Arcadas (1/maio)

Page 19

DIVULGAÇÃO

A força e a delicadeza

Christian (Lambert Wilson), o líder dos monges, decide pelo grupo: ficarão e em paz. Não podem partir porque o povo do vilarejo precisa deles, não podem aceitar a ajuda do exército porque isso seria se aliar a um governo que eles sabem corrupto. Logo, porém, surgem divergências. Por que não aceitar ajuda? Por que fi-

eu não ouço mais nada”. Em outro momento, o mesmo monge faz a pergunta que, certamente, é a de grande parte da platéia: “Somos mártires por quê? Por Deus? Para sermos heróis? Para mostrar que somos melhores?”. A uma certa altura, porém, parece que eles se convencem: têm uma missão, não devem abaixar a cabeça.

DIVULGAÇÃO

Colocada assim, parece que essa convicção os torna, enfim, fortes o suficiente para, à sua maneira, enfrentar o desafio que a realidade lhes impõe. O que o espectador sente, porém, pelo menos à primeira vista, e que provavelmente é o que faz com que alguns demorem algum tempo para levantar da cadeira ao fim do filme, é fragilidade. Contrapostos à virulência dos extremistas e à barbárie que toma conta do país, o ascetismo, a sobriedade e, por que não, a delicadeza daqueles homens parecem torná-los tão frágeis quanto um judeu que, recém-nascido, já é perseguido por um exército de romanos. Sem armas nas mãos e sem travas nas portas de seu mosteiro, em uma Argélia tomada pela violência, o que a câmera mostra é vulnerabilidade. A primeira cena em que os guerrilheiros têm contato com os monges já nos dava, contudo, a dica: diante da atitude de Christian, que, deixa claro querer o bem daquela comunidade, cita o Corão e faz questão de dizer ao chefe dos guerrilheiros que era véspera de Natal, este não pôde deixar de tratar-lhe com deferência ou, ao menos, com respeito. Não estaria ali um sinal de que o “martírio” daqueles monges não era supérfluo, mas cheio de significado? Não estaria ali sinal de que eram os monges, afinal, os fortes? ◉

cada. Quando perguntei quanto custavam, o Gaúcho, que estava Ontem eu subi a Avenida Bri- mais interessado na sua convergadeiro Luís Antônio e parei sa com uma mulher, nem deu em uma banca improvisada na bola para os títulos e informou calçada. Não é só uma banca, é que cada um custava um real. também a casa do homem que Armei um sorriso, tal qual o eu apelidei – para mim mesmo malandro indiscreto que vê seu – de Gaúcho. Sempre que pas- golpe dando certo, entreguei ao so em frente vejo várias revistas homem a única espécie de nota Caras e Contigo antigas, VHS azul com a qual eu convivo e pornôs, catálogos de revistas continuei andando feliz. de noiva, uma porção de cacaOs livros de um real não sarecos e, eventualmente, o Gaú- íram da minha cabeça. Entre cho caído com uma garrafa de um contrato e uma planilha, pinga na mão, levemente solta. pensei em escrever sobre a rara O Gaúcho, como se percebe, poesia por trás de uma moeda; é um cara que sobrevive ca- durante o banho, especulei sotando o que algumas pessoas bre o primeiro dono do Ficciochamam de lixo e vendendo nes azul-bebê, qual o percurso para pessoas que vêem alguma que percorreu da editora à banutilidade ca do Gaúnelas. Foi então que eu pude cho, em O que como o sempre me visualizar como o merca- Do sto i e c h a m o u do surreal no qual tudo vski pera atenção deu a capa custa um real está à foram as e se os tranqueimargem do Mercado. r a b i s c o s ras queeram uma bradas – pentes sem todos os espécie de demonstração de dentes, peças eletrônicas quei- ódio ou desespero de seu dono madas, ferraria enferrujada, ao receber uma notícia desolaespelhos trincados –; revistas dora. Antes do efetivo começo velhas a ponto de serem descar- do texto, foi a oferta de cultutadas, mas não tão velhas para ra a baixo preço que povoou chamarmos de antiguidade e meus pensamentos. possuir algum valor por isso; e Nesse instante percebi a conlivros didáticos datados. Nesse tradição: considerar a compra domingo, duas pilhas de livros de dois ótimos livros por dois foram destacadas pelo meu reais como aproveitar a oferta cérebro que procura literatura de cultura a baixo preço foi diaprotagonizando um duelo eter- metralmente oposto à minha reno com o meu bolso. Quase ação de satisfação similar a um desisti de achar algo interessan- golpe. Foi então que eu pude te quando faltavam dois livros visualizar como o mercado para manusear. Talvez algum surreal no qual tudo custa um transeunte com pressa ou sem real está à margem do Mercado. dinheiro tenha escondido os Que comprar um Borges por dois melhores embaixo dos ou- um real não era cultura a custo tros para voltar mais tarde. Uma baixo, tampouco era levar vandas manias mais emblemáticas tagem sobre alguém que não que o homem da pós-moderni- soube mensurar o valor da litedade possui é a de esconder um ratura. Era dar mais uma cachaCD no fundo da fila ainda que ça a um cara, que de tão à parte saiba que nunca vá voltar àquela da realidade, divide o mundo loja de discos. entre coisas que valem um real e Os livros eram um Borges coisas que valem um dia a mais. e um Dostoievski. Segundo o O preço de um dia a mais data-sebo, o primeiro deveria para o Gaúcho e tantos como valer quinze reais, na média, e ele pode ser um real, uma cachao segundo uns nove pela capa ça, um livro. Isso não é poético, maltratada e a contracapa rabis- é crônico. ◉ LUCAS VERZOLA (182-23)

MURAL

Homens e Deuses é a história real de oito religiosos franceses que vivem em um monastério incrustado nas montanhas da Argélia quando o país é tomado por conflitos protagonizados por fanáticos muçulmanos. Aqueles monges, que já há tempo haviam decidido dedicar suas vidas à religião e ao povo do vilarejo onde se instalaram têm, então, que decidir se aceitarão ou não a proteção do exército algeriano, mas, principalmente, têm uma escolha maior a fazer: ficar ou fugir?

car no país, quando todos que podem deixá-lo o fazem por medo da violência? É claro, a questão aqui é de fé e de comprometimento. Qual o sentido de ficar ali? Por que arriscar a vida quando lhes é dada a oportunidade de sair do país? Os monges se colocam continuamente essas questões. Há medo, mas, acima disso, o que lhes dói é a dúvida. Em certo ponto do filme, o monge Christophe (Olivier Rabourdin), o que parece mais atormentado pelos questionamentos de sua fé e de sua missão, diz “Eu rezo, eu rezo, mas

CAIO RIBEIRO (182-XI)

Não Há Nada de Poético Em Um Livro de Um Real


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.