Arcadas (I/2013)

Page 1

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo ASSOCIAÇÃO DE IMPRENSA ACADÊMICA

Edição I/2013

//////////////////página14 FACVLDADE

Nova Biblioteca Projeto alcança meta inicial e começa a se tornar realidade //////////////////página4 CONTRADITÓRIO

\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\ página13

Carreiras&Profissões: Juiz criminal

Qual é o papel Entrevista com do estágio? Marcos Zilli

www.jornalarcadas.com.br

ESPECIAL

Meu canto do Largo Sylvia Steiner, Dias Toffoli, Ada P. Grinover, Eugenio Bucci, Dalmo Dallari, Pedro Abramovay e outros veteranos de peso contam suas histórias /////páginas16-25

Pro bono

Guarda Civil

\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\página8

\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\página6 CIDADE&CENTRO

MPF questiona OAB sobre restrição à advocacia voluntária

Novo secretário fala sobre planos para renovar a GCM

FACVLDADE

Primeira vitória

\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\ página11 FACVLDADE

A história da primeira estudante do Arcadas Vestibvlares a se tornar franciscana


Trapalhadas do Proed

ARTUR PÉRICLES/JA

Em maio de 2011, foi lançado o Programa de Recuperação de Espaços Didáticos (Proed), que destina R$ 23 milhões à reforma de salas de aula, auditórios e espaços de estudo. Pelas regras do edital, nossa Faculdade teve direito a R$1,2 milhões. Os únicos requisitos para aprovação de reformas eram burocráticos: a unidade tinha de apresentar um plano com prazos, valores e justificativa. A verba era muito bem-vinda: quem estava aqui em 2011 lembra que nosso único espaço de estudo, a sala dass Teses de Láurea, não tinha sequer uma fechadura que funcionasse, quem dirá cadeiras para todas as – já poucas – baias. Para atender às exigências do programa, a Comissão de Graduação (CG) – incumbida pelo programa – criou uma subcomissão, coordenada pelo professor titular Renato de Mello Silveira, do departamento de penal. O relatório da subcomissão, finalizado no dia 30 de agosto, com apenas um dia restante de prazo, não continha as estimativas de prazo e valores, exigência da Pró-Reitoria de Graduação para o início dos repasses. Meses se passaram até que a Faculdade, depois de oficiada, finalmente enviasse as informações. Em razão disso, a primeira parcela só chegou ao Largo em 2012. Se fosse só isso, seria apenas mais um atraso comum no dia a dia da administração pública. Mas os problemas de verdade começaram aí. Com os R$ 260 mil da primeira parcela, a a Faculdade poderia ter contratado profissionais para documentar nossas necessidades e elaborar um projeto de reforma. Poderia também ter contratado serviços para realização de reformas emergenciais, como a troca de cadeiras da sala das Teses de Láurea, atualmente único espaço de estudo do Largo. Nada disso foi feito. Durante dezoito meses, quase três terços do prazo fixado pela pró-reitoria para realização das obras e prestação de contas, nenhum centavo dos mais de um milhão de reais disponíveis à Faculdade foram empregados. A Comissão de Graduação, responsável pelo projeto, não conseguiu se entender com o setor administrativo da Faculdade, que cuida do orçamento e das licitações, em assistência ao diretor. Uma reunião realizada no fim de fevereiro entre a CG – representada por seu presidente, o professor de direito tributário Heleno Torres, RDs e funcionárias – e o setor administrativo e financeiro teve cobranças e reclamações. Depois de não perceberem que não conseguiriam trabalhar em conjunto por falta de confiança e comunicação, decidiram que a CG, que lida primordialmente com questões de ensino, não com licitações, organizaria as compras por si só. Não é nosso papel apontar dedos no culpado pela confusão, que nem sabemos indicar – até porque o professor Renato não respondeu a nossos reiterados pedidos de entrevista, desde janeiro. Mas esse episódio revela algumas dificuldades estruturais críticas na administração da Faculdade. Em primeiro lugar, falta planejamento sério. A última vez que ouvimos falar em planos ainda estávamos na diretoria de João Gradino Rodas, em 2009. E mesmo esses planos eram desconhecidos, guardados entre os confidentes do ora reitor, ao invés de discutidos entre toda comunidade acadêmica – o que trouxe problemas óbvios, como ocorreu com o nome das salas reformadas com o dinheiro de familiares de Pedro Conde e Pinheiro Neto. Sem planejamento, permanece a falta de discussão da comunidade e as decisões ficam a cargo de funcionários que deveriam apenas aconselhar e assistir a diretoria. O trabalho conjunto entre os diversos setores responsáveis também é dificultado, e a falta de transparência impede até mesmo que os estudantes fiscalizem e façam cobranças. Em segundo lugar, falta firmeza na coordenação e supervisão. Os atuais encarregados por realizar as reformas de infraestrutura que as Arcadas mais precisam têm limitado poder de fato para exigir resultados. Essa tarefa caberia ao diretor, que no entanto se viu engolido na troca de farpas com o reitor, e que se vê sobrecarregado com outras atribuições, acadêmicas e administrativas. Ao que parece, as dedicadas funcionárias da CG conseguirão, numa espécie de manobra administrativa, cumprir os prazos, mas não se espere que as obras saiam antes do fim do ano. De qualquer forma, a Faculdade poderia tirar uma lição da confusão e começar a discutir um planejamento aberto, que tenha o compromisso de todos, e uma reforma administrativa, que dê mais racionalidade ao funcionamento da máquina franciscana, com contratação de profissionais especializados e mais transparência na gestão pública.

EXPEDIENTE Editor-chefe: Artur Péricles (182-11); Redatora-chefe: Priscila Pires (184-21); Reportagem: Ana Ferreira (18211), Beatriz Garcia (182-11), Deborah Nery (183-12), Felipe Barbosa (183-22), Bárbara Simão (185-21), Laura Dabronzo (185-13), Olívia Bonan (185-14), Priscila Esteves (185-24); Fotografia: Artur Péricles (182-11), Karin Naomi (182-11); Capa: Laura Dabronzo (185-13); Projeto gráfico e diagramação: Ana Carolina Marques (ECA-USP); Orientador: Prof. Samuel Barbosa (166); Conselheira: Nádia Guerlenda Cabral (177)


"

mentares, uma carta para o jornal. Ainda hoje, tendo passado oito anos em Brasília, trabalhando no governo, escrevendo com regularidade em jornais, eu me impressiono como há ouvidos dispostos a se voltar para o Largo de São Francisco. É como se a tradição não estivesse dentro das Arcadas. Ela está fora. É uma tradição de respeito pelo que é dito pela São Francisco. Não sei se é uma tradição justa. Mas cada um que entra para esta Faculdade deve saber que passa carregar a responsabilidade de ser ouvido. Cada um faz o que quer com essa responsabilidade. O silêncio tem o custo da cumplicidade com a injustiça. O grito a satisfação de ter posto sua pedra na construção de um mundo melhor.

EDITORIAL

Acho que uma das coisas que mais se ouve por endas Arcadas vai ser ouvido. Essa é a grande tradição tre as Arcadas, entre atuais e antigos alunos, é a de franciscana: ter voz. que existe uma tradição franciscana a ser preservada. E ter voz implica uma grande responsabilidade. Existe? O que seria essa tradição? Cantar trovas? Em uma democracia de tão poucas vozes como Peruada? Lutar pela libercostuma ser a brasileira, dade? Será? ser ouvido e não falar é Claro que houve nas Ar- Qualquer grito que venha das Arcadas fugir à sua responsabilicadas muitos que lutaram vai ser ouvido. Essa é a grande tradição dade. por liberdades, pela re- franciscana: ter voz. [...] Em uma demoHá tanto a ser dito sopública, pela democracia. bre o Brasil, tantas injuscracia de tão poucas vozes como cos- tiças a serem apontadas, Mas tantos não lutaram contra esses mesmos va- tuma ser a brasileira, ser ouvido e não que ter voz no debate lores? As Arcadas que tesfalar é fugir à sua responsabilidade. público é uma oportutemunharam vários heróis nidade que não pode ser contra a ditadura também desperdiçada. testemunharam muitos de seus mais ilustres apoiaE essa responsabilidade não é apenas do XI. É dores. Não é possível associar as Arcadas a uma dos estudantes, dos professores. Todos que perlinha ideológica, seja ela qual for. tencem a essa comunidade e declinam da possibiMas existe algo que é talvez mais do que uma lidade de se insurgir contra aquilo que acreditam tradição franciscana. É uma responsabilidade. Não ser injustos são, de alguma maneira cúmplices. sei se há outra caixa de ressonância tão potente São tantas as formas de se fazer ouvir. Um ato, quanto a São Francisco. Qualquer grito que venha uma petição na internet, uma reunião com parla-

REPRODUÇÃO / FACEBOOK

Existe uma tradição franciscana?

PEDRO ABRAMOVAY * (TURMA 171)

* foi presidente do Centro Acadêmico (2001), Secretário de Assuntos Legislativos (2004-2010) e Secretário Nacional de Justiça (2010-2011)

//Confira outros depoimentos de veteranos de peso no especial Meu canto do Largo (p. 16- 25)

Um uivo por Aaron Schwartz ARTHUR PRADO (TURMA 184-12)

“Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela insanidade”. A primeira oração (tradução livre) acima, do poema Howl, de Alan Ginsberg, é, possivelmente, uma das melhores, e certamente uma das mais notórias, introduções para um poema de língua inglesa do século XX. Ginsberg foi um expoente da geração Beat, termo que designa coletivamente diversos escritores americanos que tiveram sucesso nos anos 50, caracterizados pela rejeição do capitalismo, uso de drogas e práticas sexuais alternativas, da qual seu poema é uma espécie de manifesto. “As melhores mentes” daquela geração eram indivíduos que rejeitavam o sistema e, como resultado, foram oprimidos por ele. Devido à sua linguagem vívida na descrição de uso de drogas e sexo (homossexual, inclusive), o poema foi acusado de obscenidade e enfrentou um julgamento em São Francisco, o que talvez tenha servido para ilustrar essa mesma repressão que denunciava. A ação foi considerada improcedente, mas terminou por dar notoriedade à obra. Quando Alan Ginsberg morreu, em 1997, Aaron

Swartz era uma criança de 10 anos que vivia em Chigago e gostava de internet. Três anos depois, quando Aaron tinha 13, ele ganhou o ArsDigita Prize, um prêmio para jovens que criassem conteúdo não-lucrativo para internet. No ano seguinte, aos 14, ele integrou o grupo que desenvolveria o RSS, um protocolo que pode ser usado para receber e ler notícias online. Durante o resto de sua vida, Swartz trabalharia com uma longa lista de sistemas e produtos inovadores e com grande sucesso comercial, efetivamente desenvolvendo uma parcela significativa da tecnologia que é diariamente empregada por nós, usuários da internet. Ele trabalhou com a Wikipedia, o W3C, o Aavaz, o Infogrami, o Reddit e diversos outros projetos. No dia 11 de janeiro deste ano, Swartz cometeu suicídio, enforcando-se em seu apartamento no Brooklyn. Swartz não pertenceu à geração Beat, como Ginsberg. Mas, de muitos modos, pertence ao cenário pintado pelo poema Howl. Embora sem os elementos underground da contracultura dos anos 50 e 60 nos EUA, ele enfrentou uma versão pós-moderna da repressão exercida pelo sistema. O sistema, no poema, recebe o apelido de Moloch (“Moloch cuja mente é maquinário puro! Moloch cujo sangue é dinheiro corrente! Moloch cujos de-

dos são dez exércitos!”), emprestado do nome de uma divindade cultuada pelos amonitas, famosa por exigir sacrifícios humanos. Moloch, poderíamos dizer, cuja mente é copyright. O suicídio de Swatz foi muito provavelmente motivado pelo processo judicial do qual ele foi réu por conta de seu ativismo digital. Entre 2010 e 2011, ele publicou gratuitamente cerca de 5 milhões de artigos científicos disponíveis no arquivo virtual JSTOR, mas que eram protegidos juridicamente como propriedade intelectual. Mesmo depois da desistência da ação cível, ele continuou réu de uma ação penal cuja condenação poderia implicar em até 35 anos de prisão. A morte de Aaron privou o mundo das contribuições sociais e tecnológicas que seu gênio poderia ter trazido, e foi uma derrota para todos aqueles que lutam por liberdade e transparência na internet. Howl foi composto em homenagem ao escritor dadaísta norte-americano Carl Solomon, que Alan Ginsberg conheceu no hospício Rockland, e toda sua seção final é construída ao redor dele. “Carl Solomon! Estou contigo em Rockland”, começa a dizer Ginsberg. Diversas vozes repercutiram a morte de Swartz, lamentando-a. Faço agora coro a elas: estamos contigo, Aaron Swartz.

Cartas Participe! Arcadas está recrutando novos membros! Sugestões de pauta, críticas e comentários podem Acesse arcad.as/participe para saber mais ser enviadas para cartas@jornalarcadas.com.br

3


4

Com os cotovelos na janela Até a década de 1980, quando o sistema jurídico era bem menos complexo do que hoje e a advocacia que se praticava era burocrática e tradicional, o estágio era importante. Permitia ao estagiário compreender o hiato entre o law in books e o law in action. Dava ao estagiário informações técnicas que os professores – inclusive os de processo penal e processo civil – não forneciam em sala de aula. E ainda socializava o estagiário entre os operadores jurídicos, levando-os a conhecer advogados, promotores, juízes e futuros colegas e/ ou sócios de escritório. Aquele era um tempo em que o direito tinha uma jurisdição basicamente territorial, em que sua prática era quase exclusivamente forense e a formação acadêmica era dogmática, mesclada de um ecletismo vulgar. Trocando em miúdos, essa formação valorizava o “humanismo” – seja lá o que isso quer dizer – e o princípio da autoridade de juristas que olhavam o mundo pela lente dos princípios da soberania, da legalidade e do monismo jurídico. Naquele período, portanto, a formação jurídica começava na faculdade pelas aulas de propedêutica, dadas no 1º e 2º ano; prosseguia pelas aulas de teorias gerais de direito público, direito privado e direito processual, dadas no 3º ano. E, a partir daí, vinham as aulas de qualificação profissional, que abriam as portas para o estágio. Tudo mudou depois de 1980. Com a crise do petróleo, a economia capitalista entrou em xeque e teve de se reinventar, para retomar as altas taxas de acumulação das três décadas anteriores. Uma nova matriz energética surgiu, a tecnologia abriu caminho para uma crescente diferenciação funcional dos sistemas produtivos, o rígido modo fordista de produção cedeu a vez para o modelo da especialização flexível e o setor industrial em alguns países foi suplantado pelo setor de serviços. Dois pontos merecem destaque nesse processo. Primeiramente, as empresas, para sobreviver à transição da sociedade industrial para uma sociedade baseada na informação, foram obrigadas a mudar de escala. Sem condições de viver às custas do mercado interno dos países em que estavam instaladas, tiveram de buscar novos mercados – o que acelerou o processo de globalização econômica. Em segundo lugar, as empresas, para sobreviver, tiveram de enveredar por uma corrida tecnológica – o que Schumpeter chamou de processo de destruição criadora. Trocando em miúdos, há momentos em que as empresas concorrem acirradamente entre si dentro de um padrão tecnológico, o que as obriga a cortar custos e reduzir a margem de lucro; mas, quando chegam aos custos fixos, que não podem ser cortados sob pena de desfigurar o negócio, elas ficam presas ao dilema de inventar algo ou quebrar. As que ino-

ARQUIVO PESSOAL

CONTRADITÓRIO

//Contraditório é uma seção que confronta duas ou mais opiniões sobre um tema. O desta edição é estágio durante a faculdade.

JOSÉ EDUARDO FARIA* (TURMA 141)

vam, subvertem os padrões produtivos nacionais e ficam durante algum tempo sozinhas no mercado, o que as permite cobrar o que Schumpeter chamada de “lucro de monopólio” – o prêmio pela invenção. Com o tempo, porém, as empresas concorrentes assimilavam a nova tecnologia e voltavam a competir dentro do mesmo padrão tecnologicamente, como na fase anterior. Ao estudar a revolução industrial, Schumpeter percebeu que essas fases ou ciclos tinham uma duração média de 100 anos. A partir da década de 1980, é possível perceber que a duração média desses ciclos diminuiu drasticamente. O que é inovação hoje pode ser sucata amanhã. A velocidade é avassaladora. Os sociólogos veem nessa contínua destruição criadora o que chamam de “intensificação” do tempo. A produção, além de se tornar mais funcionalmente diferenciada, foi acelerada. Na sociedade industrial, as decisões finais, no plano econômico, eram tomadas pelas indústrias – e o prazo médio de maturação dos projetos variava de dois a quatro anos, conforme o ramo de atividade. Agora, as decisões são tomadas pelo sistema financeiro em tempo real e com um horizonte muito curto para o retorno dos investimentos. O chamado ciclo de rotação do capital se dá, hoje, numa velocidade impensável, na época da revolução industrial. Portanto, as noções de tempo e de espaço mudaram – e essa mudança atingiu o direito, rompendo alguns de seus princípios estruturantes, tais como soberania, legalidade e monismo jurídico. A soberania deu lugar à ideia de mercados integrados em escala global. O monismo jurídico foi suplantado pela ideia de pluralismo normativo, dada a crescente expansão de mecanismos de autonegociação e autorregulação da economia, onde cada cadeia produtiva tem necessidades jurídicas muito específicas, que a velha noção de sistema jurídico estatal não tem condição de atender. A expansão dos métodos alternativos de resolução de litígios, como arbitragem e mediação, rompe a exclusividade do Judiciário na resolução de litígios. Com isso, o mundo jurídico se torna mais complexo e o operador jurídico se vê obrigado a atuar em diferentes arenas, em distintos espaços e com diferentes tipos de direito. Isso muda radicalmente o processo de formação do estudante de direito. Diante da velocidade avassaladora do processo de destruição criadora, não dá mais para seguir o roteiro “aulas propedêuticas, teorias gerais, dogmática e estágio, até a formação”. Como o que é novidade hoje vira sucata amanhã, sair precocemente para o estágio significa para o aluno correr o risco de ver a área que escolheu ser precocemente descartada. Nos cinco anos de graduação, as tecnologias podem mudar algumas vezes – e a cada paradigma cien-

tífico, o aluno tem de voltar aos bancos escolares – um processo de tentar enxugar o gelo. Por isso, algumas faculdades de ponta mudaram os currículos. Em vez de oferecer o estado da arte no momento, que poderá estar engavetado amanhã, elas deixaram de lado a preparação profissionalizante para a entrada imediata no mercado de trabalho e optaram por ampliar, de forma extraordinária, a carga teórica e a formação interdisciplinar. Em outras palavras, quem tiver uma sólida formação teórica e interdisciplinar terá a segurança e o cabedal de informações necessários para aprender a lidar com as novas tecnologias. Isso liquida a velha prática de fazer de estágio. De certo modo, ele se torna inútil. Os grandes escritórios, esses que trabalham com empresas mundiais e que têm o desafio de fazer formatações contratuais muito sofisticadas, já não querem estagiários com formação convencional em processo – querem, sim, advogados juniores capazes de acessar e processar informações, com coragem para aprender o novo e facilidade para lidar com o novo. Em algumas áreas, recebo ligações de grandes escritórios pedindo que indique os alunos com melhor formação teórica. E vejo, também, que em bancos, grandes empresas industriais e entidades de classe, que os advogados de meia idade – formados, portanto, na época do monismo jurídico e dos princípios da soberania e da legalidade – estão sendo cada vez mais substituídos por jovens profissionais que, em vez de terem feito estágios, fizeram cursos complementares no exterior. Fui executivo do sistema financeiro e testemunhei advogados de 40 a 50 anos, com formação tradicional alicerçada em estágios, serem preteridos nas nomeações para diretorias jurídicas por advogados sem qualquer experiência de foro digna de nota, mas com formação interdisciplinar, sólida bagagem teórica e rigor analítico. E, como professor na Faculdade de Direito, testemunhei e continuo testemunhando o amargor de grandes juristas, que não entenderam e não entendem as mudanças radicais do tempo e espaço no mundo do direito – e, com isso, a substituição do velho direito positivo por novas engrenagens jurídicas que transcendem a jurisprudência territorial e alimentam jurisdições funcionais em escala global. Como em Carolina, de Chico Buarque de Hollanda, essas pessoas viram a vida passar com os cotovelos na janela – e não aprenderam dada.

* professor titular no departamento de filosofia do direito, é autor de influentes livros sobre globalização, ensino jurídico e transtormações no poder judiciário.


//Qualquer franciscano pode participar da discussão. Confira o assunto da próxima edição em arcad.as/contraditorio

afloram no âmbito dos casos concretos, o estudante passa a ter a oportunidade de verificar qual a melhor estratégia a ser seguida. O estágio profissional hoje em dia descortina-se repleto de opções nas inúmeras carreiras jurídicas, vale dizer, no âmbito da advocacia, das diversas procuradorias, da magistratura, do Ministério Público, da Defensoria Pública etc. Mas não é só. O estágio também propicia enorme oportunidade para que o aluno possa também descobrir qual o ramo do direito de sua efetiva vocação. Esse é um ponto muito importante! É a partir dessa escolha que o estudante, depois de bacharelar-se, poderá, no caminho certo, exercer a profissão com maior satisfação e, ainda, procurar se especializar em um curso de pós-graduação no campo de sua preferência.

O estágio tem significativa importância em decorrência da experiência profissional que vai sendo acumulada pelo estudante ao longo do próprio curso de direito, o que facilita em muito a seleção num cargo de advogado ou, ainda, a classificação em concursos públicos. Por fim, lembro que o Departamento Jurídico XI de Agosto sempre foi, durante sua longa existência, um notável celeiro de ótimos profissionais, particularmente, pelo estágio sério e efetivo, que lá fizeram!

