CDM 54 - Digital

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ano 17 - edição 54 | dezembro de 2019

revista corpo da matéria CURSO DE JORNALISMO PUCPR

Onde está o Umbará?

Típico bairro italiano ainda permanece desconhecido pelos curitibanos


Corpo da matéria Ano 17 - Edição 54 - Dezembro de 2019 Revista Laboratório do Curso de Jornalismo PUCPR Pontifícia Universidade Católica do Paraná R. Imaculada Conceição, 1115 Prado Velho, Curitiba PR REITOR

Waldemiro Gremski DECANA DA ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES

Eliane C. Francisco Maffezzolli

COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO

Suyanne Tolentino De Souza COORDENADOR EDITORIAL

Suyanne Tolentino De Souza COORDENADOR DE REDAÇÃO/JORNALISTA RESPONSÁVEL

Paulo Camargo (DRT-PR 2569)

COORDENADOR DE PROJETO GRÁFICO

Rafael Andrade

Alunos - 6º Período Jornalismo PUCPR Anelise Wickert, Barbara Schiontek, Beatriz Pereira Tedesco, Bruno Afonso Rigoni Talevi, Camille Ferreira Casarini, Carolina de Andrade, Danielle Spielmann, Deborah Neri Lucas Neiva, Fernanda Unruh Xavier, Franz Fleischfresser de Amorim, Gabriel Airto Domingos, Gabriel Rocha Loures da Silva Dittert, Helena Tramujas Sbrissia, Henrique Bastos Zanforlin, Isabela Beatriz Lemos de Souza, Leonardo Cordasso Pedrollo, Lucas Matheus Grassi, Mariane Pereira dos Anjos, Matheus de Souza Zilio, Stefany Adriana de Mello, Thais Porsch, Thamany Gabriele dos Santos de Oliveira, Thiliane Leitoles.

Imagem de capa: Mariane Pereira 6ºP Jornalismo

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SUMÁRIO

Eu amo meu filho, mas não gosto de ser mãe

Segurando as pontas

Transplantados e guerreiros da diálise

Aversão ao diferente

Raízes do pinhão

No compasso do tempo

Suburbana enraizada

Heróis da madrugada

Como é a vida pós-reality?

4 6 12 16 18 22 26 28 30

ESPECIAL: A VIDA QUE NINGUÉM VÊ

Um barro só

Hora do azar

Os quebra-nozes do cárcere

A ciência descobre a ayahuasca

Menstru(ação)

Com açúcar, com afeto

Dermatites: de dentro pra fora

A vida através da Padre Anchieta

34 40 44 52 56 60 64 68

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“Eu amo meu filho, mas não gosto de ser mãe” A figura mitológica da mãe e sua associação com a felicidade estão muito distantes da verdadeira noção da maternidade com todos os seus possíveis problemas – e até mesmo eventual arrependimento Bruno Talevi Deborah Neiva Helena Sbrissia Lucas Grassi

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um Brasil onde 5,5 milhões de crianças não têm o nome do pai no registro e a depressão pós-parto atinge mais de 25% das mães, a imagem construída em torno da maternidade é pouco próxima da vida real — diversas mães, cujas identidades serão preservadas, relataram falta de preparo, saudade de estar sozinha, distância da família e preocupações inesperadas; nada do que se vê em um álbum de fotos ou conversas de chá de bebê. Joana* sempre teve muita facilidade com crianças. Com seu primeiro filho, aos 20 anos, não achou que fosse ser diferente. “Ainda costuravam minha barriga quando pensei: Meu Deus... esse bebê é meu. Eu vou ter que cuidar pra sempre”, contou. A responsabilidade de uma vida dependente aparece de forma recorrente entre os relatos, e é um dos motivos de maior conflito emocional. Joana diz que pensava como a maioria das mulheres, que ao ter um filho isso

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seria motivo suficiente para o amar de forma incondicional e ignorar todos os problemas que surgem no dia a dia, como choros durante a noite, cólicas e a necessidade de dar de mamar. Mas não é nada disso: ela acusa a sociedade de passar a vê-las apenas como mães. Hoje ela nota que, há três anos, quando estava grávida, enfrentava sozinha uma depressão. “Me sentia feia, gorda, e odiava estar enjoada o tempo inteiro. Me culpava por ainda não amar incondicionalmente aquela

“A culpa é da sociedade que espera demais de uma mãe e, por consequência, a mãe espera demais dela mesma.” - Giovana* criança como eu lia em textos de outras mulheres esperando o seu filho.”


