CDM 52 - Digital

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ano 17 - edição 52 | outubro de 2019

revista corpo da matéria CURSO DE JORNALISMO PUCPR

Ruas em verde e amarelo Locação de bicicletas e patinetes é nova opção de transporte


Corpo da matéria Ano 17 - Edição 52 - Outubro de 2019 Revista Laboratório do Curso de Jornalismo PUCPR Pontifícia Universidade Católica do Paraná R. Imaculada Conceição, 1115 Prado Velho, Curitiba PR REITOR

Waldemiro Gremski DECANA DA ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES

Eliane C. Francisco Maffezzolli

COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO

Suyanne Tolentino De Souza COORDENADOR EDITORIAL

Suyanne Tolentino De Souza COORDENADOR DE REDAÇÃO/JORNALISTA RESPONSÁVEL

Paulo Camargo (DRT-PR 2569)

COORDENADOR DE PROJETO GRÁFICO

Rafael Andrade MONITORIA

Andressa Carvalho Alunos - 6º Período Jornalismo PUCPR Camila Dariva, Emilia Jurach, Lamartine Lima, Paula Moran, Talita Laurino, Thaís Mota, Thiago Rasera e Yuri Bascopé.

Imagem de capa: Thiago Rasera 6ºP Jornalismo

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SOCIEDADE

Novidades no tranporte

A busca pelo espaço

Limites nas universidades

Vidas positivas

Intolerância alimentar

4 8 14

SAÚDE

20 24

CULTURA

Lute como uma artista

28

COMPORTAMENTO

O eco sustentável Rock na capital

32 36

ECONOMIA Comércio informal

ESPECIAL: A VIDA QUE NINGUÉM VÊ Exclusão e a necessidade

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Crenças africanas

A senhora dos milagres

Mulheres no jornalismo esportivo

Os faróis que perderam a luz

Mães desempregadas

Trangenêros ocupam a internet

A arte que tranforma

44 48 54 58 58 64 70 74

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Thiago Rasera

Curitibanos deixam de lado o trânsito por novidades no transporte Bicicletas e patinetes são a nova febre pelas ruas da capital Thiago Rasera

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Thiago Rasera

Bikes já estão presentes em 12 cidades brasileiras.

Q

ue Curitiba é uma das cidades mais modernas do Brasill e do mundo não é novidade. No embalo da modernidade da cidade, os meios de transporte aos poucos apresentam novidades tecnológicas na capital paranaense. Andar de bicicleta, patinete ou até mesmo conseguir uma

O analista de sistemas Jean Carlos Castro Festa é usuário das Yellow Bikes desde o início deste ano. O jovem de 21 anos, conheceu o sistema “dockless” em outras cidades brasileiras, e na curiosidade de saber se a capital paranaense suporta o mesmo serviço, foi atrás das bicicletas para avaliar a Start Up. “Foi muito boa, pela facilida-

“É algo que pode em grande escala

ajudar um pouco na questão do trânsito, porém que instigam as pessoas a criar esse hábito diferente de utilizar bikes para se locomover.” Jean Carlos, analista de sistemas carona está mais acessível para quem mora ou visita a cidade. Um exemplo disso são as Yellow Bikes, que desde janeiro fazem parte das vias de alguns bairros de Curitiba, e estão disponíveis para o usuário no sistema ‘’dockless”, que permite ao ciclista buscar o veículo sem uma estação pré-definida. Atualmente, a empresa Yellow conta com 400 bicicletas e cem patinetes rodando diariamente pela cidade, segundo dados divulgados pela empresa em seu portal.

de em comparação aos outros modelos nas outras cidades. Não existe um ponto fixo para as bicicletas, o aplicativo funciona muito bem e é muito fácil pegar uma bike, assim como é muito mais fácil deixar o veículo travar após o uso.” O usuário das bikes amarelas elogia o serviço da empresa e afirma não enfrentar dificuldades ou ter encontrado algum problema com a Yellow. Além de elogiar a qualidade das bicicletas, Jean também classificou como exce-

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O preço do uso das bikes amarelas também é um assunto de interesse aos usuários. O serviço acessível e mais barato que os convencionais atrai usuários para o aplicativo, como é o caso do analista técnico em telefonia Eduardo Gorczyka que escolheu a Yellow como veículo dos fins de semana. “Eu utilizava muito o carro, seja para passear ou para ir comprar alguma coisa, mas enfrentava alguns problemas como trânsito lento em algumas vias, e até mesmo o alto gasto com combustível do veículo.” Gorczyka conta que com a Yellow conseguiu reduzir muito o custo com transporte nos fins de semena, e para ele, esse é fator mais positivo no serviço.

Curitiba, onde visita sua irmã que reside na capital paranaense. O jovem, de apenas 13 anos, já demonstra todo o seu fascínio pelo serviço, no qual além de viver uma experiência nova, ainda se torna uma fonte de diversão para o garoto. Ele conta que em uma viagem à Curitiba viu que havia muitas pessoas utilizando os patinetes da Grin. “Foi uma surpresa, pois até então eu só conhecia as bicicletas da Yellow. Além de serem elétricos, através de um aplicativo é possível andar de patinete! É algo muito legal, muito legal mesmo, eu fiquei muito encantado pelo o que estava vendo”, responde

Pontos positivos das Yellow Bikes: - Fácil de encontrar - Serviço barato - Bicicletas em bom estado - Sem segredos para utilizar

Pontos negativos das Yellow Bikes: - Área de circulação restrita

Thiago Rasera

em grande escala ajudar um pouco na questão do trânsito, porém que instigam as pessoas a criar esse hábito diferente de utilizar bikes para se locomover, e o principal, recomendaria pois o serviço funciona muito bem, e até a segurança com as bikes é muito bem pensado.”

Com o destaque imediato pelos usuários, e visando melhorar ainda mais o sistema “dockless”, as empresas Yellow e Grin anunciaram uma fusão ainda em fevereiro, o que faz com que Curitiba tenha 600 patinetes disponíveis, e uma maior expansão na área de acesso ao serviço das bikes e patinetes compartilhados.

GRIN BRASIL Aproveitando o sucesso das bicicletas amarelas, a empresa Grin iniciou a sua operação em Curitiba no mês de fevereiro. Segundo a empresa, foram disponibilizados mais de 500 patinetes verdes pela cidade, espalhados em 70 estações. Com a criação da Grow (Empresa resultante da fusão entre Grin Br e Yellow US), o serviço se tornou mais amplo na cidade de Curitiba, se estendendo por bairros como Alto da Glória, Batel, Bigorrilho, Centro, Centro Cívico, na qual o aplicativo irá direcionar o usuário a estação mais próxima localizada nesses bairros. Os patinetes não chamam atenção somente dos curitibanos. Quem vem de fora também sente curiosidade em dar uma volta com o patinete verde, como foi o caso do turista Eduardo Jurach, vindo de Telêmaco Borba para

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A Grin está em operação em países como Brasil, México, Argentina, Colômbia, Chile, Uruguai e Peru.


com empolgação. Já a estudante de Educação Física, Larissa Oliveira, viu nos patinetes uma nova maneira de se deslocar até a faculdade, que se localiza na área qual a empresa opera. Ela garante que seus dias se tornaram mais animados com o uso do patinete, pois o mesmo é uma forma de se sair da rotina e tornar o trajeto mais agradável, e por que não, mais radical. “Eu não moro muito longe da faculdade, sempre fiz esse percurso de carro ou ônibus, era rápido na teoria, mas com o Grin fica mais rápido ainda e, particularmente, me traz uma sensação que nenhum outro me trouxe até agora, que é de

balanço final sobre o preço de cada um dos serviços.

Pontos positivos do patinete Grin:

No primeiro dia, utilizei a Yellow bike para percorrer um percurso relativamente curto pelo centro da cidade, entre o Shopping Estação, localizado na Avenida Sete de setembro, até o Hospital de Clínicas, à Rua General Carneiro, no Alto da Glória. A distância percorrida foi de quase 3 km e durou mais ou menos 15 minutos para ser completado. Ao fim da corrida, o preço ficou próximo de R$ 2, mostrando que o serviço da Yellow pode ser rentável para quem percorre distâncias curtas dentro da cidade. Já a qualidade do equipamento se mostra muito boa, na

- Atrativo - Novidade - Divertido - Fácil de encontrar

Pontos negativos do patinete Grin: - Preço elevado - Pouco seguro - Requer prática para pilotar - Área de utilização restrita

“Particularmente, me traz uma

sensação que nenhum outro me trouxe até agora, que é de liberdade, de aventura, é realmente um serviço muito gostoso de se utilizar.” Larissa Oliveira, estudante liberdade, de aventura, é realmente um serviço muito gostoso de se utilizar.”

qual a bicicleta apresenta manutenção em dia e com material resistente e com qualidade.

Segundo informações divulgadas pela Grin em sua página oficial, para desbloquear o patinete o usuário deve pagar o valor de R$ 3 e mais o primeiro minuto de uso, que equivale a R$ 0,50, porém, quem utiliza a Grin pela primeira vez, ganha de cortesia os primeiros dez minutos de uso dos patinetes. Além do preço, a empresa também informa que os usuários devem seguir algumas normas de segurança, como por exemplo, trafegar em ciclovias, e que caso não se tenha acesso a via e tenha que trafegar em calçadas, a velocidade máxima permitida é de 6 km/h.

Já os patinetes verdes da Grin não tem a mesma vantagem das bikes amarelas. Além de apresentarem um valor elevado, ainda exigem um cuidado redobrado do usuário. Em um caminho entre o Tribunal de Justiça, localizado na Avenida João Gualberto, no Alto da Glória até a Praça do Japão, no bairro Água Verde, os patinetes requisitaram de mim uma certa habilidade com veículos motorizados, pois ele apresenta uma aceleração rápida e uma frenagem mais brusca, o que por vários momentos me causou bons sustos durante a viagem de pouco mais de 3 km. O preço do serviço que durou mais ou menos 28 minutos ficou na casa dos R$ 20, um valor bem acima do apresentado pelas Yellow Bikes, que em um trajeto de quase a mesma duração não chegou aos R$ 2.

MEU FIM DE SEMANA COM AS NOVIDADES COLORIDAS Acabei optando por utilizar as Yellow bikes e os patinetes da Grinbr por um fim de semana, no qual focamos em mostrar as novidades, pontos positivos, pontos negativos e fazer um

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Lamartine Lima

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A busca pelo espaço Pessoas com deficiência lutam pela inclusão por meio da acessibilidade, que ainda é falha Lamartine Lima

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É

natural que muitas pessoas tenham medo do escuro, mas e quando ele é a única realidade? Abandonar tudo para morar na capital. Deixar para trás família, conforto e bens, agora imagine fazer tudo isso sendo cego. Foi o que aconteceu com o auxiliar administrativo Marco Aurélio Fidalgo, de 34 anos. Natural de Arapoti, norte pioneiro do Paraná, mais novo de três irmãos, Marco Aurélio nasceu cego. Por isso, desde pequeno sempre recebeu muita atenção de seus pais e de todos a sua volta. Hoje em Curitiba, ele mora em uma pequena casa de três cômodos localizada no coração da Cidade Industrial de Curitiba (CIC), mais especifica-

por música e sempre que possível vai a espetáculos e shows, mas que muitas vezes encontra dificuldades com a acessibilidade, já chegando a passar por situações constrangedoras. “Eu entrava na casa de shows e estava chovendo. O piso além de não ser tátil ainda era muito malcuidado e estava escorregadio, então eu cai. Por sorte, não quebrei nada, só me ralei e molhei, mas fiquei muito sem jeito no momento. Lembro que umas quatro pessoas vieram ver se estava tudo bem comigo, porque o tombo foi bem feio”, relata. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), aproximadamente 10% da população mundial tem algum tipo de deficiência. No Brasil,

“Muito ao contrário do que várias

pessoas acham, eu sou não infeliz ou fico triste por conta da minha deficiência, amo minha vida e sempre tento transmitir a paz que sinto para todos em minha volta.” Marco Aurélio Fidalgo, auxiliar administrativo mente na Vila Nossa Senhora da Luz. Lá, Marco Aurélio recebe a todos que chegam com um sorriso contagiante e um forte aperto de mão. Mas diferentemente do que muitos pensam, Fidalgo não se deixa abalar por conta dos problemas enfrentados. “Muito ao contrário do que várias pessoas acham, eu não sou infeliz ou fico triste por conta da minha deficiência, amo minha vida e sempre tento transmitir a paz que sinto para todos em minha volta.” Mas, apesar disso, o auxiliar administrativo se queixa de um conhecido problema enfrentado por portadores de algum tipo de deficiência: a acessibilidade. O fascínio pela cultura desde a infância é uma característica comum entre as pessoas com deficiência. Marco Aurélio conta que sempre foi apaixonado

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dados do censo de 2017 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que 45.606.048 milhões de pessoas têm algum tipo de deficiência, o equivalente a 23,9% do total da população. A deficiência pode ser auditiva, mental, motora ou visual. Segundo o censo de 2010 do IBGE, a deficiência mais recorrente no Brasil é a visual, com 18,6%; seguida da motora, 7%; auditiva, 5,10%; e por fim, da deficiência mental, 1,40%.

RECOMEÇO Filho de comerciantes, Danilo Saboia Mima, de 28 anos, também é deficiente físico. Natural de Curitiba, o jovem ficou paraplégico após um acidente de carro, há 14 anos. Entretanto, a boa condição financeira dos pais e o


Arquivo pessoal

Aproximadamente 23,9% da população brasileira sofre com algum tipo de deficiência. suporte psicológico dado pela família o auxiliaram em sua recuperação e o ajudaram em um recomeço.

e amigos, eu decidi que queria continuar os estudos e também voltar a praticar esportes.”

Diferentemente de muitos portadores de necessidades especiais, Mima frequentou o ensino superior. Prestou vestibular para Administração e Ciências Contábeis, sendo aprovado em três universidades. Entretanto, Mima conta que na época em que frequentou a faculdade sofreu muito por conta da acessibilidade e preconceito que. “Entrei com quase 20 anos, e é uma época da qual lembro com muita alegria, pois apesar de todas a dificuldades que eu tinha eu consegui entrar. Porém, também fico triste de lembrar de alguns episódios como no primeiro dia de aula, em que eu não conseguia ir até minha sala, pois eu não tinha como subir escadas e não havia elevador. O pior foi que alguns alunos, ao invés de me ajudarem, ficaram rindo. Minha vontade era desistir de tudo”, conta.

A paixão pelo esporte deu uma nova perspectiva de vida para Mima. Após ficar paraplégico ainda jovem, ele encontrou um recomeço nos esportes. “Como a maioria dos meninos, eu também sonhava em ser jogador de futebol. Queria jogar no time do coração, ir para fora e defender a seleção, ainda sim pratiquei outras modalidades, lutei judô e fiz natação, mas foi o basquete que mudou minha vida”, relata.

Mesmo com a dificuldade de locomoção e acessibilidade, Mima não deixou de lado a paixão de infância, o esporte. “Eu sempre fui uma criança muito ativa. Na adolescência, usei disso e concentrei na prática de esportes, o meu maior amor. Então, foi uma fase muito difícil quando eu perdi o movimento das pernas, fiquei desnorteado. Porém, com a ajuda da minha família

E não foi por acaso que Mima escolheu o basquete em cadeira de rodas. O esporte foi inicialmente praticado por ex-soldados norte-americanos que haviam sido feridos durante a Segunda Guerra Mundial. É uma modalidade que oferece acessibilidade para pessoas que têm deficiências parecidas com a de Mima, mas que ainda querem praticar algum esporte. Também é prático, sendo necessário apenas uma quadra com cesta e uma bola. Entretanto, Mima se diz decepcionado quando se trata de acessibilidade em estádios e arenas esportivas. “Como amante eu sempre tento ir aos jogos, seja de futebol ou basquete, mas é difícil por conta da acessibilidade. Se for um lugar mais novo tudo bem, mas

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quando é uma estrutura mais antiga é complicado, pois quase sempre não é adaptada e eles nem se preocupam em adequar-se”, conclui.

O QUE É DEFICIÊNCIA? A Organização Mundial de Saúde (OMS), tem um sistema de classificação de deficiência. Desse modo, segundo a Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e Desvantagens (CIDID), deficiência é caracterizada por qualquer perda ou anormalidade relacionada à estrutura ou à função anatômica, fisiológica ou psicológica. Logo, trata-se da exteriorização de um dos sintomas. Há também a teoria que prega que não se trata de uma doença, mas sim entende-se a deficiência como uma

Luana por volta dos 18 meses. “Enquanto meu sobrinho, que era aproximadamente dois meses mais novo já arriscava sílabas, a Luana não falava nada. Além disso, ela não emitia reação alguma diante de sons que eram produzidos próximos a ela,” Foi aí que Christina resolveu procurar ajuda médica e acabou descobrindo a deficiência auditiva da filha. A mãe de Luana conta que apesar da deficiência a filha sempre foi muito estudiosa. A jovem frequentou escolas para crianças especiais, onde aprendeu a se comunicar pela Língua Brasileira de Sinais (Libras). E foi assim que a jovem teve acesso e adquiriu o gosto pela cultura. A prova disso são as prateleiras cheias de livros e filmes em sua casa. “Por conta do meu problema, sempre tive dificuldade para

“Por conta do meu problema,

sempre tive dificuldade para me socializar, já que não consigo me comunicar com todos. Por isso, desde pequena, eu encontrei um refúgio nos livros e filmes, eles são como se fossem minha voz.” Luana Meira Hartmann, estudante condição na qual há a falta de estrutura, bens ou de serviços, que são capazes de garantir o bem-estar dos indivíduos. Logo, agora a classificação pode ser feita a partir da falta de recursos disponíveis na comunidade na qual o indivíduo está inserido e não apenas na sua condição em si.