* professor titular no departamento de direito processual e sócio de Tucci Advogados, foi presidente da Associação dos Advogados de SP (AASP)

Fazer estágio num escritório de advocacia muda de várias formas sua visão do direito e, mais importante, da Faculdade. A mudança mais clara é que você passa a ter um sentimento bastante forte de que noventa porcento das suas aulas são inúteis: ou porque você teria sido capaz de aprender o conteúdo sozinho na hora em que precisasse usar num caso, ou porque você já percebeu que conversar com um juiz depende de uma montanha de considerações das quais a doutrina passa longe. Há, no entanto, uma mudança que considero mais profunda e mais importante. Você percebe que a Faculdade está longe de ser um espelho da sociedade; que a sua relação com um professor não tem nada a ver com sua relação com um chefe, com um cartorário ou com um juiz. Um bom estágio não dá só uma chance de aprender o direito na prática: dá a chance experimentar e ver como é ser um advogado. E essa experiência pode te dar mais tesão do que a Faculdade toda. Algumas pessoas amam as aulas dos primeiros dois anos da Faculdade. Piram em introdução à sociologia e teoria geral do estado. Para outras, isso é algo próximo da tortura. O estágio pode funcionar, nesse caso, como uma forma de manter os pés no chão: de lembrar que a Faculdade ainda faz sentido, que o direito não é só masturbação mental. Claro que a advocacia não é para todos. Tem gente com vocação para a academia, tem gente com vocação para a magistratura. Tem gente, ainda, que veio aqui a passeio e só quer encostar-se no serviço público e levar uma vida sossegada.

Tudo bem. Mas se você está na dúvida, pensando que tem alguma possibilidade de gostar de ser um “nobre, zeloso e combativo causídico”, vale a pena tentar o estágio. Nada a perder, certo? Errado. Não vou fingir que não há um lado ruim na coisa toda. Primeiro: o tempo para a Faculdade fica escasso. Se você já tinha que priorizar disciplinas antes, vai fazê-lo muito mais enquanto estiver estagiando. Segundo: é fácil subestimar o valor das disciplinas teóricas quando se está imerso na prática. As “teorias gerais” e disciplinas “filosóficas” ou “críticas” parecem estúpidas quando não podem ser aplicadas diretamente ao dia a dia. Isso acaba sendo um problema especialmente se você começa o estágio muito cedo. O que um segundanista faz num escritório? Ele mal sabe processo. Mal sabe obrigações. Acha que o Palácio da Justiça é um museu e que João Mendes é só uma sala no térreo da facvldade. Num escritório ruim ele vai fazer trabalho de para-legal ou de office boy. Já num bom escritório ele vai até escrever algumas peças, fazer pesquisas úteis. Vai ser produtivo, e isso traz um sentimento muito bom. O ruim é que isso vai distorcer seu aproveitamento da Faculdade. Vai passar em Lógica e Metodologia Jurídica sem entender patavinas e de Obrigações ele vai levar só o que está escrito no código e o nome de um manual para futura consulta. Talvez ele até falte nessas aulas para frequentar uma disciplina do quinto ano, específica sobre um assunto com que trabalha no escritório. Enquanto isso, no estágio, vai aprender detalhes da lei de registros públicos e

ARQUIVO PESSOAL

Formação consciente

CONTRADITÓRIO

O programa dos cursos jurídicos, de um modo geral, tendem a realçar os aspectos teóricos das diversas disciplinas que o compõem. Do primeiro ao quinto ano, por mais criativo que seja o docente, o substrato das aulas sobreleva a legislação e, em grande medida, a doutrina que se mostra mais adequada à situação examinada. Tradicionalmente, pois, o curso de direito, sobretudo do primeiro ao quarto ano, deixa em um segundo plano aspectos empíricos da advocacia consultiva e da praxe forense. Observo, ademais, que não se ensinam nas faculdades de direito mínimas noções de deontologia profissional. Daí, a relevância do estágio, em especial, a partir do quarto ano. O contato com a dinâmica do direito, nas suas múltiplas vertentes, aproxima o aluno da respectiva problemática. E, assim, diante das questões que

ARQUIVO PESSOAL

A importância do estágio

JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI* (TURMA 147)

GUSTAVO BICALHO* (TURMA 182)

posições da jurisprudência sobre legitimidade ativa. Anos mais tarde, quando tiver que resolver algum problema mais complexo, tanto estagiário quanto chefe vão sentir falta dessa formação teórica. Esses são os pontos, então. Positivos: ver o direito na prática, experimentar a advocacia, lembrar que o direito serve para alguma coisa. Negativos: menos tempo para dedicar à Faculdade, menos ânimo para as aulas, especialmente as matérias teóricas. Ambos os efeitos negativos são mais relevantes até o terceiro ano, quando estão concentradas a maior parte das disciplinas introdutórias. Minha síntese é a seguinte: estágio e formação teórica não são inconciliáveis. Não perca tempo com disciplinas muito específicas, que você acha que vão ser úteis no trabalho, pois você pode aprendê-las sozinho. Priorize as matérias teóricas e abstratas e tente ver a relação entre elas e a prática do escritório. Ela em geral existe, se você procurar, e vai ajudar a dar sentido às horas gastas lendo sobre a teoria do fato jurídico. É possível ter o melhor dos dois mundos usando o estágio a favor da sua formação, e não o contrário.

* estagiário em contencioso empresarial, estuda fraudes em recuperação judicial na tese de láurea

5


ARTUR PÉRICLES/JA

CIDADE&CENTRO

Novo secretário dá detalhes sobre renovação na GCM

//////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////

ARTUR PÉRICLES (182-11) BÁRBARA SIMÃO (185-11)

6

Um dos principais pontos da campanha do agora prefeito Fernando Haddad (turma 157) foi a renovação da Guarda Civil Metropolitana (GCM). Desde o início da nova gestão, as autoridades municipais têm falado muito em “polícia comunitária”, sem dar mais detalhes. Conversamos com Roberto Porto (Mackenzie 1991), novo Secretário Municipal de Segurança Urbana, para saber mais detalhes sobre os planos da Prefeitura para a renovação da Guarda. Promotor de Justiça desde 1993, ele trabalhou por doze anos no Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco). “São vinte anos lidando com a polícia civil e a polícia militar. Agora começo essa nova experiência com a Guarda”, diz. Segundo o secretário, o diagnóstico da nova gestão da cidade é que a Guarda se afastou de seu propósito. “A GCM foi criada em 1986 pelo prefeito Jânio Quadros como uma guarda comunitária. Nas últimas gestões, ela teve como prioridades o combate à pirataria e a remoção de moradores de rua. Não é função da Guarda, por exemplo, fazer busca e apreensão em shoppings populares”, afirma. As novas prioridades da GCM, de acordo com o secretário, são os parques e as escolas da cidade. “Por exemplo, no parque do Ibirapuera, que estava abandonado e afastando visitantes pela insegurança, dobramos o pessoal”. Ele diz que a diretriz da nova gestão é aproximar a Guarda da população. “Por isso, criamos iniciativas como o programa Corra com a Guarda no parque do Ibirapuera, em que as pessoas são convidadas a treinar com a orientação de instrutores de educação física da GCM. Também reativamos a banda e o coral, que

Novo secretário de segurança urbana promete guardas mais próximos aos estudantes no Largo agora sempre têm apresentações nos parques municipais. O canil também faz apresentações e tem atraído as crianças”, conta, animado. “São medidas para diminuir a imagem negativa que vinha se formando a respeito da Guarda. Queremos que o frequentador dos parques conheça o guarda e que o guarda conheça o frequentador. Isso é muito importante para a função de policiamento comunitário. É uma questão de sobrevivência para a GCM”. Outra aposta do novo secretário para a transformação da GCM são as Casas de Mediação, iniciadas ainda na gestão de Gilberto Kassab. “Muitas vezes, a Guarda é chamada a intervir numa discussão entre vizinhos, sobre o volume da música, por exemplo, que poderia muito bem ser solucionada com a conversa entre as partes numa mediação. Nossa orientação é: quando a temperatura subir, para tudo e chama o mediador”.

Construindo a nova Guarda

Especialista apoia iniciativa

Theodomiro Dias Neto (PUC-SP 1987), professor da Direito GV e especialista em segurança pública, tem uma avaliação positiva sobre os planos do secretário. “As declarações [do secretário] são coerentes com as promessas de campanha e mostram que a GCM não é uma ‘mini-Rota’, o que não pode ser, porque não tem estrutura nem competência legal para isso”. Para o professor, todavia, os cursos de formação dos guardas devem ser ampliados: “A atividade da Guarda exige requalificação constante.

"

Com uma mudança tão radical na GCM, uma questão é como transmitir aos guardas as diretrizes da nova administração. O secretário diz que renovou o curso de formação pensando nisso. “Antes tínhamos um coronel reformado da Polícia Militar. Era um sujeito bom, não me entenda mal, mas com o perfil inadequado para o treinamento de uma polícia comunitária”, avalia. “O novo diretor é formado em direito”. Não haverá um curso geral para os guardas, de acordo com o secretário. “A necessidade de reciclagem será avaliada caso a caso. Quando um guarda tiver qualquer atitude incompatível com nossas diretrizes, ele será convocado ao centro de formação. Nós mudamos o critério anterior, quando os guardas só voltavam ao curso se punidos com sessenta dias de suspensão ou mais”, revela.

É uma questão de sobrevivência, secretário Roberto Porto sobre a transformação da GCM em polícia comunitária

Não bastam o treinamento inicial e os cursos de reciclagem quando há algum desvio. A formação não pode ser vista como uma punição”, observa. Embora o dispositivos da Constituição Federal sobre as guardas municipais fale apenas na proteção do patrimônio do munícipio, o professor Dias Neto não considera isso como um problema. “A existência de duas polícias ostensivas [a Polícia Militar e as guardas] é um fato. Precisamos partir da realidade e lidar com o desafio de coordená-las. O grande problema hoje é a falta de integração entre os órgãos, o que pode ser negativo e gerar confusão na sobreposição de atribuições”, avalia. “O importante é estabelecer uma política coordenada e multi-agencial de prevenção em segurança. Nesse aspecto, acredito que o papel da Guarda é se ali-


Moradores de rua

Nos últimos anos, a Guarda acumulou denúncias de violência contra moradores. No segundo semestre, os estudantes das Arcadas chegaram a organizar uma vigília no Largo em protesto contra a chamada “Operação Espantalho” da GCM, que removeu os moradores da fachada do prédio histórico e isolou a área. Segundo o novo secretário, situações como essa são página virada. “Desde o primeiro dia [da nova gestão], proibimos guardas descaracterizados [sem farda], para garantir a transparência das nossas ações. E estamos trabalhando num protocolo de abordagem [dos moradores de rua] junto com a Secretaria de Assistência Social. O papel da Guarda não é remover o morador do local onde está quando algum evento for ser realizado. É dar segurança para o trabalho das secretarias de Assistência Social e Saúde”. Nathalie Ferro (turma 180), coordenadora da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama, afirma que ainda não sabe dizer se diminuiu a violência dos guardas contra moradores de rua porque a Ouvidoria Comunitária de População de Rua, que recebe reclamações, está em recesso desde dezembro. Ainda assim, ela considera positivos os planos do secretário, porque dão mais atenção à população de rua. O secretário afirma que a presença de viaturas da Guarda no Largo não deve ser vista como uma continuação da Operação Espantalho. “Eles estão lá para coibir o comércio ambulante e fiscalizar a boa utilização da praça, não para impedir a presença de moradores de rua”. Para o professor Dias Neto, entretanto, a Guarda deve agir para evitar o retorno dos moradores à fachada da Faculdade. “O problema dos moradores de rua com certeza é predominantemente social, mas também tem um aspecto que envolve a Guarda. A ocupação da frente da Faculdade, patrimônio histórico, por moradores de rua, leva à deterioração do espaço público, porque as outras pessoas começam a se afastar do local, o que facilita a ação da criminalidade”, observa. A coordenadora da Clínica contesta: “Não aceito nem mesmo o termo ‘ocupação’, porque a área é pública, e os moradores só vão até lá para dormir”.

Presença no Largo

Questionado sobre a insegurança gerada pela falta de iluminação na rua Benjamin Constant, que esteve sem luz durante quase todo o mês de fevereiro, o secretário disse que estava disposto a reposicionar os agentes para que pudessem vigiar a rua, utilizada pelos estudantes para chegar até o metrô. Ele também se comprometeu a estabelecer equipes fixas no Largo, para facilitar a aproximação dos guardas com a comunidade, e quis saber os horários de saída dos alunos para melhorar o policiamento nesses momentos.

Café Girondino PRISCILA PIRES (184-21)

Quem entra no Café Girondino é imediatamente transportado para aquela atmosfera de nostalgia que para muitos ainda cerca todo o centro de São Paulo. Há alguns anos, quando a economia dependia da exportação de café, era na região da Praça da Sé que a vida pulsava na cidade. Localizado na rua Boa Vista, nº 365, em frente ao Mosteiro de São Bento, o Café Girondino abraça justamente essa proposta: homenagear a São Paulo do início do século XX. E isso se reflete não apenas na decoração ou na música ambiente – na maior parte do tempo, clássica –, mas também na escolha do nome dos pratos: como o omelete República (queijo prato, champignon e salsa) e a salada Porto Geral (alface americana, rúcula, peito de peru, queijo branco, abacaxi e crótons). Isso sem falar nos diversos tipos de sanduíche, frios e quentes, como o Júlio Prestes ou o Riachuelo. O Girondino serve também massas, e todo o dia 29 a sugestão é o nhoque da sorte.

rrrrr AVALIAÇÃO:

Não menos tradicionais também são as sobremesas, como o arroz doce, servido frio, e o pudim de leite. O preço pode ser um pouco salgado, no entanto. O couvert, com manteiga, pães, patês e azeitonas custa R$9,90 por pessoa, e é servido durante toda a refeição (mas é opcional). O prato do dia serve bem, mas esteja preparado para gastar cerca de R$50,00 por pessoa. Se a ideia for um café rápido, um espresso com pão de queijo sai por R$7,00. Já para aqueles que desejam mergulhar na boêmia paulistana, o chope Brahma é servido por R$5,60. O Café Girondino funciona de segunda a quinta das 07h30 às 22h30. Às sextas, fecha às 23h. Aos sábados, das 08h às 20h e aos domingos e feriados, das 08h às 19h. Uma boa pedida para apresentar os charmes do centro de São Paulo a quem ainda não conhece esse lado romântico da área. +Mais Veja fotos de nossa visita: arcad.as/girondino

Especialistas propõem alternativa ao metrô 24h LAURA DABRONZO (185-13)

Há cerca de um mês, um movimento vem se tornando viral nas redes sociais. Não é o vídeo do Harlem Shake, mas algo muito mais concentrado nos paulistanos que se utilizam do metrô todos os dias, ou melhor, noites. Trata-se da petição online de um aluno de administração que reclama por não contar com o metrô para voltar para casa. O abaixo-assinado digital, que já conta com 85 mil assinaturas, será entregue ao governo do Estado quando chegar às 100 mil. Para saber sobre a viabilidade da proposta, Arcadas entrevistou dois especialistas: Eduardo Alcântara de Vasconcellos, engenheiro civil, sociólogo e doutor em políticas públicas pela Universidade de São Paulo (USP), e com Ailton Brasiliense, presidente da Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP). Segundo Vasconcellos, embora a petição traga uma preocupação que é legítima com quem usa transportes públicos à noite, seja em razão dos estudos ou do trabalho, “a proposta de metrô 24h, contundo, é uma solução desproporcional para o problema”, afirma. Brasiliense concorda e aponta ainda que não há possibilidade de manter o metrô de São Paulo funcionando sem parar, porque "o metrô é um sistema complexo que exige uma ampla manutenção preventiva". De acordo com o especialista, as três horas de fechamento são usadas não só para manutenção, limpeza, e ajustes nos diversos equipamentos, mas também para treinamento. Ele faz um

alerta: "Se você abandona esse trabalho, você coloca em risco a vida das pessoas durante a operação comercial". “Hoje o metrô transporta cerca de 4 milhões de pessoas por dia. Estimativas do número de pessoas que usariam o metrô no período da meia-noite às quatro e quarenta mal passam de 20 mil. Você coloca em risco a vida de 4 milhões de pessoas para atender 20 mil”, pondera. Para Vasconcellos, em vez de um sistema de metrô que funcione o tempo todo, o melhor seria criar uma linha especial de ônibus que acompanhe as paradas do metrô. “Temos capacidade técnica de saber exatamente onde está a demanda no período de fechamento do metrô”, afirma. Ele lembra que o metrô já teve um serviço desse tipo, mas não sabe dizer o motivo de seu encerramento. Ailton Brasiliense também aposta no sistema de ônibus. Ele chama atenção para um serviço de localização de ônibus a partir de um sistema de GPS, que já está sendo implementado em São Paulo. Com este sistema, é possível uma pessoa acessar uma central, como a da SPTrans, e, ao informar sua localização e a linha que deseja, saber qual é o horário mais provável da chegada do próximo ônibus a seu ponto. Ele diz que durante o dia a previsão de chega do ônibus é menos confiável em razão do congestionamento. "De madrugada, sem trânsito, a probabilidade [de acerto da previsão de chegada do ônibus] pode chegar perto de 95%", calcula. Ele estima que esse serviço, que diminuiria a insegurança dos usuários à noite limitando o tempo de espera nos pontos de ônibus "é possível de realização, no máximo, dentro de um ano".

CIDADE&CENTRO

nhar com outros órgãos da administração municipal para lidar com fatores de insegurança. Por exemplo, o bom emprego do poder de polícia das cidades na fiscalização de estabelecimentos pode cortar uma grande fonte de criminalidade, especialmente no comércio ilegal. A Guarda pode ser utilizada para combater fatores de insegurança, como a falta de iluminação e a requalificação de áreas degradadas”, defende. “Mas o reconhecimento e a aproximação da população virão à medida que a Guarda demonstrar sua competência, não em virtude de programas de relações públicas, como banda, coral e canil”, alfineta.

7


POLÍTICA&DIREITO

MPF questiona proibição de advocacia pro bono ARTUR PÉRICLES (182-11)

INSTITUTO PRO BONO/GUSTAVO PORTO

O Ministério Público Federal realizou, na última sexta-feira de fevereiro (22), uma audiência pública para discutir a proibição da advocacia pro bono para pessoas naturais, por parte da secção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil. A notícia da proibição veio como uma surpresa para muitos e trouxe indignação de juristas e entidades de assistência jurídica, que se manifestaram com críticas pesadas à Ordem. Segundo explica o procurador da República responsável pelo caso, Jefferson Aparecido Dias (ITE 1992), “o questionamento do MPF surgiu a partir da representação de um advogado que se sentiu constrangido por ser impedido de prestar advocacia pro bono a pessoas físicas”. A partir daí, foi instaurado um inquérito civil público e solicitadas informações da OAB-SP. “Como resposta, a Ordem apenas encaminhou cópia da resolução questionada e não esclareceu mais. Em razão disso, foi convocada a audiência pública, para que fossem trazidas mais informações”. A audiência pública lotou o auditório do MPF. Falaram advogados como Alberto Zacharias Toron, José Carlos Dias (turma 163), Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, presidente da OAB-SP entre 1987 e 1990, os professores Miguel Reale Jr. (turma 137), do departamento de penal, e Flávia Piovesan, da PUC-SP, o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, além de representantes da Defensoria e de entidades como o Departamento Jurídico “XI de Agosto” e o Instituto Pro Bono. “Mas, num certo aspecto, a audiência pública foi frustada”, opina o procurador Jefferson Dias, “porque a Ordem não enviou ninguém”. “Fizemos o convite com bastante antecedência e a Ordem declinou com justificativa de que o as-

8

sunto seria de competência do Conselho Federal. Entretanto, a resolução não é do Conselho Federal, mas da seccional de São Paulo, então isso não tem qualquer sentido”, questiona. “De qualquer forma, enviaremos a gravação da audiência à OAB e pediremos novos esclarecimentos. A verdade é que a OAB tem tangenciado o debate público”, afirma. Ele diz estranhar a decisão da Ordem: “Essa conduta corporativista da OAB, além de não ter respaldo na lei, que não lhe entrega esse poder, não é compatível com sua bela história de defesa da cidadania, especialmente durante a ditadura militar”. E continua: “Aliás, essa posição cria até uma contradição na regulamentação de órgãos públicos: o CNJ [Conselho Nacional de Justiça], por exemplo, tem uma resolução que cria uma rede de advocacia voluntária. Não há sentido nessa regulamentação da Ordem”. Num artigo publicado na seção “Tendências/ Debates” da Folha de São Paulo de 30 de agosto do ano passado, Marcos da Costa, presidente da OAB-SP então em campanha, defendeu a restrição à advocacia pro bono como forma de coibir “tentativas de desvirtuá-l[a] para servir a fins marqueteiros e a práticas antiéticas de captação de clientela”. Para o procurador Jefferson Dias, contudo, “pressupor que advocacia pro bono significa captação é algo muito distorcido”. Embora afirme concordar com a necessidade de inibir a captação antiética e a concorrência desleal entre os advogados, ele não acredita que o pro bono seja uma grande ameaça. “O que me parece estranho, no entanto, é que nós vemos essas condutas passarem ilesas no dia a dia. E disso o MPF é testemunha quase toda semana, especialmente nos juizados especiais. Há casos de advogados que exigem até 80% dos benefícios assistenciais em atraso que o cliente tem

a receber. Isso não é captação antiética?”, indaga. Nos bastidores, tem-se levantado que a real intenção da OAB-SP com a proibição seria proteger os advogados dativos, que dependem da verba paga pela assistência judiciária para se sustentar. Marcos Fuchs (PUC-SP 1988), diretor-executivo do Instituto Pro Bono, que lidera o movimento que questiona a OAB, afasta essa preocupação: “São 29 milhões de usuários, de pessoas que precisam de acesso à Justiça. Jamais vai faltar trabalho aos advogados dativos. Nós não queremos concorrer com os dativos, só queremos criar uma nova ferramenta de acesso à Justiça”, argumenta, “E, de qualquer forma, a preocupação do Instituto é com o acesso à Justiça, não com a manutenção de uma injustiça por corporativismo”, conclui. Arcadas procurou a presidência da OAB-SP para ouvir sua posição. Fomos encaminhados ao advogado Jorge Eluf Neto, diretor da CAASP e conselheiro da OAB-SP na última gestão. “A OAB não proíbe pro bono”, afirma, “A resolução de 2002 regulamenta a advocacia conforme a competência legal dada à OAB pelo Estatuto do Advogado, e aí se inclui também a advocacia gratuita. Como presidente do tribunal de ética em 2002, recebia muitos casos de advogados e escritórios que se valiam do pro bono como expediente para captação antiética. Editamos a resolução justamente para impedir que a prática da advocacia gratuita fosse desviada para fins de promoção pessoal, concorrência desleal e até ganho político, como em casos que advogados deixavam de cobrar honorários para depois exigi-los em dividendos eleitorais durante a campanha”, explica.