Em 2005, Cláudia* estava no auge de seus 20 anos e começando um novo relacionamento após enfrentar o término de um namoro de quatro anos. Passado algum tempo, sentiu uma forte dor no ouvido, motivo que a levou ao médico e descobrir uma gravidez de cinco meses. Ela reatou com o ex-namorado e viveu os quatro meses que restavam da gestação de maneira muito conturbada: com pouco apoio familiar, um psicológico abalado e falta de preparo.Cláudia, então, passou a concentrar-se somente em assuntos relacionados à gravidez para não precisar se preocupar com o relacionamento infeliz que enfrentava por causa do bebê. Quando o filho finalmente nasceu, sua ficha caiu — estava em casa, sozinha, com um bebê e precisando de ajuda. Sem amigos, sem autonomia. Apenas sendo mãe. “Não sabia se estava certo ou errado, só sabia que eu não era mais eu.” Ela, que trabalhou durante toda a gestação, foi dispensada assim que a licença maternidade acabou. Outro problema é quando o filho não é programado. Segundo dados da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, coletados entre 2011 e 2012, 40% das gestações

mundiais não são planejadas. No Brasil, a média torna-se mais preocupante — mais de 55% das mulheres que tiveram filhos não fizeram o planejamento prévio. Maria* conta que não se sentia pronta. Passou toda a gravidez em negação, adiou as compras necessárias e chorou quando a descobriu. Sentia medo, angústia e também revolta por ter se permitido fazer a coisa que mais tinha medo: engravidar. Quando era perguntada sobre o amor que sentia pela criança, respondia que não sabia como amar alguém que nunca tinha conhecido e que havia entrado em sua vida contra a sua vontade. E, quando o fazia, era condenada. “Me diziam: Nossa, como você é fria. Uma criança é uma bênção!.” Talvez não para todo mundo. Apesar da primeira reação quanto à criança parecer traumática, muitas mulheres indicaram o mesmo padrão: de amor construído, e não intrínseco, como se espera. Quando se está grávida, é idealizado que, apesar de tudo, um filho pode curar qualquer coisa – inclusive quadros clínicos de depressão. A teoria cai por terra em casos como o de Giovana* que conta, inclusive, que o afeto pode vir com o crescimento, tanto da mulher, em seu papel de mãe, quanto da criança. Helena Sbrissia

Segundo dados da Escola Nacional de Saúde Pública Oswaldo Cruz, 55% das mulheres brasileiras não planejaram a gestação.

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Lucas Grassi

No Brasil, 5,5 milhões de crianças não têm o nome do pai no registro. “Uma mãe é obrigada pela sociedade a amar seu filho desde quando ele ainda é um grão no útero. Uma mãe não pode reclamar que está cansada porque ‘é mole só cuidar de uma criança. Quem rala mesmo é o pai para sustentar vocês’.” Giovana conta que sofreu do quadro clínico de depressão pós-parto, e que ouvia constantemente das pessoas que aquilo era normal e que se tratava apenas de cansaço, algo comum para uma mãe de primeira viagem. “Uma mãe é uma mulher feliz e realizada, de acordo com a sociedade. Não podemos reclamar por termos a bênção da vida — mesmo que tenha sido algo indesejado. É o famoso ‘Fez? Agora aguenta. Agora cuida’.” O filho de Giovana tem 1 ano, e ela conta que apesar de sempre ter se preocupado e sentido a necessidade de o proteger, não o amava nos primeiros meses. “Não conseguia olhar para ele e sentir aquele amor incondicional de mãe que eu tanto ouvi falar durante a minha vida, e eu me sentia mal por isso, afinal, é esperado que uma mãe ame seu filho, né?.” Hoje, ela o ama de maneira incondicional, segundo ela, mais do que a si mesma, mas que talvez não tivesse conseguido sentir aquilo. “A culpa é da sociedade que espera demais de uma mãe e, por consequência, uma mãe espera demais dela mesma.” Segundo levantamento do PNAD 2015, 84% das crianças são criadas primariamente pela mãe — somada à