A CULTURA É MINHA VOZ “Pode falar comigo, sou eu que ajudo a Luana a se comunicar”, assim diz Christina Meira dos Santos Hartmann, de 44 anos, mãe de Luana Meira Hartmann, que é surda. Luana é natural de Curitiba e tem 19 anos. Ela nasceu surda. Christina conta que suspeitou que tinha algo de errado com a filha

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me socializar, já que não consigo me comunicar com todos. Por isso, desde pequena, eu encontrei um refúgio nos livros e filmes. Eles são como se fossem minha voz”, relata Luana por meio da mãe. Apesar do gosto, Luana conta que a jovem sempre enfrentou dificuldades quando buscou frequentar o meio cultural. “Sempre foi muito difícil. Embora eu goste muito, é complicado ir aos lugares. Em cinema, livraria e shows é bem difícil por conta da falta de adaptação para nós, deficientes auditivos. Já em museus, até é viável, mas depende muito de qual, já que nem todos estão preparados para receber pessoas especiais”, conta a jovem.


Segundo a pedagoga especialista em inclusão e acessibilidade de pessoas especiais, Cléia Gonçalves Carrera, a acessibilidade não deve apenas estar presente na lei. Ela também deve fazer parte do dia a dia de todas as pessoas que tem necessidades especiais. “Temos leis como a nº 7.853/89 e a nº 10.098/2000, que asseguram a acessibilidade para pessoas que sofrem quaisquer tipos de deficiências, entretanto, não é o que vemos em nossa sociedade. Algumas pessoas não podem usufruir de equipamentos culturais como cinemas, museus, casas de shows e arenas esportivas, porque não há adaptação para elas, e o mais agravante disso tudo é que também não há fiscalização.” Para Cléia, a acessibilidade é essencial até mesmo para o bem-estar das pessoas que tem algum tipo de deficiência. “Vai muito além de apenas uma ferramenta de inclusão social que está presente na lei. Significa sentir-se aceito, estar representado, feliz e ter seu espaço, assim como eu e você temos”, conta a pedagoga.

O QUE PREVÊ A LEI? A Constituição prevê igualdade para todos. Assim, é de responsabilidade do governo criar as condições capazes de fazer com que as pessoas que enfrentam situações desiguais consigam atingir os mesmos objetivos do restante da população. Para isso, o Estado deve se colocar no seu papel de promotor dos direitos individuais e sociais, fazendo isso por meio de políticas públicas de inclusão de minorias e dos mais vulneráveis, seja por qualquer questão. A Lei nº 7.853/89 e o Decreto nº 3.298/99 estimulam a política nacional para a criação de meios de integração da pessoa portadora de deficiência, criando assim as principais normas de acessibilidade para deficientes. Já o decreto nº 5.296/2004, regulamenta as Leis 10.048/2000 e 10.098/2000. A primeira dá prioridade de atendimento às pessoas com deficiência e mobilidade reduzida, já a segunda estabelece normas e critérios para a promoção da acessibilidade.

Arte como ferramenta de inclusão Hellen Mieko é cega, e foi por meio da cultura que ela lutou por igualdade e conquistou o seu espaço. Hellen se tornou atriz e já participou de diversos espetáculos teatrais. “A arte mudou minha vida, ela me permite viver por meio dela, viver a minha essência. Eu acho que é importante encarar, viver, aceitar os desafios que a vida propõe e não ter medo.” Para a atriz, no teatro a mudança deve acontecer não apenas por meio da adaptação das peças teatrais, mas também pela produção de espetáculos próprios para pessoas que sofrem com deficiência. Segundo ela, muitas peças não utilizam o método de dramaturgia inclusiva ou do recurso da audiodescrição, algo que é extremamente necessário.“ É muito mais interessante o texto em que eu pudesse ter elementos que eu não precisasse, por exemplo, da audiodescrição, igual a gente fez com nossa peça, O Dia de Jogo.”

Hellen acredita que a acessibilidade é essencial para que a inclusão exista, e que se depender dela, se tornará algo cada vez mais comum. A atriz conta que fará o esforço necessário para incentivar as pessoas a assistirem peças com audiodescrição. “Então, tem muito chão pela frente com relação a isso. Eu estou particularmente procurando fazer minha parte. Tudo bem, eu sou uma, mas eu posso trazer mais pessoas comigo”. Para ela, o incentivo a acessibilidade e inclusão é mais que necessário, mas para isso, é crucial que todos pelo menos busquem adentrar no mundo das pessoas com deficiência. Além de atriz, Hellen também faz consultoria para espetáculos e é formada em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Entre as produções de qual participou, estão: Cachorro, Dia de jogo e Tudo que Vi de Olhos Fechados.

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Limites nas universidades: a corda bamba entre a brincadeira eo assédio O choque, o trauma e o medo que as vítimas sentem ao olhar para seu assediador é um drama recorrente nas instituições 14 revistacdm | sociedade

Thaís Mota


“F

oi um longo período de assédio, que durou do segundo ao décimo segundo período. Eu procurei o professor, porque tinha interesse na especialidade em que ele trabalhava e comecei a acompanhá-lo em diversas atividades, junto com mais duas colegas.Claramente, desde o início, ele dava preferência a mim, falava mais comigo e me oferecia mais oportunidades. Eu o admirava muito… Mas logo ficou evidente que o interesse dele era diferente do meu. Um dia ele falou: “Sabe, se uma garota achasse que está sendo assediada e decidisse falar para a direção, ninguém acreditaria, porque seria a palavra dela contra a de alguém com muito mais importância”. Eu sabia que era de mim que ele falava, mas fiz cara de desentendida.” Esta é uma parte do relato de Aline*, uma médica que, para proteger a própria imagem, decidiu não se identificar. Entre murmúrios inquietos e vozes abafadas, ouve-se falar em assédio nas universidades do país, sejam as vítimas homens ou mulheres. Todo mundo, ou quase todo mundo, já teve a oportunidade de conhecer alguma história que não teve um final feliz. “Eu tinha uns 19 anos quando tudo começou e ele devia ter mais de 60. Era casado, tinha filhas quase da minha idade. Ele me oferecia caronas, ligava bastante e convidava para sair, para jantar… começou a encostar, chegava sempre muito perto de mim e também fazia massagem nos meus ombros enquanto eu escrevia o que ele mandava. Como eu o admirava muito profissionalmente, achava que só podia ser culpa minha, que eu devia ter de alguma forma me insinuado sem querer e, por isso, nunca consegui ser muito incisiva em me afastar. Me sentia muito culpada mesmo, mas eu queria tanto os estágios. Aos poucos, ele se sentia mais à vontade para tocar minha cintura. Um dia, dentro da sala de aula, passou a mão nas minhas costas por baixo da blusa. Eu fiquei paralisada. Acho que alguns * Nome fictício

colegas perceberam o que ele tinha feito, mas, a essa altura, todos sabiam parte do que acontecia e imagino que até achassem que eu gostava disso”, lembra Aline. No dicionário Michaelis, assédio se refere à “insistência impertinente, em relação a alguém, com declarações, propostas e pretensões”. Enquanto a expressão assédio moral significa “ a) exposição do trabalhador a situações humilhantes, geralmente repetitivas e prolongadas, durante a jornada de trabalho, por parte de seu superior hierárquico, que o ridiculariza e hostiliza, provocando constrangimento, insegurança”, o assédio sexual é a “insistência inoportuna com intenções sexuais; b) constrangimento em alguém com o intuito de obter favorecimento sexual, prevalecendo o agente de sua condição de superior hierárquico”.

“Eu nunca entendi bem o que aconteceu. Ninguém falava em assédio há 15 anos.” - Aline, médica Talvez agora você entenda os números a seguir. A equipe de reportagem da CDM aplicou um questionário nas redes sociais e obteve resposta de 68 mulheres participantes. A pesquisa foi aberta para ambos os públicos, masculino e feminino. Desse número total, 49 delas (72,1%) afirmam ter sido assediadas durante a graduação. Dos 49 casos de assédio, em 21 deles o assediador foi o professor; 17 foram praticados por outros estudantes e, em 11 casos, o assédio veio tanto de docentes quanto de colegas. Esta reportagem foca no assédio contra mulheres, que são o grande público atingido, mas é certo de que desse mal poucos escapam: ninguém escolhe ou quer ser vítima. Seja dentro da sala de aula, no câmpus ou nas festas, o assédio existe e se torna um drama recorrente nas universidades brasileiras - sem exceções. Um dia você fica sabendo de uma história aqui,

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O assediador Mais de uma opção

22,4% 42,9%

Estudante

Professor

34,7% Fonte: Pesquisa realizada via redes sociais com um total de 68 mulheres participantes.

outra ali, mas nunca vai imaginar que aconteça com alguém ao seu lado e, acredite, muitas vítimas de assédio nem imaginam que a mesma situação possa estar acontecendo com alguém tão próximo. “Até hoje não sei o que não deixava me afastar completamente. Acho que era a sensação de culpa e a imensa admiração que eu tinha. Em nenhum momento pensei em denunciar, nem mesmo fui incentivada pela terapeuta a denunciar. Eu nunca entendi bem o que aconteceu, ninguém falava em assédio naquela época”, finaliza Aline. Quem é que tem coragem de falar em assédio em universidade? O ambiente hierarquizado e com limitadas possibilidades de punição, acabam abafando escândalos e histórias de assédio entre professores e alunos, que, muitas vezes por medo de serem prejudicados durante a graduação, preferem se manter calados. Outras vítimas até denunciam, mas nem sempre as denúncias avançam. A história que a jornalista recém-formada L.B. (a entrevistada pediu que fossem usadas apenas suas iniciais) conta tem relação com hierarquia e aconteceu em uma universidade privada paranaense. A estudante é naturalmente uma pessoa muito simpá-

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tica e espontânea, estudiosa, sempre muito aberta às pessoas. Quando um de seus professores fazia brincadeiras, L.B. entrava na piada e brincava também, mas nunca se sentiu humilhada ou que havia passado do ponto. Era algo normal entre professores e alunos. Ela conta que, como o professor dava liberdade para brincar, ela brincava, mas ela nunca deu liberdade para

“Se você não está confortável em uma situação é porque ela passou do ponto.” - L.B., ex-estudante educador algum passar dos limites estabelecidos entre professor/aluno. “Chegou a um ponto em que ele começou a me mandar mensagem de madrugada, tipo às 3 horas da manhã”, explica. Certo dia, a estudante foi fazer uma prova sobre um livro, obra da qual gostou tanto que, ao fim da avalia-


ção, quando todos já haviam saído da sala, decidiu debater com o professor. Ele começou a agir diferente, elogiar muito e ela, claro, entendeu que ele estava falando dela fisicamente. “Foi aí que eu comecei a me sentir estranha e eu acho que, quando você começa a se sentir assim, você sabe que é assédio. Se você não está confortável em uma situação, é porque ela passou do ponto”, afirma L.B. De acordo com a psicóloga Andressa Schmidt, assédio é assédio independentemente de quem o comete ou do vínculo que se tem. “O assédio no ambiente universitário não é só sexual, mas uma mão ali na hora de estar aconselhando; é um comentário sobre o tipo de roupa que se está usando, o tipo de postura”, explica a psicóloga. As brincadeiras e “elogios” foram ficando cada vez mais íntimos e intensos. “Eu demorei muito pra acreditar, ele ultrapassou a liberdade que eu nunca dei a ele.” L.B começou a ter medo de ficar com o tal professor na aula e até chegou a se autossabotar - deixou de finalizar uma prova por medo de ser a última aluna a sair da sala, mesmo sabendo todo o conteúdo pedido. L.B pediu para que um amigo fingisse ser o seu namorado porque, talvez

assim, o professor parasse com as atitudes tomadas até então. O rapaz foi prejudicado - e até foi para exame final -, quando o assediador soube da relação que ele tinha com L.B. Ela também foi prejudicada quando o professor se recusou a ajudar com um trabalho. “A gente passou um período sem ter aula com ele, mas depois voltou. Ele não dava aula direito e nem ligava para a matéria. E, então, a minha sala decidiu reclamar para a coordenação. Foi quando uma menina começou a contar que havia sido assediada por ele e eu pensei ‘Uau!’, ela também passou por isso e estava bem ao meu lado.” A atual coordenadora do curso, entretanto, afirmou que naquela época - em que ainda não era coordenadora - medidas foram tomadas contra o professor denunciado. Das 49 mulheres que já passaram por situação de assédio durante a graduação, 45 delas (93,8%) afirmaram que a universidade não solucionou o problema e nem mesmo acolheu as vítimas, segundo o questionário aplicado pela equipe da revista CDM nas redes sociais. A relação de superioridade e hierarquia dos professores afronta mulheres

Thaís Mota

O relacionamento entre professor e aluno está cada vez mais distante por conta do medo de assédio.

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a fazerem denúncia e isso se replica nos diversos moldes e ambientes da lógica patriarcal. O suporte de colegas e dos coletivos feministas universitários e escolares, além do apoio de docentes, entretanto, auxilia a superação desses desníveis hierárquicos, segundo a advogada criminalista, especialista em Direito Público, Juliana Bertholdi.

“não tive coragem”; “não tinha apoio da coordenação”; “tive medo de prejudicar meus rendimentos acadêmicos”; “ninguém iria acreditar em mim”;“não sabia que era assédio”, entre outras palavras assustadoras, como “pensei que a culpa fosse minha.”

Depois da graduação, o drama continua A próxima história traz os relatos de A. F. (iniciais). Tudo começou quando ela terminou a faculdade e postou uma foto falando sobre a gratidão de seu último dia de aula. Um dos professores da universidade lhe enviou uma mensagem desejando felicidades e grandes voos. Conversa vai e vem sobre o fim da graduação, o professor contou sobre uma loja de roupas da qual é dono, pediu opiniões e convidou a ex-aluna para tirar umas fotos para a marca. Ela foi, obviamente estava ali para fazer as fotos, como combinado, e nada mais.

Existem uma série de mecanismos que podem ser acionados em caso de assédio no ambiente universitário – seja ele sexual ou moral. “A primeira instância que pode ser acionada é a administrativa, por meio das chamadas Sindicâncias e Processos administrativos disciplinares (PADs). Nesse caso, deve ser verificado qual o procedimento interno da universidade (Regulamentos e Estatutos) para promoção da representação do discente ou docente assediador. Nesse processo, as consequências para ao agressor condenado costumam navegar em um espectro que se inicia com a advertência e pode culminar na expulsão do agressor, seja este aluno ou professor”, explica Juliana.

O professor começou a puxar papos estranhos sobre como ela era bonita, o quanto ele a observava pelos corredores da universidade e como chamava a sua atenção. “Ele foi me elogiando de um jeito sutil, mas com uma liberdade que eu nunca o dei, e eu também não dava bola para o que ele dizia”, afirma.

No questionário realizado, quando perguntadas o motivo de não ter denunciado o assediador, algumas das respostas das vítimas foram:

Um dia, a jovem comprou camisetas da marca e passou para pegar o produto na

A universidade acolheu ou solucionou o problema? Sim 6,3%

93,8%

Não Fonte: Pesquisa realizada via redes sociais com um total de 68 mulheres participantes.