Juristas, advogados e autoridades fizeram críticas à OAB na audiência pública do MPF sobre pro bono

\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\


destinadas a “pessoas jurídicas sem fins lucrativos integrantes do terceiro setor, reconhecidas e comprovadamente desprovidas de recursos financeiro”. Com base nessa resolução, de 19 de agosto 2002, o Tribunal de Ética e Disciplina (TED) da OAB-SP tem se manifestado sobre consultas feitas por advogados a respeito do assunto. Nos mais recentes julgados, o TED respondeu negativamente a ONGs que pretendiam prestar serviços jurídicos gratuitos a pessoas de comunidades carentes. Uma única exceção foi feita à possibilidade de palestras gratuitas de esclarecimento à população, e só porque não consistiriam em “assessoria, consultoria ou atividade jurisdicional”.

Autonomia questionada

Embora não negue a autonomia administrativa da Ordem, o procurador Jefferson Dias acredita que a Justiça poderia afastar a resolução de 2002. “Uma coisa é o mérito [do ato] administrativo, que cabe à OAB. Cabe a ela definir seu regime jurídico interno, claro. Outra coisa é uma resolução que avança sobre a lei. No campo da legalidade, a intervenção do judiciário é possível”, defende.

Para o dr. Eluf Neto, não há possibilidade de discussão das decisões da OAB. “A Ordem tem competência exclusiva para regulamentar e fiscalizar o exercício da advocacia no território nacional. Nenhum órgão pode questioná-la, a não ser em casos de ilegalidade ou inconstitucionalidade, o que não ocorre aqui, porque a regulamentação do pro bono é necessária para manter a ética”, afirma. “Isso decorre da Constituição e já foi reconhecido no Supremo [Tribunal Federal], no julgamento sobre a constitucionalidade do exame de ordem”. O Ministério Público Federal ainda estuda qual seria a melhor medida judicial a ser adotada: “Nós ainda acreditamos numa solução negociada com a OAB, até em razão da sua história”, declara o procurador Jefferson Dias. Arcadas procurou a OAB-SP para ouvir o que tinham a dizer o presidente da entidade e o presidente de seu Tribunal de Ética e Disciplina, mas nossos pedidos não foram atendidos. Com a colaboração de Olívia Bonan (185-14)

Poder de investigação do MP rediscute sistema processual ARTUR PÉRICLES (182-11)

A proposta de emenda à Constituição 37/2011 tem movimentado uma grande discussão pública. Pela PEC, de autoria do deputado Lourival Mendes (PT do B/MA), o texto constitucional incluirá um dispositivo expresso que atribui competência exclusiva à polícia nas investigações criminais. Felipe Locke Cavalcanti (turma 157), presidente da Associação Paulista do Ministério Público (APMP), aponta deficiências na investigação policial para atacar a PEC. “É a PEC da impunidade. A investigação pela polícia é notoriamente falha. A maioria dos crimes nem é investigada. E muitas vezes o policial responsável pela investigação é retirado justamente para frustá-la”, afirma. “O Brasil precisa de mais, não menos, órgãos que façam investigação: Ministério Público, as CPIs, a Fazenda, o Banco Central, quanto mais melhor. Precisamos de mais investigação, de mais apuração, de mais transparência, para acabar com a impunidade”, completa Locke, mais votado nas últimas eleições para o cargo de procurador-geral de Justiça, mas preterido pelo governo Geraldo Alckmin, que nomeou Márcio Rosa, segundo mais votado. Para o professor de processo penal Gustavo Badaró (162), a discussão sobre a PEC está mal enquadrada. “O MP é contra porque perde poder, a polícia é favor porque recupera exclusividade. Mas o problema é muito maior”, afirma. Ele diz que não é contra a investigação criminal por parte do Ministério Público, mas que é preciso fazer alguns esclarecimentos. “Uma coisa é quem

preside a investigação, que hoje é o delegado de polícia. Outra é quem exerce a investigação, que é o objeto da PEC. E aí é preciso distinguir a investigação de rua, sobre um homicídio, por exemplo, que exige que o investigador vá para rua e tente ouvir as pessoas que poderiam ter presenciado o crime, da investigação de gabinete, que envolve análise de documentos. Esse último tipo de investigação pode ser bem executado pelo MP, que tem mais garantias e mais independência”, expõe.

Regulamentação e poderes

Badaró, porém, é contra as investigações no cenário atual. “Mesmo sem a aprovação da PEC, há quem sustente que a Constituição não confere ao MP o poder de investigar porque não há nada expresso no texto constitucional. O problema não é esse. Não acho que a Constituição proíbe o Ministério Público de investigar só porque não fala nada a respeito. Na minha opinião, o Ministério Público não pode investigar porque não há uma lei que regulamente isso”.

Debate sobre PEC 37/2011 põe em questão fundamentos do processo penal e traz problemas constitucionais Felipe Locke não acredita que esse seja um óbice importante. “Não podemos nos preocupar com uma questão formal menor e esquecer as consequências. Quem perde com a PEC é a sociedade, porque aumenta a impunidade. O pior:

uma série de condenações de crimes de colarinho branco devem ser anuladas, depois de trabalho duro de investigação pelo MP. Não faz sentido proibir a investigação pelo Ministério Público. Imagine que a corregedoria-geral do MP apure, em procedimento administrativo, a prática de um crime. Com a aprovação da PEC, seria necessária nova investigação pela polícia, para convalidar algo que o principal órgão de fiscalização do Estado já concluiu”. Para o procurador de Justiça, a PEC é uma resposta de quem se sentiu ameaçado pelo sucesso de investigações do MP. Guilherme Madeira Dezem (166), juiz de direito e professor de processo penal no Mackenzie, concorda com essa avaliação. “A PEC é uma clara reação para limitar a atuação do MP. A iniciativa demonstra um claro incômodo da classe política”. Madeira, que já foi contra a investigação pelo Ministério Público por acreditar que falta de parâmetro legal violava o princípio da legalidade estrita, diz que se convenceu depois de examinar melhor a teoria dos poderes implícitos. “Por essa teoria, quando a Constituição atribui a um órgão alguma missão, tacitamente também lhe dá os meios para desenvolver suas tarefas”, explica. “Nosso sistema é tradicionalmente concentrado na investigação policial, mas não vejo problemas em criarmos algo mais difuso”, opina. “O importante no nosso sistema é manter o caráter acusatório, quer dizer, quem não pode investigar é o poder judiciário – o que ocorre hoje, porque as investigações de juízes são presididas por desembargadores. Agora, quanto ao MP, não há problemas. Aliás, o estranho mesmo

POLÍTICA&DIREITO

Eluf Neto afirma que a questão precisa ser vista por outro ângulo. “A verdadeira advocacia pro bono é aquela que é paga pelo Fundo de Assistência Judiciária como honorários muito abaixo do mínimo aceito pela OAB e que não cobrem nenhuma despesa do advogado com funcionários, água, luz, telefone, xérox. Quem põe isso à disposição é a OAB, que tem 216 subseções em São Paulo e 500 casas do advogado abertas aos advogados dativos sem nenhum repasse ou contribuição da Defensoria Pública”, defende. “E mais: nunca tive notícia de sequer um caso de punição disciplinar em razão disso. Eu mesmo pratico pro bono, colegas praticam, inclusive para pessoas físicas”. Contatamos novamente a presidência da OAB para confirmar as informações, mas a única resposta que obtivemos foi um despacho a nosso pedido pelo atual presidente do TED, José Maria Dias Neto, com cópias da resolução questionada e ementas do tribunal sobre o assunto. De acordo com os termos da resolução, a advocacia pro bono é “assessoria e consultoria jurídicas, permitindo-se excepcionalmente a atividade jurisdicional”,

9


REPRODUÇÃO/FACEBOOK

Para ele, essa nova lei regulamentadora deveria trazer uma rearranjo institucional da investigação. “Eu vejo o processo penal pela ótica das partes, e

O Brasil precisa de mais, não menos, órgãos que façam investigação: Ministério Público, as CPIs, a Fazenda, o Banco Central, quanto mais melhor. Precisamos de mais investigação, de mais apuração, de mais transparência, para acabar com a impunidade FELIPE LOCKE (TURMA 157) procurador de Justiça, presidente da Associação do MP, foi conselheiro do CNJ

GUILHERME MADEIRA (TURMA 166) juiz de direito e professor de processo penal no Mackenzie

aqui há uma grande disparidade de armas. Hoje, no inquérito policial, a defesa pode sugerir ao delegado alguma prova que indique o real culpado ou a oitiva de alguma testemunha que comprova o álibi. Mas no inquérito pelo Ministério Público, o promotor pode simplesmente dizer que não lhe interessa aquela linha de investigação e ignorar a defesa”, afirma. ”Há um problema. Por que a acusação tem o poder de requisitar dados públicos e a defesa não? Por que a defesa não pode exigir da operadora telefônica o registro de chamadas e mostrar ‘olha, meu inimigo estava ligando para ele toda hora’?”, contesta. “Por isso”, continua, “defendo uma lei que traga um completo rearranjo na matéria: que dê a disciplina da investigação do Ministério Público, com prazos e critérios, mas que dê também a disciplina da investigação defensiva, que permita à defesa promover sua própria investigação. E, principalmente, uma lei que determine qual será o valor em juízo do que for colhido dessa forma”, discorre. Com a colaboração de Bárbara Simão (185-11)

"

Na minha opinião, o Ministério Público não pode investigar porque não há uma lei que regulamente isso. [...] Faltam limites e critérios claros para essa atuação do MP. Da forma que estão as coisas, fica tudo a juízo discricionário do promotor GUSTAVO BADARÓ (TURMA 162) professor associado de processo penal (DPC) e advogado criminalista REPRODUÇÃO/FACEBOOK

10

Investigação defensiva

"

Convencido do poder de investigação do MP em virtude da teoria dos poderes implícitos, critica a regulamentação por parte do Conselho Nacional do MP: A resolução, nesses termos, é inaceitável"

"

O professor Badaró, discorda dessa interpretação. “O STF ainda não se manifestou em definitivo por meio do plenário sobre o assunto das investigações do MP. E embora a Constituição dê mesmo poderes requisitórios ao MP, é preciso entender uma ressalva de jurisdição quando existem outros direitos fundamentais envolvidos, como o direito à privacidade”. Em sua avaliação, as falhas da resolução são a prova da necessidade de uma lei sobre o assunto. “Isso é justamente o motivo pelo qual precisamos de uma regulamentação legal da investigação do Ministério Público”, reforça. “Faltam limites e critérios claros para essa atuação do MP. Da forma que estão as coisas, fica tudo a juízo discricionário do promotor”, continua. Ele teme que a resolução atual permita ao MP contornar o caráter obrigatório da atuação do Ministério Público. “Claro, o crime envolvendo o político famoso, o milionário, a figura pública, isso o MP vai se interessar em investigar. Mas a representação de uma velhinha sobre um aviãozinho [pessoa que faz transporte de drogas] perto da sua casa, essa será encaminhada à polícia”, comenta.

DIVULGAÇÃO/CNJ

POLÍTICA&DIREITO

é que qualquer chefe de repartição pública possa investigar seus subordinados em inquérito administrativo e justamente o Ministério Público, a quem cabe a acusação, não possa”, argumenta. Madeira, no entanto, faz ressalvas quanto à regulamentação atual da investigação pelo Ministério Público. “O que eu critico é a resolução do Conselho Nacional [do Ministério Público] que baseia as investigações hoje [res. 13/2006]. O art. 6º, por exemplo, permite ao promotor requisitar informações de bancos de dados e cadastros e ignora a proteção da privacidade, que exige o controle judicial, de acordo com a Constituição. O art. 13, II, faz ressalva de sigilo até ao advogado, o que é incompatível com a súmula vinculante 14, do STF. A resolução, nesses termos, é inaceitável”, observa. Para o presidente da APMP, “A resolução pode e deve ser aprimorada para responder a esses questionamentos. Mas é importante que se diga que o Conselho Nacional apenas cumpre sua missão de disciplinar o controle da atividade policial, que é dado ao Ministério Público pela Constituição”. Para ele, as investigações do MP já têm jurisprudência pacífica: “O STF já se manifestou pela legalidade dessas investigações, o que foi corroborado na discussão sobre os poderes do Conselho Nacional de Justiça para investigar paralelamente às corregedorias dos Tribunais de Justiça. E é a própria Constituição, em seu art. 129, que dá ao MP poder de requisitar informações”, sustenta.


ARTUR PÉRICLES/JA

ANA FERREIRA (182-11)

A história de Natalie Nascimento, primeira estudante do Arcadas Vestibvlares a se tornar franciscana

FACVLDADE

A primeira vitória

Uma das coisas mais bonitas no dia da matrícula dos calouros do Largo é o orgulho nos olhos dos pais que os acompanham. A satisfação de ver um filho se matriculando na mesma academia em que tantos nomes importantes para a história do Brasil se formaram certamente deve ser uma das maiores alegrias do mundo. Pouco mais de uma semana após a matrícula, é com esse mesmo encantamento no olhar que Marina Lima (184-12), do Arcadas Vestibvlares, abraça Natalie Nascimento (186) em um corredor da Faculdade – ainda que tenha idade para ser, no máximo, sua irmã mais velha. Com apenas 17 anos e recém-saída do ensino médio, Natalie foi aluna da primeira turma do Arcadas Vestibvlares, cursinho gratuito oferecido por alunos da Faculdade nas dependências do prédio histórico. Conseguiu passar no vestibular da Fuvest e agora deixa de ser aluna da Marina para se tornar sua caloura. Natalie cresceu em São Paulo, mas em 2006, após a separação dos pais, mudou-se para Itu com a mãe. Apesar de nunca ter gostado muito da vida do interior, viveu lá até o final de 2011, quando finalmente conseguiu voltar a morar em São Paulo. Prestes a iniciar o terceiro ano do ensino médio, mesmo sem ter certeza sobre a carreira que gostaria de seguir, já tinha um foco em mente: prestar vestibular. Estava determinada a se preparar o quanto fosse necessário para conseguir uma vaga numa boa universidade, independente do curso que escolhesse, e por isso iniciou a rotina de estudos já no meio de janeiro de 2012. A família nunca foi rica, por isso ela e suas duas irmãs mais velhas fizeram a maior parte dos estudos em escolas públicas, o que permitiu a admissão no Arcadas Vestibvlares. Apesar de, em suas próprias palavras, nunca ter gostado muito de ir à escola, Natalie reconhece que sempre tirou boas notas. Seu pai, Armando, declara cheio de orgulho que nunca precisou forçar a filha a estudar. Para ele, mais importante do que impor suas vontades em relação ao futuro das filhas era orientá-las de que não existem milagres, bons resultados só vêm depois de muito esforço. Esforço que não faltou em sua caçula durante o ano passado. Natalie mudou de escola duas vezes até encontrar uma que lhe permitisse levar a sério os estudos para o vestibular. Chegou a levar apostilas do cursinho para a escola para fazer exercícios durante as aulas e, semanas antes da primeira fase da Fuvest, quando teve tendinite de tanto escrever, houve dias em que copiou a matéria que os professores passavam na lousa com a mão esquerda, na intenção de poupar a direita para o dia da prova. Sua rotina era bastante rígida. Escola de manhã, cursinho pré-vestibular de tarde e estudos em casa durante a noite. Como não tinha tempo a perder, todos os dias de manhã, enquanto tomava café antes de ir para o colégio, assistia, pela TV, ao Telecurso de segundo grau. Tanta dedicação, é claro, não passou despercebida pelas pessoas à sua volta. Seu pai a classifica como workaholic quando o assunto é estudos e, por diversas vezes, foi chamada de "metida" pelos colegas de escola, que não se conformavam com a importância que a menina dava à preparação para o vestibular. Mas os frutos dessa enorme vontade de ingressar numa faculdade já chegaram ao longo do cursinho. p. 12 »

11


FACVLDADE

Na luta por verbas do Orçamento Participativo das entidades da Faculdade, o Arcadas Vestibvlares, tentando chamar atenção para o trabalho realizado, desenvolveu um exercício com seus alunos. Eles receberam a proposta de escrever redações sobre o poder de transformação da leitura, sendo que as melhores serviriam como propaganda para o cursinho. Marina, professora de geografia e uma das idealizadoras da proposta, foi a primeira a ter contato com as redações assim que foram entregues. A de Natalie foi a que mais lhe chamou a atenção, tanto pela ausência de erros gramaticais quanto pelo conteúdo que, a seu ver, fugia do senso comum. Foi a primeira vez que Natalie se destacou entre os alunos do cursinho. Tímida, não tinha o costume de participar ativamente das aulas e não pertencia a nenhum grupinho de alunos, mas sempre fazia os exercícios e prestava muita atenção no que os professores diziam. A ROTINA PUXADA DE ESTUDOS que se impôs causou-lhe bastante estresse, como é comum acontecer aos vestibulandos. Roeu as unhas, teve problemas de estômago e de tendinite. Diante desse quadro, a última coisa que queria no dia anterior à prova de primeira fase da Fuvest era ouvir Ozzy – a calopsita de seu tio, que passa uma temporada em seu apartamento – gritar. O mais seguro, por mais incrível que possa parecer, era passar a noite na casa do namorado, Rodrigo, no Jabaquara, e correr o risco de passar a noite ouvindo o pancadão de algum baile funk. Foi só quando chegou à casa do namorado, já no fim da tarde, que Natalie percebeu que não estava mais com a sua carteira na bolsa: provavelmente fora furtada dentro do ônibus. Dentro da carteira, além de vinte reais e o título de eleitor, estava o seu RG, passaporte para a entrada no local de prova do vestibular. No site da Fuvest não havia nenhuma informação sobre como proceder nesse caso e, tentando telefonar para a Fundação, não conseguiu sequer ser atendida. A partir daí, o pânico de não conseguir fazer a prova para a qual havia se preparado por um ano inteiro fez com que tentasse todos os meios que estavam ao seu alcance para solucionar o problema. Não teria tempo para esperar por um boletim de ocorrência virtual. Como já era noite, a única opção era um posto policial 24 horas no metrô Santa Cruz. Chegando lá, foi informada de que não poderia

fazer o boletim de ocorrência porque era menor de idade. Era preciso que seu pai estivesse junto. Ligou, então, para o pai, que prontamente atendeu o chamado, mas não sem contribuir para aumentar o nervosismo da menina, fazendo questão de deixar claro para a garota que era preciso cuidar melhor das próprias coisas. Apesar de a fila para o atendimento estar grande, uma moça loira, muito bem arrumada e simpática, dirigiu-se até eles e, depois de ficar a par dos acontecimentos, passou Natalie para a frente da fila. Era a delegada, que por sinal ficou bastante contente ao saber que a garota pretendia cursar direito. No dia seguinte, com o boletim de ocorrência em mãos, Natalie chegou ao local de prova ansiosa para justificar a ausência de seu RG. Resumiu sua história para o guarda na porta de entrada, que lhe disse "não precisa de B.O. não, moça, é só ir até aquela salinha ali que eles recolhem suas digitais!" O RESULTADO FINAL DA FUVEST saiu um dia antes do previsto inicialmente, para desespero de Natalie, que ainda não tinha se preparado emocionalmente o suficiente para lidar com aquela informação. Estava certa de que não seria aprovada e, quando abriu a lista dos aprovados para a carreira Direito – Matutino, suas suspeitas se confirmaram. Como não tinha entendido muito bem como funcionava o esquema de segunda e terceira opção, não se preocupou em consultar as outras listas à procura de sua aprovação. Foi atrás delas apenas por curiosidade. Já que seu nome não é tão comum, queria ver se alguma outra Natalie tinha sido aprovada. Deparou-se, então, com o próprio nome escrito na tela, na lista dos aprovados para o curso noturno, sua segunda opção na ficha de inscrição. Com a aprovação, chegava a hora de cumprir a promessa que havia feito: cortar os cabelos para doá-los a alguma instituição que fizesse perucas destinadas a pessoas em tratamento de câncer. Não ter encontrado, em São Paulo, nenhuma entidade que recolhesse esse tipo de doação, aliás, fez com que se desapontasse um pouco, afinal não é pequeno o número de doentes submetidos à quimioterapia. Por enquanto, as compridas mechas de seus cabelos castanhos e sem química estão guardadas em sua casa, aguardando o envio para alguma entidade.