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jornada dupla, a pesquisa indicou que as mães empregadas empreendem 18 horas semanais com cuidados com a casa, enquanto pais desempregados dedicam apenas 12 horas. Essa realidade vem mudando de forma lenta e gradual. Os canais de Youtube, livros sobre maternidade, e até mesmo conversas com a futura avó, mostram uma realidade que não se canta nas cantigas. Daniela* conta que tinha em mente diversas idealizações sobre o pós-parto do filho enquanto ele ainda estava na barriga. Que tudo era lindo e maravilhoso, e que ela saberia exatamente o que fazer, além de o amar incondicionalmente — afinal, era mãe. Para ela, tudo mudou bem cedo, logo no segundo dia de vida do bebê: ele teve icterícia neonatal precoce. A bilirrubina — substância encontrada no sangue que quando em alta quantidade pode diagnosticar problemas no fígado — chegou a 22. “Ele só chorava e eu não sabia o que fazer, só chorava também. Ficava pensando por que eu inventei aquela história de ter bebê, onde eu fui me meter.” As dificuldades vieram logo no começo e foi preciso tempo para que se ajustassem um com o outro. “Eu morria de medo de ficar sozinha com ele, entrava em pânico mesmo, então sempre ficava alguém comigo ou minha mãe ou minha vó, o que por um lado foi bom, mas por outro foi péssimo, muitas interferências e muitos pitacos.”


A relação com o pai também foi problemática. O divórcio veio antes do quarto aniversário. Daniela conta que

uma vez ao mês pra passar o fim de semana.”

“Ficava pensando por que eu inventei aquela história de ter bebê.” - Daniela* as atividades desempenhadas pelo pai pouco mudaram desde quando eram casados. “A participação dele consiste em pagar a pensão e pegar o menino

Depressão pós-parto? Lucas Grassi

Porém, a maternidade ainda é vista como algo maravilhoso. “A verdade é que a maternidade é muito cansativa e solitária, muito mais emocionalmente do que fisicamente. Ser mãe é uma luta diária, não existe comercial de margarina.” Esse é o lado da maternidade que não se conta no chá de bebê.

*O nome das mães foi alterado para preservar as identidades de cada uma. Ao todo, 32 mães aceitaram dar depoimentos sobre os problemas que tiveram — e ainda têm — durante a maternidade.

Depressão pós-parto não é sinônimo de não gostar de ser mãe. Esse estado, que não incomumente afeta famílias depois do nascimento de uma criança, pode estar relacionado a inúmeros fatores, tanto emocionais quanto físicos. O que se entende hoje é que existem situações que podem ajudar a provocar o quadro - ou piorá-lo. Entre eles, estão a falta do apoio familiar, privação de sono, vício em drogas, alimentação inadequada, desequilíbrio hormonal. Quando se discute essa condição, existe uma preocupação natural com a dinâmica mãe-bebê. Instintivamente, preocupa-se, em primeiro lugar, com o estado da criança em relação à situação depressiva da mãe. A provedora da vida, nesse caso – e em muitos outros – toma o segundo (ou vigésimo) plano. Para se desmistificar a situação, é interessante se atentar ao fato de que não apenas mulheres desenvolvem um estado depressivo pós-nascimento. Homens, geralmente pais, também são diagnosticados com depressão pós-parto. Na realidade, a depressão do homem em relação à paternidade se associa, de acordo com publicação do Ministério da Saúde, à preocupação em torno

da própria capacidade em educar um recém-nascido. A ansiedade, somada ao aumento das responsabilidades, está entre as causas do problema. Voltando para as mulheres: manifestações de irritabilidade, choro com frequência, diminuição de energia e motivação podem ser sinais de depressão pós-parto. Se não tratada, a doença pode se desenvolver e chegar a um estado crônico conhecido como psicose pós-parto. Nesses casos, é importante que haja completa atenção com a mulher e o recém-nascido. Entre os sintomas estão: desconexão com o bebê e pessoas ao redor, vontade extrema de fazer mal ao bebê e/ou pessoas ao redor, pensamentos delirantes e irreais, sono perturbado. No processo de tratamento, o Ministério da Saúde recomenda que sejam feitas sessões de terapia hormonal e exercícios para fortalecer o laço emocional entre mãe e filho(a). Todo o acompanhamento psiquiátrico e psicoterápico é oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

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“SEGURANDO AS PONTAS”

Anelise Wickert

Anelise Wickert Gabriel Domingos Mariane Pereira

Lauro segura as pontas desde 2006 como auxiliar de serviços gerais.

