Jornal Interação Diagnóstica #99 Agosto/Setembro17

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Radiologia e diagnóstico por (além de) imagens

P

or vezes, o médico radiologista é confrontado com desafios que vão além da análise isolada das imagens. A história clínica e o contexto em que o exame é realizado são de fundamental importância para guiar o raciocínio diagnóstico. Não é incomum se deparar com pedidos sem história ou com histórias difíceis de serem colhidas/obtidas. Foi o que aconteceu em um plantão de pronto-socorro, quando um paciente com 3 semanas de vida chegou para ser avaliado via ultrassonografia cervical, por queixa de um nódulo endurecido e crescente em região cervical direita. A história até parece suficiente, visto que com a companhia da mãe e da avó, se necessário, mais dados poderiam ser coletados no momento do exame. Sem delongas ou muito diálogo (e considerando a pilha acumulada de ultrassonografias esperando para ser realizada), procedeu-se ao exame. Inicialmente, o que se via era um nódulo de contornos lobulados e ecotextura heterogênea, com padrão não característico de vascularização (imagens 1-3), não condizente com as hipóteses diagnósticas aventadas até então (Linfadenopatia reacional? Linfangioma? Cisto de arcos branquiais? Cisto dermoide? Rabdomiossarcoma? Neuroblastoma cervical?).

Aos poucos, percebe-se que as palavras em inglês são mais numerosas e, com o auxílio da mímica (e do anseio pelo diagnóstico), dados fundamentais foram conseguidos: gestação a termo, parto cesariano, apresentação cefálica, extração difícil com fórceps e bom desenvolvimento desde então. A imagem na tela que parecia isolada e sem sentido começou a fazer sentido e se topografar. Não mais que de repente, centrou-se no ventre do músculo esternocleidomastoideo à direita, com aspecto fusiforme e padrão fibrilar (imagens 4-6).

Imagem 4: espessamento fusiforme do ventre do músculo esternocleiodomastoideo (ECOM). X = nodulação; M = mastoide.

Imagem 1: nódulo de contornos lobulados e ecotextura heterogênea em região cervical direita. Imagem 5: espessamento fusiforme do ventre do músculo esternocleiodomastoideo (ECOM). X = nodulação; EST = esterno.

Imagem 2: nódulo de contornos lobulados e ecotextura heterogênea em região cervical direita.

Imagem 6: aspecto característico da fibromatosis colli.

Imagem 3: padrão não característico de vascularização ao estudo Doppler no interior da nodulação

Assim, se fez necessária a pesquisa de mais dados da história clínica para tentar guiar o diagnóstico. Surge, então, mais um empecilho na história: a mãe do paciente era refugiada síria e a avó, refugiada iraquiana. Pouquíssimas palavras em português proferidas pela avó; a mãe sempre calada. Nada sobre o antecedente gestacional ou sinais/sintomas (exceto a história de nodulação) estavam disponíveis. Voltemos então (os residentes em radiologia), ao exame físico: bom estado geral, afebril, corado, hidratado. Parecia, porém, haver um discreto vício postural, com restrição dos movimentos cervicais e flexão cervical para o lado do nódulo (obviamente duvidosa considerando-se que o examinador era um médico já não tão afeito a exames físicos).

Referências

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Unindo as peças da história e da imagem, o diagnóstico finalmente veio à tona. Sexo masculino, 3 semanas de vida, espessamento fusiforme do esternocleidomastoideo, apresentação cefálica com extração difícil, vício postural, sem sintomas constitucionais: só poderia se tratar de um caso de fibromatosis colli . A fibromatosis colli é uma entidade caracterizada por massa cervical que surge entre 2 e 8 semanas de vida. Trata-se da principal causa de torcicolo congênito, respondendo por até 20% dos casos. A fisiopatologia é incerta, mas acredita-se haver relação com isquemia venosa do músculo, secundária a traumatismo durante o parto ou posição fetal intrauterina. Há discreta predileção pelo sexo masculino e um componente genético pode estar presente. O lado contralateral geralmente apresenta-se sem alterações, sendo incomum o acometimento bilateral. Diagnósticos tardios podem ter associação com plagiocefalia. Muitas vezes clínico, por vezes o diagnóstico cabe ao radiologista. A ultrassonografia é o exame de escolha. Nosso papel é esclarecer o caráter benigno da doença e demonstrar que não há sinais de gravidade: não há linfadenopatia, não há sinais de invasão vascular ou óssea. Não raro os pacientes prosseguem a investigação diagnóstica com outros métodos de imagem (tomografia computadorizada e ressonância magnética) e até citopatologia por punção aspirativa com agulha fina. Os achados de imagem são os mesmos da ultrassonografia, obviamente de mais fácil análise: espessamento fusiforme do ventre do músculo esternocleidomastoideo, sem outras particularidades. A PAAF demonstra fibroblastos e células musculares degeneradas. O tratamento é baseado em fisioterapia e alongamentos. Geralmente há resolução completa do quadro com 4 a 6 meses de vida. A lição que fica: seja mais que um radiologista; faça diagnósticos por além de imagens.

Autores

1. SARGAR, KM; SHEYBANI, EF; SHENOY, A; ARANAKE-CHRISINGER, J; KHANNA, G. Pediatric Fibroblastic and Myofibroblastic Tumors: a Pictorial Review. RadioGraphics, 2016; 36:1195-1214.

Pedro Hasimoto William Yoshinori Médicos residentes de Radiologia e Diagnóstico por imagem do InRad HCFMUSP

2. KHAN S , JETLEY S , JAIRAJPURI Z , HUSAIN M . Fibromatosis colli - a rare cytological diagnosis in infantile neck swellings. J Clin Diagn Res. 2014 Nov;8(11):FD08-9.

Andrea Cavalanti Gomes Médica assistente do Serviço de Ultrassonografia do InRad HCFMUSP

3. SKELTON E , HOWLETT D. Fibromatosis colli: the sternocleidomastoid pseudotumour of infancy. J Paediatr Child Health. 2014 Oct;50(10):833-5.

Maria Cristina Chammas Diretora Médica do Serviço de Ultrassonografia do InRad HCFMUSP

AGO / SET 2017 nº 99


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