NATALIE ESTÁ VISIVELMENTE FELIZ com sua mais nova conquista. É uma menina tímida e discreta, mas tem senso crítico e se mostrou bastante desconfortável com o tamanho das desigualdades que viu ao longo do processo que lhe abriu as portas para o curso de direito da Universidade de São Paulo. Definitivamente não está deslumbrada: plenamente consciente de que só chegou onde está por causa do seu esforço, garante que deve boa parte da sua conquista – é a primeira de sua família a entrar na USP – ao cursinho, onde realmente aprendeu o que lhe era ensinado, ao invés de apenas decorar o conteúdo, como aconteceu nas escolas que frequentou. Direito não foi o curso com que ela sempre sonhou. Na verdade, a escolha por esse curso se deu em grande parte exatamente por não ter muita noção do que quer ser quando crescer. A quantidade de possibilidades que a formação jurídica pode proporcionar foi fundamental para que optasse pelo curso. Apesar dessa decisão feita em cima da hora, praticamente no momento de fazer a inscrição para o vestibular, a série de coincidências que a liga à Faculdade chega a ser curiosa. O apartamento do pai fica a poucos metros de distância do prédio principal. Mesmo assim, só foram descobrir que eram vizinhos da Faculdade de Direito da USP quando receberam o flyer do Arcadas Vestibvlares, que estava sendo distribuído na fila de inscrição para o MedEnsina, o cursinho dos estudantes de Pinheiros. Ainda que Natalie não seja uma daquelas alunas que se apaixonaram pelo Largo de São Francisco quando ainda estavam no berço, seu pé no chão e sua consciência da realidade fazem dela o exemplo perfeito do tipo de calouros de que a Faculdade precisa. O tipo que, apesar de reconhecer a importância de toda a tradição que cerca as Arcadas, não se deixa levar pela glória do passado e sabe que só será possível manter a reputação de nossa instituição com muito trabalho duro e enfrentando os problemas do mundo real de frente. Natalie pode não ter escolhido a São Francisco desde o começo, mas com certeza a São Francisco escolheu a Natalie.

Natalie e o pai, orgulhoso, contam sua história

KARIN NAOMI/JA

///////////////////////////////////////////////////////

12


BEATRIZ GARCIA (182-11) ARTUR PÉRICLES (182-11)

O professor Marcos Alexandre Coelho Zilli (turma 158) é daqueles que inspiram respeito – e não é só pelo conhecimento em processo penal. Nas aulas, assim como nas audiências que conduz na 15ª Vara Criminal da capital, cada palavra que pronuncia parece milimetricamente escolhida. Na Faculdade ou no fórum, suas falas e movimentos são solenes; é como se seguisse uma liturgia, que só ele sabe, e de cor. Quem conhece essa figura do mestre grave talvez tivesse a mesma surpresa que tivemos em nossa entrevista. Não são só a gentileza e a disposição para a conversa chamam a atenção: a satisfação do professor ao relembrar sua história e falar sobre seu trabalho é de causar admiração. Você pode assistir uma versão curta da entrevista em nosso site. Zilli não se sentiu tão à vontade frente à câmera, mas o sorriso no rosto e na voz do juiz criminal falando sobre seu trabalho nos fez ter certeza de que fizemos a melhor escolha para abrir essa primeira edição da nova série sobre carreiras e profissões. O senhor já pensava em ser juiz desde o começo do curso de graduação? Não. Na verdade, no começo, minha vontade era ser diplomata. Aliás, até o segundo ano, eu também cursava economia. A partir do terceiro, comecei a estagiar no jurídico de uma empresa, mas já tinha me decidido pela magistratura. E por que a escolha da magistratura? É engraçado, porque hoje eu percebo que muitos dos motivos que me levaram a decidir pela magistratura tinham por base uma visão idealizada e até um pouco imatura do trabalho do juiz. Mas o que mais me interessava era a liberdade de convicção do juiz, a independência: como o juiz não tem compromisso com uma tese, tem mais liberdade que os outros profissionais do direito. Com o tempo percebi que a realidade de um juiz era um pouco menos romântica, mas não me enganei sobre a liberdade de convicção. E é por isso que posso dizer que meu trabalho como juiz tem sido um exercício muito enriquecedor. O que o levou se tornar juiz criminal? Apesar de não ter trabalhado com essas áreas, eu me interessava muito por direito penal e processo penal. Tive penal com o professor [Sérgio] Pitombo e processo penal com a professora Ada [Pellegrini Grinover] e o professor Magalhães [Gomes Filho, atual diretor da Faculdade], que certamente inspiraram minhas escolhas. Assim que surgiu uma oportunidade na carreira [de juiz], consegui ser transferido para vara especializadas em crime. Fui juiz do DIPO [Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária] por treze anos e há cerca de sete estou na vara criminal. São vinte anos como juiz criminal.

MARCOS ZILLI

Muita pessoas se interessam pela disciplina do direito penal, mas temem que o cotidiano do juiz seja angustiante... Eu gosto muito de direito penal e processo penal tanto pelo aspecto teórico quanto pelo aspecto prático das matérias. A prática não é angustiante, ao contrário. Acho que há uma dimensão humana muito grande envolvida, que fica clara quando pensamos no tanto de atingidos pelas decisões – réu, vítima, familiares, por exemplo. A própria individualização da pena exige reflexão sobre os envolvidos, sobre o réu, sobre aquele crime e seu impacto. Há quem diga que jamais seria juiz criminal porque não conseguiria conviver com o risco de condenar um inocente. O senhor tem esse receio? Já percebeu que estava equivocado sobre uma decisão? Não. Pode até parecer um pouco arrogante, mas nesses vinte anos não acredito que já tenha me equivocado, nem nunca me arrependi de alguma condenação. O processo penal tem de observar as garantias do acusado e respeitar sua liberdade: na dúvida, o correto é a absolvição. Eu procuro agir sempre com muita cautela, com esses valores em mente, e por isso me sinto muito seguro em minhas decisões. O senhor falou sobre a dimensão humana do direito penal. É possível evitar a banalização de casos que envolvem tanto sofrimento sem que isso lhe afete pessoalmente? Estaria mentindo se dissesse que não há casos que me impactam pessoalmente. Às vezes, há casos que envolvem violência sexual, por exemplo, em que um depoimento choca a mim, à defesa e à acusação. Mas a experiência me deu uma espécie de anteparo que permite julgar com distanciamento sem banalizar a dor e a gravidade das situações. O juiz nesse aspecto é como um médico de pronto-socorro: ele precisa ter sangue frio, porque se se deixar abalar facilmente não conseguirá cumprir sua função. No caso do médico, muito envolvimento pode impedi-lo de realizar os procedimentos necessários para salvar a vida do paciente. No caso do juiz, pode prejudicar sua independência, que é o pressuposto de uma decisão correta, justa. Com o tempo e a experiência, aprendemos a ter como que uma armadura para manter o equilíbrio. Ainda assim, mesmo hoje me deparo com situações em que me percebo chocado. E aí minha atitude é sempre chamar os autos à conclusão, refletir, passar por um processo de “depuração da alma”, para então proferir a decisão sem medo de errar. A Justiça não pode ser emotiva, passional, justamente para preservar sua imparcialidade. O senhor acredita, então, que alguém passional não faria um bom juiz? Não quero dizer que qualquer pessoa passional não serve para magistratura, mas acho que o juiz deve ter uma personalidade equilibrada, ponde-

FACVLDADE

Juiz criminal

ARQUIVO PESSOAL

Série Carreiras&Profissões

rada, controlada, paciente, compatível com seu papel. O juiz precisa saber ouvir acima de tudo. Alguém combativo teria mais sucesso nas carreiras que exigem a defesa de uma tese, ou do interesse da parte. O contrário se espera do juiz, que não pode se vincular a uma tese ou demonstrar empatia com uma das partes: nas audiências, o magistrado deve sempre mostrar tranquilidade, serenidade, ainda que alguma questão levantada lhe deixe um pouco ansioso. O trabalho do juiz é silencioso, não de luta. Mudando um pouco de assunto, outros profissionais podem contar com colegas de trabalho e superiores com mais experiência. O senhor sente falta desse tipo de apoio? No começo da carreira, era realmente difícil e até mesmo solitário. Pense que há 20 anos não havia essa facilidade de comunicação, com Skype, celular. Aliás, não havia nem a ajuda da internet para pesquisar jurisprudência! Hoje, e agora em São Paulo, é mais fácil. Posso sempre conversar com outros juízes sobre questões teóricas complicadas. E como professor também consigo debater dúvidas. p. 14 »

13


FACVLDADE

+Mais Confira o vídeo da versão curta da entrevista com Marcos Zilli em: arcad.as/juizcriminal O senhor se tornou juiz ainda com 23 anos. Como foi o começo da carreira? Eu comecei a trabalhar em Jardinópolis, na região de Ribeirão Preto. O início foi mesmo muito difícil. A rotina de um juiz recém-empossado é muito desgastante, porque além de não ter experiência na função você ainda tem de lidar com todas as matérias. E como em comarcas menores as varas são cumulativas, o juiz também concentra responsabilidades como a autoridade máxima do poder judiciário no local, o que ainda traz muitas tarefas administrativas. Eu trabalhava muito, levava processos para estudar em casa, me preparava para as audiências no dia anterior... Era bem puxado, chegava a trabalhar quinze horas por dia. O Conselho Nacional de Justiça tem hoje diversas iniciativas para prestar mais celeridade à prestação jurisdicional. O senhor falava do começo de sua carreira: acredita que o treinamento aos mais novos magistrados – e até aos mais velhos – é adequado para que consigam administrar bem suas varas e assim lidar com a multidão de processos? Eu achei muito boa a preparação que a Escola Paulista de Magistratura me ofereceu no começo da carreira. Pelo que eu tenho notícia, ainda melhorou muito. Como a aprovação no concurso pressupõe

o conhecimento de direito, o curso não tem nem tinha a pretensão de ensinar conteúdo jurídico e é focado em audiências simuladas, por exemplo, conduzidas por juízes experientes. Hoje ainda há cursos de gestão de recursos humanos e bastantes abordagens multidisciplinares. O senhor tem uma das varas mais céleres no fórum criminal. A diferença para a pauta de audiências, por exemplo, chega a um semestre em comparação com as mais lentas. A que o senhor atribui esse contraste? A realidade é que todas as varas estão sobrecarregadas, e algumas mais do que as outras por motivos diversos. Não podemos esquecer que o trabalho do juiz depende em muito do apoio dos demais servidores. Acho que muita coisa também está ligada ao ambiente de trabalho da vara, que é principalmente dirigida pelo escrivão, e até a características pessoais do juiz. O senhor já se sentiu pressionado com um caso em que a imprensa estava envolvida? Há alguns anos, um caso em que eu era responsável no DIPO teve bastante repercussão porque envolvia um jogador de futebol. Os repórteres descobriram o telefone da minha casa e ficavam me telefonando, porém não houve grandes problemas. Não atendia o telefone, nem concedi entrevistas. Nunca

falei à imprensa sobre processos que julgo. Acho que essa foi a melhor maneira de evitar a pressão. Hoje há muitas críticas à nossa política criminal e às escolhas legislativas para a resposta penal. Quem se interessa em ser juiz criminal deve estar preparado para se ver obrigado a tomar uma decisão de que discorda? Justamente o contrário. Nós temos hoje diversos mecanismos no direito que permitem – e exigem, eu diria – adequar a aplicação da lei à resposta mais justa. O exercício da magistratura criminal é tão gratificante, acredito, exatamente porque você pode decidir com a convicção de que está fazendo a coisa certa. Você é a pessoa responsável por julgar de maneira justa, e no direito penal o impacto da Justiça é ainda mais visível. O que o senhor recomendaria a quem quer saber se se sairia bem como juiz? Como disse, acho que o principal num juiz é o equilíbrio, a ponderação, a capacidade de ouvir. O juiz não pode ser alguém radical ou passional. Essas são o que eu considero características gerais do perfil de um magistrado. Minha principal recomendação aos estudantes em dúvida é que façam estágio nos mais diferentes setores e órgãos – na advocacia, na Ministério Público, na defensoria, na Justiça – para conhecer o cotidiano e escolher o que é melhor para si.

“Nova Biblioteca”: projeto começa a se tornar realidade DEBORAH NERY (183-12)

14

O projeto organizado pela comissão de bibliotecas atingiu a meta inicial de arrecadação para a primeira fase. Lançada na Semana de Recepção aos Calouros da turma 185, a iniciativa pretende reformar o Anexo IV, edifício na rua Senador Feijó que atualmente abriga boa parte das bibliotecas departamentais e a biblioteca circulante. O planejamento da renovação tem duas etapas. A primeira consiste em arrecadar recursos para a realização de um concurso nacional de arquitetura organizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), que selecionará o projeto arquitetônico a ser executado. Na segunda, que envolve a reforma propriamente dita, a comissão pretende se valer de benefícios de leis de incentivo para facilitar a captação. Nos últimos dias, a arrecadação da primeira fase atingiu sua meta inicial, de R$165 mil (o valor original de R$150 mil teve de ser atualizado). “O próximo passo é a realização do concurso de arquitetura, que vai observar as regras e prazos de um edital a ser preparado pelo IAB. Uma vez lançado, espera-se que tenhamos um projeto vencedor em cerca de 6 meses”, afirma o professor Diogo Coutinho (turma 170), que faz parte da comissão. Segundo o professor, “É difícil atribuir datas para essas etapas, mas, claro, queremos que os alunos da Faculdade possam usufruir de uma nova biblioteca o quanto antes”. A comissão já enviou ao IAB um documento preliminar, elaborado a partir de dados fornecidos por funcionários do Serviço de Biblioteca e Documentação (SBD), que expõe as necessidades do dia a dia da biblioteca e será utilizado pelo IAB

para estabelecer os parâmetros para o concurso. “Foi um grande esforço que revelou a boa vontade e o ânimo dos funcionários da Faculdade em relação à iniciativa”, afirma o professor Coutinho. Embora a meta para a primeira etapa do projeto já tenha sido alcançada, “mais doações são bem-vindas, pois elas vão ajudar na fase seguinte, que é a reforma”, explica o professor.

R$165.882,48 é o valor já arrecadado

Planos são divididos em duas etapas: 1ª Projeto Estimado em R$ 165 mil, concurso de arquitetura definirá o projeto de renovação do Anexo IV, com o dinheiro já arrecadado pela comissão desde o ano passado 2ª Obras Ainda sem valor estimado, reforma executará o projeto vencedor do concurso; comissão captar recursos com ajuda de leis de incentivo

Para entender

No começo de 2010, em um de seus últimos atos antes de assumir a reitoria, o então diretor João Grandino Rodas (138) determinou a transferência de grande parte do acervo das bibliotecas ao recém-adquirido prédio na rua Senador Feijó, que havia sido desapropriado pelo governo do Estado após seu pedido. A mudança foi muito criticada pelos estudantes e por professores, que questionaram a conveniência da medida e apontaram falta de cuidado no transporte e acondicionamento do acervo, guardado em caixas de papelão empilhadas por meses. O próprio prédio se tornou alvo de denúncias, depois que um vazamento pôs em risco os livros e provocou a ação do Ministério Público Federal, que conseguiu uma liminar para que os livros fossem transportados de volta à Faculdade. Parte do acervo foi transferido de volta, mas a situação do Anexo IV permanece basicamente a mesma, embora a administração central tenha realizado uma reforma estimada em R$300 mil no ano passado. O espaço para leitura é restrito, não há acesso à internet e os livros são emprestados para consulta em outro andar, porque não há sistema de segurança. Os quatro andares utilizados pela biblioteca têm de ser vencidos pelas escadas, porque os elevadores não funcionam. Constituída pelo diretor Antonio Magalhães em abril de 2010 e presidida desde então pelo professor Virgílio Afonso da Silva (164), a comissão de bibliotecas tem função consultiva.


//Memórias da São Francisco mostra histórias do Largo em jornais acadêmicos, reproduzidos com grafia original

Memórias da São Francisco FACVLDADE Em 1944, a diretoria do CA falava em batizar a recém-adquirida aeronave em homenagem a Clóvis Bevilacqua

///////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////////

Departamento de Sairão as notas? Plínio Sampaio 1950 aeronáutica 1944 "E agora, José?", n. 5, out.1950, p. 2, direção: Chopin T. Lima e Plínio de Arruda Sampaio "O Onze de Agosto", ano 41, 1944, p. 153-155 Durante a gestão de Haroldo Bueno Magno, o Departamento de Aeronáutica do Centro XI de Agosto, desenvolveu extraordinariamente o âmbito de suas atividades. Criado há cerca de quatro anos, êste Departamento se vem empenhando com afinco, no incremento da aviação no seio da classe acadêmica de São Paulo. Hoje, êle indubitavelmente assume uma posição de realce entre os universitários deste Estado e o trabalho que vem realizando em pról da aeronáutica civil, atrai para êste centro as vistas de todos aqueles que atualmente se interessam por esta brilhante atividade. Possui hoje o nosso Departamento de Aeronáutica, três aviões de treinamento que satisfazem perfeitamente tôdas as exigências de um curso de pilotagem. Os alunos deste Centro, que têm verdadeiro pendor pela aviação e que demonstram o seu gosto por essa arte, são primeiramente encaminhados ao treinamento de pré-solo na Universidade, após o qual submetem-se a um exame de sanidade feito na Base Aérea. Só depois dessas duas exigências é que o futuro piloto se inicia no vôo propriamente dito. [....] O aparelho que se vê acima é o Planalto, cujo batismo deverá ser realizado em dias próximos e é desejo deste Centro cognominá-lo "Clovis Bevilacqua", em homenagem ao grande jurisconsulto patrício que deu à nossa geração os mais proveitosos conhecimentos no campo da ciência e foi baluarte do direito, da justiça, e da liberdade em nossa pátria. +Mais Leia a íntegra: arcad.as/aeronautica1944

Queremos fazer uma pequena pergunta aos srs. professores, e ao sr. secretário: Por que demoram tanto as notas do 1º exame parcial? Se reclamamo-las do sr. secretário, quando conseguimos falar com S. S. [Sua Senhoria; talvez Sua Santidade, ironicamente] (o que não é fácil), recebemos sempre a mesma resposta: Os professores não entregaram as provas. Se falamos aos mestres, estes declaram ser culpa

"E agora, José", de Plinío Sampaio, 1950

//////////////////////////////////////////

da Secretaria. O que fazer? Achamos que a direção da casa deveria pôr um ponto final neste ping-pong, que se repete todos os anos. Em outras faculdades, as notas são publicadas no máximo 15 a 20 dias após o exame. Por que isto não é possível também na nossa Faculdade? O que há é muito descaso, negligência, da parte do corpo docente, por parte do pessoal administrativo, e também por parte de nós, alunos, que temos de reclamar do que temos direito. Nós não devemos pedir – mas exigir e reclamar que sejam respeitados os nossos direitos. Será que agora saem essas notas?

Enterro da múmia 1929 "O 11 de Agosto", set.1929, p. 107 Realizou-se no dia 5 de Junho às 15 horas, o sepultamento do corpo da preta Jacybtha, a "mumia" que durante cerca de 30 annos esteve na Faculdade de Direito, levada pelo professor de Medicina Publica, Dr. Amancio de Carvalho. Perante o enorme numero de academicos e populares, o padre Nicolau, superior da Ordem de S. Francisco, encommendou o corpo que se achava no caixão, numa das salas da Faculdade. O sepultamento foi feito em tumulo perpetuo, doado ao Centro Academico 11 de Agosto pela Prefeitura. Antes de baixar o corpo á ultima morada, fizeram-se ouvir varios oradores, entre elles o prof. Vicente Ferreira em noma da raça negra, o bacharelando Salamandré Sobrinho em nome dos estudantes, e outros. O "Centro Civico Palmares" fez-se representar por uma commissão.

15


MEU CANTO DO LARGO

\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\

O diretor Antonio Magalhães recebe seu "diploma de burro" como parte da matrícula, em 1965

Minha relação com o Largo e suas tradições é muito antiga e emocional. Isso porque na minha família, tanto pelo lado paterno quanto pelo materno, houve muitos franciscanos. Meu bisavô foi da turma de 1862 e esse fato era muito valorizado em nossa casa; muitos tios e primos mais velhos também passaram pelas Arcadas e com eles, desde criança, ouvia relatos sobre a vida acadêmica, na maioria relacionados a episódios de irreverência e de fino humor, que caracterizam o verdadeiro espírito franciscano. Nessa fase, eu já “namorava” a Velha Academia, ainda sem saber se seria correspondido. Aos 19 anos passei no vestibular e adquiri o direito de transitar livremente pelo seu território – ius pascendi, zurriendi atque vacandi per Scola, sine bronca veteranorum -, como atesta o meu “diploma de burro” recebido na Sala dos Estudantes, em 1965. Era um tempo politicamente difícil, bastando lembrar que nesse ano participei da última “peruada”, logo depois proibida pelo regime autoritário. Mas havia muita esperança e disposição de resistência aos desmandos do poder, como sugerem as canções da época: Carcará, Caminhando, Apesar de você e outras; vibrava-se também com o jornalismo sutil e galhofeiro do Pasquim, capaz de iludir, muitas vezes, a censura oficial.