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Embora estejam aposentados, idosos continuam no mercado de trabalho. O sustento da família e a vontade de contribuir com a sociedade são as principais motivações

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oram nove anos trabalhando informalmente, fazendo “bicos” em vários lugares para pagar as contas e continuar contribuindo com o carnê do INSS. Lauro Ososki, 65 anos, aposentado há três, era técnico mecanográfico, ou seja, trabalhava consertando máquinas de escrever, faxes e calculadoras. As novas tecnologias fizeram com que ele fosse demitido em 2006. E assim foi, segurando as pontas, até não conseguir mais. Com 62 anos de idade e 35 anos de contribuição, ele decidiu que estava na hora de se aposentar. Embora não tenha tido grandes complicações durante o processo, as cifras do salário mínimo se mostraram insuficientes para se manter. Como resultado, Lauro e sua esposa, Carmem Milani, 63 anos, que também está aposentada, resolveram trocar de profissão e voltar a trabalhar. “O mercado de trabalho te vê de uma forma ruim depois de uma certa idade. Tem gente que já falou para mim: quem se aposentou tem que parar de trabalhar, tem que dar chances para os outros. Mas eu tenho que pagar as contas. Uma das minhas filhas já se vira bem, mas a outra ainda está meio travada. Sempre pede dinheiro emprestado”, conta Lauro. Hoje, ele trabalha meio período em um depósito de materiais recicláveis. Lá, ele desmonta peças de eletrodomésticos, separa quilos de ferro e alumínio e ajuda a descascar pedaços de cobre. O aposentado, mesmo gostando dos colegas e do ambiente de trabalho, confessa que a principal motivação é a complementação de renda. Assim como Lauro, os idosos adiam cada vez mais a saída do mercado de trabalho.

Seja por necessidade, ou por vontade, o percentual de idosos que permanecem no mercado de trabalho tem aumentado, saindo de 5,9%, em 2012, para 7,2% no ano passado. Além disso, a necessidade se faz presente na escolha por continuar trabalhando: 63% dos idosos que trabalham declararam ser os chefes de família. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra em Domicílio Contínua (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O médico veterinário Darar William Zraik de 74 anos mesmo aposentado desde 2013, ainda permanece ativo no mercado de trabalho. Ele conta que se aposentou por ter a idade permitida, e também pelo direito de aposentadoria, mas segundo ele, um salário mínimo não é suficiente para manter o mesmo nível de vida que tinha trabalhando na área em que é formado. De acordo com o médico, o processo para se aposentar foi muito rápido com toda a documentação sendo acertada em um único dia. Apesar disso, ele conta que continua trabalhando como corretor, assessor na compra de cavalos e faz eventuais atendimentos veterinários, sempre como autônomo. Maria do Carmo Silveira Jayme tem 70 anos e conta que antes de se aposentar trabalhava como auxiliar de escritório e se aposentou há dez anos por idade. Para o processo de aposentadoria, ela teve ajuda de um advogado especialista e demorou pouco menos de um mês para concluir o trâmite e conseguir a aposentadoria. O que foi um alívio, porque, conta ela, alguns colegas demoraram muito para conseguir o direito.

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Sobre o porquê de ter retomado o trabalho depois de aposentada, Maria do Carmo comenta que se sentia sozinha e nervosa em casa. “Precisei voltar a trabalhar porque me sentia muito nervosa e sozinha dentro de casa, estava me incomodando ficar só em casa. Fiz um concurso de agente comunitária, passei e comecei a trabalhar em uma unidade de saúde que fica no bairro Orleans.”

“Precisei voltar a trabalhar porque me sentia muito nervosa e sozinha dentro de casa, estava me incomodando ficar só.” Maria do Carmo Silveira, agente comunitária

Além da necessidade de trabalhar, a vontade também era grande e ainda é hoje, “Eu gosto muito de trabalhar lá, e faço visita nas residências, para hipertensos, diabéticos, gestantes, crianças menores de 2 anos e é um serviço muito gostoso de fazer, já faz 15 anos que eu estou nessa área e não pretendo parar tão cedo.” Em relação às atividades realizadas pelos idosos 45% é o porcentual de trabalhadores atuando por conta própria, enquanto 27% atua com carteira assinada. Ao todo, de acordo com a pesquisa PNAD, 8% é o total de idosos que empreende como atividade profissional e nesse grupo 91% já possui o próprio negócio há dois anos ou mais. E também são mais homens, 70%, atuando na exploração do seu próprio empreendimento.