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casa do professor, que a convidou para ver o quadro que estava pintando e ela, que adora arte, respondeu que iria em cinco minutos, pois tinha de ir trabalhar. Os papos voltaram e, dessa vez, pessoalmente. Ana, logo em seguida, já secou as palavras, avisou que tinha namorado, que gosta do professor, mas como uma amizade. “A gente tem uma química legal, o que seu pai acharia se você namorasse um cara mais velho?”, ele perguntou. Ela, novamente, respondeu que não gostou daquela situação, que tinha namorado e que nada a mais ia acontecer entre eles. Era hora de sair dali. Quando Ana se virou para ir embora e, de repente, o professor lhe deu um beijo no pescoço. “O que você pensa que está fazendo? Não, isso não é brincadeira, é sério. Eu não te dei intimidade para fazer isso, não admito isso”, ela retrucou. Ele se fez de desentendido, como a maioria dos assediadores faz, e Ana disse a ele que isso poderia ser considerado assédio sexual. O professor ficou agressivo, muito bravo e se fez de vítima após a a jovem ter dito que aquilo era assédio. Ela foi embora e os dois nunca mais se viram pessoalmente. O professor acabou sendo demitido, mas não em decorrência deste relato, nunca notificado. De acordo com o mestre em Direito e doutor em Educação Sadi Franzon, do apoio regulatório da Reitoria da PUCPR, “quando se tratam de questões como o assédio, não há dúvida nenhuma de que a universidade tem todo o interesse em apurar e, sendo o procedente, tomar todas as medidas cabíveis.” Ele explica que se a situação envolver um docente ou um colaborador (pessoas que têm vínculo de trabalho com a universidade), existem todas as alternativas que a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) prevê para casos os citados na reportagem. “Vai desde uma advertência, uma suspensão, e pode ocorrer o desligamento do funcionário, seja ele sem justa causa

ou por justa causa. Essas são as alternativas de tratamento para questões como esta quando estiver, obviamente, comprovado que o fato existiu, com vítima e elementos que levem a essa conclusão”, afirma Franzon. Quando ocorre uma situação dentro da universidade e ela não vem a conhecimento das autoridades, a apuração e solução dos fatos se torna muito complicada. Por isso, a necessidade de se fazer uma denúncia se torna essencial no processo. A PUCPR possui diversos canais para denúncia de atos ilícitos, começando pela primeira instância, que é a coordenação do curso, passando pelo decano da escola, diretor do campus, e os canais gerais que servem tanto para a comunidade externa, quanto interna, que são o site e o número 0800, um canal direto para a auditoria interna. Sobre o trâmite do processo, Sadi explica que, “recebendo uma denúncia, ela vai receber um tratamento primeiro internamente e depois em conjunto com o gestor da área correspondente para se fazer uma investigação, porque ela pode ser procedente, como pode ser improcedente. Sendo procedente, é obrigação da universidade tomar as medidas cabíveis de acordo com a lei.” A denúncia pode ser feita anonimamente e com total sigilo pelo telefone e site da universidade, desde que informe detalhes que identifiquem a situação e quem se envolve nela. Quando apurado e iniciado o trâmite de denúncia é possível acompanhar o andamento do processo. Segundo a advogada Juliana, é possível ainda promover ações judiciais e boletim de ocorrência, mas o ideal, segundo ela, é sempre buscar suporte e orientação de um profissional da Defensoria Pública ou mesmo dos coletivos feministas . Mas, como tratar o assédio universitário onde há afronta por superioridade e falta de punição? De acordo com Juliana, Debater e conscientizar, demonstrando que o corpo discente não irá fazer vistas grossas a comportamentos inadequados e por vezes até mesmo criminosos é fundamental. Além disso, não obrigue ou julgue alguém que não fez a denúncia por medo ou qualquer outro motivo. Apoie.

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Vidas positivas

Talita Laurino

G

uto é movido a sonhos. Entre os mais importantes, três se destacam: dirigir, falar inglês e tocar violão. Quando ele tinha apenas 19 anos, o hoje militar reformado da Aeronáutica quase desistiu deles. Foi no ambulatório de um quartel general, no Rio de Janeiro, que Ruggery Gonzaga de Melo foi apresentado a um destino incerto. “Todos os exames estão ótimos, menos um”, disse o doutor. O jovem soldado repetiu essa frase para contar a sua mãe sobre a doença. A mesma que levou a vida de seu tio quatro meses antes. “É Aids?”, ela perguntou. E, quando a resposta foi afirmativa, dona Maria da Costa abaixou a cabeça e chorou. Depois desse dia, Guto nasceu pela segunda vez. Hoje ele já tem 28 anos.

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Tomado pela vergonha de contrair uma doença por via sexual, manter segredo dos colegas militares não era escolha, mas uma questão de sobrevivência. O soldado falava sobre o problema apenas com os médicos. Até que um dia a fofoca se espalhou. Guto descobriu o novo cochicho dos corredores quando um amigo alertou: “O general mandou tomar cuidado porque um soldado fez merda e está com Aids”.

doença foi quando ela tinha dois anos de idade. O diagnóstico tardio é consequência do preconceito.

Ouvir aquilo não foi fácil, mas engolir a seco era menos difícil do que assumir sua condição. Desde então, o rapaz assistiu aos colegas protagonizarem cenas de horror. Quando descobriram que o tal do soldado que fez besteira era Guto, então, o preconceito ganhou nome, idade e aparência física.

Alguns meses depois, quando Rafaela tinha apenas 3 anos, ela e sua irmã assistiram à doença levar a vida de seu pai. Acontecimento que se repetiu pouco tempo depois com sua mãe, vítima da falta de tratamento e da depressão. Apesar disso, elas nunca foram órfãs. Sônia Vieira Queiroz, a irmã do pai de Rafaela, e Carlos Augusto Queiroz, seu marido, adotaram as sobrinhas imediatamente.

“Limpa o banheiro porque o aidético fez a barba e está jorrando sangue”. “Não senta aí porque o aidético aca-

“Como o meu pai era hétero e existia a crença de que o HIV contaminava somente gays e hemofílicos demorou até ele fazer o teste, que comprovou a sua contaminação sanguínea. A sorologia da minha mãe em seguida foi confirmada e a minha também, só a da minha irmã que não”.

Hoje, Rafaela não lembra ao certo o nome completo de seus progenitores, “Foi há tanto tempo”, brinca como se fosse velha, e chama os tios de pais. Ela cresceu rodeada de amor e conhecimento. Não teve medo de gostar de si própria e nem tempo para sofrer pela Aids. Estava ocupada vivendo.

“Como o meu pai era hétero e existia a crença de que o HIV contaminava somente gays... demorou até ele querer fazer o teste.”

Na escola, recorda-se somente de um dia que se incomodou por conta do vírus. “Numa aula, a professora mostrou um livro que falava sobre o HIV e tinha na capa uma criança muito magra. Ela se referia aos personagens como ‘aidéticos’, pensei ‘Nunca vou contar para ninguém que eu sou uma’”.

Rafaela Queiroz, ativista

bou de deixar esse lugar”. “Se eu falar com um aidético, eu fico doente também?”, Guto escutava em silêncio. O jovem soldado decidiu então buscar ajuda. Encontrou força em um grupo chamado Amigos Positivos, nome que fez jus ao que ele procurava. Chegou à organização tímido, ainda com vergonha de falar sobre si. Até que uma moça negra, de cabelos cacheados e jeito doce ajudou a fazer a voz de Guto ser ouvida. Rafaela Queiroz, carioca da gema de 27 anos, ativista, feminista, influencer e psicóloga, também é soro positivo. Ela foi infectada pelo vírus quando ainda estava na barriga da mãe, por transmissão vertical. A descoberta da

O tempo passou e ela desistiu dessa ideia. Tornou-se cofundadora de muitas associações que falam sobre a Aids, inclusive a que acolheu Guto, e criadora de um portal no Facebook: o FlorescerS2. Na página da rede social, ela traz informações sobre empoderamento feminino negro e HIV. Sua luta diária é contra o preconceito e seu sonho é poder conhecer o mundo. O mundo, entretanto, não está tão aberto a Rafaela como a ativista está para ele.

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Arquivo pessoal

Ruggery Gonzaga é apaixonado pela cultura carioca.

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Um relatório publicado pela UNAIDS (vertente da ONU que combate o vírus) em 2015 divulgou que 36 é o número de países, territórios e áreas que ainda impõem alguma forma de restrição de entrada, permanência ou residência de pessoas com HIV, baseados em estado sorológico. No mesmo ano em que foi publicada a pesquisa, o Brasil mergulhou em uma discussão questionável. Foi à audiência pública a PL 198/15, que procurava criminalizar a transmissão do vírus. Na visão de Rafaela, a discussão na época só ajudou a estigmatizar ainda mais quem tinha HIV. Depois de muita pressão social e debates fervorosos, o projeto foi arquivado. Está em vigor somente a Lei nº 2.848, que classifica como lesão corporal grave a transmissão do vírus de forma proposital, realizada pelos chamados carimbadores. Os criminosos, porém, são a exceção da regra e, apesar deles, os números de infectados continuam controlados. No Paraná, por exemplo, de 2007 até 2018 foram computadas 17.661 mil pessoas com o vírus. Destas, 2.460 mil desenvolveram a doença. Enquanto do ano de 1984 até 2006 foram registrados 44.460 casos. A responsável técnica do órgão pelas doenças sexualmente transmissíveis, Mara Franzolo, chama atenção a uma novidade preocupante. “Homens cada vez mais jovens têm se infectado no Brasil. Antes o risco estava entre adultos de 30 a 39 anos, hoje está também entre jovens de 20 a 29 anos”, comenta.

os medicamentos quando sabem da doença. Eles se lembram de imagens como a de Cazuza na capa das revistas e acham que o tratamento vai deixá-los caquéticos e magros igualmente”. O infectologista é conhecido nas redes sociais como Doutor Maravilha. O profissional já soma mais de 21 mil followers em sua conta no instagram. Ele se dedica à criação de conteúdo sobre Aids. Em um de seus projetos, o doutor convida os seguidores a jantar com ele. “Muitos infectados têm vergonha de conversar sobre a doença com alguém. O momento de refeição é super importante porque é quando o ser humano se abre. Por isso, eu deixo um espaço na minha agenda para ouvir essas pessoas e ajudá-las”. Informar é a missão do médico. Ele passa bom tempo de seu dia produzindo conteúdo para as redes sociais. Em um de seus vídeos mais assistidos, Vinicius explica sobre a importância da prevenção e os novos métodos que a ciência vêm descobrindo. Guto não conhecia a Prep quando foi infectado, mas isso não o abala, pelo menos não mais. Na época em que o soldado reformado descobriu a doença, o que doía mesmo eram os comentários. Um dia, uma dessas amigas que o tempo faz questão de levar embora o fez uma pergunta infeliz. Ela disse: “Ô Guto, como você lida com a morte?”. O jovem respirou fundo, engoliu o nó na garganta e respondeu: “Da mesma forma que você.”.

O médico infectologista Vinicius Borges alerta para outro grupo que vem crescido exponencialmente: os idosos. “Com a popularização do viagra e outros métodos que devolveram uma vida sexual ativa às pessoas mais velhas, muitos têm aparecido no consultório com Aids. Já atendi pacientes de até 70 anos”.

É claro que a frase da colega se repetiu em sua cabeça várias vezes. “Ela acha que já estou morto só por causa da doença?”, dizia a si mesmo. E depois de muito filosofar sobre, concluiu: “Há uma coisa dentro de mim chamada vida, logo, dentro de mim também há algo chamado cura”.

Ele explica que o motivo disso é por essas pessoas participarem de uma geração em que não existiam campanhas a favor dos métodos contraceptivos. “Muitos ainda se recusam a tomar

Hoje, Guto toca violão, dirige e faz aulas de inglês. Realizar seus sonhos foi fácil, ele precisa de novos. Em busca disso, tornou-se harmonista da escola de samba do Rio de Janei-

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Nem “só um pouquinho” Na primeira vez ou depois de incontáveis ingestões, o perigo de ser ou tornarse alérgico a alimentos faz parte da realidade de uma porcentagem cada vez maior da população Camila Dariva

“Meu nome é Bia. Sabia que sou alérgica a ovo?” Aos 2 anos e sete meses, Beatriz já se mostra consciente sobre o assunto que dita tantas regras em sua vida. A orientação pela frase precisa e direta, vinda propositalmente já na apresentação, foi muito ensaiada pela mãe, a médica neurorradiologista Ana Caroline Chula. A gravidade da reação alérgica que Ana presenciou aconteceu quando a filha tinha nove meses e, embora ela já tivesse ingerido, tanto o alimento em si, quanto alimentos que continham ovo na composição – como o macarrão e outras massas –, o choque anafilático só aconteceu naquele dia. “Eu dei o alimento para ela, num raro dia que consegui ir para casa no almoço. Foram cinco colheradas de um risoto, com pedaços de ovos cozidos. Eu ainda amamentava, na época, e ela acabou rejeitando o almoço e

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pedindo para mamar. Foi então que os vômitos começaram.” Em um primeiro momento, a mãe não associou o ovo ao que estava acontecendo, mas, após o terceiro episódio de vômito, quando ela tirou a roupa da bebê para trocá-la, é que percebeu as manchas pelo corpo e o quanto a menina estava sonolenta. A reação anafilática evoluiu tão rapidamente, que as ações rápidas diante dos sintomas salvaram a vida da criança. “Quando associei ao ovo, prontamente dei um antialérgico oral para ela e liguei para o pediatra. Nesse meio tempo, ela já começou a apresentar as extremidades arroxeadas e angiodema. Corri para o Pronto-Atendimento do Hospital Pequeno Príncipe, onde ela foi rapidamente atendida com adrenalina, ainda na emergência.”

“Meu nome é Bia. Sabia que sou alérgica a ovo?” Beatriz D. Chula, 2 anos Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai), a alergia alimentar ocorre principalmente em crianças e a sua prevalência, que parece ter aumentado nas últimas décadas em todo o mundo, seja de, aproximadamente, 6%, em menores de 3 anos e de 3,5%, em adultos. O médico pediatra Orlei Kantor Junior alerta para o diagnóstico correto da alergia alimentar, que deve ocorrer por exames clínicos e investigação no histórico de cada paciente, com análises dos sintomas de forma exclusiva para cada pessoa. “Esqueça profissionais que fazem três perguntas e


Camila Dariva

A primeira vez que ganhou um chocole que carrega “ovo”no nome , Beatriz recuou e disse que não poderia comê-lo.

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ele, e somente profissionais especializados pode reconhecer esses casos. A SBP aponta que a faixa etária mais propensa a desenvolver alguma aversão a alimentos está nos dois primeiros anos de vida e que, de 70 a 80% dessas alergias desaparecem até os 5 anos. Os alimentos que se destacam como alergênicos são, em ordem, leite de vaca, trigo, ovo, castanhas e látex. A empresária de moda Ana Paula Pereira Pinni, de 37 anos, demorou muito tempo para descobrir que as bolhas que apareciam, eventualmente, em suas mãos e pés eram uma consequência da ingestão de tomates. Por ter consumido o alimento, sem nenhuma restrição, desde criança, ela não sabia que era ele que poderia estar ocasionando a reação. “Minha avó era muito alérgica a tomate e foi isso que me levou a fazer o exame e comprovar que se tratava do mesmo problema. Depois, percebi que a alergia não se dá apenas quando eu o como a fruta, mas, de uma maneira mais amena, as bolhas aparecem se passo perto de um pé do alimento.” Além do tomate, a empresária desenvolveu, de maneira tardia, alergia ao camarão e, esta, por sua vez, se apresenta de forma mais perigosa,

consumindo-o outras vezes, pode ser explicada, conforme aponta Kantor, pelo tempo e a quantidade que o organismo precisa para sensibilizar-se a ele. “A alergia ocorre porque tenho genes herdados das duas famílias. Não é porque eu como muito, como o alimento estragado e outras bobagens que se diz por aí. Tem alergia QUEM PODE, não QUEM QUER!” .

O caso da publicitária Ana Paula Luz, de 24 anos, é um pouco mais complexo. Com 14 anos ela começou a apresentar sintomas alérgicos no ouvido. Durante três anos, passou por especialistas que não conseguiam descobrir a origem do quadro, até que os exames e os histórico clínicos ajudaram no diagnóstico: Orlei Kartor Junior, tratava-se de reação alérgiao níquel, ao perfumes e médico pediatra ca ao cobalto. A alergia era tão intensa, que afetava também suas lágrimas. “Com 21 anos tive uma crise extremamente forte de disidrose [formacom o fechamento da glote – quando ção de pequenas bolhas nas palmas é necessário tratar com adrenalina, das mãos e nas plantas dos pés], e tendo risco de choque anafilático. descobri que, além dos produtos de limpeza, higiene e tudo mais que eu já A alergia tardia, comumente chamada evitava, o metal que estava presente quando uma pessoa “torna-se” alérginos alimentos que eu ingeria, como ca a algum alimento, mesmo já tendo feijão, cebola, cacau, cereais, algumas frutas e legumes, também me causava reação, assim como a panela onde ele era cozido.”

“Tem alergia quem pode e não quem quer.”

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Foi somente depois de um acompanhamento com nutricionista que Ana Paula começou a perceber a melhora. “Não consigo comer fora de casa, porque além da questão dos talheres – que precisam ser de plástico –, a dificuldade em encontrar lugares compatíveis com minhas restrições alimentares é algo impossível. Meu namorado que tem intolerância a lactose já não consegue e precisa andar com remédio, imagine eu.” A nutricionista Dalila Trevisan Marchese explica que o acompanhamento com profissionais, principalmente em casos de alérgicos, é fundamental. A substituição dos alimentos restringidos precisa acontecer com equilíbrio nutricional correspondente, para que não ocorra carência de vitaminas e nutrientes. Mesmo com o aumento no número de pessoas alérgicas no mundo, a realidade de suas restriçoões ainda não está bem inserida nele. Beatriz, por recomendação do pediatra, precisou adiar em um ano sua ida à escola. “Eu também não me sentia segura em deixá-la ir, quando era muito pequena, e precisei estudar muitos colégios, para optar por um que fosse preparado em lidar com uma possível reação. Este ano ela iniciou nele e todos lá levam muito a sério os cuidados, principalmente a inclusão, quando adaptam

receitas para que ela possa comer o mesmo tipo de comida que os outros alunos”, conta Ana Caroline. O cuidado extra veio depois da matrícula – uma pulseira que permite sinalizar a existência de um problema de saúde e indicar, especificadamente, qual a aversão, como no caso da Beatriz, que carrega o desenho de um ovo. “É preciso que as pessoas não se esqueçam, nem por um segundo, do problema dela”, ressalta Ana.