Nas aulas de graduação, confesso que fui pouco assíduo, compensando as faltas com redobrado esforço nos exames finais, especialmente nas terríveis provas orais, então obrigatórias e fatais em alguns casos. Também aprendi muito – certamente com mais disposição e alegria –, no estágio no DJ, realizado apenas no quinto ano, mas que foi fundamental para a futura carreira no Ministério Público. Voltei ao Largo em 1975, para a pós-graduação. No mestrado, tive como orientador Canuto Mendes de Almeida, franciscano dos mais autênticos, que aliava sua grande cultura jurídica a reconhecidos dotes artísticos – como músico e cineasta –, em cujas aulas podiam conviver perfeitamente a doutrina de Chiovenda e Carnelutti com as letras dos sambas de Noel Rosa, das quais o mestre extraia lições claras e precisas de processo penal. No doutorado, fui orientado por Ada Pellegrini Grinover, jurista que se caracteriza pelo rigor nas elaborações científicas e no enfrentamento dos desafios mais atuais do processo, mas sem deixar de lado a vocação literária, como memorialista festejada e autora até de um romance policial, por isso justamente acolhida pela Academia Paulista de Letras. Mas a minha ligação mais intensa com a Faculdade ocorreu a partir de 1984 (por sinal, o ano em que voltou a tradicional “peruada”), quando fui admitido como professor-assistente do Departamento de Direito Processual. Submetido a sucessivos

e difíceis concursos, cheguei a professor titular de processo penal em 2001. Mas, de todos os títulos obtidos ao longo desse percurso, os que mais me emocionaram foram aqueles conferidos pela generosa amizade dos meus alunos, que seis vezes me honraram com a escolha para paraninfo de suas turmas (1991, 1994, 1996, 2000, 2003 e 2006). Não bastasse tudo isso, o destino e, principalmente, a benevolência dos meus amigos professores, funcionários e estudantes, fizeram com que fosse indicado para a diretoria da Escola, em 2010, honraria sem tamanho. São notórias as dificuldades inerentes ao exercício dessa função, no meu caso foram particularmente agravadas por bem conhecidas questões, ainda não completamente resolvidas. Em compensação, o decidido apoio e a compreensão recebidos da comunidade acadêmica têm superado, com grande vantagem, os eventuais dissabores. Tem valido a pena. * diretor da Faculdade, é professor titular de processo penal. Foi procurador de Justiça em SP

MARCOS SANTOS / USP IMAGENS

ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO* (TURMA 139)

16

XAXÁ/ARQUIVO PESSOAL

Meu "diploma de burro"


rentes de justiça. Tenham em mente que, naquela época, não recebíamos um tostão para estagiar no Jurídico. Ao contrário, pagávamos, nós mesmos, uma mensalidade para manter o Jurídico funcionando, além das passagens de ônibus para os mais diversos fóruns, delegacias de polícia, tribunais, e tudo em uma época em que computadores eram

Firmar a ideia da existência de direitos fundamentais irrevogáveis, e lutar, dentro e fora da Administração Pública, pelo respeito e preservação desses direitos. Direito a não ser torturado. Direito ao contraditório e à ampla defesa. Direito a um juízo justo. Direito a conhecer seus direitos. Direito a não ser humilhado, a cumprir pena em condições

MARCOS SANTOS / USP IMAGENS

compatíveis com a dignidade de qualquer ser humano. Isso se aprende na escola. Isso se aprende no estágio. Isso se aprende na vida. E isso se leva por toda a vida. A vida continua a dar voltas, e num momento seguinte me vi magistrada. Nomeada desembargadora federal em 1995, creio poder dizer que levei comigo, para a magistratura, a jurista que aprendi a ser. Nunca busquei em minha vida outra coisa que não fosse a Justiça. Repito: a jurista que fui, e que sou ainda, aprendi a ser na escola, no estágio, no exercício de minhas funções. Hoje sou juíza do Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia, na Holanda. A despeito de conviver com magistrados formados em diversas culturas distintas, continuo a atuar exclusivamente de acordo com os princípios que adotei ao longo de toda a minha vida. Acredito que a coerência na atuação profissional é fundamental para viabilizar o efetivo exercício da justiça. Eu escrevi minha história a partir de meu ingresso nas Arcadas, eu estabeleci os princípios pelos quais iria lutar a partir de meu aprendizado no Jurídico, e passei minha vida profissional como advogada, como membro de Ministério Público e como Magistrada sendo fiel a meus princípios. Minha intenção, o que me faz escrever estas palavras e dirigi-las especialmente aos calouros de 2013 da minha velha e sempre nova Academia, é a de fazê-los ver que nossa história de vida começa aí, onde vocês estão agora. O que o futuro reserva a cada um de vocês é uma incógnita, mas agir de acordo com os mais elevados padrões éticos e sempre no interesse de fazer prevalecer a Justiça é o comportamento que certamente os levará à plena realização profissional e pessoal. Espero, de todo meu coração, que dentre vocês, calouros de 2013, surjam os novos advogados, promotores, procuradores, delegados de polícia, funcionários públicos, magistrados, professores, profissionais de quaisquer áreas, que tenham a ética como seu bem maior, o ideal de Justiça como seu verdadeiro guia, e a fidelidade aos princípios que governam uma sociedade justa e democrática como seu maior compromisso de vida. * juíza do Tribunal Penal Internacional, foi advogada, membro do Ministério Público Federal e desembargadora federal

MEU CANTO DO LARGO

Antes de mais nada, quero dar as boas-vindas aos calouros de 2013. Quero dizer que neste momento vocês começam a escrever a história de suas vidas profissionais, e que o final depende essencialmente de vocês mesmos, os protagonistas. Vou me apresentar, e contar um pouco de minha história, essa história que comecei a escrever no meu primeiro dia de São Francisco. Sou Sylvia Steiner, formada em 1977, da Turma do Sesquicentenário da nossa Faculdade. Nossa Turma teve como patrono o senador Paulo Brossard, então um dos mais combativos políticos em um Congresso ainda manietado pelas forças da ditadura militar. Tive o privilégio de, naquele mesmo ano de 1977, estar presente, no páteo das Arcadas, na leitura da Carta aos Brasileiros, pela potente e eloquente voz do emérito e inesquecível Professor Goffredo da Silva Telles Junior. Antes disso, ainda quando aluna do terceiro ano, ingressei como estagiária no Jurídico do XI de Agosto. Essa foi minha maior e mais importante escola. No Jurídico, aprendi a indignar-me contra a injustiça. Aprendi a aplicar o que aprendia em classe aos casos criminais de que cuidava, prestando assistência jurídica àqueles mais pobres e ca-

equipamentos de ficção científica. Depois de formada, quando fui chamada a trabalhar com nosso antigo professor e depois Diretor da Faculdade, Dr. Antonio Junqueira de Azevedo – nosso Junqueirinha - levei comigo os casos que havia iniciado no Jurídico, para que nenhum de « meus » réus ficasse desassistido. A vida então dá voltas, e deixei a advocacia alguns anos depois para iniciar minha carreira no Ministério Público Federal. Durante treze anos me dediquei a exercer minhas funções como autêntico custos legis. Minha formação, trazida da Academia e posta em prática no Jurídico, não me permitia esquecer que a principal função constitucional do Ministério Público é a de ser o fiscal da lei. Titular da ação penal, sim. Mas antes de tudo, e acima de tudo, o titular da ação penal que exerce suas funções com a Constituição aberta à sua frente, especialmente no capítulo relativo aos direitos e garantias individuais descritos, antes de 1988, no artigo 153 e, após 1988, no artigo 5° de nossa Constituição. Ao mesmo tempo, a militância em organizações não governamentais de proteção aos direitos fundamentais me parecia essencial, em tudo que não fosse incompatível com minhas específicas funções junto ao MPF. Conhecer os fatos pelo olhar do Estado, e conhecer os fatos pelo olhar do particular.

SYLVIA HELENA F. STEINER* (TURMA 146)

COALITION FOR THE ICC (CC)

A história começa agora

17


Os editores deste jornal apelam para a minha memória, coisa que não funciona nem com embargos infringentes. Embargos de terceiros, como esses, dos editores, talvez deem resultado. Pedem que eu me lembre de lugares, de ocasiões, de acontecidos, idos que, pensando melhor, eu gostaria de esquecer. “O humano esquece”, ensinou um psicanalista francês. Mas nem tudo pode, ou, mais precisamente, nem tudo deve ser esquecido. Às vezes deses-

KARIN NAOMI / JA

MEU CANTO DO LARGO

EUGÊNIO BUCCI* (TURMA 151)

quecer é um imperativo político, pois o esquecimento acoberta a infâmia e a infâmia a gente não sepulta: a gente esclarece e supera. Eis que temos a Comissão da Verdade, encarregada de fazer com que o país se lembre daquilo que os torturadores e as autoridades da ditadura militar, as que ainda restam, tentam fazer com que esqueçamos. Outras vezes, desesquecer não é necessário. Nem mesmo é viável. Como quando a namorada nos abandona e a gente inventa (para a gente mesmo) uma história falsa para estancar o san-

Foi lá que vi Andréa de mais quatro corujas (estas, de pedra). Quanto a Andréa, não era de pedra. Definitivamente. No Salão Nobre, que ficava escuro e morno durante o dia, fui passear uma vez com uma visitante ilustre que não se comoveu com as reivindicações namoratícias que calculadamente apresentei a ela. Há por todos os departamentos desta escola uma pandemia de donjuanismo togado, empolado e de péssima qualidade. Não me filiei a essa corrente, mas fui igualmente ridículo. As reuniões de célula nós instalávamos em salas menores, vazias, aleatórias, que só não eram piores do que as reuniões ampliadas, estas em salas grandes, nas quais apareciam os luminares da Refazendo nos chamando de “companheiro”, com suas conclamações ao juízo, à responsabilidade, à consciência de classe. Operária, por certo. As meninas iam às assembleias na Vila Euclides para ver operários de perto e tinham uma consciência danada desse negócio aí. Os militantes do PC do B, olhar frio como bigorna ao relento, falavam em conscientizar as massas. No Centro Acadêmico, numa noite de desterro

Lembranças e esquecimentos: namoros e lutas que Eugenio Bucci viveu no Largo gramento (“eu é que não queria mais”, a gente se engana). Nesses casos, melhor é o refúgio que o autoengano retroativo nos proporciona. Não sei, agora, como irão se comportar as lembranças que carrego – mesmo que sem saber. Escrevo antes de pensar a respeito. Um lugar na São Francisco? Que lugar eu citaria? De saída, dois. O primeiro, os bancos recurvados, côncavos, que ficam bem embaixo da escada. Um à direita, outro à esquerda. Quando estudante, usei muito os dois espaços: dependendo da natureza da reunião, ficávamos de um lado ou do outro – não do muro, mas da escada. O outro eram as cortinas de veludo bordô da sala do diretor da escola. Mas esse há de esperar um pouco mais. Antes, vou lembrar o departamento feminino: explodimos com ele. Não havia razões fisiológicas que justificassem salões à parte para o sexo feminino. Ainda existe isso? Lembro também do túmulo do Julius Frank.

espiritual, um radioso trotskista fez xixi na água que, no dia seguinte, esquentaria o bandejão dos estudantes. Lavou-se a tempo. No cofre da sala da presidência do XI, o mesmo revolucionário escondeu, dentro de um envelope, a lista das calouras que ele se encarregaria de namorar ao longo do ano. Bolchevique que era, não cumpriu nenhum dos objetivos traçados, deixando as moças seguirem, indeléveis, invictas e céleres, para o fórum mal-assombrado, infinito e sombrio, que elas acreditavam ser o futuro. Uma tarde, um dia depois da derrota da emenda Dante de Oliveira no Congresso Nacional, em 1984, quando nós acreditávamos que o Brasil conquistaria as eleições diretas – e não tinha conquistado coisa nenhuma–, convocamos um ato público no território livre, em frente à Faculdade. A polícia democrática de Franco Montoro chegou arrebentando, distribuindo cacetadas democráticas. Prenderam o Flavinho Strauss por algumas horas. Na hora, eu estava lá em cima da tribuna, ridículo, como de costume, e os funcionários da escola saíram correndo das Arcadas para me buscar. Conseguiram. Me levaram para o primeiro andar, numa tremenda correria, e me esconderam atrás das cortinas da sala do diretor que, naquela ocasião, era o Xandoca. Fiquei ali uns cinco minutos. Diziam que o Xandoca era de extrema direita. O que eu sei é que ele me escondeu da polícia e desceu depois para fazer discurso contra a invasão da faculdade. No dia seguinte, o então secretário da segurança, Michel Temer, foi à escola nos pedir desculpas. Hoje o homem é o vice-presidente da República e de algumas coisas, afirmo com absoluto apoio de minha memória, eu me esqueci apaixonadamente. * professor doutor da Escola de Comunicações e Artes da USP, foi presidente do XI (1984); é colunista de O Estado de São Paulo e Época

LINDOMAR CRUZ / AG. BRASIL

18

Embaixo da escada, atrás dos muros


Estudantes fazendo história J FREITAS / AGÊNCIA BRASIL

trar cursos, eu tinha gregação, assim como os examinadores, sentisido designado para ram o peso do controle pelos estudantes. Fiquei lecionar somente sabendo, então, que muitos estudantes estavam no curso noturno, no andar superior do Salão Nobre munidos de naturalmente poruma grande quantidade de marmelada, que seque se considerava ria atirada na banca examinadora se ela declaque isso era menos rasse vencedor o meu concorrente. grave porque os aluIsso não aconteceu, porque a maioria dos nos do noturno geralexaminadores me deu a vitória, que foi intensamente eram de origem somente aplaudida e celebrada pelos estudantes. cial mais modesta e não iriam Assim, uma vez mais e de modo muito especial ocupar posições de mando na sociedade. os estudantes das Arcadas participaram ativaComo havia muito poucos juristas demente de um momento crítico da vida da Faculdicados à teoria do Estado e eu era o único livredade e, por mais esse meio, deixaram marcada -docente da matéria no Largo de São Francisco, sua participação ativa na história da Faculdade foi aberto o concurso para professor titular e de Direito do Largo de São Francisco. quase no final do prazo para inscrições de candidatos só eu estava inscrito, o que preocupou muito os que me detestavam, pois seria difícil * professor emérito da Faculdade, foi minha reprovação. Por esse motivo foi realizaprofessor titular no departamento de Estado do um trabalho para que um velho professor e diretor (1986-1990); sua atuação em de introdução à ciência do direito da Pontifícia defesa dos direitos humanos foi reconhecida Universidade Católica de São Paulo se inscreda UNESCO, que lhe tornou professor vesse. Como ele não tinha a livre-docência, que catedrático em Educação para a paz, direitos era requisito legal para a inscrição, improvisouhumanos , democracia e tolerância -se um concurso para a livre-docência no qual ele foi candidato único, sendo aprovado. Os estudantes, que gostaO então estudante Dalmo Dallari discursa pelo Partido Acadêmico Libertador, em 1957 /////////////////////////////////////////////////////////////////////////////// vam de minhas aulas e me consideravam um bom professor, estavam informados das resistências ao meu nome e das manobras da diretoria e da Congregação da Faculdade. E os estudantes decidiram mobilizar-se para fiscalizar o concurso e impedir uma fraude, pois tinham conhecimento de que meu concorrente era muito fraco e só mediante fraude poderia vencer o concurso. O que se viu então foi o Salão Nobre da Faculdade completamente lotado pelos estudantes, que não arredaram pé e acompanharam atentamente cada passo do concurso, tendo assim a comprovação pública de minha superioridade em relação ao outro candidato e por isso não admitiam minha derrota. Isso nunca tinha ocorrido antes e certamente a direção da Faculdade e os membros da Con-

ARQUIVO PESSOAL

Em muitas ocasiões os estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco tiveram participação importante em movimentos que exerceram grande influência na história política e social do Brasil. Essa participação está registrada em obras que tratam de aspectos da história basileira, assim como em discursos e conferências nos quais aquela participação foi referida, como também em notícias e comentários divulgados pela imprensa. Mas existe um aspecto da participação dos estudantes das Arcadas franciscanas na definição dos rumos da história da qual pouco se fala e sobre o qual existem discretos registros, que é a participação dos estudantes em movimentos importantes para o encaminhamento da história interna da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, com repercussões na postura política das Arcadas. Para registro da história e pelo reconhecimento do importante papel desempenhado pelos estudantes vou fazer aqui o registro de uma dessas participações, relatando episódio no qual tive participação relevante e que por isso conheço bem, podendo dar meu testemunho. Os fatos que vou relatar foram públicos e ocorreram no ano de 1972. Naquela ocasião foi realizado concurso, dentro das formalidades legais, para preenchimento da vaga de professor titular de teoria geral do Estado, resultante da aposentadoria do então intitulado catedrático de teoria geral do Estado, Professor Ataliba Nogueira. No ano de 1963, eu obtivera aprovação em concurso para professor livre-docente de teoria geral do Estado e logo em seguida comecei a desempenhar atividade docente. Analisando, à luz dos princípios e das normas de teoria geral do Estado, os acontecimentos políticos brasileiros e o governo então estabelecido, eu esclarecia os alunos que a tomada do poder em 1964, por um dispositivo comandado pelos militares e apoiado por grupos empresariais, configurava um golpe de Estado e não uma revolução como pretendiam os líderes daquele movimento. E acrescentava que o general de Exército que ocupava a presidência da República por imposição daquelas lideranças era, teoricamente, um ditador e não um presidente da República. Essas questões interessavam muito aos estudantes, que se mostravam esclarecidos e satisfeitos com os meus ensinamentos. Entretanto, por causa dessas digressões teóricas eu era detestado pela maioria da Congregação da Faculdade, sendo oportuno lembrar que professores catedráticos do Largo de São Francisco haviam apoiado a implantação da ditadura e alguns deles mantinham estreito relacionamento com o governo ditatorial, chegando a ocupar o cargo de Ministro daquele governo. Em represália, eu havia sido proibido de dar aulas, mas, tendo reagido à proibição com base em preceitos do regimento geral da Universidade de São Paulo, que conferiam ao livre-docente o direito de minis-

MEU CANTO DO LARGO

DALMO DE ABREU DALLARI * (TURMA 127)

19


A construção de uma carreira

20

Formada em 1957, nos bancos escolares a que vocês ora acedem, esperei quase 10 anos para iniciar meu mestrado, aguardando que meu filho crescesse um pouco. No início de 1972, já doutora, fui convidada por Celso Neves para ser sua assistente nas aulas de pós-graduação de direito processual civil da USP. No mesmo ano, por convite do professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ministrei um seminário de direito constitucional na PUC. Comecei a frequentar a Academia Paulista de Direito, à qual me associaria mais tarde. Presenciei um histórico Congresso sobre a interpretação do projeto do novo Código de Processo Civil, em Curitiba, ao qual compareceu o autor do anteprojeto, Alfredo Buzaid, e todos os maiorais do direito processual. E o mais interessante foi que tanto eu como Cândido Dinamarco, ainda iniciantes e recém-doutorados, ganhamos espaço para nos manifestarmos e participarmos. Em 2009, recebi homenagem da Pró-Reitoria de pós-graduação da USP porque se descobriu que minha tese tinha sido a primeira a ser apresentada e defendida, em toda a Universidade, segundo o novo regime do doutoramento. Em abril de 1973, Cândido e eu prestamos juntos o exame para livre-docentes. E juntos preparamos os pontos para as provas escrita e didática. Ambos fomos aprovados, sendo que eu, na média final, fiquei alguns décimos à frente de Cândido. Como livres-docentes, Cândido e eu demos algumas aulas substituindo outros professores, como Tomás Pará Filho e Geraldo Ulhoa Cintra. Durante a preparação para o concurso, Ada e Cândido haviam estudado a fundo o projeto de Código de Processo Civil, de modo que quando este entrou em vigor, em dezembro de 1973 – enquanto todos apostavam na prorrogação da vacatio legis - os dois novos livres-docentes eram os mais preparados para aulas e palestras sobre o novo código. Começava uma série de viagens por todo o Brasil, tomado de surpresa pelo novo Código. Goiânia, Brasília, Salvador, Aracaju, Uberlândia, Rio Branco, Jundiaí, Santos, Bauru, Jahú, Campinas, foram só alguns dos destinos das viagens. Ainda em 1974, mantida a assistência a Celso Neves na pós-graduação de processo civil, iniciei a lecionar, com Anna Cândida da Cunha Ferraz, a nova disciplina de pós, “liberdades públicas”, credenciada por Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Enquanto isso, aprofundei os contatos com a Universidade de Milão, a começar por Enrico Tullio Liebman, um ícone do direito processual em São Paulo, e dos professores que o sucederam após sua volta à Itália: Giuseppe Tarzia e Edoardo Ricci. E, numa de suas visitas a Liebman, este me convidou para preparar as notas de adaptação ao direito brasileiro vigente da segunda edição de seu volume, “Estudos sobre o

processo civil brasileiro”, traduzido por Alfredo Buquase 10 anos mais velho, só havia nesse tempo uma zaid. O que foi feito. professora titular na Faculdade, Nair Lemos GonçalA partir da livre-docência, criei uma linha própria ves, de direito do trabalho que, aliás, exercia o cargo de pesquisa, voltada ao direito processual e ao direide vice-diretora e era brasileira nata, enquanto eu era to constitucional. A tese de livre-docência fora sobre naturalizada. Mas sabia que poderia produzir uma “As garantias constitucionais do direito de ação”. Era tese melhor: tinha ficado em Pavia, com Mario Pisauma época em que no Brasil faltavam estudos constini, por dois meses, pesquisando a respeito de provas tucionais sobre o processo, exceção feita aos Mestres ilícitas e interceptações telefônicas – temas novos João Mendes Junior e José Frederico Marques. Mas para o sistema brasileiro, que só seriam disciplinaninguém mais falava em devido processo legal e a dos pela Constituição de 1988. O que existia no orjurisprudência da época era completamente omissa. denamento pátrio eram apenas princípios gerais do Dediquei-me com afinco ao filão do direito procesdireito e a Lei de Telecomunicações. Intitulei a tese sual constitucional, e daí foi fácil passar mais tarde “Liberdades Públicas e Processo Penal: as interceppara o processo penal, que já foi conceituado como tações telefônicas”, baseando-me na teoria constitu“direito constitucional aplicado”. cional, no direito comparado e no pouco que havia Daí porque, após obter o título de professor adjunno direito positivo brasileiro. A tese de Tucci tratava to de direito processual, concorri ao título de profesdo corpo do delito, sobretudo do ponto de vista hissor adjunto de direito do Estado. Neste departamentórico e do direito positivo, sem um capítulo sequer to, a vaga seria disputada por Ignácio da Silva Telles, de direito comparado. Mas quando eu já me regozijairmão de Goffredo. Mas resolvi enfrentar o desafio, va com a superioridade de sua tese, estourou a bommuito embora alguém sustentasse não ser possível ba: Tucci impugnou minha inscrição, acusando-me ter dois títulos de professor adjunto. Mas nada na de plágio. legislação universitária o impedia. Tinha mais títulos do que o concorren[...] é cego o jurista que só conhece as te e ganhei. À época já leis, o jurista que não se preocupa com contava com diversos a visão abrangente do direito, que não livros publicados: se sensibiliza com a realidade social e “Ação declaratória incidental”, tese de política e com os valores fundamentais doutoramento; “As do corpo social, que se divorcia dos garantias constitufatos e do dever-ser [...] cionais do direito de ação”, tese de O fato é que na tese eu transcrevia o pensamento livre-docência; “Lide diversos autores estrangeiros, sobretudo italianos, berdades Públicas mencionando sempre o nome do autor e indicando - Parte Geral”, em coo trabalho, em constantes notas de rodapé. Mas as laboração com Manoel transcrições não vinham entre aspas. O certo é que, Gonçalves Ferreira Filho e com aspas ou sem aspas, o pensamento alheio era Anna Cândida da Cunha Fersempre claramente referido nas notas. raz; “Os princípios constitucionais e A impugnação de Tucci foi relatada na Congreo CPC”; “As condições da ação penal”; “A nova lei gação por José Ignácio Botelho de Mesquita, que processual penal”; as notas de adaptação ao direito acolheu as acusações de plágio e se manifestou conbrasileiro vigente dos “Estudos sobre o processo civil trariamente à minha inscrição, Na sessão da Conbrasileiro” de Enrico Tullio Liebman. Tinha ganho o gregação, José Afonso da Silva pediu vista dos autos. Prêmio Procuradoria Geral do Estado com a monoOuça-se José Afonso: grafia “Eficácia e autoridade da sentença penal”, presOutro concurso tumultuado foi o que Ada Pellegrini Grinotes a ser publicada. Estava preparando meu primeiro ver disputou para o cargo de Professor Titular de Direito Prolivro de estudos e pareceres, “O processo em sua unicessual Penal, com a tese Liberdades Públicas e Processo Penal: dade”. Tinha dezenas de artigos publicados. Dois tíAs Interceptações Telefônicas. Seu concorrente, Rogério Lauria tulos de professor adjunto, por dois departamentos. Tucci, esquadrinhou-Ihe a monografia frase por frase, palavra Estava pronta para o concurso de titular. Mas esta é por palavra, para provar a existência de plágio e o denunciou outra história. à Congregação. Para tanto, marcou textos, e mais textos, em Abertas as inscrições para provimento do cargo confronto com textos de autores italianos, especialmente, para de professor titular de direito processual penal, na demonstrar o decalque. Formado o processo para apreciação vaga por aposentadoria de Joaquim Canuto Mendes da imputação, foi ele submetido à Congregação. Iniciada a de Almeida, em maio de 1978, inscreveram-se ao discussão, pedi vista para examinar a matéria com mais proconcurso Rogério Lauria Tucci e Ada Pellegrini Grifundidade, já que se tratava de uma acusação muito séria sobre nover. Tucci regia a disciplina de processo penal há uma professora que eu conhecia desde os bancos escolares, por anos, enquanto Ada sempre dera aulas de processo ser minha colega de turma, e sabia de sua honestidade inteleccivil e só no último semestre havia começado a reger tual. Examinei com cuidado sua tese como a tese do concorrena turma noturna de processo penal. Antes, só eventute. Encontrei defeitos técnicos em ambas, mas não vislumbrei almente, a convite do Mestre Canuto, eu havia dado plágio, até porque os autores tidos como plagiados estavam algumas aulas de processo penal. Ademais, Tucci era referenciados na monografia. Meu parecer, lido na sessão da DIVULGAÇÃO/ESCOLAPAULISTADEDIREITO