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A reforma da Previdência é um assunto que gera muitas dúvidas para os aposentados ou quem vai se aposentar. Para o professor de Direito Previdenciário e Direito do Trabalho Marco Serau Júnior a reforma traz várias alterações no texto. O docente explica que, atualmente, as aposentadorias podem ser adquiridas por tempo de contribuição ou por idade. Na nova regra, uma idade mínima é fixada (passa a ser 65 anos para os homens e 62 anos para as mulheres). Serau ainda conta que quem já está aposentado não perde o benefício. O professor também afirma que, segundo a proposta de lei, as pessoas que já deram entrada no processo de aposentadoria também se encaixam na regra antiga. “Porém, aqueles que ainda não preencheram os pré-requisitos devem continuar trabalhando e recolhendo a contribuição previdenciária”, acrescenta ele. O professor de Direito do Trabalho e advogado trabalhista Marco Guimarães afirma que a Constituição Federal garante o acesso ao mercado de trabalho sem nenhum tipo de discriminação. Ele explica que o artigo é claro em dizer que não pode existir diferença de salário, diferença de função ou outros critérios de admissão por motivos de sexo, cor, estado civil e inclusive idade. Além disso, há uma regra dentro do estatuto do idoso que prevê o acesso deste trabalhador ao mercado de trabalho e o respeito às suas condições físicas, intelectuais e psíquicas. Segundo Guimarães, o que precisa ser melhorado é a inserção do idoso no mercado de trabalho. “As políticas públicas que faltam são as de profissionalização do idoso, de preparar quem tem mais de 60 anos para um mercado que está diferente do tempo em que ele trabalhou. São pouquíssimos cursos, por exemplo, de informática que são direcionado para os idosos”, conta o docente.


O advogado ainda explica que o Estatuto do Idoso proíbe que o trabalho de pessoas com mais de 60 anos seja penoso, insalubre ou que tenha sobre jornada, ou seja, horas extras. “Muitas vezes, o idoso é o responsável pelo sustento da família. Infelizmente, ele acaba se sujeitando a toda e qualquer situação para manter o trabalho e garantir a complementação de renda.”

Lauro Ososki, auxíliar de serviços gerais

Anelise Wickert

Para ele, é necessário ter em mente que a grande maioria dos aposentados recebe o salário mínimo, que é um valor insuficiente. O professor afirma que os benefícios previdenciários são insuficientes e que os idosos precisam ser inseridos em campos de trabalho qualificado e não apenas um trabalho qualquer apenas para a empresa cumprir exigências.

“Tem gente que já falou para mim: quem se aposentou tem que parar de trabalhar, tem que dar chances para os outros. Mas eu tenho que pagar as contas.”

Hoje em dia, uma das principais formas de se encontrar emprego é pela Internet.

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Transplantados e guerreiros da diálise Mesmo transplantados, pacientes renais vivem em uma eterna jornada de regras e restrições, com cuidados dobrados sobre a alimentação e medicamentos

Rita Vidal

Barbara Schiontek, Rita Vidal e Thiliane Leitoles

Por três vezes na semana durante três horas do período da manhã, Ana Paula é conecctada a máquina de hemodiálise para realizar a filtragem do sangue.

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sentimento de querer manter vivos aqueles a quem se ama pode beneficiar inúmeras pessoas que, ansiosas por uma melhor qualidade de vida, esperam na fila de transplante. E, quando a doação é uma atitude que parte da própria família do paciente, o processo se torna ainda mais próximo.

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Esse é o caso de Ana Paula Ramos, que já foi transplantada duas vezes e enfrenta o processo da hemodiálise novamente. Ela descobriu o problema renal quando tinha 17 anos e, aos 26, recebeu a doação de um dos seus irmãos. A qualidade de vida aumentou, entretanto, dez anos depois, uma bactéria faria com que a jovem tivesse que esperar por um novo órgão.