“É preciso que as pessoas não se esqueçam, nem por um segundo, do problema dela.” Ana Caroline Chula, médica e mãe de Beatriz Conseguir alimentar-se fora de casa não é só difícil, as vezes é impossível. A falta de especificação da composição de alimentos em restaurantes, não é cobrada por nenhum órgão, conforme explica Dalila, diferente da Resolução 26/2015 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que exige que alimentos industrializados tragam no rótulo qualquer composição presente no alimento, com destaque para os riscos de contaminação cruzada e presença dos alergênicos mais comuns. O médico pediatra reforça o alerta quanto à necessidade de buscar especialistas capazes de investigar os sintomas e encontrar o diagnóstico precoce. A única forma de inibir as reações é a exclusão total do alimento. O alerta é importante, principalmente para crianças, já que algumas vacinas como contra gripe e contra a febre-amarela contêm ovo em sua composição.

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Lute como uma artista Conheça as lideranças feministas que lutam contra a discriminação de gênero no mundo da arte Paula Moran

P

elos arredores de uma pequena cidade praiana no interior do Rio Grande do Norte, chamada Pipa, é possível ver, em alguns lugares, grafites e lambe-lambes de vulvas espalhadas pelos muros de ruazinhas, que se não fosse por Beatriz Lago, 24, seriam apenas monótonas. “Dizer o que minha arte representa é muito difícil, porque é, na verdade, tudo o que está acontecendo comigo agora, está tudo em transformação. É a partir de trocas e experiências com as outras manas que também pintam e somam a gente de outra forma, que me inspiro nessas mulheres e tudo isso vai se expressando no meu trampo”, conta Beatriz, mais conhecida como “Bea Lake”. Para Beatriz, a arte é um instrumento de transformação social. E é por isso que ela retrata o feminismo em seus trabalhos como uma forma de conscientizar as pessoas: “Os temas das minhas ilustrações sempre são mulheres e suas formas reais, não aquilo que a mídia gosta de impor como algo inatingível, que é o corpo feminino hipermidiatizado, padrão. Por isso, gosto de retratar as mulheres em suas mais variadas formas, e tenho adotado a vulva feminina como símbolo da minha arte, junto à outra área que eu gosto, que é o ecofeminismo”, conta a ilustradora, que pinta sempre uma vulva em formato de suculenta e transformou essa imagem em sua marca pelos

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muros da cidade de Curitiba e outros lugares do Brasil.

GUERRILHEIRAS NA ARTE Sim, a história sempre foi contada por homens, e para homens. As mulheres ficaram em segundo plano, ou muitas vezes nem apareceram. Silenciadas e ofuscadas pelo patriarcado, as mulheres trilharam seus caminhos sempre à beira de um homem que, por sua vez, e quase sempre, era cercado de privilégios. Felizmente, isso está mudando. Os séculos passaram e hoje já podemos ver pequenas mudanças, mais direitos conquistados e mais espaços alcançados. Infelizmente, a realidade ainda está muito longe da utopia dos direitos iguais e equidade entre gêneros - e como abordaremos, especialmente nesta reportagem, no mundo da arte. Paula Moran

Grafite de Bea Lake na Rua São Francisco.


Paula Moran

Pelo que se pode perceber, a raiz do machismo está em todas as áreas exercidas pelas mulheres. E a arte não escapa disso. Um dos dados mais alarmantes foi apurado pelas Guerrilla Girls, um coletivo de artistas feministas que está atuando há mais de 30 anos para denunciar a desigualdade de gênero e discriminação de mulheres no mercado da arte. “As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo?” é a frase estampada em uma das obras mais famosas, acompanhada de uma informação muito importante: apenas 6% dos artistas do acervo do Museu de Arte de São Paulo (MASP) são mulheres, mas 60% dos nus são femininos. Isso quer dizer que, mesmo mulheres que obtêm algum sucesso na arte, seja ela brasileira ou internacional, ainda são imensamente ofuscadas pelos homens. Atrás de máscaras de gorila, as participantes do grupo guardam suas identidades desde 1984. Mais de 55 mulheres já passaram pelo coletivo e ninguém jamais soube ou saberá quem está por trás das máscaras. Seu ativismo está concentrado em denunciar a falta de uma maior valorização de mulheres artistas e a lógica mercadológica de compra e venda de obras de arte, bem como as exposições e os locais que as obras estão inseridas. “O trabalho das Guerrilla Girls é, justamente, mostrar, em números, como parece que estamos avançando, mas na verdade não estamos. Achamos que

pelo fato de estarmos na modernidade não há tanta discriminação como nos tempos em que os homens roubavam as obras de artistas mulheres e assinavam por elas”, explica Carolina Loch, curadora da exposição “O museu é feminista - e outras esperanças para o futuro”, que fez parte do circuito de arte contemporânea da Bienal de Curitiba de 2017 e teve algumas das obras mais famosas do grupo em exibição. O que parece ser um avanço, na verdade, é só mais uma parte da luta. Para Carolina, achar que na arte contemporânea há mais visibilidade do que a arte de algumas décadas atrás, é quase que um mito: “A gente que está nesse meio, presta mais atenção, a gente que tá estudando sobre o feminismo, é claro que você começa a prestar mais atenção. Essa questão das mulheres estarem mais presentes, parece ser isso porque é um assunto que a gente estuda. Mas, para um público que não tem esse acesso e que não tem essa preocupação com o feminismo, não é algo relevante.” “E é por isso que precisamos de trabalhos de artistas que proponham o feminismo de uma maneira prática”, afirma. A publicitária, de 27 anos, explica que a sociedade está mudando a forma como vê a mulher. Com as novas formas de propor reflexões sobre temas importantes, é possível reescrever a história. “Nós sempre tivemos artistas mulheres, a questão é que elas eram escondidas. Estamos em um processo revolucionário, no qual é possível

Mulheres inventadas

“É difícil ser mulher em todos os aspectos, em todas as culturas” Integrante da mostra Mulheres Inventadas, do Museu Municipal de Arte, em Curitiba, “Meu Corpo Estranho” é uma exposição autoral da artista visual Karla Keiko, que quis, por meio da arte, contar um pouco da sua história como mulher e os processos de desconstrução que a ajudaram a se identificar como uma na sociedade. Ela passou por vários períodos e fases, desde a retirada de suas próteses de silicone, a gravidez e até raspar todo o seu cabelo. Todas as etapas foram importantes para a desconstrução de algo que lhe fora imposto: ser vista como um objeto, e não como mulher.

Guerrilla Girls

Arte das Guerrilla Girls sobre dados do MASP em 2017. editoria cultura | revistacdm 29


dificuldades pelo fato de eu ser mulher, eu acho que é uma relação do meio e nem sempre são questões de dificuldades, mas sim do machismo inserido ali”, afirma Maya Weishof, artista visual de 26 anos, integrante da Pivô Arte e Pesquisa, uma associação cultural sem fins lucrativos que atua como plataforma de experimentação artística para artistas, localizada em São Paulo. Durante os últimos anos, Maya, formada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), tem desenvolvido sua pesquisa especificamente dentro do campo da pintura e a relação com a imagem dos corpos e estereótipos que os acompanham durante toda a história da humanidade.

estereotipada. Eu retrato corpos não identificáveis justamente para combater isso e desconstruir essa visão.”

PARA A ARTE, NUNCA É TARDE Jussara Siqueira é uma senhorinha que conheci por meio de minha mãe assim que viemos morar em Curitiba. Somando todos os seus 65 anos de vida, só nos 60 começou a se dedicar totalmente e exclusivamente à sua arte - mais especificamente, a pintura. “Eu odiava Carazinho”, repetia ela algumas vezes ao contar parte de

“Você não precisa catalogar ou fazer relações da minha pintura com o fato de eu ser mulher.” Maya Weishof, artista

“A pintura é um campo muito machista historicamente, que foi ditado e formado por homens por muito tempo. É sempre importante lembrar que não é que as mulheres não estejam produzindo, e sim como essa história é contada”, explica Maya. Ela acha que o mundo tem uma visão, muitas vezes, da mulher artista, como uma mulher que deve performar feminilidade e ter um trabalho frágil, bem como uma leitura do que é ser mulher. “Já ouvi várias vezes me dizerem que meu trabalho tem uma questão feminina, você não precisa catalogar ou fazer relações da minha pintura com o fato de eu ser mulher.”

sua história. Pergunto o porquê disso e ela simplesmente responde com um “Não sei, só odiava, não tinha nada de mais lá”. Carazinho é um pequeno município localizado na região do Planalto Médio Gaúcho. Com uma população média de 59.300 pessoas, a pacata cidade nunca teve nenhuma grande personalidade, de que se tem registro, nem um grande herói ou um salvador da pátria. A não ser por histórias tão incríveis e escondidas como a de Jussara, a cidadezinha nunca se destacou em nada.

“Muitas vezes as pessoas, ao verem uma obra, perguntam ‘quem é o artista?’ e já se pressupõe que é um homem. Na arte, têm-se o homem como um gênio e a mulher como um ser totalmente emotivo e passional, e isso é uma coisa completamente

A agora também artista visual Jussara, embora não seja uma artista renomada e expositora de grandes museus, quem a conhece sabe que, apesar de tudo isso, ela é uma das peças-chave para

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Paula Moran

entender a falta de oportunidades que esse mundo engloba. Jussara precisou batalhar muito na vida para conseguir finalmente fazer o que gosta: pintar. Ela cresceu em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul e nunca teve o apoio de ninguém para seguir o seu sonho. Passou em um concurso do banco e foi ser bancária, por quase toda sua vida. Somente aos 60 anos, ela pôde fazer o curso de Graduação em Pintura da Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP), em Curitiba. “Outro dia eu liguei na Fundação Cultural perguntando o que eu tinha que fazer para fazer minha exposição”, conta, com empolgação, ao ter a esperança de realizar sua primeira mostra.

eu sempre pinto ela como parte dela ou do universo”, “Eu não sei se tem machismo na arte, na minha turma só tinha um aluno homem, o resto era tudo mulher”, conta aos risos. A senhora artista não pensa haver desigualdade até que mostro os dados confirmados pelo coletivo Guerrilla Girls e ela se assusta: “Nossa! Eu nunca tinha parado para pensar por esse lado”. Faltaram, para Jussara, assim como para muitas outras, oportunidades. Oportunidades de seguir uma carreira estereotipada e que só traz grande sucesso quando se é homem. Sim, o feminismo retratado na arte é capaz de transformar visões, mas assim como para Jussara, ele precisa ser acessível e entendido em todas as suas versões.

Em meio a algumas pinturas de cidades da Europa ou pássaros em jardins, Jussara pinta, quase que unicamente, mulheres. “Para mim, a mulher é a representação da mulher natureza. É por isso que Paula Moran

Jussara ao lado de uma de suas obras sem título.

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O eco sustentรกvel

A voz de quem vive a sustentabilidade pensando no bem da natureza e da comunidade Emilia Jurach

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Emilia Jurach


“Não utilizo mais absorventes descartáveis. Só uso os reutilizáveis de pano e calcinhas absorventes”, relata a nutricionista Sabrina Bittencourt, de 30 anos. “Também utilizo canudos e talheres de inox, guardanapos de tecido e levo minha garrafa de água com filtro embutido para não gerar resíduo comprando garrafas descartáveis.” Essas mudanças surgiram depois de uma reflexão sobre o meio ambiente. Para a nutricionista, não tratamos a natureza com o devido respeito e obrigação e, para amenizar os impactos negativos no ecossistema, ela decidiu fazer a sua parte mudando seu estilo de vida Sabrina conta que produz desodorante caseiro para não precisar comprar no supermercado e compra maquiagens com menos embalagens plásticas possíveis para não produzir lixo. Na alimentação, o veganismo é um plano futuro, já que seu consumo de carne reduziu consideravelmente. “Tudo isso reflete no meu estado emocional de forma muito positiva. Me sinto melhor e muito mais disposta”, confessa.

“Quando questionam o motivo de eu não comer carne, eu falo que é por que minha religião não permite”, confessa o estudante de Direito Thiago Bielinski, de 21 anos. “Falando isso, as pessoas aceitam com muito mais

“Quando questionam o motivo de eu não comer carne, eu falo que é por que minha religião não permite” – Thiago Bielinski, estudante

Cinco anos sem comprar roupas e sapatos. Essa foi a decisão da fisioterapeuta Deise Daniele Dick, de 32 anos. “Sempre tive uma consciência voltada à preservação da natureza. Quando saí de casa aos 20 anos, percebi que existiam mais coisas que poderiam ser feitas para contribuir com o planeta”, relata. Por prezar muito pela reutilização do que já se tem, Deise resolveu utilizar as roupas que tinha até então pelos próximos cinco anos, sem comprar nenhuma peça a mais. “Depois de uma época, comecei a pedir roupas emprestadas, ajustei roupas que estavam encostadas e troquei peças com amigas.” Porém, depois de dois anos no projeto, a fisioterapeuta concluiu que precisava comprar novas peças, principalmente peças íntimas que se desgastam com mais facilidade. Entretanto, a proposta a fez repensar a sua forma de consumo. “O que eu percebi é que o caminho não era ficar sem comprar, mas comprar produtos de qualidade e de forma equilibrada”, partilha.

facilidade e não me olham com cara de dó ou insistem para eu comer.” Em transição para o veganismo, Bielinski é vegetariano estrito e considera isso como o que ele faz de melhor na sua rotina sustentável. “Como o veganismo é um nicho que está em ascensão, você deve pesquisar bastante antes de comprar qualquer alimento”, pontua. A criação de uma horta orgânica foi uma opção do estudante para ter mais segurança do que ele está consumindo, além do cultivo ser terapêutico e prazeroso. “Além de você saber a procedência do produto, você reduz muitos processos: A alface que chegou à sua mesa não precisou ser transportada por um caminhão, - que gasta combustível -, não necessitou de uma embalagem plástica, não foi até ao mercado, - que gastaria ainda mais combustível -, e não foi levada até sua casa com uma sacola de plástico”, explica. A rotina modificada levou Bielinski a ter uma vida muito mais leve e ele percebe que é muito mais organizado, já que quando sai de casa, tem de planejar itens reutilizáveis para carregar consigo, como canudo e guardanapo de pano e lanches sem ingredientes animais, visto que a acessibilidade por produtos assim ainda é escassa, segundo ele. “Eu produzo alimentos no meu jardim e ensino outras pessoas a fazerem isso através de um projeto de plantação em pequenos espaços na cidade, como sacadas e vasos”, relata Edite

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desenvolvimento sustentável em diversas vertentes, resolveu trazê-lo para o Paraná e criar o Instituto Nhandecy. O propósito do lugar é ancorar práticas em quatro dimensões - social, ecológica, econômica e de visão de mundo -, incluindo a vivência em comunidade, oficinas de alimentação consciente, programas de convivência familiar e processos de transformação de conflitos. Para Edite, o maior desafio nesse estilo de vida é a “comunicação do que é óbvio”, como ela mesma diz. “Quando eu me relaciono com um vizinho que não tem os mesmos hábitos que eu, ele questiona sobre o por que de eu agir assim e essa é uma dificuldade pois não há total compreensão”, desabafa. Apesar do desafio, a professora tenta influenciar outras pessoas com suas atitudes. Edite tem o propósito de sensibilizar e educar para uma vida mais amorosa e degenerativa. “Eu acredito que poder compartilhar o caminho que eu faço pode, sim, tocar as pessoas e fazê-las encontrar seu cami-

nho. Nós não sobrevivemos sozinhos”. A rotina sustentável de Edite não se priva na horta em seu jardim. A eco-educadora faz produção de humus e terra de boa qualidade, para também doar, e pratica a compostagem doméstica. No consumo têxtil, Edite conta que a maior parte de suas roupas vem de bazares e de feiras de trocas solidárias e, quando há desejo de comprar, ela se questiona: “Eu preciso mesmo disso?”.

“Quando eu me relaciono com um vizinho que não tem os mesmos hábitos que eu, ele questiona sobre o por que de eu agir assim e essa é uma dificuldade pois não há total compreensão” – Edite Fagagnello Querer, professora

Plantação em Campo Magro, Paraná Vinicius Gouvea

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Com o crescimento do número de pessoas com consciência sustentável, algumas marcas surgiram oferecendo produtos reutilizáveis para o cotidiano. A curitibana Why Not Cwb é um exemplo de empresa que vende canudos reutilizáveis de alumínio. Segundo o proprietário Jonas Francisco Gomes, de 22 anos, a ideia surgiu em 2018, quando ele e sua namorada começaram a pontuar coisas que poderiam


substituir para não gerar resíduos, e uma delas era o canudo. Porém, como poucas lojas que vendiam o item existiam e a maioria era online, Gomes decidiu tornar esse mercado mais acessível para Curitiba e região, abrindo a loja pelo Instagram e oferecendo entregas de compras de graça e de bicicleta pela cidade. Além do uso de canudos reutilizáveis, Gomes comenta da adoção de copos e ecobags para não precisar gerar lixo desnecessário. “Aquele cafezinho no trabalho, uma bebida no rolê, uma caipirinha no bar e as compras no mercado e farmácia continuarão acontecendo mas você não estará gerando lixo se tiver itens assim”, completa. Jonas conclui, ainda, que sustentabilidade vai além das causas relacionadas ao meio ambiente. “Sustentabilidade é a união dos pilares ambientais, com conjunto de ideias, estratégias e demais atitudes ecologicamente corretas, economicamente viáveis, socialmente justas e culturalmente diversas”. Segundo os professores Marcos Bermann Carlucci e Isabela Galarda Varassin do departamento de Botânica da Universidade Federal do Paraná, existem várias ações problemáticas do dia a dia que são aparentemente inofensivas, mas que são prejudiciais para a natureza. “O uso excessivo de embalagens plásticas de uso único, tanto realizadas pelo consumidor como pelos comerciantes, como embalagens de frutas em plástico e isopor são exemplos”, comentam. A utilização de uso individual de carro e não de transporte coletivo é, também, uma atitude comum e muito poluente. De acordo com os professores, é muito difícil ser 100% sustentável, mas tentar adotar novos hábitos diminui o impacto individual e incentiva outras pessoas a seguir o mesmo exemplo. A redução de consumo, em âmbito geral, diminui o impacto sobre o meio ambiente, portanto, reutilizar embalagens, comprar produtos locais e frescos, utilizar composteiras caseiras e optar por transportes econômicos, são atitudes acessíveis que podem ser tomadas para um estilo de vida sustentável.