MEU CANTO DO LARGO

ADA PELLEGRINI GRINOVER* (TURMA 128)

"


de Direito de São Paulo – e consegui declarações de então a aprofundar-me no estudo dos interesses difuMassimo Nobili, Luigi Paolo Comoglio, Mario Pisasos e coletivos, tendo tido a oportunidade de elaborar ni, Mario Chiavario e outros, todas unânimes, afiranteprojetos de lei – transformados na lei da Ação mando que não se sentiam minimamente plagiados Civil Pública e na parte processual do Código de e que estavam muito satisfeitos com o conhecimenDefesa do Consumidor – para os quais contei com a to de suas obras pela autora, que a partir delas tinha parceria inestimável de Kazuo Watanabe – outro imconstruído um trabalho pioneiro, criativo e original. portante parceiro de caminhada –, que continua até Consultei, também, uma hoje produzindo, comigo, pesquisas e anteprojetos prestigiosa especialista italiana de lei sobre meios alternativos de solução de conflitos em direito autoral, Zara Ale controle jurisdicional gardi, autora da monografia Atuem como verdadeiros engenheiros de políticas públicas. “Il plagio letterario”, que, sociais, situados na realidade e com ela Ambos fomos apoexaminando a tese, deu um interagindo, de maneira a melhorá-la. sentados compulsoparecer conclusivo pela ineriamente, mas ambos xistência de plágio no caso Assumam, aqui e agora, o compromisso continuamos profundada transformação com todo o vigor da mente envolvidos com concreto. Finalmente, a Congrega- juventude, que ainda é capaz de escan- a docência e a pesquisa. ção, meses depois, por 19 Chegamos ao fim dalizar-se e revoltar-se e, a partir daí, desse relato, do qual se votos a 5, decidiu que sobre de construir um futuro melhor. podem extrair algumas o plágio só poderia se manifestar, em reunião prévia, a conclusões: perseveComissão Examinadora. Tucci recorreu, primeiro ao rança, estudo, leituras, lutas, dedicação. São essas as Conselho Universitário, depois ao Conselho Estadumensagens que posso extrair de minha vida profissioal de Educação, mas foi vencido. nal, para vocês, calouros. E faço votos que de minha No calendário das provas, que começaram a 18 de experiência e de minhas obras vocês possam tirar um agosto de 1980 – mais de dois anos durou a verdavoto que lhes formulo. deira via crucis da candidata – foi prevista a reunião Que minhas idéias possam contribuir para moldar prévia da Comissão Examinadora, que julgou não suas personalidades, para conscientizá-los de que é haver plágio e deu início ao concurso, com a arguição cego o jurista que só conhece as leis, o jurista que não de Rogério Lauria Tucci. No dia seguinte, destinado se preocupa com a visão abrangente do direito, que à arguição da candidata, a Folha de São Paulo trazia não se sensibiliza com a realidade social e política e uma manchete: “Plágio sacode as Arcadas”. A família com os valores fundamentais do corpo social, que se não deixou que eu visse o jornal. divorcia dos fatos e do dever-ser, que não enxerga os Consegui notas melhores em todas as provas, com aspectos sociopolíticos de cada disciplina do direito, exceção das notas de Adhemar Raimundo da Silva, desde a mais técnica até a mais abstrata. que deixou os dois candidatos empatados. No desemTenho certeza de que, durante todo o curso, sabepate, porém, Adhemar, seguindo os demais membros rão fazer tesouro desse enfoque do direito para, oporda banca, me indicou, tendo eu assim as cinco indicatunamente, atuar como profissionais junto à socieções. Minha média final foi 9,3 e a de Tucci, 8,9. dade que os aguarda. Toda decisão jurídica importa Mas ainda faltava a homologação do resultado do numa escolha ideológica e valorativa, revestindo-se concurso pela Congregação, que veio a 2 de setembro, por isso de significado político. Desconfiem do propor 12 votos a 8. A nomeação para o cargo ocorreu a fissional que se proclama neutro, pois o verdadeiro primeiro de outubro. E a nova titular se perguntou, jurista está sempre comprometido com seus ideais, e com toda a sinceridade, se realmente tudo isso tinha estes devem refletir as aspirações da própria sociedavalido a pena. Aparentemente, nada mudava em sua de. Atuem como verdadeiros engenheiros sociais, sivida acadêmica, com exceção das turmas da manhã tuados na realidade e com ela interagindo, de maneira de processo penal, que lhe foram atribuídas. a melhorá-la. Assumam, aqui e agora, o compromisso Ledo engano: assumi a orientação de diversos pósda transformação com todo o vigor da juventude, que -graduandos, antes orientados por Mestre Canuto, ainda é capaz de escandalizar-se e revoltar-se e, a parque me escolheram. Dentre eles, os doutorandos tir daí, de construir um futuro melhor. Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio ScaranAssim poderão se preparar para ocupar seu lugar ce Fernandes, estudiosos de escol, que se tornariam de operadores jurídicos, em todas as profissões que meus companheiros na publicação de obras de proabraçarem. Este não é mais o país dos bacharéis, nem cesso penal e com quem dividiria as aulas, inclusive pode voltar a sê-lo, no antigo conceito de causídico de pós-graduação. Criou-se, assim, na Faculdade uma ou de técnico do direito. Afinal foi a própria tecnoverdadeira escola de processo penal, de raízes emicracia, agora representada por outras profissões, que nentemente constitucionais e garantistas, que se esnos afastou dos centros de decisão e de poder. Mas o praiou por todo o Brasil, resgatando finalmente a gata espaço perdido há de ser preenchido por uma nova borralheira do direito processual. E, graças a essa esleva de operadores jurídicos, sensíveis e preparados cola, foram despontando nas Arcadas os novos talenpara os desafios do terceiro milênio. Busquem a motos: Gustavo Badaró, Maria Theresa de Assis Moura, dernidade, não só instrumental como de mentalidaMaurício Zanóide de Moraes, Marcos Zilli e tantos de. Tenham orgulho do mister que vão desempenhar, outros que hoje elevam o ensino/aprendizagem do valorizem-se, sintam que o país precisa de vocês. Há processo penal, ao lado dos novos professores titulatodo um mundo à sua espera. res – Magalhães e Scarance. * professora titular aposentada do departamento de Mas a conquista da titularidade permitiu sobretuprocesso, é autora de importantes livros no assunto; do que eu me dedicasse de corpo e alma a minhas liseus trabalhos lhe levaram a ocupar posições de nhas de pesquisa, que haviam começado com a teoria destaque em comissões de reforma legislativa geral do processo e o processo constitucional: passei

"

MEU CANTO DO LARGO

Congregação, concluía pela inexistência de plágio e, pois, pela aceitação do pedido de inscrição. Fui apoiado expressamente por Fabio Konder Comparado, Dalmo de Abreu Dallari e outros, tendo a Congregação aprovado meu parecer com a recusa da imputação. Lauria Tucci não se conformou e recorreu ao Conselho Universitário, mas aí também não teve êxito. Além disso, a acusada juntou correspondência daqueles autores que, segundo a imputação, tiveram suas obras plagiadas, os quais não encontraram fundamento na acusação. Mas o problema não estava definitivamente julgado, porque, em tais casos, cabe à banca examinadora, em reunião preliminar, decidir da existência ou não de plágio. A reunião concluiu pela inexistência de plágio e, no mérito, decidiram o concurso em favor da acusada” (A Faculdade e meu itinerário constitucional, São Paulo, Malheiros Editores, 2007, p. 605) Essas palavras concisas retratam a realidade dos fatos. Mas não o meu sofrimento. Tucci distribuiu textos e mais textos da tese, em comparação com os textos estrangeiros, em verdadeiros “pacotes” que chegaram a todos os rincões do mundo jurídico brasileiro: não só aos membros da Comissão Examinadora (Alfredo Buzaid, Celso Neves, Romeu Pires de Campos Barros, Francisco Manoel Xavier de Albuquerque, Adhemar Raimundo da Silva) mas aos professores de todas as faculdades do Brasil, membros da magistratura, incluindo todos os ministros do Supremo Tribunal Federal, advogados dos mais respeitados, membros do Ministério Público. Não houve quem não ficasse a par do “plágio”. Eu era atacada publicamente em minha honra e naquilo que é o bem mais precioso para um professor: a honestidade intelectual. Muitos ficaram em dúvida, mas outros tantos perceberam que no máximo se podia imputar à autora uma falha técnica (a tal ausência de aspas), nunca o elemento subjetivo do plágio. Cândido Dinamarco, Odete Medauar, Anna Cândida da Cunha Ferraz e Manoel Gonçalves Ferreira Filho ficaram constantemente a seu lado, e Cândido me ajudou na preparação da resposta à impugnação. Recebi manifestações de solidariedade de muitos docentes de fora, que se apressaram a me convidar para ministrar palestras e conferências nas respectivas instituições. Galeno Lacerda e Alcides Mendonça Lima, no Rio Grande do Sul, Calmon de Passos, na Bahia, Nilzardo Carneiro Leão, em Pernambuco, foram os docentes mais representativos que me deram apoio convidando-me para palestras e conferências. As Arcadas racharam-se em duas partes: pró e contra a acusada. Muito pesaram na definição de posições a amizade pessoal, os vínculos acadêmicos, as simpatias e antipatias, os preconceitos. O trabalho de preparação dos “pacotes” foi executado, às claras, pelo concorrente e por seu filho, José Rogério Cruz e Tucci, bem como por Sérgio Pitombo. O local foram as dependências da Editora Saraiva, cedidas a Rubens Limongi França para a elaboração da “Enciclopédia Saraiva de Direito”. Mas, enquanto a Congregação não decidia, eu, consumida pelos acontecimentos, saí à luta. A primeiro de maio de 1979 – já se ia um ano a partir da inscrição – fui à Itália, levando exemplares de minha tese, para explicar o que estava acontecendo aos principais autores que Tucci me acusava de ter plagiado, a fim de que eles, lendo o trabalho, dessem sua opinião. Foi penoso apresentar-se a pessoas que, em sua grande maioria, só conhecia dos livros, expor a situação e solicitar uma manifestação. Mas fui bem recebida por todos – essas coisas não acontecem só na Faculdade

21


Biologia marinha! O ano era 2003, o local era o cursinho Objetivo, na Paulista. Estava na metade do ano e concluí que, agora sim, tinha encontrado meu curso de graduação. Eu estar na turma de humanas, ter prestado vestibular para Direito no ano anterior e ser uma negação em biologia eram apenas detalhes. Ainda bem que eu recobrei a razão a tempo e me inscrevi em Direito na Fuvest, PUC e Mackenzie. E em Ciências Sociais na Unicamp. E em Jornalismo noturno na Cásper Líbero. O desfecho vocês podem adivinhar. Nem fui fazer a segunda fase da Unicamp e não passei na Cásper. No ano de caloura, vivi à base de deslumbramento. Não sei se continua assim, mas para pais, familiares, amigos e o próprio aluno, passar na USP era o mesmo que garantir o sucesso profissional e até nas demais áreas da vida. Os veteranos e professores não ajudam, relembrando a cada momento o quanto a São Francisco é a melhor faculdade do Brasil, da América Latina, do mundo e quiçá do universo! Normalmente lá pelo quarto ano a gente percebe que não é bem assim. É um baque. Parecia que as opções de carreira eram apenas as seguintes: diplomacia (no primeiro ano, pelo menos 70% da minha sala queria ir para o Rio Branco), concurso público e advocacia. Não procurei saber mais sobre outras possibilidades, até porque sentia, do alto da minha sabedoria de caloura, que tinha “zerado” a vida: o que viesse depois da faculdade ia ser só bônus. Diante do cenário, decidi que queria prestar concurso. Iria trabalhar do lado “do bem”, a favor do cidadão, em um horário razoável, com um bom salário e, acima de tudo, estabilidade. Lembrem-se que o Brasil ainda não tinha a economia que tem hoje e o medo do desemprego era enorme. Aproveitei a faculdade como poucos. Com a vantagem de ser sustentada pelos meus pais, estagiei em diversos lugares por pouco dinheiro (biblioteca, DJ, Tribunal de Justiça, JEC), entrei em grupos, de estudos ou não (SAJU, BAISF, IBCCRIM, comissão de formatura), e aproveitei ao máximo o pátio, o porão e o centro – que saudades dos ballets a R$ 10 no Municipal! Até aos estudos me dediquei, o que infelizmente era raro (e imagino que ainda seja). Após a formatura, como toda boa concurseira wannabe, me enfiei em um cursinho. E odiei. As pessoas não eram mais aquelas interessantes da faculdade, os professores eram práticos demais em suas explicações, a rotina era massa-

crante. Mas acho que o que me chateava mais era não ser mais uma universitária e ter que aceitar que eu estava virando adulta. Na época, uma amiga avisou: “pra você que gosta de escrever: a Folha de S.Paulo tem um programa de treinamento, já viu? Não precisa ser formado em jornalismo”. Me inscrevi e, paralelamente, me inscrevi também no mestrado da SanFran, em processo civil. Fui aprovada no mestrado e, menos de dois meses depois, no trainee. “Mas eu achei que você gostasse do direito!” “Você vai deixar cinco anos de faculdade para trás?” “Queria ter sua coragem e largar tudo para virar ______ [insira aqui uma profissão que paga pouco e que pai não gosta]”. Essas foram as reações que eu recebi. Respondendo: eu gosto do direito, não acho que mudar de área signifique jogar fora anos de estudo e largue tudo e vire!, mas fique sabendo que é possível que você se frustre na nova escolha também. Ganhei muito no jornalismo. Conheci pessoas e lugares que provavelmente jamais conheceria de outra forma, aprendi assuntos que nunca estudaria por vontade própria, morei por quase dois anos em Brasília, entrevistei ministros do Supremo, escrevi manchete em um jornal de abrangência nacional sobre uma mutreta na minha pequena cidade natal. Cresci. Virei adulta. Claro que eu perdi muito também. Tive que sair do mestrado (já me arrependi e desarrependi dezenas de vezes). Vi amigos virando defensores públicos, juízes e advogados de sucesso, com salários pelo menos três vezes maiores do que o meu. Tive incontáveis crises de “o que eu fui fazer da minha vida?”. Durante todo o tempo, tive medo de ser julgada profissionalmente por falta de foco. Se de um lado as pessoas admiravam o meu trânsito entre as duas áreas, mais de uma vez eu tive a sensação de não estar nem lá nem cá: eu era formada em direito sem exercer e exercia o jornalismo sem ter estudado. Meus interesses variados pareciam virar defeito em certos momentos. A verdade é que eu tenho, sim, um foco. Ele foi se adaptando às mudanças e ganhando novas perspectivas conforme os resultados das minhas escolhas, mas ainda assim é um objetivo. E ele será atingido exatamente por causa de tudo o que eu tenho feito. Um amigo me disse recentemente que a vida é como Quem quer ser um milionário: todas as experiências que vivemos, aparentemente sem ligação entre si, serão muito úteis mais para frente. Pelos acontecimentos recentes na minha vida, só posso concordar. Por fim, eu diria para vocês, calouros, aproveitarem a faculdade. Usem esses cinco anos

para descobrir o que vocês realmente querem fazer da vida, para conhecer as várias faces do direito e ter o maior número de experiências possível. Uma das poucas coisas verdadeiras que te dizem ao entrar no Largo de São Francisco: agora, você pode fazer o que quiser. *foi diretora do Departamento Jurídico (2007-2008) e repórter da Folha de S. Paulo

ARTURPÉRICLES/JA

MEU CANTO DO LARGO

NÁDIA GUERLENDA CABRAL * (TURMA 177)

ARQUIVO PESSOAL

22

Você pode fazer o que quiser

+Mais Vídeo da fala do prefeito Fernando Haddad na abertura da Serec. Ele falou sobre sua história nas Arcadas e saudou os calouros:

"A formação que vocês terão aqui vai marcar a vida de vocês para sempre" Acesse: arcad.as/haddad-186


ARQUIVO PESSOAL

JOSÉ ANTONIO DIAS TOFFOLI* (TURMA 159)

CARLOSHUMBERTO/SCO/STF

Em março de 1986 atravessei as três Arcadas da entrada do prédio, cada qual tendo por patrono um poeta, alunos que nunca concluíram o curso... Entrei e me transformei. Ah, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco! Os monumentos, o pátio, as grandes salas, o Salão Nobre, o burburinho, tudo era novidade e curiosidade. Um novo mundo se abria para mim que chegava do interior de São Paulo. Era o XI de Agosto, o bandejão do COSEAS, grandes professores e amigos novos, uma nova vida. A semana do calouro, as palestras, os trotes, as guerras d’água, a bagunça, os shows, as festas; enfim, tudo aquilo e muito mais de curiosidade para um ano que começou com o plano cruzado e terminou com as eleições para o congresso constituinte. Ao longo daquele ano vi passarem pela Sala dos Estudantes todos os grandes líderes do país, do passado, da época e do futuro, de Prestes a Lula. O meio artístico também se fez presente, lá vi e ouvi atores e autores, tais como o dramaturgo maldito Plínio Marcos. Assisti a Je Vous Salue Marie, proibido pela censura por pressão da Santa Madre (a Constituição ainda era a dos militares). Em agosto o primeiro pindura (foi no Almanara da Rua Basílio da Gama) e a primeira peruada com as batidas preparadas na véspera nos “tambores” do COSEAS misturando maracujina com Jamel, a caninha do bacharel. E tudo que acontecia já era tradição de anos e anos e tudo com muita história e mitos. Até o Vitão já

era tradição. Mas novas tradições também nasciam, como a festa do Halloween que entrou para o calendário de São Paulo. Teve a disputa pela Atlética, em 1987, com a “51 de Agôsto – Tudo pelo Sexual” (para quem é novinho, o slogan do Sarney era “tudo pelo social”). O show da Vitória (sim, é verdade e foi às 11 horas da manhã em plena Sala dos Estudantes), precedido pelas mágicas do Haroldo Issao, hoje o maior ilusionista do Brasil. É, na São Francisco se forma de tudo, até advogado... Também participei da representação discente, primeiro no departamento de trabalho (1987), depois na Comissão de Graduação (1988-1989) e na Congregação em 1989. Em 1987 e 1988, a Sala dos Estudantes passou a centralizar as coletas de assinaturas para as emendas populares a serem apresentadas ao congresso constituinte. Inúmeros parlamentares, líderes políticos e populares por ali passaram para falar, debater, assinar emendas etc. Um novo país nascia aos nossos olhos. Em 1989, as primeiras eleições diretas para presidente após mais de vinte anos. E todos os candidatos passaram pela mesma Sala dos Estudantes. E olha que a gente achava que tudo isso era muito pouco, que devíamos fazer mais, porque em nosso espírito a São Francisco era muito mais, era o centro de São Paulo, o centro do país, o centro do mundo. Do nosso mundo com certeza. As tardes no XI, jogando xadrez, as festas no porão, na sala e na casa do estudante, no pátio, na época em que ainda se faziam dentro da Faculdade e se podia ir para os andares de cima... Depois o estágio no Jurídico, o grupo de moradia, a nova constituição, o círculo das quartas-feiras com

o Cássio e o Goffredo. Infelizmente o Goffredo ficou muito sozinho e chamou o Cássio só pra ele... As aulas do Junqueirinha, do Dalmo, Tércio, Comparato, Magano e tantos outros. A OSESP na SANFRAN. Sim, na época da reforma do Teatro Municipal os ensaios da OSESP eram no Salão Nobre, e lá estava, no seu estilo formal, majestático, o grande maestro Eliezer de Carvalho. A gestão do XI em 1989, quando fiz parte da diretoria da Tradição é Ruptura. Frase enigmática e que é uma síntese da própria Faculdade. Sem falar dos ENEDs e tantas outras coisas. Em cada momento um aprendizado, uma experiência, uma vivência. Quando me mudei para Brasília, em 1995, descobri que os ex-alunos lá se encontravam, de várias gerações (hoje nosso decano no DF é formado em 1950, o ex-ministro Célio Silva) para mais do que lembrar a época da faculdade, reverenciá-la por tudo que nos proporcionou. Encontros estes que ocorrem até hoje, mensalmente. Descobri que além das trovinhas tinha o “quim-quim-querum” (vejam no google) e que o bordão “é pique (...) rá-tim-bum” surgiu do Largo. E também pude ouvir de quem viveu ao vivo e em cores algumas outras histórias que eram e são contadas de geração a geração no pátio da Faculdade. É por isso e por tudo que, apesar de a gente sair da São Francisco, a São Francisco nunca sai da gente. E os pórticos trazem como patronos três poetas que nunca concluíram o curso porque ali importa mais aprender sobre a vida e a sua vivência do que ensinar sobre a ciência. E a vivência é um curso que nunca completaremos. Neste verdadeiro curso somos e seremos eternos estudantes! Sejam bem-vindos! Vivam! E, quando tiverem um tempo: estudem! Ridendo castigat mores. *ministro do Supremo Tribunal Federal

MEU CANTO DO LARGO

FABIORPOZZEBOM/ AGÊNCIABRASIL

Castro, Álvares e Varela

23


//Mural é uma seção aberta à colaboração de qualquer franciscano (aluno ou antigo aluno, funcionário ou professor).

