disco, o "Walden Pond's Monk", tem uma carga cultural e ideológica muito grande, como é que a incorporas? Tento que a música para mim não seja só um objecto ornamental. Ou seja, considero que no momento em que estás a criar um objecto artístico, mesmo uma coisa como a música que é bastante abstracta, depende de uma série de opções que tomas, e que antes de serem opções estéticas, são opções ideológicas. A referência que fui tomar para o Walden foi um escritor americano chamado Henry David Thoreau que escreveu muita obra em torno disto, em torno da necessidade da emancipação individual e a necessidade de uma certa reclusão para a compreensão de quais são as nossas necessidades individuais como uma forma de chegar ao cerne de ti mesmo e ao cerne do que é que é a vida social. Ao ler a obra dele identifiquei-me muito primeiro com o homem e identifiquei-me também musicalmente muito com ele, esteticamente falando. Compreendendo que elementos que ele no fundo advoga e que alimenta, como a simplicidade, a naturalidade, estão todos intimamente ligados com a minha própria música, o minimalismo que eu pratico e também com um certo lado de improviso que eu tenho e um certo lado de despojamento intelectual, naquela carga mais forte, mais académica e restringida e mais no sentido de te libertares a ti próprio, deixares os pensamentos fluírem e as coisas fluírem mais

E onde estás tu no meio destas referências? No fundo o que eu estou a fazer é usar um subterfúgio. No fundo, estou sempre a ser eu e a ideia é um pouco essa. No “Insónia” isto não é tão claro, mas no “Western Lands” que é outro disco que escrevi, também o fiz em homenagem ao escritor americano William Burroughs, usando um livro que ele tem com o mesmo título. Tento sempre, e é uma coisa que é inevitável em mim, ir buscar referências de que gosto para dizer alguma coisa. Ou seja, é mais fácil se estabeleceres um paralelo com algo que já existe e remeteres para esse universo e dizeres coisas que, na minha música, sendo instrumental, não teria possibilidade de o fazer. Sendo que acredito que a minha música é uma expressão individual, acima de tudo. Mesmo pela questão do método, que é algo que sinto que é muito forte na minha circunstância, por essas questões que tinha enunciado. O renegar do lado académico e "virtuosístico” do instrumento e de tentar uma abordagem mais intuitiva e mais espontânea. Tudo está relacionado com a minha própria maneira de estar na vida, não dissocio uma coisa da outra. Portanto, considero que em cada momento estou a expressar-me a mim próprio e talvez até para sítios diferentes e a tentar também encontrar-me no meio disso. Que projectos tens para o futuro? Neste momento estou a preparar um disco novo que sairá até ao final do ano e uma nova tour. Irei estar em Maio a tocar nalgumas cidades do centro da Europa e já me encontro a compor para o disco a seguir a este. Têm sido tempos animados.

Clássica ou erudita? Quanto à música, ela não é nem clássica, nem erudita. O meu método é muito pouco académico e tenho muito poucos conhecimentos técnicos para poder dar-me a essa nomenclatura. Faço música de tradição erudita através do método da música popular. Local favorito para criar. Eu como toco piano estou sempre limitado relativamente aos espaços. Tendencialmente trabalho em casa, no meu quarto, que é onde tenho o meu piano. Mas qualquer oportunidade que eu tenho em ter um piano num sítio fixe é sempre uma oportunidade porreira de experimentar, mesmo acusticamente, outro tipo de fenómenos.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.