Jonas Gomes

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Vida longa ao 92 Graus! Com quase três décadas de existência, bar curitibano segue sendo principal local para rock autoral na capital Yuri Bascopé

H

á 29 anos, a cena do rock underground curitibano ganhava uma nova casa de show especializada em bandas autorais. A iniciativa partia de Geraldo Jair Ferreira Junior, mais conhecido como J.R, membro da Juliet et Joe, na época, que notou grande dificuldade de artistas que não fizessem covers e tributos para encontrar lugares para se apresentar.

J.R. conta que, apesar de ter sido conhecida como a Seattle brasileira nos anos 90, Curitiba possuía cerca de três dezenas de bandas autorais. Com o crescimento da população, e consequentemente o número de pessoas interessadas em tocar, hoje esse número passa de 600. Completando 23 anos de carreira em 2019, o grupo curitibano Black Maria, composto por Franco Calgaro (vocal/ guitarra), Gabriel Teixeira (guitarra), Beto K (baixo) e Rogério Magrão (bateria), é uma dessas 600 bandas que militam pelo underground de Curitiba e compõem o circuito autoral que passa pelo 92 Graus. Eles ressaltam a importância do pub para a cena do rock underground curitibano. “É aqui há mais de 20 anos que se toca música autoral em Curitiba. Hoje em dia não tem espaço na cidade para isso. O ‘jovem’ (outro apelido pelo qual J.R. é conhecido) é um guerreiro. Ele toca às vezes 15 bandas por semaYuri Bascopé

No porão de um imóvel à rua Visconde do Rio Branco, nas Mercês, que pertencia à família Jacomel, parentes da esposa de Geraldo, surgia assim o 92 Graus – The Underground Pub, que nos dias de hoje, é praticamente o único bar que com frequência oferece ao público músicas autorais. “A casa foi aberta para isso, um espaço para quem não tem espaço. Para mostrar as coisas esquisitas que pensa, dar a oportunidade para as bandas tocarem”, conta J.R. O bar que já passou por diversos endereços em Curitiba, hoje “reside” no Bairro São Francisco, em frente ao Palácio das Telecomunicações Presidente Costa e Silva.

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Banda Black Maria em apresentação no 92 Graus.


J.R. assiste ao show do Black Maria. Yuri Bascopé

“É aqui há mais de 20 anos que se toca música música autoral em Curitiba.” Rogério Magrão, baterista do Black Maria. na, tudo de música independente”, diz o baterista Rogério Magrão. “Aqui é o CBGB brasileiro”, complementa Franco Calgaro, traçando um comparativo entre o 92 Graus e o histórico bar nova-iorquino, que operou de 1973 a 2013.

A RENOVAÇÃO DA CENA Apesar de ter pouca atenção da mídia, a cena do rock underground curitibano tem atraído novos artistas. Um desses expoentes é a banda de punk/ crust folk Decadência. Inovadores ao substituírem a guitarra pelo acordeon, o duo formado por Gustavo Toscan e Nélio Gomes já participou de festivais como Maniacs Metal Meeting e Pinhão Profano, este último envolvido com causas sociais e realizado no 92 Graus.

“O underground é mais uma ideia do que um mercado, propriamente dito. Eu gosto de transformar esse ambiente em uma coisa útil. Então, geralmente, a gente tem tocado em eventos que tenham algum envolvimento com ações beneficentes”, diz Gustavo Toscan, acordeonista da banda.

A ousadia de substituir um instrumento tão simbólico como a guitarra por um acordeão distorcido não causou receio nos dois membros da banda. Eles apostam nessa nova alternativa oferecida aos fãs e nas letras politizadas de suas músicas. A base de apreciadores do Decadência é composta por um público jovem e que se interessa por folk, psychobilly, punk, skinhead, metal e black metal. Serviço 92 Graus – The Underground Pub Rua Manoel Ribas 108, São Francisco. Abre às quintas-feiras das 21h00 às 2h; sextas e sábados, das 21h às 4h, e domingos, das 16h00 às 22h00.

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PrĂłxima parada: ComĂŠrcio informal Atividade assegura o sustento de vendedores nos Ă´nibus e cruzamentos de Curitiba Lamartine Lima

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Lamartine Lima

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V

ocê já parou para contar quantas vezes ao dia viu alguém vendendo algum produto no transporte coletivo? Ou então, quem sabe, alguém oferecendo algum serviço ou mercadoria nos semáforos? Lembrou? Então, apesar de muitas vezes não percebermos, essas situações são muito mais corriqueiras do que imaginamos. Esse é o caso de Marcos Consoli Pereira, de 26 anos, que vende água, refrigerante e doces no transporte coletivo da capital. Mais velho de quatro irmãos, o jovem é natural de Curitiba e desde pequeno sonhava em se tornar engenheiro civil, porém, após perder o pai em um acidente de trânsito, ele teve que deixar de lado o sonho de cursar uma faculdade para poder ajudar a sua mãe com as despesas de casa.

A rotina de Marcos começa cedo. Ele conta que acorda todo dia às 6h, se arruma, toma café e antes de sair para o trabalho ainda leva a irmã mais nova ao colégio. Logo após, ele passa em uma distribuidora de doces, onde compra os produtos que revender, e aproximadamente às 8h da manhã começa seu trabalho nos ônibus da capital, onde circula por diversas linhas até às 19h, quando volta para casa. Marcos conta que durante o dia faz uma rápida pausa para comer apenas uma vez, a fim de economizar o máximo possível. O jovem ainda comenta que o maior problema encontrado não é o baixo número nas vendas, e sim o preconceito enfrentado. “Tem muita gente que olha com cara feia, de nojo ou fica com raiva, como se eu estivesse fazendo algo de errado ou fosse uma pessoa ruim. Também já fui xingado inúmeras vezes. As pessoas sequer imaginam o que eu passei e passo todos os dias.” Marcos conta que não teve muitas opções, e que foi obrigado a optar pela primeira para que pudesse ajudar sua família. Lamartine Lima

Logo após a perda Marcos se viu desnorteado, sem saber que rumo tomar e como recomeçar. “Eu não tinha ideia do que fazer daquele momento em diante. Perdi meu pai e não tínhamos dinheiro para sobreviver. A única maneira era desistir dos meus estudos e procurar um emprego para ajudar minha mãe e meus irmãos.” Porém o jovem conta que foi muito difícil, já praticamente ninguém queria contra-

tá-lo. Com a dificuldade enfrentada e as contas acumulando, o ele teve a ideia de começar a vender revender doces no transporte coletivo de Curitiba.

Marcos vende água, refrigerante e doces no transporte coletivo da capital. editoria 40 revistacdm | economia


NOVA CHANCE

LEGISLAÇÃO

A Muitas vezes esquecidos ou ignorados pelos passageiros, os vendedores ambulantes carregam consigo muito mais do que suas mercadorias. Muitas vezes levam com eles histórias sofridas, porém, em outras, é um caso de superação que marca a vida de alguns, como é o caso de Daniel Dos Santos, vendedor ambulante na linha Santa Cândida/Capão Raso.

Segundo normas da Urbanização de Curitiba (URBS), o comércio ambulante é permitido em pontos e terminais desde que haja o cumprimento de algumas normas de regulamentação como: a mercadoria ser legalizada, para vender alimentos deve-se ter curso de manipulação de alimentos e deve cumprir um determinado horário pela prefeitura, como determina a lei 6407/1983 e decretos que permitem o exercício da atividade.

Daniel entregou sua juventude às drogas, quando perdeu mais de 15 anos para o vício em crack e viu em uma instituição que recupera dependentes químicos a oportunidade de mudar de vida. “Eu já cometi muitos erros na vida. Entrar para o mundo das drogas foi o pior deles. Vi muita coisa

Porém, no caso dos vendedores no transporte público, essas normas quase sempre não são cumpridas, além de que as vendas no interior dos coletivos são proibidas, além de serem prejudiciais aos profissionais que tra-

“Tem muita gente que olha com cara feia. As pessoas sequer imaginam o que passo todos os dias.” Marcos Consoli, vendedor ambulente

ir embora, mas isso aqui (trabalho ambulante) me ajuda, hoje, a ter uma vida digna.” Atualmente, Daniel também se desdobra aos fins de semana com o trabalho. O vendedor conta que passa mais de 12 horas por dia no ônibus para garantir o sustento da filha recém nascida. “Ela é o motivo do meu sorriso e da minha vontade de viver. Depois que ela nasceu eu tive que ‘correr atrás’ pra garantir o sustento dela e da minha esposa.” Daniel ainda afirma que suas jornadas de trabalho, muitas vezes, ultrapassam o lucro de R$ 400. “Consigo ter uma vida boa, não vou dizer que é fácil, mas me dá um bom lucro. Trabalho por mim mas também pela minha filha, e é nesse sapatinho aqui (calçado da filha que o vendedor carrega em sua mochila) que eu encontro motivação para ficar tantas horas na correria”, conta emocionado.

balham nas linhas, pois segundo o Decreto 1.356/2008, os funcionários de transporte coletivo devem “impedir a atividade de vendedores ambulantes, pedintes ou pessoas fazendo panfletagem no interior dos veículos, estações tubo e terminais”. Em caso de descumprimento, cobradores e motoristas podem ser multados pela URBS. A URBS afirma que apesar de ilegal, não efetua a apreensão da mercadoria dos ambulantes e solicita para que os passageiros efetuem denúncia em caso de vendas no transporte público, ligando para o número 156.

VIDA NO SINAL No final de 2017, Gabriel Marcelino resolveu trocar a cidade de Várzea da Palma, no interior de Minas Gerais, onde nasceu, por Curitiba. Mas esse não foi a primeira vez que ele esteve

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na capital paranaense. Em 2014 veio cursar a graduação em Tecnólogo de Logística, mas infelizmente acabou não se formando. Ele conta que o curso não era o que imaginava, então desistiu e retornou a sua cidade natal. No retorno à capital paranaense, Gabriel alugou um quarto e começou a produzir e vender iogurte de forma artesanal, ofício que aprendeu com o tio ainda em Minas Gerais. Como não tinha autorização para produção, foi orientado a buscar outra atividade. “Parei com a produção de iogurte e comecei a procurar outros trabalhos, mas não foi nada fácil, acabei ficando sem dinheiro para me manter.” Gabriel conta que após isso procurou ajuda em um centro municipal que auxilia pessoa em situação de extrema pobreza. Lá pude concluir

“Quero vender produtos de alta qualidade e com sabores mais funcionais. Em Curitiba temos muitas feiras e quero vender meus produtos nesses locais. Nos mercados os iogurtes são cheios de conservantes, vou oferecer um produto diferente, todo natural”, conclui.

CASAL EMPREENDEDOR O casal Vinícius Guilherme da Cunha, 24 anos, e Giuliana Carolina Vieira da Cunha, 26 anos, resolveram se arriscar e acabaram inovando na forma de vender pão. Os dois vendem no sinal vestidos como padeiros, e saem oferecendo o produto aos motoristas que param no sinal. A estratégia adotada deu tão certo que toda a produção diária de pães é vendida em menos de quatro horas.

“Com a ajuda consigo economizar

com as refeições e agora passo as noites em um hotel social, com isso consigo poupar o dinheiro que ganho com a venda das balas.” Gabriel Marcelino, vendedor ambulante um curso oferecido. Aprendi conceitos de administração, logística e recursos humanos. Gabriel ainda aplica o conhecimento nas vendas informais de doces na esquina das ruas Mariano Torres com Nilo Cairo, no Centro da Curitiba. Como ação de marketing, ele usa frases motivacionais nas embalagens das balas. A abordagem sempre simpática e positiva ajuda nas vendas. “Com a ajuda consigo economizar com as refeições e agora passo as noites em um hotel social, com isso consigo poupar o dinheiro que ganho com a venda das balas”, conta. Todo o dinheiro que Gabriel ganha está sendo guardado para a abertura da tão sonhada fábrica de iogurtes, que já tem um nicho de mercado definido e planejamento de vendas.

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O negócio começou há dois anos. O casal aliou o conhecimento de Giuliana em cozinhar com a técnica de Vinícius para as vendas. Enquanto esposa faz antigas receitas de pão caseiro e pão integral da família, o marido cuida das vendas usando seus conhecimentos na área, adquiridos ainda na infância. “Venho de uma família de vendedores de plano funerário. Todos em casa aprenderam a tratar o cliente de uma forma especial, ainda mais para vender a última coisa que a pessoa pensa em comprar”, conta Vinícius. A decisão de fabricar pães surgiu pela necessidade de melhorar a renda da família. “Minha esposa veio com a ideia de fazer pão, admito que no início não acreditei que pudesse dar tão certo”, revela. Eles começaram a fazer os pães na cozinha de casa, mas em pouco tempo não davam mais


Arquivo pessoal

Todo o dinheiro que Gabriel ganha está sendo guardado para a abertura da tão sonhada fábrica de iogurtes. conta de todos os pedidos. Com isso, o casal resolveu expandir os negócios, em pouco tempo montaram uma nova cozinha no terreno em frente à casa deles, que fica em Araucária, região metropolitana de Curitiba. “Instalamos dois fornos a gás e colocamos todo o restante de maquinário necessário para a produção dos pães em uma maior escala”, conta Vinícius. São produzidos 180 pães por dia, entre o caseiro tradicional e o 100% integral. O casal começa às 5h e só termina por volta das 13h30, quando o veículo utilizado para a venda começa ser carregada para levar toda a produção até os pontos. As vendas têm início às 14h e ocorrem até às 19h. Os pães são vendidos de segunda à sexta, a partir das 14h30, no sinaleiro da Rua Eduardo Sprada com a Avenida Juscelino Kubitschek de Oliveira, no bairro Campo Comprido, e a partir das 15h no bairro Santa Quitéria, na Avenida Presidente Arthur da Silva Bernardes, em frente ao 9º Distrito Policial. A unidade custa R$ 6, mas na promoção dá para levar dois pães por R$ 10. “Isso motiva o cliente a levar mais um. Faz parte da estratégia de venda”, conclui Vinícius.

NÚMERO DE AMBULANTES LEGAIS CAI E O DE IRREGULARES AUMENTA Segundo dados de 2018 corroborados pela Secretaria Municipal de Urbanismo, Curitiba tem 1.214 vendedores

de comércio ambulante ativos junto à Secretaria Municipal de Urbanismo, número levemente inferior ao ano de 2017, quando haviam cerca de 1,3 mil cadastros ativos. Há ainda estimativa de que seriam cerca de 3 mil os ambulantes irregulares na Capital. Informações do IBGE, reforçam esse aumento, Já que no Brasil o número de pessoas que ganham o sustento como ambulantes saltou de 253 mil em 2016 para 501,3 mil no final de 2017. Em 2015, quando a atividade começava a dar sinais de que seria uma das principais alternativas à crise, esse patamar rondava os 100 mil. Segundo o economista Adriano Severo a presença dos vendedores ambulantes na capital paranaense é um problema social que impacta diretamente na economia. “Causa impacto nas vendas das lojas físicas, pois a maioria dos ambulantes não tem custo de estrutura ou com funcionário, somente o custo de deslocamento e mercadoria, enquanto o comércio regularizado tem toda uma despesa envolvendo aluguel, alvarás, empregados e mercadorias.” Severo complementa dizendo que o impacto causado no comércio regularizado é ainda maior quando se comercializa o mesmo tipo de produto que os ambulantes, o que força ao comércio formal se reinventar e tentar ser mais atrativo para recuperar o público.

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Entre a exclusão e a necessidade

Os dilemas da população transexual no mundo da prostituição Emilia Jurach

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exclusão. “A pessoa que saiu de casa cedo não vai frequentar uma escola, e, consequentemente não vai saber

Emilia Jurach

O

abandono familiar, a exclusão escolar, o não reconhecimento da identidade trans e a dificuldade no mercado de trabalho são alguns dos motivos que levam 86% da população transexual a recorrer ao mercado da prostituição como fonte de renda e subsistência. Em 2018, o número era ainda maior, chegando a 92% no Brasil, segundo o Grupo Dignidade.