Dessa vez, o outro irmão de Ana fez a doação, que mais tarde viria a causar uma nova rejeição. A história da doação para Emilly Cristina Soares também envolve laços familiares, já que a doadora foi sua própria mãe, Rosana Soares. “Quando cheguei à consulta com o nefrologista, após alguns exames, ele me disse: ‘Com esses resultados, você já deveria estar em coma há muito tempo’”, relata Emilly, que por meio de uma dor de cabeça, conseguiu descobrir uma doença renal crônica, sendo, alguns meses depois, encaminhada a um transplante de rim. Antes do transplante, mãe e filha não conversavam há dois anos devido a um desentendimento, mas o silêncio foi cessado pelos 99,9% de compatibi-

esperam anos na fila de transplante. “Eu passei dez meses fazendo diálise peritoneal à espera de um doador falecido. Quando soube que minha mãe era compatível, eu não quis mais esperar.” Para Rosana, nada acontece ou aconteceu por acaso: “Nós tínhamos uma relação complicada antes do transplante, e após tudo isso, nossa relação ficou muito melhor”. A médica nefrologista responsável pelos serviços de transplante renal do Hospital do Rocio Fabíola Pedron Peres da Costa afirma que hoje, no Brasil, existem muitos pacientes como Emilly, ou seja, que portam alguma insuficiência renal crônica e estão passando pelo procedimento de hemodiálise ou diálise peritoneal. E, segundo o médico, esse número é crescente, pois hoje as principais causas de problema

Rita Vidal

Sem medo de mostrar as cicatrizes, Ivo Ramos sorri ao mostrar as marcas de sua batalha em busca do rim.

lidade. “Fiquei chateada, pois foi o pai dela que me contou sobre a doença, não ela. Mas quando é filha, a gente não pensa duas vezes.” Desde a descoberta até a recuperação, Emilly diz que o processo teve duração de um ano e meio, o que, segundo a jovem, é um período curto se comparado ao de pacientes que

renal são diabetes e hipertensão, que são as doenças mais prevalentes na população. É o caso de Ivo Ramos Junior, que, por conta do diabetes, entrou na fila para transplante de rim e pâncreas. Após um tempo de espera, em um exame, ele descobriu que era diabetes tipo 2, então saiu da fila de transplante de

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pâncreas e foi submetido apenas a um transplante de rim. “Depois da recuperação, fui até meu médico endocrinologista e descobri que a diabetes tinha regredido para tipo 1, o que me levou a dois enxertos de pâncreas mal-sucedidos e hoje me recupero do terceiro.” O transplantado ainda comenta que todos os processos aconteceram com doador falecido. Fabíola explica que a única diferença entre doador vivo e falecido é o tempo que o órgão leva para recuperar sua função. Segundo a nefrologista, com a melhora da captação e da oferta de órgãos de doadores falecidos, os pacientes preferem aguardar na fila – já que a espera funciona por semelhança genética e não por ordem. Por outro lado, a especialista destaca a importância de esclarecer a diferença entre morte cerebral e coma, pois a confusão tem levado muitas famílias a rejeitarem a doação de órgãos.

PROCESSO PARA O TRANSPLANTE E TRATAMENTO O Paraná é referência no Brasil em transplante de órgãos. Em 2018 foram feitas 47,5 milhões de doações por habitantes no estado. Outros dados mostram que, entre os anos de 2011 e 2018 houve, um aumento de 365% de

Coma e morte cerebral

Qual a diferença entre os termos médicos? Muitas pessoas acreditam que o coma e a morte cerebral são a mesma coisa. Mas, segundo a nefrologista Fabíola Pedron Peres da Costa, no coma, o paciente não acorda, mas tem fluxo de sangue no cérebro, existindo, portanto, a possibilidade de ele acordar. Já no caso de morte cerebral, a médica explica que o mesmo exame é feito e percebe-se que o fluxo de sangue não chega ao cérebro do paciente. A nefrologista reitera que, para ser um doador falecido, a pessoa precisa ter passado por morte cerebral.

