Contraponto 130 - EDIÇÃO OUTUBRO/NOVEMBRO

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A Espetacularização da Violência e seus Meios de Consumo O consumo de produções agressivas na indústria cultural, seus fatores atrativos e impactos nas relações de organização sociais Por Ana Beatriz Vieira, Fernando Fernandes Maia, Laís Bonfim e Maria Luiza da Cruz Araújo

É

© Laís Bonfim Carneloso

crescente o número de séries e filmes que abordam temáticas contendo cenas de tortura e mortes sangrentas. Um lançamento recente da plataforma de streaming Netflix, a série Round 6, desenvolve uma ficção em que os personagens competem por dinheiro por meio de jogos infantis. Como consequência, morrem se falharem em cumprir o desafio. As cenas de morte do seriado são grotescas e explícitas, e trazem uma sensação desconfortante. Portanto, o que leva a consumir esse tipo de conteúdo? Para entender como os humanos conseguem controlar o desconforto ao assistir as passagens perturbadoras, volta-se à evolução. O cérebro humano desenvolveu-se de tal maneira que se tornou capaz de racionalizar as respostas naturais ao perigo. Logo, não estando à mercê dos hormônios que os fazem reagir, é capaz de analisar a situação. Quão mais real for, mais forte irá reagir. Entretanto, se a situação se revela falsa, há a consciência de que não há nada com o que se preocupar.

A atração pela violência nos meios sociais

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A capacidade humana de racionalizar os instintos foi um dos últimos atributos adquiridos. Ao contrário, a de reagir aos impulsos naturais foi um dos primeiros. Isto revela uma das razões que atrai os seres humanos a conteúdos violentos: assisti-los faz com que a parte mais antiga e mais nova do cérebro interajam, o que gera uma overdose de estímulos. Além disso, leva aos primórdios da memória evolutiva. A empatia é outro fator de relevância atrativa. É um mecanismo cerebral fortemente ligado à observação de cenas violentas, pois é a capacidade de se colocar no lugar do outro, enxergar seus pontos de vista e envolver-se em seu sofrimento. Estudos revelam que as mesmas áreas do cérebro são ativadas quando há a presença de dor ou alguém em sofrimento. Assim, se sente pena e compaixão e os homens passam a experimentar o que é passar por aquela situação, sem serem feridos. No entanto, mesmo que o impulso para consumir conteúdos violentos seja natural,

a frequente exposição a eles não é saudável, pois causa uma reação mental conhecida como habituação. O cérebro, a partir da percepção de que não há perigo real, se torna insensível à violência, como um mecanismo de defesa para não sentir dor.

Fatores Psicossociais A concepção acerca do mal-estar na civilização, criada pelo psicanalista Sigmund Freud, afirma que a cultura produz o mal-estar na humanidade. Isso porque há uma contraposição entre a civilização e as exigências produzidas pelos impulsos humanos, já que um subverte o outro. A produção e consumo de conteúdos violentos, reproduzidos nas plataformas de streaming por meio das séries, são cada vez mais questionados quanto ao que o conteúdo pode dar margem à sociedade. O teor de violência e a carnificina dentro das narrativas televisionadas fez com que um debate fosse aceso no âmbito social. Afinal, a exploração da violência, como vista nas séries atuais, é de fato necessária? E o quanto disso não corrobora para o mal-estar ao qual Freud se referia em relação a sociedade contemporânea? Ao buscar respostas para se há ou não necessidade da violência midiatizada, torna-se necessário compreender como a violência simbólica que permeia as séries afetam a sociedade e seu comportamento. Conforme observava o sociólogo Pierre Bourdieu, a violência simbólica é uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e também, com frequência, dos que a exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la. Desta maneira, é possível entender que, quando um indivíduo absorve conteúdos excessivamente violentos potencialmente após sofrê-lo, ele também se torna capaz de exercê-los. Tal fator estimula a perpetuação e legitimação da violência, que, por consequência, se naturaliza socialmente. É necessário lembrar que a humanidade nunca esteve tão propícia ao desenvolvimento de problemas psicológicos como na modernidade. As séries, por sua vez, acabam alimentando ainda mais essa tendência, uma vez que elas ativam janelas killer no subconsciente humano. Segundo a psicologia, as janelas killer correspondem às áreas da memória que possuem conteúdo emocional angustiante, fóbico, tenso,

CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP


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