“Eu fiquei sem saber o que fazer, não queria pedir abrigo para minha família. Então comecei a comprar roupas femininas, saltos e apliques, e de maio até dezembro fui para a prostituição. Sair com quem eu não conhecia foi minha maior dificuldade.”

O estudo Fragmentadas, das jornalistas Camilla de Oliveira e Dayane Ferreira, que investiga o perfil de prostituição na cidade Dayse Silva, profissional do sexo transexual de Curitiba, Paraná, relata que as pessoas que buscam a prostituição não conseguem uma conta matemática que precisará um emprego formal ou não se veem lá no mercado de trabalho. Algumas contentes com o trabalho atual. “Os meninas conseguem subempregos, fatores sociais e econômicos levam as mas o público não quer ser atendido pessoas a esse espaço. Uma entrevispor transexuais”, completa a educatada do nosso estudo, por exemplo, dora. que trabalhava na equipe de limpeza de uma loja de departamento aqui A profissional do sexo Dayse Santos, da cidade (Curitiba), dizia que ela se de 19 anos, relata que trabalhava em sentia humilhada, e viu na prostituição uma empresa de rede de fast food uma boa oportunidade”, relata Dayaquando começou a se sentir infeliz ne. Mas há, também, aquelas que se com a aparência masculina, aos 17. orgulham da profissão, segundo a jorDesde então, ela decidiu deixar o nalista. “Algumas fontes do Fragmencabelo crescer, afinar as sobrancelhas tadas dizem que têm orgulho do que e pintar as unhas. Em maio de 2018, são e do que conquistaram no ramo. Dayse foi demitida do local. “Eu fiquei Uma delas pagou estudo dos filhos e sem saber o que fazer, não queria do neto, além de comprar carro para pedir abrigo para minha família. Então a família”, completa. comecei a comprar roupas femininas, saltos e apliques, e de maio até Melissa Souza, educadora social volundezembro fui para a prostituição. Sair tária do Grupo Dignidade, reitera que com quem eu não conhecia foi minha o processo de descoberta e de aceitamaior dificuldade”, confessa a profisção da identidade de gênero, além de sional, que atua até os dias de hoje. complexo, torna-se ainda mais difícil por conta do preconceito. Ela explica Segundo dados do Grupo Liberdade, que pessoa transexual muitas vezes que constam no estudo das jornalistas sofre desde criança, dentro de casa. Camilla e Dayane, cerca de 30 mil mu“Muitas pessoas trans são expulsas lheres trabalham como profissionais com 12, 13 anos de casa por condo sexo em Curitiba e Região Metrota do preconceito da família, então politana, muitas delas com profissões elas acabam crescendo sem estrudiferentes e que trabalham esporaditura familiar e são automaticamente camente como prostitutas. “A prostiacolhidas pelo mundo da noite e da tuição está melhorando, há discussões prostituição” sobre regulamentação e hoje vemos que elas têm muito mais liberdade. É Há, ainda, as agressões no ambiente uma liberdade relativa, por causa dos escolar e, futuramente, no mercatabus”, relata Camilla. do de trabalho, gerando ainda mais

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CONSCIENTIZAÇÃO

JÁ ESTOU MORTA

A

lgumas profissionais do sexo sentem vergonha da profissão, mas há aquelas que sentem orgulho do emprego em que atuam. Segundo a jornalista Camilla de Oliveira, a conscientização é um ponto crucial a ser tratado, pois a vergonha que as mulheres sentem vem da pressão social, do medo de ser julgada pelas pessoas e pela família, principalmente. “Grupos como o Dignidade e Liberdade servem como uma extensão da família, prestando todo o apoio necessário para essas pessoas e a conscientização.” Há 27 anos, o Grupo Dignidade vem atuando em apoio à comunidade LGBTI por meio de projetos, palestras, debates e ações nas ruas. Melissa Souza, educadora social voluntária do grupo, explica que, para profissionais do sexo, existe o acolhimento e toda a ajuda necessária para questões burocráticas como o INSS, por exemplo. “A gente tenta conscientizar que a prostituição é uma opção e existem outras possibilidades, mas, se no caso, essa profissão é a mais viável, tentamos ajudar da melhor forma, buscando ajuda para cadastro de pessoa autônoma, conscientizando sobre o uso do preservativo, entre outros, pensando sempre nos direitos delas no futuro”. O Grupo também realiza trabalhos jurídicos, psicoterapêuticos e na área da saúde, de acordo com a educadora.

População trans infectada pelo HIV

N

o Brasil, a população que mais sofre com HIV é a transexual. Estima-se que 5% do povo seja transexual e dessa porcentagem, 2% é infectado pela doença, segundo dados do Grupo Dignidade. Os transexuais costumam usar a frase “Já estou morta” para dizer que estão infectados e, de acordo com Melissa, os números são estimados pois as pessoas não respeitam a identidade de gênero e nomes sociais, enterrando um transexual como homem ou mulher, e até indigente. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística não têm dados de transexuais no país, o que dificulta ainda mais a contabilização de informações precisas. Grupos de apoio, como o Dignidade, oferecem ajuda na área de saúde, com a intenção de conscientizar as profissionais do sexo sobre doenças como HIV, sífilis e hepatite. “Nós fazemos projetos para deixar as pessoas cientes das doenças e de como evitá-las, ainda mais a situação de vulnerabilidade em que elas vivem”, acrescenta Melissa.

Cerca de 5% da população brasileira é transexual

2% 3% Fonte: Grupo Dignidade

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População trans não infectada pelo HIV


Emilia Jurach

“A prostituição está melhorando, há discussões sobre regulamentação e hoje vemos que elas têm muito mais liberdade.” Camilla de Oliveira, jornalista e produtora do estudo “Fragmentadas”

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Talita Laurino

Quando o racismo se manifesta na religião, as crenças de matriz africana sofrem com a intolerância e o desrespeito. O candomblé é a mais afetada delas

Aqui, não!

Talita Laurino

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O carro estava acelerado e, quando a candomblecista e pedagoga Ludmila Freitas olhou para frente, ele já havia arrebentado a cerca do terreiro. Para-

filha decidiu abrir um barracão e seguir a própria fé. A mãe carnal de Ludmila também é a mãe de santo do terreiro e não se sente segura há algum tempo.

“A mão do ódio contra a gente pesa com violência e sangue.” Candieiro, coordenador de Igualdade Racial da Prefeitura de Curitiba lisada atrás de um vaso de cimento, o automóvel que se aproximava dela vinha com cada vez mais velocidade, até que o motorista finalmente avançou para cima da professora. Por algum milagre dos orixás, o carro foi barrado pelo vaso e não encostou em sequer um dedo na religiosa. Ludmila sobreviveu ao quarto ataque do mesmo homem ao seu barracão. as primeiras vezes em que ele apareceu, as agressões foram mais sutis, pelo menos quanto ao grau de violência. Tentava a todo custo criminalizar a abertura do terreiro em Paranaguá. Chamava a polícia durante os cultos e alegava baderna. “Eu só perguntava aos oficiais se um aglomerado de 15 pessoas numa festa de aniversário mobilizaria a guarda urbana também”, lembra a candomblecista. A sorte é que em todas as vezes nas quais algum policial apareceu era negro e acabava sensiblizado pela história da velhinha preta, que com sua

Essa história a pedagoga contou na frente de pessoas importantes. Foi na 2ª convocação geral, durante o fórum de religiões de matriz africana, que líderes políticos escutaram casos de intolerância sofridos por umbandistas e candomblecistas. Após ouvirem a fala de Ludmila, o coordenador de Igualdade Racial da Prefeitura de Curitiba, Adegmar José da Silva, o famoso Candieiro, levantou a voz. “A mão do ódio contra a gente pesa com violência e sangue. A mão do ódio contra a gente mata. Não estamos falando aqui de comentários maldosos, estamos falando de morte e de racismo.” Depois de muitos aplausos, eles voltaram a dialogar sobre estratégias de enfrentamento à crescente onda de intolerância. O objetivo era sair dali com ferramentas de promoção ao respeito inter-religioso. “A luta é longa. Mas só passo de elefante nasce grande, o resto é tudo conquistado” Arquivo pessoal, Senff e Marchesine

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Talita Laurino

devagarinho”, finalizou seu discurso Candieiro. Na mesma semana, os filhos do terreiro do Portão se reuniram para a festa de Ogun, orixá da casa. Na celebração, espíritas, católicos, evangélicos e budistas participaram. A associação contra intolerância que a mãe de Santo Isabel Cristina integra faz questão de promover o trânsito entre fiéis pelas casas santas. Mas nem sempre reinou essa paz por lá. Em fevereiro de 2019, a cantiga da casa que foi interrompida não era feliz. A batida do atabaque e os rostos inchados de tanto chorar indicavam que havia se perdido alguém importante. Em dia de axexê, ritual fúnebre do candomblé, o canto não pode parar a madrugada toda. E o pai de santo da casa, vítima de um câncer de estômago, merecia uma passagem digna. Mas, depois de alguns tijolos jogados no barracão, o pai convidado para conduzir o ritual não aguentou. Parou a cerimônia e foi falar com os homens que estavam do lado de fora do terreiro: “Iansã tá vendo o que estão fazendo e eu vou mandar ela atrás de cada um se continuarem”, alertou. Nenhum pouco intimidados com as ameaças do mundo espiritual, os vândalos continuaram as agressões. Enquanto isso, todos os filhos de Iansã estavam virados no santo. Elizabeth Ceballos, uma das crias do orixá, só

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recorda-se do barulho de latões batendo e de pessoas gritando. Quando tudo parou, lembra-se do medo que sentiu ao achar que a telha ia cair. “A gente podia morrer. Lá o teto é frágil, a casa não recebe nem incentivo do Estado para sobreviver, como a Igreja Católica. Ia sair tudo do nosso bolso, se não acontecesse coisa pior.” O axexê precisou continuar. “O rito é importante para a casa e não pode parar, não vamos nos deixar abater”, disse o pai. Superando o medo e a intolerância, o terreiro resistiu. Essa não foi a primeira vez que o barracão do Portão passou por algo assim. No dia de candomblé da Elizabeth, o clima ficou ainda mais tenso. A morena de 24 anos e estudante de Direito decidiu se converter para a religião há dois anos, quando problemas de saúde a fizeram recorrer à soluções espirituais. Isolada por 12 dias no rocó, quarto interno do terreiro que abriga àqueles em iniciação, era finalmente chegada a hora de Elizabeth sair de lá, raspar a cabeça e dar luz ao seu orixá. A ansiedade tomava conta, até que a danada da Sandra fugiu. “Dizem que não se pode dar nome para bicho que ele foge. Dito e feito”, debocha de si mesma Elizabeth.


Arquivo pessoal, Senff e March

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A cabritinha que seria sacrificada na festa aproveitou a distração do pessoal para escapar pelas grades. A vizinhança assistiu ao movimento e ligou para polícia, que bateu no terreiro por conta de uma denúncia de maus tratos. Deu o que fazer para os oficiais não entrarem. O que os livrou de complicações com a justiça, ironicamente, foi a própria lei. Segundo o Decreto número 2.848, artigo 208, é proibido impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso. Sendo assim, eles foram embora, e a danada da Sandra voltou. “É muito difícil explicar para a sociedade que não matamos os bichos por mau trato. Toda carne usada é santificada e muito respeitada”, explica a garota.

No entanto, há uma diferença entre aceitação e respeito, de acordo com o teólogo e pastor da Igreja Evangélica, Edson Tedesco. “A Bíblia é clara quanto ao fato de que só há um Deus. Muitos acabam deixando outros deuses e passam para a religião evangélica, porque se identificam mais com ela, assim como também acontece o contrário. Esse trânsito não é um preconceito contra o candomblé, as pessoas têm o direito de mudar de pensamento”, argumenta. Ele ainda defende que o ódio é um sentimento que deriva do fanatismo religioso. E que o candomblé incomoda fiéis por apresentar características que não conferem com aquelas ensinadas por Deus, como a reencarnação e os sacrifícios de animais, por exemplo. “A religião é muitas vezes procurada para fazer trabalhos bons e ruins. Isso, é claro, cria uma certa indiferença e desprezo nas pessoas em relação a sua conduta. Evidentemente que cada um tem o seu direito de escolher qual caminho seguir, mas dentro desses

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Candieiro, o coordenador de Igualdade Racial da Prefeitura de Curitiba, discorda. Para ele, a razão do ódio tem raízes antigas e negras. Os números mostram que as denúncias de discriminação contra adeptos de religiões de matriz africana aumentaram 7,5% em 2018 no Brasil. Elas foram feitas pelo Disque 100, serviço de atendimento 24 horas do Ministério de Direitos Humanos. Ao todo, contabilizam-se 71 denúncias do tipo feitas de janeiro a junho de 2018, contra 66 da mesma época no ano anterior.

Talita Laurino

O advogado Flávio Parisi ainda complementa que o artigo 5º da Constituição brasileira assegura que é inviolável a liberdade de consciência e de crença humana. “O livre exercício dos cultos religiosos é garantido, na forma da lei, bem como a proteção aos locais de culto e suas liturgias. É imprescindível que haja uma aceitação.”

apontamentos o candomblé provoca certa intolerância.˜


Arquivo pessoal, Senff e March

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A senhora dos pequenos milagres A benzedeira Dirlei Grzybowski perpetua uma prática secular brasileira dentro de sua própria casa Thaís Mota

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P

osso dizer que me lembro muito bem dos tempos em que vivi, ainda pequena, no interior de São Paulo, em uma cidadezinha chamada Assis. Com vagas lembranças, relembro as vezes em que meus pais levavam meus irmãos e eu às casas das mais antigas benzedeiras do local e, lá, a gente bebia uma água diferente, ficava no colo das senhoras enquanto elas, com os olhos fechados, diziam algumas palavras. O dom das curandeiras e curandeiros e a força da fé ainda movem muitas pessoas em busca de uma solução que a ciência não pode dar. Mesmo com o avanço das tecnologias e a super evolução da medicina, a cura religiosa continua fazendo ”milagres” e perpetuando um ciclo de tradições jamais esquecidas. Ainda que essas práticas estejam um pouco deixadas de lado pelas gerações atuais que, muitas vezes, não se interessam por apren-

der as rezas e nem mesmo continuar o legado do bem, iniciado pelos seus antepassados. As práticas de cura, aqui no Brasil, são muito relacionadas à mescla da cultura europeia com a dos nativos e africanos escravizados - cada uma no seu próprio ritual curandeiro e crença na fé. Márcio de Souza Soares conta em seu livro História, Ciências e Saúde, que “índios, africanos e portugueses das camadas populares, assim como alguns membros das elites, sempre haviam, em suas regiões de origem, recorrido às mezinhas e ao mundo dos mortos para curar suas enfermidades muito antes de se cogitar a colonização do Brasil.” Com a modernização dos tempos e o desenvolvimento da ciência, quem toma o controle das práticas de cura é a medicina, um dos motivos pelos quais houve uma diminuição na procura das benzedeiras.

Thaís Mota

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É o que explica “Vó” Dirlei Regina Grzybowski, de 64 anos, que recebeu a reportagem da CDM em um dia chuvoso, em sua pequena casinha de madeira em Almirante Tamandaré, região metropolitana de Curitiba. Enquanto esperávamos do lado de fora da casa, vó Dirlei voltava caminhando, debaixo do guarda-chuva preto, de um compromisso dominical: a tão sagrada missa.

Deus é diferente. Os médicos mais antigos, inclusive, ensinam ainda a fazer alguns chazinhos caseiros”, balbucia ela, entre pequenas e humildes risadas.

“Não é a gente que faz milagre, é a nossa fé que faz a pessoa se curar.” Dirlei Grzybowski

Thaís Mota

Para ela, que aprendeu as rezas com a avó, logo após o nascimento de seu primeiro filho, “fala-se muito da me-

O doutor em Sociologia e Antropologia Social Cauê Kruger lembra que a antropologia, historicamente, considera esse tipo de prática semelhante à ideia da bruxaria. “A gente acredita que a ciência explica as coisas do mundo natural e humano, e as outras são derivadas do acaso. São questões nas quais a ciência não tem resultado, e que a fé, de forma geral, consegue amenizar.”

dicina avançada. As pessoas acabam procurando mais os médicos”, explica, mas nem sempre foi assim. Esfregando as mãos e com um semblante muito tranquilo, vó Dirlei conta que os mais antigos procuravam muito as curandeiras porque acreditavam no trabalho delas e tinham muita fé. “É claro que os médicos conseguem resolver problemas e tirar sofrimentos, mas a fé que a gente tem em

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Para Kruger, existe uma religião um tanto oficial no Brasil, a católica, e o sincretismo de algumas delas, incluindo ou não a católica, também. “A gente tem associações interessantes sobre rezas, rituais e práticas que envolvem as benzedeiras e benzedores, e inclusive um conhecimento de propriedades naturais, plantas, ervas, raízes. É um fenômeno extremamente tradicional, que teve provavelmente influências ibéricas, mas que tem no-


de estatutos dessas pessoas. “Muitas vezes eles são o recurso que há em lugares remotos - e os únicos recursos -, mas eles estão presentes articulando grupos e formando redes, inclusive atualmente. Pode ser que eles sejam vistos de outra maneira, como mais tradicionais ainda, mas eu não acredito que esteja absolutamente desaparecendo, embora, claro, tenha uma dificuldade muito grande de se manter no sentido de uma perpetuação disso para uma geração mais nova, isso é um dilema de toda prática tradicional. Nesse sentido, talvez haja um grau de diminuição dessa reprodução.”

vas cores no contexto nacional brasileiro”, explica o doutor. “‘Vou ensinar vocês, porque quando eu for, tem alguém que vai fazer isso por mim’, ela me dizia quando começou a me ensinar as rezas”, conta Dirlei sobre sua avó, quando lhe pergunto o motivo de ter aprendido a fazer os rituais de cura. Mas a benzedeira me lembra, com um sorriso no rosto, que “não é a gente que faz milagre, é a nossa fé que faz a pessoa ficar melhor e se curar. É a minha fé e a minha invocação a Deus e à Nossa Senhora. Eu peço e intercedo por aquela pessoa e, se ela também tiver fé e acreditar que vai ser curada, ela será.”