ARTUR PÉRICLES/JA

MURAL

Desparabéns, calouro

24

MARIO BUCCI (TURMA 182-14)

Não, calouro, este não é um texto de boas vindas à São Francisco. Você não é bem vindo. Você não é especial. Todos os anos, 500 calouros entram na faculdade. Por que você seria diferente deles? Você não está de parabéns. Você não fez mais que sua obrigação. Muito provavelmente, você deve ser de uma família bem estruturada de classe média alta. Muito provavelmente, você deve ter estudado em ótimos colégios e cursinhos para o vestibular. Muito provavelmente, você deve ter tido muitas oportunidades em sua vida. Ingressar em uma boa universidade era o mínimo que se esperava de você. Agora você faz parte da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, a faculdade de Direito mais famosa do Brasil. Vai ouvir trovas acadêmicas à exaustão, vai ser incentivado a participar do espírito acadêmico, vai ser estimulado a acreditar que você é melhor do que os outros pelo fato de estudar na “Velha e Sempre Nova Academia”. Você começa a compartilhar, através de seu e-mail ou sua conta no Facebook ou no Twitter, decisões de tribunais, artigos de jornal, editoriais, reportagens que tenham a ver com o universo jurídico – do qual você agora faz parte como estudante. Indignado, questionará nomeações para o STF ou a aprovação ou veto de determinado projeto de lei. Ainda no primeiro ano você já exporá seus pontos de vista sobre a prova da OAB, os concursos para a magistratura ou para o Ministério Público, e demonstrará sua vocação jurídica inata. Mais do que isso, você despertará sua veia política. Assumirá posições em debates acalorados e defenderá com paixão suas opiniões, tentando de todas as formas arrancar seus colegas da alienação e da apatia. Ou então celebrará o ingresso na vida adulta em longas tardes feitas de partidas de sinuca, cerveja gelada e Marlboro Light e noites barulhentas de quinta feira que parecem não ter fim – mas que acabarão ao fim de cinco anos de faculdade, sem que você

perceba para onde elas foram. Você olhará para seus professores com devoção. Comentará sobre seus títulos, suas aulas e seus concursos – que você vai acompanhar. Suas leituras agora incluirão as obras dos grandes pensadores do Direito. Você lerá livros importantes, citados com reverência por seus mestres, e, resolvido a impressionar seus colegas, demonstrará sua erudição em tais leituras durante os seminários e monitorias. Seus colegas são parte de sua nova vida como acadêmico do Largo São Francisco. Você muito provavelmente já deve conhecê-los, seja do colégio, seja do cursinho – mas agora vocês não são mais concorrentes por uma vaga no vestibular, são estudantes e colegas da São Francisco. Você cantará até cansar que o Largo de São Francisco (como é chamado na trova) é onde mora a amizade, onde mora a alegria, confraternizando com os amigos da faculdade. Sem perceber, você disputará com esses amigos vagas em disciplinas optativas, em grupos de estudo, em estágios, em cursos, em intercâmbios. Aflito, vai começar a perguntar sobre as médias ponderadas deles, para saber se são maiores que a sua. Para alguns dos calouros, haverá o momento em que as notas então se tornarão uma grande angústia. Leituras e estudos, que eram apenas uma forma de mostrar conhecimento na monitoria ou no seminário, agora são uma necessidade para estar um passo à frente dos colegas. Alguns dos calouros, que estiveram presentes e anotaram detalhadamente todas as aulas de cada disciplina, vão relutar em emprestar suas anotações aos colegas que não foram às aulas – afinal, seria injusto que eles se beneficiassem do trabalho de quem estava lá para anotar tudo, enquanto eles nem foram para a faculdade naquele dia. Ainda, apesar das boas médias e bons históricos, terão medo de que um colega puxe o tapete em um processo seletivo – medo sem razão, afinal, um franciscano não prejudicaria um colega. Outros sofrerão com ansiedade a pressão do tempo passando, apesar daquelas tardes

intermináveis acompanhadas de amigos e cervejas geladas. De repente você não vai saber como conseguir as anotações para a próxima prova – aqueles cadernos estão começando a minguar. Você precisará escolher entre as optativas menos procuradas para concluir o mínimo de créditos para o semestre. As noites barulhentas de quinta feira acabarão cada vez mais cedo, à medida que mais e mais colegas estarão fazendo estágio, iniciação científica ou estudando alguma matéria. Nos encontros com os amigos e colegas, vocês conversarão sobre a faculdade, sobre as diferentes matérias que estão fazendo, sobre as perspectivas para a carreira jurídica e o Direito brasileiro. Ao começar a estagiar, você se sentirá inquietantemente adulto. Irá para a faculdade de terno e gravata. Participará de calls. Redigirá votos. Marcará happy hours com seus amigos, quando vocês falarão sobre as diferentes oportunidades que se abrem para vocês e o futuro que os aguarda. A mesa se esvaziará conforme seus colegas se afastarem, perseguindo esse futuro brilhante inalcançável. Ou, quem sabe, você reclamará da faculdade durante algum final de tarde, criticando o curso, os colegas, as perspectivas ruins para a carreira jurídica no Brasil de hoje. As tardes, antes longas e cheias de amigos, ficarão mais desagradáveis conforme o tempo passa e você enxerga menos opções para o futuro. Você fabricará aqui uma etapa de sua vida, começando agora. Você decidirá o que fazer com os próximos 5 anos. Sozinho. Você é mais um dos 500 calouros que ingressam na Faculdade todo ano. É mais um dos que entram agora na vida adulta, que se deslumbrará com a “Velha e Sempre Nova Academia”, que berrará trovas acadêmicas, que descobrirá uma vocação jurídica e a anunciará aos quatro ventos – você não é especial. Você deixará aqui muito tempo, muito trabalho e muita preocupação. E se não souber o que fazer com esse tempo, esse trabalho e essa preocupação investidos, um dia se perguntará por que escolheu isso.


ARTUR PÉRICLES/JA

//Os textos são de responsabilidade dos autores indicados. Envie seu texto: arcad.as/mural

ANDRÉ SARLI (TURMA 181)

Carpe Facultas. É um latim arranhado, mas serve aos meus propósitos. Amigas/os caloura/os, neste período de tempo em que atendem a esta faculdade, aproveitem muito bem. É uma faculdade, aproveitar... a faculdade. Explico o óbvio: este tempo não voltará nunca mais. Claro, existem alunos que querem alongar ao máximo a sua estadia, mas uma hora todos se formarão. Talvez nesse sentido, o óbvio não seja tão óbvio assim. Por mais que saibamos e nos esforcemos, naquele dia fatídico onde a chapeleta preta e vinho é nos adornada, repensamos a tudo e a todos que aprendemos e apreendemos, e ainda assim, desce uma certa lágrima, ainda que invisível e imperceptível lágrima, dos tempos que se foram e não voltam mais. Surge um pensamento:

Será que aproveitamos o suficiente? Em geral, a vida é assim, mas a faculdade, que temos a faculdade de aproveitar, é um exemplar do nosso microcosmo que nasce, se expande e se encerra, sem contudo deixar de deixar um rastro eterno nos nossos outros microcosmos. Para mim, dois ciclos se encerraram ao mesmo tempo no mesmo dia. As lágrimas não foram invisíveis, vez que, incontrolavelmente, no dia de minha formatura, minha mãe inexplicável, inexorável e irreparavelmente deixou este mundo. Me lembro disto por causa das lichias, últimas lichias, que havia lhe comprado, restaram na geladeira, sem destino, assim como me senti – sem destino - durante alguns dias. A faculdade, que aproveitei e deixei de aproveitar, também se quedou silente em minha memória. Ainda guardo as folhas em branco que planejei usar no primeiro dia do primeiro ano da velha e sempre nova academia.

MURAL

Aproveitar a Faculdade Assim como a progenitora, a faculdade talvez tenha terminado cedo demais para que eu falasse tchau. Todavia, a toada desde texto não se serve a ser tristonha. O que busco compartilhar é uma certa felicidade e orgulho de ter vivido dentro destes microcosmos. Repare, caro franciscano, que possivelmente a esta altura você, quando formado, terá vivido talvez um quinto ou até um quarto de sua vida dentro destas arcadas e muros. É o suficiente para transformar todas as suas futuras experiências. Por isto, sugiro que viva, transpira, sugue, absorva, apreenda o máximo esta etapa. Por isso, mais importante do que aproveitar a faculdade, é a sua faculdade, única e limitada, de aproveitar a faculdade, junto com os outros cerca de 300 alunos que foram aprovados. Que estes seus 5, 4, 3, 2 ou (!) 1, ano que lhe de faculdade sejam sempre os melhores da sua vida, até agora. Carpe Facultas.

e a faculdade de aproveitar ARTUR PÉRICLES/JA

25


//Mural é uma seção aberta à colaboração de qualquer franciscano (aluno ou antigo aluno, funcionário ou professor).

MURAL

Revolucionários de condomínio LUIZ PÉRICO (TURMA 186)

Sobre preconceito e literatura MAURÍCIO BUNAZAR (MESTRANDO – DCV)

26

Posso não concordar com nada do que você diz, mas defenderei até a morte seu direito de dizer. (Autoria incerta) O preconceito caracteriza-se basicamente quando se estabelece juízo sem base racional, via de regra, de forma pseudoindutiva. A pseudoindução é falha lógica que consiste em, a partir de um caso isolado, inferir dada “verdade”. Por exemplo, alguém vê um sujeito barbudo furar uma fila e conclui: barbudos não respeitam fila, são mal-educados. Em resumo, é burrice pura e simples. Minha intenção neste texto é levantar algumas questões sobre a relação entre obra literária de ficção e preconceito. O primeiro destes questionamentos consiste em saber se uma obra literária de ficção (não seu autor, mas a obra em si mesma considerada) pode ser preconceituosa. Penso que seja absolutamente impossível, pois a obra de ficção traz narrativa imaginária, vivida por personagens que, estes sim, podem ser preconceituosos, é dizer, estúpidos. A obra de ficção não admite, do ponto de vista lógico, a qualificação de preconceituosa, admite, é verdade, muitos outros, como ruim, de mau gosto, mal redigida etc. O segundo questionamento se refere à potencialidade de obra literária de ficção incitar preconcei-

to. A este questionamento a resposta só pode ser sim. Não há como negar que o leitor, em razão de imaturidade mental de variadas origens, possa imitar no mundo real o comportamento preconceituoso do personagem fictício. Porém, esta última conclusão de maneira alguma justifica que a obra de ficção seja proibida ou, de qualquer modo, ainda que sutil, censurada. Isto é absolutamente impensável em um Estado Democrático de Direito, como é o Brasil. A Constituição, além de garantir a livre manifestação do pensamento (artigo 5º, IV), assegura a liberdade da expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (artigo 5º, IX). Assim, ao menos à luz da Constituição da República Federativa do Brasil, qualquer pedido judicial ou administrativo no sentido de proibir ou censurar, ainda que veladamente, qualquer obra intelectual deve ser tido por juridicamente impossível e repelido sem que sequer tenha seu mérito analisado. Ademais, a competência absoluta para julgar obras literárias é do leitor e só dele. Quando o Poder Público o faz, usurpa esta competência e violenta a Constituição Federal. Atribuir à obra de ficção a existência de preconceito é hipocrisia, afinal contra a burrice e a ignorância ainda não inventaram remédio melhor que a literatura.

NEMO / PIXABAY

A passagem pelo nosso país, em fevereiro, da blogueira cubana Yoani Sánchez, que se opõe ao regime castrista e sofre censura e represálias do governo cubano por isto, exaltou os ânimos de um grupo formado por um tipo bem peculiar: os revolucionários de condomínio. Revolucionário de condomínio pode ser definido como o cara que acredita que é “o” revolucionário porque posta memes anticapitalistas no Facebook, que usa camisetas do Che compradas em shopping centers, que apara sua barbinha à la Marx no cabeleireiro com maquininha, que ouve Caetano e Chico no iPod porque acha que isso é que é músico “do povo”, “de raiz”, que fuma maconha como “ato de rebeldia”. Ele acha que os estudantes são oprimidos porque não podem usar drogas à vontade nos campi e que o capitalismo é injusto porque ele não pode ter todos os jogos de Playstation que quer. Diz que defende a democracia e a liberdade de expressão mas é a favor do controle da imprensa (que não seja vermelha) e da censura (aos outros, é claro). Ele quer igualdade para todos e morte aos burgueses, sem perceber que ele é um burguesinho metido à besta. O seu universo é formado por contradições que ele nem percebe.

Pois foi esse tipo sui generis de “cidadão” que foi tumultuar a passagem de Yoani Sánchez aqui no Brasil. E, é claro, eles nem perceberam o papel ridículo a que se prestaram. Sim, pois mais uma vez eles se puseram naquela situação contraditória que os caracteriza: utilizaram de sua liberdade de associação e de expressão para hostilizar uma pessoa que luta exatamente por isso, liberdade de associação e de expressão, em Cuba, onde essas coisas não existem. Papelão. Emblemático disso foi o comentário de Yoani a respeito de sua “calorosa” recepção: “Isso é algo que não vejo em meu país. Gostaria que houvesse essa liberdade no meu país.” Sim, pois se esses mesmos que fizeram a confusão se juntassem para protestar em Cuba contra o governo castrista, todos seriam presos. O mais engraçado é que muitos destes que se opuseram à turnê da cubana apoiaram, defenderam com todo o entusiasmo a vinda do presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad, “democrata” de um regime que mata oposicionistas, adúlteros, blasfemos e homossexuais. Um show de tolerância. A vinda da blogueira cubana incomoda porque deixa a contradição desses “playboys oprimidos” clara, evidente, e mostra o ridículo dela.

Biblioteca livre CLÍNICA DE DIREITO AMBIENTAL PAULO NOGUEIRA NETO

Qualquer aluno de direito que se preze tem um livro encostado, que comprou na alucinógena empolgação de começo de semestre, e no qual nunca mais encostou. A partir disto, a Clínica de Direito Ambiental Paulo Nogueira Neto (CPANN), a mais nova entidade da faculdade, percebeu que poderia dar nova vida a esse montante de papel inutilizado e de conhecimento parado. O projeto “Biblioteca Livre” consiste na troca de livros entre alunos da Faculdade de qualquer ano por intermédio do nosso grupo. A ideia de troca de livros é uma prática que poderia ser muito mais incentivada; não só pelo viés sustentável como pelo viés social, promovendo uma construtiva troca entre veteranos e calouros, e vice-versa. É bem simples: traga aquele livro de direito ou de literatura (não vale infantil!) que já foi um dia útil para você, e, nos dias indicados, leve até a nossa barraca para que ele tenha a oportunidade de ajudar outra pessoa – aquele Thomas Marky que você ama de coração pode trazer alegrias para um novo franciscano! Assim, através da doação, será possível a retirada de qualquer outro livro doado. São nessas ocasiões que você pode encontrar um livro incrível que já tenha entretido outra pessoa. Você que veio do interior, aproveite o fim de semana para voltar pra casa e trazer tudo para cá. Nossa Biblioteca Livre estará armada no pátio nos dias 5 a 7 de março, e novamente na semana seguinte, nos dias 12 e 13. Qualquer dúvida, é só procurar um dos membros da Clínica. Participe!


WIKICOMMONS

(parte 1)

ANDRÉ CASTRO CARVALHO (176-NI, DOUTORANDO - DEF)

Cheguei a Beijing na segunda-feira 8 de dezembro de 2012. O motivo da minha viagem foi por conta de um programa de visiting scholar e visiting professor nas Universidades de Nankai, em Tianjin, e JiLin,

MURAL

Impressões da vida acadêmica na China

em ChangChun, e essas são algumas das minhas primeiras impressões da vida acadêmica na China. A relação professor-aluno é ainda bastante hierarquizada, muito embora haja algumas exceções e, como no caso ora em questão, o professor anfitrião não exija isso a todo instante de seus alunos. Entretanto, em geral, o aluno é subserviente à vontade do professor até mesmo em assuntos alheios à esfera acadêmica. Presenciei relatos de alunos comentando que alguns professores proibiram suas alunas de terem filhos ou até mesmo de se casarem antes do término da sua dissertação ou tese. A despeito de já ter presenciado condutas semelhantes por parte de alguns professores no Brasil – não nessa gravidade, evidentemente –, a naturalidade com a qual encaram tal fato aqui na China realmente impressiona. A intromissão na vida particular parece ser algo natural na segunda maior economia do mundo. Fato curioso ocorreu no dia 12 de dezembro, quando estávamos em uma das salas para uma conferência e, posteriormente ao seu término, o professor anfitrião chega com uma caixa de preservativos que o gover-

no doa a seus professores universitários com certa regularidade. A política do filho único continua em vigor na China – não obstante, recentemente, eles a tenham flexibilizado no sentido de dar a possibilidade de se ter dois filhos a pais que são filhos únicos (ambos devem estar nessa condição, é importante ressaltar). Nessa ocasião houve um momento de descontração que muito me lembrou do Ocidente e sua relação extrovertida com assuntos relacionados a sexo: o professor veio com as caixas de preservativo e me deu algumas também, no que eu respondi: “-Vocês estão levando a sério a política do filho único, até mesmo para os ocidentais!”. Posteriormente, visitamos o diretor que havia distribuído as caixas e comentei com ele que, dentro dos inúmeros e ininteligíveis caracteres chineses na caixa, havia algo que eu podia reconhecer: “52 mm”. Comentei: “-Se esse for o tamanho, não vai servir para ninguém!”. E o diretor disse: “-Não, para o professor chinês serve.” Brincadeiras à parte, a privacidade parece ser algo não valorizado por aqui. Qual não foi meu espanto em saber que nos dormitórios estudantis, além de abrigarem de seis a oito estudantes em média, não há sistema de banho quente (e nem frio para o verão escaldante que eles têm) – em suma, não há ducha. Os alunos devem locomover-se até um vestiário central (o qual, no caso, é quase que vinte minutos afastado de um dos dormitórios que eu tive a oportunidade de entrar), tomar banho e voltar ao seu respectivo dormitório. Um estudante italiano de doutorado que acabou se tornando um grande amigo meu comentou que já presenciou filas de chineses enrolados em toalhas e de cabelo molhado, a temperaturas abaixo de zero, em tais vestiários. Ao questionar a respeito o “aluno-pupilo” que está me acompanhando nesse processo de visiting, ele mencionou que isso é por conta da necessidade de um sistema de aquecimento especial, o qual seria impossível instalar em todos os quartos. Assim como vocês devem estar agora, eu me espantei com essa explicação sem sentido – mas não fui adiante naquela ocasião. Na próxima edição continuarei com o relato e tentarei justificar o porquê de ele pensar dessa forma.

A destruição criativa da TV Cultura RAFAEL BARIZAN (184-11)

A TV Cultura registra em seus últimos anos de existência um lento e contínuo processo de decadência. Não falamos da pouca audiência que apresenta, mas sim da perda de qualidade de seu quadro editorial. A situação se deve ao modelo adotado pela emissora paulista para atender aos interesses políticos de uma sucessão de governos neoliberais. Seu processo de reestruturação foi conduzido de forma impensada. Cortaram-se custos, porém não se atentou ao déficit de profissionais qualificados que se criou na emissora com a demissão de mais de quinhentos de seus funcionários. Programas de qualidade ímpar como o Entrelinhas – do qual pessoalmente era um fã – e o Vitrine

foram extintos e suas pautas incorporadas ao Metrópolis, não sem perda substancial para o telespectador atento. O Jornal da Cultura há muito deixou de ser uma referência. Antes caracterizado pela análise ponderada dos fatos e a apresentação de notícias efetivamente relevantes, cedeu às matérias de maior apelo comercial. Adotou, tentando manter sua qualidade, um modelo de debate. Dois convidados, geralmente professores, jornalistas ou economistas de renome debatem as notícias. Contudo, isso não é o suficiente. Por mais qualificados que sejam os convidados não se pode extrair opiniões do vazio. Além disso, sua âncora em nada contribui para o debate. Em geral, coloca opiniões derivadas do mais raso senso comum e envergonha seus convidados. Suas interrupções são constates e causam irritação ao telespectador,

que ao ver um bruxulear de inteligência o tem destruído. Há ainda excertos de bom jornalismo e qualidade em sua programação. Pode-se assistir sempre a bons filmes tanto nacionais quanto estrangeiros, em especial o cinema francês (um alívio ao frenesi hollywoodiano que infesta a grade das demais emissoras). Contudo, a exceção não faz a regra. Soma-se a perda de qualidade da programação, a redução da abrangência de sua cobertura. Antes se estendendo por quase todo o território nacional por meio de alianças regionais, hoje se restringe ao Estado de São Paulo e algumas poucas cidades de Minas Gerais e Paraná. Uma perda irreparável para os que antes tinham na Cultura uma alternativa a programação repetitiva e, por muitas vezes, nociva das demais redes.