“As minhas netas nunca mostraram interesse em aprender ainda, mas quem sabe, né?”, diz vó Dirlei caindo em gargalhadas.

Dirlei levanta e começa a passar um café, que, em pouco tempo, já sobrecarrega o ar com o delicioso e forte aroma. Enquanto isso, ela me explica que o que mais faz, como benzedeira é tirar o susto de crianças. Isso quer dizer, as mães a procuram muito quando têm problemas com os filhos dentro de casa, seja por situações de medo, o próprio susto com coisas corriqueiras e o mau olhado. Ela para por um instante, me olha e explica o passo a passo do ritual: “Eu derreto a vela e faço a minha oração em cima da criança. Quando eu pingo a vela em cima da água no prato, ali sai o significado do susto.”

Mesmo em tempos de alta tecnologia e diagnósticos feitos com tanta velocidade através da medicina, a cultura da sociedade ainda se volta para a solução de problemas por meio da fé. Algo que nem mesmo a ciência ou o ser humano será capaz de compreender e explicar.

Mas vó Dirlei não é como as benzedeiras que muito conhecemos e que atendem todos os dias de tal a tal hora como um compromisso. Ela procura fazer essas rezas de jeito mais discreto possível, sem fazer muita divulgação. As pessoas chegam através dela pelo boca a boca, principalmente entre as mães nas escolinhas infantis.

Krüger, entretanto, afirma que não acha que haja, exatamente, um desaparecimento das benzedeiras e benzedores, mas, sim, uma mudança

Thaís Mota

Quando a questiono sobre a frequência das pessoas em busca das curandeiras com o passar do tempo, Dirlei me conta que hoje em dia é bem difícil. “As pessoas perderam um pouco da fé e as visitas vão diminuindo”, ela diz.

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O microfone também é delas! Mulheres vêm conquistando cada vez mais um espaço que antes era predominantemente masculino Thiago Rasera

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Arquivo pessoal

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N

ão é novidade para ninguém, as mulheres conquistaram seu espaço no jornalismo esportivo, ainda mais após a Copa do Mundo de 2018, na Rússia, quando a Fox Sports Brasil transmitiu algumas partidas do torneio com uma equipe de reportagem inteira composta por mulheres.

passos desses ícones radialistas, vozes femininas começam a ganhar espaço nas transmissões regionais. Quem gosta de futebol, provavelmente, já ouviu a respeito de uma negociação de jogadores, sobre bastidores do esporte ou a informação de um gol na voz de Monique Vilela, atualmente repórter na Rádio Banda B.

“O rádio faz parte da minha

vida, antes mesmo de eu me formar jornalista e trabalhar com esporte no rádio.” Monique Vilela, repórter na Rádio Banda B

Monique iniciou sua trajetória no rádio em 2008, na Rádio Mais, de São José dos Pinhais, onde trabalhou tanto no jornalismo quanto no esporte. Foram dois anos na Rádio Mais até que sua qualidade a levou para a Rádio Banda B, em dezembro de 2010. “O rádio faz

Arquivo pessoal

No Paraná, o rádio esportivo sempre foi marcado por homens à frente dos microfones. Nomes como Lombardi Junior, Carneiro Neto, Edgard Felipe e vários outros eternizaram seus gritos de gol na memória de muitos torcedores paranaenses. Seguindo os

O gosto pelo rádio é de infância e, agora, Monique pode aliar esta paixão com a profissão. editoria 60 revistacdm | esportes


Arquivo pessoal

O Futebol é uma paixão que Tabata cultiva desde pequena, já que com uma família ligada ao esporte, a jornalista cresceu em estádios. parte da minha vida, antes mesmo de eu me formar jornalista e trabalhar com esporte no rádio. O costume de escutar rádio o dia inteiro vem da infância e, agora, poder juntar esta paixão com a profissão me deixa realizada profissionalmente” Após mais de uma década participando das transmissões como repórter de campo, Monique relata que apesar de enfrentar um ambiente masculino, nunca sofreu com preconceito. “Vejo muitos relatos de colegas de trabalho que sofrem com o preconceito. Eu, felizmente, nunca sofri nenhuma situação dessas. O que acontece, às vezes, é uma parte da torcida proferir ofensas, mas isso não é exclusivamente direcionado ao fato de eu ser mulher. A maioria das vezes é porque damos uma notícia que a torcida não gosta”, afirma a repórter. A vida de repórter de campo apresenta dificuldades, mas também traz momentos bons para a profissional. Um exemplo disso fica por conta do relato de Monique Vilela sobre a cobertura da Copa Sul-Americana de 2018, que resultou na primeira conquista internacional por uma equipe do Estado do Paraná, o Athletico Paranaense. “Acompanhei toda a trajetória do time na competição, do começo ao fim, em uma década de trabalho. Esse foi o momento mais marcante.”

Apesar de a maioria dos nomes do rádio esportivo paranaenses ser de homens, as jornalistas da área também podem se inspirar em outras mulheres. Tabata Viapiana assumiu os microfones como repórter de campo em 2010, também na Rádio Banda B, onde exerceu até 2013 a função, quando foi contratada pela Rádio CBN, para cobrir as equipes visitantes nos jogos das equipes da capital e se estabeleceu cada vez mais no departamento de jornalismo. Tabata tem como grande inspiração alguém com uma proximidade muito grande. Sua tia, Sônia Nassar, foi a primeira mulher a cobrir futebol no Paraná. “Ela entrava no vestiário e entrevistava os jogadores junto com os demais jornalistas da época. Trabalhou 30 anos na Tribuna do Paraná, tinha até uma coluna: ‘Plumas e paetês’. Era atleticana fanática e não escondia o time do coração, mas, mesmo assim, era respeitada pelos adversários e discutia futebol de igual para igual com qualquer homem, em mesas redondas na TV”. A influência da tia, se reflete diretamente no desenvolvimento de Tabata como jornalista. O fato de fazer parte de uma família que sempre frequentou estádios fez da repórter uma profissional apaixonada pelo rádio paranaense. “Cresci em estádio de

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Arquivo pessoal

Em 2018 Tetê se tornando a primeira mulher a narrar futebol no Rádio paranaense. era adolescente. Futebol é uma grande paixão que cultivo desde pequena.

A PIONEIRA NO RÁDIO ESPORTIVO PARANAENSE (TETÊ MOTA) A história do rádio esportivo paranaense teve um importante capítulo em agosto de 2018, quando a ex-repórter de campo, Ana Tereza Mota, a “Tetê”, narrou uma partida de futebol válida pela 26ª rodada da Série B deste ano. Tetê assumiu o comando da transmis-

encontrou o caminho para realizar seu sonho de ser repórter de campo. “Comecei a fazer estágio e aprender na prática logo no primeiro ano da faculdade. Um dos meus primeiros estágios foi na Rádio Educativa FM, onde eu apresentava o Programa Educativa nos Esportes todos os dias. Na época, o estágio em jornalismo não era remunerado, mas eu via todas as chances como aprendizado”. Após formada, Ana começou a trabalhar com rádio e televisão. Deixou os

“Os machistas que me desculpem,

mas terão que admitir que mulher entende sim de futebol e já provamos que somos capazes de trabalhar neste meio.”

Ana Tereza Mota “Tetê”, narradora da Rádio Coxa são na Rádio Coritiba, se tornando a primeira mulher a narrar futebol no Rádio paranaense. Ana conta que, desde os 15 anos, ela já pensava em trabalhar com o futebol e foi na faculdade de Jornalismo que

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microfones de lado e foi dedicar-se às telinhas, e vinte anos depois, está novamente no rádio paranaense mas dessa vez como narradora, primeira do Estado. “Fui procurada pela Comunicação do Coritiba em 2018. Eles queriam reformular a Rádio Coxa,


mas quando me falaram que eu seria a narradora tive um choque pois era algo que eu nunca tinha feito e nunca tinha pensado em fazer. Como faltavam ainda dois meses para a estreia da rádio, comecei a treinar em casa, onde ligava a TV e gravava a narração dos jogos no meu celular. Coitado dos meus vizinhos (risos), pois eu soltava o grito de gol tarde da noite. Depois eu ouvia gravação na íntegra para me avaliar, e mostrava o áudio para a família e amigos para ter uma opinião de fora também”.

Inspirada em Renata Silveira da Fox Sports e Isabelly Morais da Rádio Inconfidência de MG, a narradora recebeu aceitação por grande parte do público que ouve as transmissões na rádio e atualmente, é o principal canal de comunicação do Coritiba.

“ELA FOI A PRIMEIRA MULHER A COBRIR FUTEBOL NO ESTADO.” (SONIA NASSAR) Sonia Regina Nassar, repórter de campo fez história no jornalismo esportivo paranaense ao cobrir partidas de futebol no Estado do Paraná, fato inédito para uma mulher, até então. Nascida em 1951, Sonia começou sua carreira como repórter aos 17 anos, antes de concluir sua formação como jornalista pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) no início dos anos 1970. Ingressou no jornal Tribuna do Paraná, onde se estabeleceu como repórter de campo, mostrando toda sua ousadia nas entrevistas dentro dos vestiários e compromisso com a informação.

Arquivo pessoal

Apesar do cenário ainda dominado pelo público masculino, “Tetê” vê com otimismo a ascensão das mulheres a novos cargos no rádio esportivo paranaense. “A presença das mulheres no futebol é irreversível. Os machistas que me desculpem, mas terão que admitir que mulher entende sim de futebol e já provamos que somos capazes de trabalhar neste meio sem diferença alguma. Acho que já passou da hora de pensarem que mulher que trabalha com futebol é Maria Chuteira, que quer ‘pegar’ jogador. Meu desejo é que as mulheres estudantes de Jornalismo, que amam futebol como eu, lutem pelo seu espaço e não desistam desta batalha. Espero que eu seja a

primeira de várias narradoras que o Paraná poderá ter”.

Sonia entrevistando o técnico Telê Santana. esportes editoria | revistacdm 63


O padecer de ser mulher, mĂŁe e desempregada Quando a maternidade deixa de ser uma dĂĄdiva e passa a ser o motivo do desemprego, o patriarcado grita e mostra que sua raiz permanece nutrida e forte Camila Dariva

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Camila Dariva

Nome fotĂłgrafo


A

gravidez bem planejada, quando ela e o marido estavam estabilizados financeiramente, com empregos fixos e estáveis, continha em seu cronograma todo o pós parto. Com a licença-maternidade, ela ficaria por quatro meses em casa e, após esse período, o marido, que é concursado, tiraria a licença-prêmio, ficando os próximos três meses com o filho. Os planos eram feitos com tanto receio, que no meio do seu puerpério, Danielli conversou com seu empregador, perguntando sobre a estabilidade do emprego, já que a empresa onde trabalhava tinha em seu histórico outras quatro demissões após licença-maternidade. Com a garantia feita por ele, ela pôde relaxar e manter os planos.

“No mesmo dia do retorno, minhas chefes me chamaram. Fui informada que elas não estavam mais interessadas no meu trabalho e eu estava sendo desligada da empresa onde eu trabalhei por sete anos. Falaram isso. Isso e só. Muito obrigada e tchau, você não faz mais parte da nossa equipe.” Danielli Silva, advogada Toda mãe que passa por esse processo de retorno ao trabalho conhece as dificuldades e os medos que envolvem este período. O cansaço extremo e os desafios constantes abalam a auto confiança e, a esta altura, o “padecer no paraíso” já é a realidade de muitas. Mas, com a segurança da equipe formada pelo marido, pela mãe e pela sogra, a postos para amparar o filho, Danielli se sentia segura em voltar. E voltou. Por um dia.

“No mesmo dia do retorno, minhas chefes me chamaram. Fui informada que elas não estavam mais interessadas no meu trabalho e eu estava sendo desligada da empresa onde eu trabalhei por sete anos. Falaram isso. Isso e só. Muito obrigada e tchau, você não faz mais parte da nossa equipe.” A tristeza veio acompanhada de revolta, já que todo tempo e trabalho dedicados a eles foram absolvidos pela cultura de uma sociedade machista, que não acredita na potencialidade das mulheres, principalmente depois que se tornam mães. “O meu exemplo é apenas mais um. Mais um para mostrar que todo o trabalho e campanha a respeito de mudanças e igualdade de gêneros não têm funcionado. Nada mudou”, ela acrescenta. Infelizmente, Danielli faz parte de um crescente dado apontado pela pesquisa “Mulheres perdem o trabalho após terem filhos”, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), de 2017. Segundo o estudo, há imediata queda no emprego das mães ao fim da licença-maternidade e, depois de 24 meses, 50% delas saem do mercado – na maior parte das vezes, por iniciativa do empregador. A advogada trabalhista Joana Aparecida Sloboda explica que toda mulher está amparada por leis trabalhistas, que visam e dão garantia à permanência em seus empregos, durante e após a licença-maternidade. Entre as abrangências da lei, estão os 120 dias de licença maternidade, a estabilidade empregatícia, desde a descoberta da gravidez, até 5 meses após o parto, dispensa para consultas médicas e mudança de cargo, sem alteração no salário, caso o antigo ofereça riscos à mãe ou ao nascituro. Em caso de descumprimento, a empregada deve ser indenizada, cabendo até ação trabalhistas caso a dispensa ocorra sem justa causa. Mas indenização alguma paga determinadas situações. A revolta e a decepção ainda são notadas na voz e nos movimentos agitados, quando a técnica em radiologia Adrieli Lucatelli, 32 anos, fala sobre o assunto. O desemprego não foi apenas um choque, ele trouxe intermináveis transtornos para sua vida.

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Camila Dariva

O choque do desemprego veio trĂŞs meses apĂłs a chegada da Alicia e jĂĄ completa quase dois anos.

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Mãe da Alícia Maria, hoje com um ano e 8 meses, Adrieli trabalhava há oito anos em dois hospitais, quando planejou a gravidez. Pela insalubridade da sua atividade, onde era exposta diariamente à radiação, foi necessário trocar de cargo durante a gestação e, para facilitar, ajudou a encontrar uma pessoa para substituí-la neste período. Antes de entrar na licença maternidade, mesmo estando na fase mais exaustiva da gravidez, chegou a trabalhar por 12 horas seguidas, tudo para deixar seus setores organizados nos hospitais e viver a fase que viria a seguir, tranquila. Por garantia, também procurou a direção de um dos hospitais. Estava inquieta e precisava perguntar sobre sua estabilidade empregatícia, afinal, as contas logo iriam aumentar e ela não queria ser surpreendida. Para seu alívio, deram-lhe garantias. A vaga continuaria sendo sua. A primeira dispensa ocorreu 30 dias após seu retorno, exatamente quando terminou o período de estabilidade, amparado pela lei. A alegação usada foi de que ela custava muito caro para o hospital. A segunda veio três meses após o retorno. Os seus piores três meses de trabalho, ali. Adrieli conta que era pressionada a pedir demissão, enquanto a trocavam de área e a colocavam em outras, totalmente alheias à sua formação e contratação. Dado esse tempo, como ela não havia cedido, foi informada que o setor de radiologia do hospital seria fechado e, por isso, não precisavam mais do seus serviços. O setor nunca fechou. “A maior ironia disso tudo é que os dois hospitais são administrados por mulheres. O machismo não está no homem, está na sociedade”, desabafa. Como os horários que cumpria nos empregos iam das 16h às 20h, antes que sua licença terminasse contratou uma pessoa para ficar com a filha e montou um esquemas de revezamento com o marido, já que também atendia o plantão radiológico dos hospitais. “Eu acabei tendo que dispensar a mulher que havia contratado para cuidar da Alícia. Por sorte, ela entendeu. Eu não tinha mais renda para manter ela trabalhando para mim. Querendo ou

não, eu e mais uma mulher ficamos desempregadas.” Lamenta. Não ter mais uma renda própria é uma das consequências mais sentidas por Adrieli. Ela conta que começou a trabalhar muito cedo, ainda na adolescência e nunca mais havia parado. Ela explica que já chegou a trabalhar em quatro empregos diferentes, ao mesmo tempo, em algumas épocas: “Eu sempre pude comprar minhas coisas e, agora, além de ter minha filha para sustentar, dependo de pedir dinheiro para meu marido. O pior é que não só para as coisas dela, mas, também, para as minhas. Eu me sinto humilhada.”

“A maior ironia disso tudo é que os dois hospitais são administrados por mulheres. O machismo não está no homem, está na sociedade.“ Adrieli Lucatelli, técnica radiologista

A realidade de, de repente, ter uma renda a menos e uma boca a mais para sustentar é um fator que dificulta, ainda mais, o retorno das mães ao mercado de trabalho. Com vagas limitadas em creches, o alto custo das escolas particulares e da contratação de babás, conseguir um emprego, novamente, vira um ciclo eterno de dificuldades. Adrielli, para não ficar parada, começou a vender roupas e acessórios, de forma autônoma. Está longe de sua formação, mas em uma cidade pequena, essa foi a opção. “Eu nunca fiquei parada, no final do ano irei me candidatar para ser conselheira tutelar. A gente faz as coisas irem acontecendo.”

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Mas engana-se quem pensa que as dificuldades de trabalho começam depois que os filhos nascem. Há um ano, a administradora hospitalar Aline Roveda, 33 anos, deixou o cargo de diretora de saúde e da família, na prefeitura de Capanema-PR, para acompanhar o marido, que havia sido transferido para Telêmaco Borba-PR. Ficar sem trabalho não era uma opção e ela começou a enviar seu currículo antes mesmo da mudança. Hoje, ela já perdeu as contas de quantos entregou – por e-mail, pessoalmente e via Linkedin. Sempre que passava alguns meses sem ter resposta, ela recomeçava, enviava tudo de novo. Ela acredita ter feito isso por três vezes, ou mais, para cada empresa. Em fevereiro deste ano, ela e o marido decidiram que era hora de parar com os métodos contraceptivos, já que pretendiam ter filhos. Para espanto dos dois, o que achavam que levaria cerca de um ano, aconteceu em apenas dois meses. A notícia não veio sozinha. Junto à surpresa da gravidez, o anúncio de três entrevistas de emprego, em empresas que ela enviava constantemente seu currículo: “Foi um momento horrível. Eu não me sentia satisfeita em ter engravidado tão logo e, sabendo o peso que isso teria nas minhas entrevistas de emprego, tudo piorava.” A pergunta apareceu logo de cara, como ocorre na maioria das entrevistas com mulheres: “Têm filhos? Pretende engravidar?” Aline decidiu que seria sincera, sempre. A empresa, por sua vez, alegou que, por ser uma vaga para o RH, não poderiam aceitar faltas e o preenchimento da vaga era exatamente para cobrir uma pessoa que havia entrado em licença-maternidade. A entrevista seguinte foi em um hospital recém inaugurado na cidade. Primeiro, ela conta ter recebido uma ligação, na qual elogiavam seu currículo, porém, alegavam que a vaga era menos do que ela procurava. “Fui na entrevista, mesmo depois da ligação. A primeira pergunta foi, novamente, se eu tinha filhos e eu contei, novamente, sobre a gravidez. Foram logo dizendo que a vaga era para o financeiro do hospital e que me

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ligariam depois. Ligaram mesmo, mas para dizer que o emprego não seria meu. Fui direta e perguntei se a não contratação tinha a ver com a gravidez. Pasmem, ela disse que, talvez, isso tenha atrapalhado um pouquinho o processo.” Conta. A terceira dispensa veio pouco dias depois, por meio de um contato pelo Linkedin. Claro, a famosa pergunta dos filhos apareceu. Ela conta e acaba rindo da situação: “Não preciso nem contar o que aconteceu em seguida, né?” Seu semblante muda de repente. A decepção e a humilhação, por não ter nem a oportunidade de mostrar sua potencialidade, fez com a Aline, assim como muitas outras mães, se sentisse culpada por engravidar. A cultura herdada do sistema patriarcal permanece até hoje e, embora a discriminação de gênero no mercado de trabalho seja ilegal, prevista na Constituição Federal, a Organização Mundial do Trabalho (OIT) expõe que a diferença entre homem e mulher no mercado de trabalho quase não diminui nos últimos 27 anos. Em 2018, a probabilidade de uma mulher trabalhar foi 26% menor do que o homem. Uma melhoria de apenas 1,9% com relação a 1991. Quase um retrocesso.

“Eu não me sentia satisfeita em ter engravidado tão logo, sabendo o peso que isso teria nas minhas entrevistas.“ Aline Roveda, administradora hospitalar O que não pode acontecer é a mulher abrir mão dos seus direitos para agradar ou a fim de garantir sua estabilidade no emprego. Além das garantias durante e após a gravidez, a advogada Joana aponta alguns direitos resguardados à mulher: direito a horários flexibilizados para amamentação, por seis meses, licença de 15 dias em caso de aborto espontâneo, licença maternidade estendido para 180 dias, caso o empregador seja parceiro do Empresa Cidadã, salário e licença-maternidade em caso de adoção de menores de 12 anos.


Camila Dariva trabalho editoria || revistacdm revistacdm 69


Militância através dos views Transgêneros ocupam a internet e contam suas histórias para o mundo Paula Moran

revistacdm revistacdm | comunicação | editoria 70 70 Paula Moran


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magine-se nascer em um corpo que você sente que não te pertence. Questionamentos assim não passam pela cabeça das pessoas normalmente, ou, pelo menos, não são comuns. Para Peter Domingues, que nasceu em um corpo de mulher, era algo que se passava por seus pensamentos todos os dias. Sim, nasceu com corpo de mulher mas não se identificava com ele e, tampouco, com seu nome de batismo, o qual não se sente confortável em divulgar. Peter é um homem trans. Histórias como a dele nos mostram que ainda há esperança na luta pela diversidade: as transformações documentadas de transgêneros que encontraram na internet um espaço mais democrático para discutir sobre o assunto transexualidade. A rede é sinônimo de liberdade para tantos travestis e transexuais que buscam acolhimento de internautas interessados em saber mais sobre o tema. Youtubers documentam a transição de gênero e contam suas histórias na tentativa de conscientização acerca de um assunto ainda tão estigmatizado e repleto de tabus. O gaúcho de 22 anos, estudante de Medicina Veterinária, explica que, para ele, a transição começou muito antes da terapia hormonal: foi justamente por meio de vídeos que assistia sobre a transição de outros homens e mulheres trans que iniciou a busca da transição para si. “Eu nem sabia que existiam homens trans antes de achar um canal por acaso e começar a assistir. Eu sentia que alguma coisa me incomodava, aí a gente descobriu que essa era a coisa, eu descobri que eu era um homem trans. Assistir a vídeos de outros caras na internet me ajudou bastante nesse processo, ver como é que foi para eles se assumirem e começarem a transição realmente.” E assim começou sua trajetória como um youtuber trans. Os vídeos, além de serem uma rede de apoio para com outros homens e mulheres que estão passando pela transição, também são uma forma de conscientizar pessoas acerca de um tema tão mal visto pela sociedade e cheio de preconceitos

como é a transexualidade. “Eu queria, além de mostrar minha experiência com a transição, passar uma mensagem. Eu sentia que devia isso a outros homens trans, para que eles pudessem ter acesso à informação e se aceitassem, como eu me aceitei. “Aí eu fui fazendo vídeos sobre coisas que eu ia descobrindo, coisas sobre mim, sobre as mudanças que iam ocorrendo com a transição, sobre médicos, sobre leis e direitos que nos remetem. Pequenas coisas para pessoas que não sabem nada sobre isso e estão querendo começar a entender.” Como Peter, há muitas pessoas embarcando para um futuro incerto cheio de aventuras em um mundo totalmente novo depois da transição. Mas, para Thalia, Priscila, Laysa, Nicolly e Scarlety, a história acaba aqui. Essas mulheres se tornaram algumas das vítimas da transfobia no Brasil em 2018, que segundo um levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), feito em conjunto com o Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), 163 pessoas trans foram assassinadas no país no ano passado. O tema ganhou a atenção da mídia nos últimos anos junto a um dado alarmante: o Brasil se tornou o país que mais mata pessoas transexuais no mundo. Isso significa, que, de acordo com o Relatório Mundial da Transgender Europe, de 325 assassinatos de transgêneros registrados em 71 países nos anos de 2016 e 2017, um total de 52% – ou 171 casos – ocorreram no Brasil. Isso diz muito sobre os dias que estamos vivendo. Assista o vídeo em que Peter conta sobre sua transição Peter começou seu canal no youtube para levar informações as pessoas que estão passandop pela transição e para conscientizar outras sobre o tema que ainda é tão estigmatizado em nossa sociedade. https://youtu.be/5p0twf4HOms

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ara Kaito Felipe, felizmente, a história ainda é contada e começa lá no interior do Paraná, com o nome de Manaura. Hoje, em Curitiba, ele conta como foi sua trajetória para alcançar as metas relacionadas à transição: “Saí de minha cidade para viver como eu realmente gostaria, já que meus pais eram superprotetores e isso atrapalhava muito as coisas. Mudei de cidade há pouco mais de sete anos e minha vida passou a ser feita com metas. O youtuber começou em um emprego do qual não gostava, mas, de acordo com ele, foi o que o fez conseguir arcar com os custos para começar com a terapia hormonal e fazer a cirurgia de mastectomia mastectomia é o nome dado à cirurgia de remoção completa da mama. Atualmente, Felipe trabalha em uma ONG de apoio e direitos LGBTI+. Para ele, as questões da visibilidade vão muito mais além da forma como as pessoas veem o canal. “Inicialmente foi bem complicado, porque quando comecei com o youtube, eu não tinha

“Acho divertido poder entender como funciona a transição em locais diferentes, gosto de poder fazer amizades em todos os lugares e trocar experiências.” Kaito Felipe, youtuber.

noção de como as pessoas iriam reagir lá. Eu tive uma péssima experiência quando fui pedir ajuda, então pensei em prestar essa ajuda para que outras pessoas não passassem pelo que eu passei. Foi então que comecei a passar informação.” Felipe acha que a importância de se criar um vínculo com as pessoas que interagem com ele pela plataforma

O Youtube como refúgio

As narrativas de Mandy Candy Amanda Guimarães também é uma youtuber e mulher trans. Com quase 2 milhões de inscritos em seu canal, a moça, mais conhecida por Mandy Candy, iniciou sua trajetória na rede em meados de 2014. Lá, ela conta tudo sobre sua transição de gênero, experiências com cirurgias plásticas - uma delas, a de redesignação sexual (a troca de sexo) -, militância dos direitos de pessoas trans e população LGBT, história de vida, relacionamentos e mais. Stephanie Ferreira é uma pesquisadora do tema. A cientista social e mestranda em Psicologia da Universidade Federal do Ceará tem um artigo intitulado “Transexualidade e visibilidade trans em mídias digitais: as narrativas de Mandy Candy no YouTube”. Ela conta que, ao

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conhecer o canal de Mandy Candy, decidiu se aprofundar na pesquisa sobre estudos de gênero. “Eu comecei a me interessar em saber exatamente o que fazia com que ela começasse a se expor e falar de outros assuntos. Mesmo não sendo mais o foco do canal, o que eu acho mais interessante é que ela continua falando disso e considera importante mesmo depois de ter passado por tantos anos de transição de gênero, falar sobre a aceitação corporal, falar sobre os preconceitos. Ela explica que a visibilidade também tem feito com que ela estabeleça vários vínculos com outros youtubers LGBT e faça vídeos com temáticas ativistas. Ela acredita que essa aliança com essas pessoas está sendo

bem importante para continuar impulsionando a visibilidade para essa questão da transexualidade e também para conscientizar as pessoas de que a discriminação causa sofrimento, suicídios e, inclusive e principalmente, homicídios a maior taxa do mundo. Para Stephanie, “Não basta uma pessoa falar da experiência dela, a outra pessoa tem que se identificar.” E, a partir dessa identificação, vai se formando essa rede de apoio que provoca transformações, porque faz com que as pessoas compartilhem esses vídeos com quem elas imaginam que também irão ajudar a transformar a sociedade.


também é uma forma de auxiliá-las no processo da transição: “Acho divertido poder entender como funciona a transição em locais diferentes, gosto de poder fazer amizades em todos os lugares e para troca de experiências é algo muito bom sem contar quando alguém está perdido e com isso é possível dizer ‘Oi, não sou dessa cidade, mas essa pessoa poderá te ajudar.”

tras redes sociais. Mas, por mais que tenhamos leis sobre cibercrimes, sabemos que a internet hoje é uma zona sem lei. Então, ao mesmo tempo em que você tem um caminho de maior visibilidade a questões voltadas à promoção dos direitos LGBTI+, também há mais discriminação e violência.”

Integrante e diretora de Informação do Grupo Dignidade, Rafaelly Wiest é uma mulher trans e militante há pouco mais de 20 anos. Ela vê as redes sociais como um paradigma quando nos referimos à promoção dos direitos da população LGBTI+. “A gente tem o youtube como uma ferramenta muito importante, como também as ou-

“Eu acredito que as ferramentas que a gente tem, como essas plataformas digitais, são legais, mas, ao mesmo tempo, me dá um certo receio. Você tem, então, situações de uma visibilidade um pouco maior e um passo para a promoção dos direitos dos LGBTI+, mas a sociedade ainda está longe de nos dar o respeito e o reconhecimento enquanto cidadãos. Mesmo hoje, quando já estamos comemorando um ano do direito das pessoas trans a retificarem seus nomes e gêneros sem burocracia, o Brasil ainda é o país que mais mata pessoas trans no mundo.”

Paula Moran

Arquivo

Kaito Felipe

Arquivo

Peter Domingues

CONSCIENTIZAÇÃO OU VULNERABILIDADE?

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A arte que transforma

Yuri Bascopé

Liro Martins passou a juventude entrando e saindo da Delegacia do Adolescente.

Por meio da música e poesia, esses tres jovens encontraram um caminho a seguir

N Yuri Bascopé

ascido na favela pobre do Parolin em 17 de maio de 1994, Wagner Luís Martins teve que encontrar uma maneira para sobreviver desde cedo. Abandonado pela mãe e pela avó quando criança, Liro, nome pelo qual passou a ser chamado anos mais tarde, cresceu com o pai, mas decidiu seguir o seu próprio rumo aos 15 anos de idade. Jovem e precisando se sustentar, começou a praticar pequenos furtos pela ilusão de querer ter dinheiro, status e poder. Em

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seguida, veio o tráfico e várias passagens pela Delegacia do Adolescente. A gota d’água para Liro foi a prisão no Parque do Bacacheri, quando já era maior de idade. Para a sua sorte, a Polícia registrou os documentos de sua prisão de maneira irregular, e três dias depois ele foi solto. A partir desse dia, Liro decidiu que precisava mudar de vida. A saída encontrada foi o rap, que praticava apenas de brincadeira desde a


Yuri Bascopé adolescência. Liro iniciou no freestyle e começou a frequentar as batalhas de rap de Curitiba. Desde 2017, acumula vitórias nos duelos e chegou a ir à semifinal regional para o campeonato nacional. Paralelamente, criou o grupo Saída 7 com um ex-colega de colegial. “A maioria de nossas músicas são críticas sociais, críticas para nós mesmos, para melhorarmos como seres humanos. Tentar entender os problemas que enfrentamos”, diz ele. O colega de colegial de Liro é Jordan Spg. Crescido no bairro Rebouças, ele também passou por dificuldades durante a infância, como o abuso físico de uma empregada. O reflexo da violência doméstica se refletiu na escola, e Jordan se tornou figurinha carimbada da sala de orientação de onde estudou. A falta de uma boa condição financeira fez com que Jordan entrasse para o tráfico nos anos subsequentes e ele só não praticou atos mais pesados por respeito a sua avó, que o criou desde cedo. “No mundo, às vezes aparecem várias coisas que parecem boas para a gente. Aparece ‘mano’ falando para fazer um ‘corre ali, grana rápida, que não vai acontecer nada. Mas eu pensava na minha avó. Imagina se ela está em casa tranquila e aparece a polícia quebrando tudo atrás de mim. Ela não iria aguentar, ela tem um coração fraquinho”, explica Jordan.

O carinho pela avó impediu Jordan Spg de se envolver com coisas mais sérias no crime.

“Família padrão brasileira é uma mãe e um filho.”

Arquivo pessoal

Lua Maria, cantora e poeta

Com a sua avó com a saúde cada vez mais debilitada e cansado de viver à margem da sociedade, ele encontrou no rap um norte para seguir. “Ao invés de ficar me drogando, ir para balada e fazer coisas erradas, posso alguma coisa que agregue, passar uma mensagem para a galera”, encerra.

Lua Maria combate o machismo e a desigualdade em suas rimas.

Nascida em Curitiba, mas criada em Tijucas, Lua Maria saiu de casa aos 14 anos. Aos 17, engravidou do seu

primeiro filho Apollo, fruto de um relacionamento abusivo em que vivia, e após conseguir uma medida protetiva da justiça, na qual ela classifica apenas como paliativa, passou a registrar a sua luta em poesias e canções. “Família padrão brasileira é uma mãe e um filho. Depois de todos os casos de agressão eu me libertei. Não foi fácil, acabei sendo muito perseguida”, diz ela. “A rua me acolheu. Eu não tinha onde recitar as minhas poesias, não tinha onde falar”, continua. Apesar do rap ser um ambiente que dá voz aos oprimidos, ela diz que às vezes vivencia casos de machismo na cena, porém essas dificuldades não a desanimam a continuar defendendo a causa feminista.

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