27


//Os textos são de responsabilidade dos autores indicados. Envie seu texto: arcad.as/mural

MURAL

Prazer diário

ARTUR PÉRICLES / JA

ROSANGELA PUPO (SERVIDORA – BIBLIOTECA)

Viva a São Francisco! Um quintanista fala sobre sua experiência na Bateria de Agravo de Instrumento da São Francisco FABIO OTTO (182-22)

28

Primeiramente, gostaria de parabenizar o jornal Arcadas por essa oportunidade dada aos alunos da São Francisco, se mostrando de fato um jornal de qualidade e imparcial que não precisa se promover ou provar nada a ninguém. Segundo, queria aproveitar esse espaço e compartilhar também das experiências de um quintanista que, nos momentos finais de sua vida acadêmica, pode olhar pra trás e encher o peito pra dizer o quanto aproveitou sua estadia pelo Largo e o quanto de orgulho sentirá toda vez que lembrar que fez parte de algo como as gloriosas Arcadas. Cada franciscano vive a Faculdade da maneira que bem entende e bem quer, uns na sala de aula, outros nas Arcadas, no porão, nas modalidades esportivas e nas entidades. Em qualquer desses lugares é possível encontrar perspectivas muito diferentes umas das outras sobre o que é a São Francisco. Eu encontrei a minha motivação na música, no ritmo e, mais precisamente, na BAISF, a Bateria de Agravo de Instrumento da São Francisco, que no decorrer dos anos se mostrou pra mim como algo muito mais complexo e muito mais elaborado do que uma simples bateria de faculdade. O mais importante disso é que eu entrei na São Francisco, escolhi algo para me dedicar e faço disso a minha história pelas Arcadas. O que no começo era uma bateria pra me di-

vertir, um hobbie de final de semana, virou um complexo grupo de amigos, com seus problemas, suas alegrias, seus desafetos e suas paixões, mas um grupo de pessoas bastante diferentes umas das outras, que se unem em prol de uma coisa comum, e compartilham do amor por uma coisa só. Isso que fez com que a BAISF entrasse em minha vida de uma forma irreversível, quando eu me dei conta já era um apaixonado que não conseguia mais largar a bateria, virei diretor de modalidade, tomei as rédeas e, junto desses amigos tão especiais, busquei desde o ano passado melhorar a imagem da bateria perante a faculdade para poder atrair cada vez mais pessoas, fazendo um verdadeiro marketing BAISFiano e tendo a alegria de ver surtir resultado! 2012 foi o melhor ano da história da bateria, formamos um grupo grande, vencemos um torneio de baterias universitárias e tivemos uma boa atuação nos jogos que a Sanfran participa, um ano de ouro para os verdadeiros piratas. Hoje eu posso olhar pra trás e ver que eu fui parte de todos esses resultados, escolhi algo pelo que me dedicar e fiz essa coisa melhorar, evoluir, deixei uma pequena marca na história de uma entidade que faz parte de algo maior ainda! Convido a todos, calouros e veteranos, a deixarem também sua marca, quer seja na BAISF (ensaios aos sábados, 14h no campo do XI), quer seja em qualquer entidade acadêmica! Mas não deixe, em hipótese alguma, de viver tudo isso que a São Francisco pode te oferecer, não seja apenas mais um. Faça acontecer.

Prazeres! Temos muitos no decorrer de nossa vida. Descobri neste ano, um que não sabia que me era tão pequeno e passava desapercebido. Eu me oferecia para pegar os primeiros pedidos e antes ainda, me oferecia para ajudar a abrir a biblioteca ao público e tudo isso para viver aquele primeiro contato, o acordar, a redescoberta do tesouro entre as arcadas! Parecia uma preocupação com o trabalho mas descobri que era um prazer! O prazer de entrar num acervo antigo de uma biblioteca antiga! Imagine uma porta com acesso restrito por onde eu entrava logo pela manhã...ah...sem luz artificial alguma, apenas o brilho do sol tentando clarear as estantes de madeira com pedaços de metal pintados de verde velho. Aquela luz obliqua que parece que me faz entrar em outro mundo...um mundo único de existência eterna, num clima de respeito a historia e aceitação do passado como algo bom; o passado que nos trouxe ao hoje da internet dos blogs dos chats!!! Ah...os chats!! Eles são maravilhosos...mas instantâneos Aquele corredor de acesso a um mundo de papel e tinta e pessoas que se foram desta terra mas tão rico tão vivo tão presente... Caminho mais...evito acender qualquer luz...é de propósito..quero aproveitar ao máximo os primeiros momentos do amanhecer , de mais um dia na história daqueles objetos.. tão queridos..amarelados...respeitados. E têm um cheiro próprio do material, do espaço ...cheiro do desconhecido E é com emoção e com um sentimento de privilegiada que caminho, passo a passo, naqueles degraus onde muitos passaram: dos mais lustres aos analfabetos, espaço de conhecimento ou de ganha pão...mas sempre ali... sempre rico...disponível..contando uma história que talvez ninguém tenha pensado em contar, mas que se fez dia a dia, livro a livro... Que emoção renovada! E pensar que escutei há anos atrás alguém falar que os livros iam acabar. Coitados destes linguarudos...não pensaram quanto tempo um livro podia durar sendo cada vez mais importante..trazendo um pouco do mundo de outrora, explicando quem nos tornamos hoje e apontando brechas para nos tornamos a sociedade de amanhã... lindo corredor, que me emociona. Por mais de cento e oitenta anos..estiveram ali e por quanto tempo mais estarão! Eu concedo a outros que se aventurarem a trabalhar onde trabalho: a oportunidade de sentir a emoção que sinto ao entrar toda manhã entre os meus amados .... que venham os colegas, os visitantes privilegiados, os estagiários, que eles possam sentir um pouco da minha emoção.


JULIANA PIESCO (TURMA 181)

DIVULGAÇÃO

Passadas as apostas, a cerimônia e as piadinhas (sem graça) de Seth McFarlane, chega a hora de analisar as premiações como um todo – e aproveitar o tempo em que os filmes ainda estiverem em cartaz para assistir os que valerem a pena. A primeira coisa que chama a atenção entre os indicados do 85º Oscar é a predominância de filmes sobre a história, recente ou distante, dos Estados Unidos – quase todos em tom ufanista. Enquanto Lincoln propunha-se a ser uma nova cinebiografia de um dos presidentes estadunidenses mais adorados, Tarantino remixava história em seu Django Livre, releitura do período da escravidão no estilo western spaguetti. Já A Hora Mais Escura e Argo

Para os apaixonados: O Lado Bom da Vida A comédia romântica que deu o que falar garantiu a estatueta de Melhor Atriz à nova queridinha de Hollywood, Jennifer Lawrence. As atuações no filme como um todo são bastante surpreendentes, e a maioria da narrativa tenta fugir dos clichês da comédia romântica – pelo menos na primeira parte do filme, até escorregar em cheio na conclusão. Mas não deixa de ser uma comédia romântica bastante acima da média, tanto em termos de atores quanto na direção.

tratavam de períodos mais recentes da história do país, ambos envolvendo a intervenção dos EUA no Oriente Médio. Não é muito surpreendente que, dentre as opções, a Academia tenha optado pelo ufanismo (mal) velado de Argo: no longa, os cidadãos de seu país não torturam árabes, não maltratam negros e não compram votos – ainda que por uma causa nobre. Sem desmerecer os vários méritos artísticos do filme, é difícil fechar os olhos para o fato de que parece um “conto de fadas da Terra da Liberdade”: em face de muçulmanos radicais selvagens, os estadunidenses utilizam-se da inteligência (e não da violência) para resgatar seus cidadãos. Outro ponto que não pode passar batido é que, pelo segundo ano seguido, a Academia escolheu como Melhor Filme uma produção que valoriza

a indústria cinematográfica. Enquanto O Artista era uma homenagem ao cinema mudo, Argo mostra uma história em que Hollywood, apesar de satirizada ao longo do filme, ocupa o papel de grande herói. Do ponto de vista técnico, tratou-se de um ano de filmes desnecessariamente longos – como se agora, para ser considerado bom, um filme devesse necessariamente ter mais de duas horas de duração – e algumas surpresas nas indicações. Nomes de veteranos como Steven Spielberg dividiram categoria com novatos como Behn Zeitlin (com seu primeiro longa metragem, Indomável Sonhadora). Para quem não teve tempo – ou paciência – para conferir os indicados, aqui estão algumas sugestões por “perfil cinematográfico”:

CULTURA&ARTE

No clima pós-Oscar: o ano em que os EUA celebraram a si mesmos

Para os amantes de musicais: Os Miseráveis

Musical é aquele coisa: alguns amam, outros odeiam. Os apaixonados pelo gênero tiveram um prato cheio esse ano, com o aguardado Os Miseráveis. A bela atuação do elenco – Anne Hathaway levou o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante, apesar de seu pouquíssimo tempo de tela – compensa pelos (muitos) erros da direção. A produção épica também dá uma proporção de grandeza nunca conferida antes a um musical. Mas precisa ser fã do estilo para assistir a um filme em que todas as falas são cantadas, por mais de duas horas.

Para quem quer adrenalina: Argo

O principal mérito do filme, dirigido por Ben Affleck, é o ritmo: há um senso de urgência e tensão muito bem construído no filme, que chega ao seu ápice no (fantasioso, mas nem por isso ruim) final. A trama é ágil, e caminha a passos largos. Bem diferente de grande parte dos demais indicados.

Para quem gosta de uma polêmica: A Hora Mais Escura

O novo filme de Kathryn Bigelow (Guerra ao Terror) causou polêmica mundo afora, por permitir diversas interpretações de algumas de suas cenas. Afinal, a diretora justifica ou incentiva o uso de tortura pela CIA? Ou está apenas retratando uma realidade, que todos sabem que ocorreu durante a captura de Osama Bin Laden? Para aqueles que gostam de assistir a filmes e depois passar horas discutindo com os amigos a respeito, A Hora Mais Escura é um prato cheio.

Para os que odeiam o Oscar: Amor

Todo mundo, no fundo, odeia o Oscar. Os critérios muitas vezes bizarros, as injustiças e outros problemas já desgastaram nossa relação com a premiação, e muitas pessoas já não ligam para os filmes indicados. Para essas, o filme imperdível é o estupendo Amor, que passa longe do estilo que geralmente conquista a Academia – lembrando que o filme ano passado foi o grande vencedor do Festival de Cannes. Amor é uma experiência cinematográfica imperdível para os fãs do cinema-arte, com direito a atuações tocantes e intensas, direção impecável e uma história que consegue ser ao mesmo tempo cruel e poética.

Para os que querem algo diferente: Indomável Sonhadora

Apesar da péssima tradução do nome para o português (horrível perto do título original, Beasts of the Southern Wild), vale a visita ao cinema (foto). Primeiro, é difícil acreditar que se trata do primeiro filme do diretor. Mas ainda mais surpreendente é descobrir que essa também é a estreia dos dois atores principais, entre eles a pequena Quvenzhane Wallis, visceral no papel de Hushpuppy – uma menina que vive uma infância pouco ortodoxa em uma comunidade marginalizada do sul dos EUA.

29


CULTURA&ARTE REPRODUÇÃO/FACEBOOK/TABLAO.RU

30

Ombro, codo, mano e a crise econômica MARCELA MONTEIRO (TURMA 182)

Desde que resolvi abandonar o direito como profissão, tive que me acostumar com a ideia de trabalhar que nem gente grande e ser remunerada como uma estagiária mal paga, mas tudo bem, isso não tem exatamente abalado as minhas convicções. Continuo feliz na jornada de me distanciar das ciências jurídicas, mas até sair dessa recessão que parece infinita, tenho que ser minimamente criteriosa com as minhas despesas. Como o universo curte me trollar, foi nesse cenário que apareceu na minha frente a oportunidade de fazer um workshop de flamenco com uma consagrada bailarina espanhola chamada La Truco (sim, o La faz parte do nome). Quem me conhece sabe que se tem uma coisa que me faz perder todos os critérios financeiros é o flamenco... É um sapato aqui, uma saia ali, uma castanhola diferente e, de repente, o saldo negativo, meu bom e velho amigo. Hesitei um pouco, mas acabei investindo toda a grana que eu tinha e não tinha nessas aulas. Estudar com La Truco seria uma oportunidade única! A mulher é tão boa que tem um artigo que acompanha o nome dela, meudeusdocéu! Não tinha como perder essa... Segunda-feira, primeiro dia de aula. Chego toda pimpona no local do workshop e bem lá no fundo do corredor, sentada em um banquinho meio escondido, vejo essa senhora de cabelos ruivos cacheados com uns bons quilos a mais e centímetros a menos do que eu havia imaginado. Ali, mexendo no celular de um jeito bastante despretensioso, estava La Truco. Olhei de novo, dessa vez com mais

atenção, e levei um susto. Ela estava com o braço quebrado. Pânico. Rapidamente, minha cabeça construiu o seguinte raciocínio: professora machucada, conta no vermelho, fazer a consumerista louca, pegar meu dinheiro de volta e sair correndo, mas como não confio nos meus conhecimentos jurídicos e morro de vergonha de barraco, acabei ficando pra ver no que aquilo ia dar. A primeira aula do dia era de técnica corporal, algo que La Truco revolucionou no flamenco. Acho que nunca estive numa aula de dança tão cheia. Vinte mulheres das mais diversas idades, formas e personalidades dividiam um espaço destinado a no máximo doze ou treze beldades. – Tá quente aqui né? - eu comentei meio que pra todo mundo, ainda perturbada com a lembrança da minha conta corrente mais miserável que romance de Victor Hugo em época de Oscar ao lado da imagem da professora de braço quebrado. Ninguém reagiu. – A gente podia ligar o ar. Tô suando que não me aguento aqui! Olhares de reprovação seguidos do comentário: – A maestra não gosta de ar condicionado. Ok. Respira fundo, Marcela, segue a vida e se controla pra não mandar esse povo todo ir tomar um ar junto com essa maestra em outro lugar. – Vamo-nos! Olé! – La Truco gritou. A aula havia começado e, de repente, eu não tinha mais tempo ou fôlego pra ocupar minha cabeça com as imagens macabras da minha conta corrente. – Ombro, codo, mano, por el codo, por la mano! Vamos, Chicas! Con aire! – La Truco não parava de gritar, cantar e incentivar todas, absolutamente todas as suas alunas. A única parte do corpo daquela mulher que não se mexia era o braço imobilizado. De resto, cada músculo, do quadril ao dedo mindinho, movia-se empenhado em transmitir a energia de uma arte extremamente peculiar. Muito mais do que passos de dança em nossas cabeças, La Truco estava determinada a colocar em nossos peitos a pulsação de uma linguagem que ela, nascida em Toledo, aprendeu no berço. A paixão dela pelo flamenco estava ali, escancarada. Impossível não se apaixonar também. Quando a aula acabou, conversamos um pouco sobre como anda a vida em Madrid nos últimos tempos. A crise econômica, as lojas fechando, as escolas de dança vazias e as grandes companhias de baile se dissolvendo no meio de uma realidade na qual não há mais muito espaço para o lúdico. La Truco, assim como todos os outros espanhóis, estava sofrendo com as dificuldades financeiras trazidas pela crise econômica euro-

peia que afetavam diretamente membros queridos e próximos de sua família. Pela primeira vez, eu entendi de verdade o que essa crise representa para os europeus. Pela primeira vez me sensibilizei profundamente com o impacto que ela trouxe para a vida de um deles. – Gracias, chicas, ela encerrou a conversa, recolhendo-se sorumbaticamente ao banquinho escondido no final do corredor. Saí de lá certa de que cada centavo da minha conta negativada havia sido bem investido. Paguei uma aula de flamenco e ganhei olhos mais abertos, para o mundo e para a arte.


Bem vindo a Storybrooke temente dos contos originais, ninguém é malvado à toa. Como a própria Rainha Má afirma, numa das frases-chave da história: “Eu acredito que o mal não nasce, ele é criado” [tradução bem mais ou menos do original “I believe evil isn’t born, it’s made”]. Por essas e outras, Once Upon a Time é mais uma confirmação de que os vilões estão em alta. Maleficent, filme que contará a história de A Bela Adormecida sob a perspectiva da vilã, interpretada por Angelina Jolie, está sendo gravado nos estúdios da Disney. Há rumores de que Into the Woods, musical de Sondheim cujo personagem principal é a Bruxa, será adaptado para o cinema por Rob Marshall (o mesmo de Chicago) e o papel ficará com ninguém mais, ninguém menos

Vermelho acaba como melhor amiga de Branca de Neve e Malévola, a bruxa de A Bela Adormecida, como confidente da Rainha Má. O que de fato chama atenção em Once Upon a Time são os vilões, de longe a melhor coisa da série. Verdade seja dita, isso em boa parte deve-se ao fato de serem interpretados pelos melhores atores, Robert Carlyle, no papel de Rumplestiltskin, e Lana Parrilla, no papel da Rainha Má. Mas para além disso, por incrível que pareça, eles são os mais humanos dos personagens. São aqueles que correm atrás da felicidade, porém de todas as maneiras erradas, acabam perdidos no meio do caminho e seduzidos pelas forças do mal. É exatamente por isso que na série, diferen-

que Meryl Streep (!). Não é de surpreender. São os vilões que transpassam a linha entre o que é certo e o que é errado, são eles que optam pelos caminhos, ainda que moralmente questionáveis, que todos nós temos vontade de tomar. O resultado não podia ser outro: são eles também que se transformam em personagens mais interessantes. É por esse motivo que eles fascinam e, aparentemente, estão dando tanto pano para manga. Once Upon a Time tem mocinhos, príncipes, heróis e fadas aos montes, mas o que segura a história em pé e o que realmente esperamos para ver toda semana são a magia negra e as rainhas más.

DIVULGAÇÃO

No ano passado, escrevi um texto sobre o então recém-lançado Branca de Neve e o Caçador, de Rupert Sanders. Comentei o fato de finalmente alguém estar preocupado em fazer com que os contos de fada deixem de ser os mundos maniqueístas que conhecemos nas histórias da Disney, criando personagens mais complexos e com motivações menos ingênuas que as que transparecerem nos clássicos. Coincidência ou não, cerca de dois meses depois, fui apresentada a uma série da emissora americana ABC, Once Upon a Time. O melhor resumo que consegui da história é aquele que ela própria oferece nos minutos iniciais de seu primeiro episódio: “Havia uma floresta encantada onde viviam todos os clássicos personagens que conhecemos. Ou pensamos que conhecemos. Um dia, eles foram levados a um lugar em que todos seus finais felizes foram roubados. Nosso mundo. Foi assim que tudo aconteceu...” O roteiro de Edward Kitsis e Adam Horowitz, os mesmos de Lost, tenta fazer precisamente aquilo que me levou a dar certo crédito à Branca de Neve de Sanders: explicar as histórias por trás das histórias, contar-nos o que aconteceu depois (e antes) do “felizes para sempre”. Como foi o casamento do príncipe e de Branca de Neve? Quem era a vovozinha de Chapeuzinho Vermelho? Como a Rainha Má se tornou tão assustadora? Resultado: muito melhor do que o esperado. Confesso que foi com certo receio que assisti aos primeiros episódios, mas a série consegue fazer jus às histórias originais sem deixar de apresentar novos elementos. Como era de se esperar, o grande trunfo de Kitsis & Horowitz é criar personagens interessantes. O núcleo da trama é a história de Branca de Neve, portanto a primeira temporada (nos EUA, está em exibição o segundo ano da série) gira em torno da família da princesa e seus inimigos. Os personagens são famosos, mas caracterizados de maneira bem diferente da que estamos acostumados. Branca de Neve (Ginnifer Goodwin) não é uma princesinha inocente esperando pelo príncipe encantado, pelo contrário, ela é quem salva o príncipe em mais de uma oportunidade. O próprio príncipe ( Josh Dallas) está longe de ser o símbolo da perfeição. E a Rainha Má (Lana Parrilla) é apresentada logo de cara se afastando o máximo possível da versão original de uma velha senhora carregando uma maçã, o que já acaba com a ideia de que seu motivo para matar a princesa seria a luta por conservar o posto de mais bela do reino. Além disso, ao invés de começar “do começo”, o pilot tem início exatamente no final da história, no momento em que o Príncipe Encantado quebra a maldição e acorda Branca de Neve de seu sono de morte. A partir daí, os autores criam sua própria versão dos eventos: o

que acontece depois do “felizes para sempre”? Além de a história ser contada na Floresta Encantada, por meio de flashbacks, ela também se passa em tempo presente, em nosso mundo. Quando os personagens são trazidos para cá, todos eles vão parar em uma cidade nos Estados Unidos (lógico) chamada Storybrooke, em Maine. Lá, a Rainha é a prefeita e comanda o restante da cidade, que não tem qualquer lembrança de suas vidas passadas. Contando paralelamente as histórias no passado e no presente, a série consegue explicar o que aconteceu para que chegássemos em Storybrooke e, o que é mais importante, reunir em uma só narrativa vários contos de fadas que até então não tinham qualquer relação. É assim que a Chapeuzinho

CULTURA&ARTE

MARCELA MATTIUZZO (TURMA 182)

31



Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.