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doações, número que apresenta um grande significado. A médica coordenadora do Sistema Estadual de Transplantes do Paraná (SET/PR), Arlene Terezinha Cagol Garcia Badoch, explica que o sistema busca conscientizar a população para que cada vez mais a doação de órgãos se torne algo comum, além de criar medidas que façam com que o processo aconteça de forma rápida e eficaz. Além disso, Arlene informa sobre a existência da lei de transplantes (9434/97), que diz: “Na hipótese de doação post mortem, será resguardada a identidade dos doadores em relação aos seus receptores e dos receptores em relação à família dos doadores”. Médico do Instituto do Rim do Paraná, clínica que desenvolve atividades nas áreas de nefrologia, hemodiálise, diálise peritoneal e transplante renal, Hélio Cassi explica que, além do transplante, existem outras duas maneiras distintas de tratar a insuficiência renal. A primeira é a hemodiálise. O processo consiste artificialmente em um rim criado pelo homem, uma máquina, que ajuda a manter a situação do indivíduo relativamente estável com uma filtração extracorpórea. Três vezes por semana, o paciente passa de três a quatro horas conectado à máquina, que faz o trabalho que o rim deveria fazer. A segunda é a diálise peritoneal. O processo de filtração é quase o mesmo que a hemodiálise normal realiza, a diferença é que o paciente terá todo esse procedimento feito em casa, diariamente, com a ajuda de alguém que recebeu o treinamento adequado para realizar o manuseio da máquina. Cassi conclui que os resultados são os mesmos e que o paciente tem liberdade de escolha sobre o método que querem realizar. “O médico só interfere nesse processo quando o paciente já possui outras limitações que interferem no tratamento.”


A LUTA DE MARIA Regina Maria Padilha é filha de Maria Aparecida Padilha. Por volta de dezembro de 2004, Maria foi informada de que os seus problemas com pressão alta geraram uma flebite que culminou na perda dos dois rins. Durante 13 anos, Regina presenciou a luta diária da mãe na hemodiálise e lembra que, por mais debilitada que Maria aparentava estar, sempre foi forte e nunca desistiu de enfrentar a batalha pelo rim. A filha conta que a mãe só entrou, efetivamente, na fila do transplante, quando as fístulas do braço para a hemodiálise pararam. Então, em 2015, ela realizou o processo cirúrgico. “É muito agoniante receber a ligação de que sua mãe teria que passar por um processo desse. Foram horas de espera até o órgão chegar. Ela fez o transplante mas dentro de quatro a cinco dias já teve a rejeição. Tudo isso foi muito difícil, já que minha mãe não tinha mais acesso e o rim poderia ser a sua última chance.” Maria Padilha recorreu então a diálise peritoneal, feita em casa. Regina conta que esse foi um momento bastante delicado e de cuidado dobrado, já que ela e sua irmã tiveram que fazer um

treinamento intenso para gerenciar a máquina a qual a mãe permaneceria conectada durante todas as noites. “A cada dia que passava minha mãe ficava mais debilitada. Um dia doía. Outro não dava certo. E assim foi indo, até ela falecer em novembro de 2017 devido à um AVC e uma infecção no peritônio”, conta. A filha não esconde as lágrimas ao lembrar da mãe, e conta que durante todos esses anos, Maria sempre lutou, permaneceu “forte e guerreira”. Por mais que tivesse uma qualidade de vida limitada, sem as viagens que tanto gostava, Maria sempre contou com o apoio de toda a família que, segundo Regina, foi essencial para que sua mãe vivesse por mais tempo. Mesmo que a história de Maria e de muitas outras pessoas não tenha terminado com um final feliz, os dados do Sistema Estadual de Transplantes do Paraná são otimistas e mostram que, em 2018, 634 transplantes de rim foram realizados no estado, sendo o órgão mais transplantado no Paraná. As tabelas também apontam que, até novembro de 2018, havia 1.332 guerreiros na lista de espera pelo rim, aguardando a chance de renascer.

“Minha mãe não tinha mais acesso e o rim poderia ser a sua última chance.” Regina Maria Padilha, vendedora Arquivo Pessoal

Em sua última viagem de família, Maria (segunda mulher à esquerda) registra o encontro com seus irmãos que moram em outra cidade.

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A aversão ao diferente Evelyn Rodrigues

O Brasil é um importante destino de imigrantes, sendo o terceiro país da América do Sul que mais recebe pessoas de outras nacionalidades Evelyn Rodrigues, Stefany Mello e Valeska Loureiro

O preconceito ou os pré-julgamentos persistem.

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estudante de Artes Visuais Elias Gorayeb veio de Rondônia para Curitiba em 2016 para estudar, pois viu na cidade um leque de opções para o curso com que sonhava. Porém, o fato de ser da Região Norte o levou a se deparar com percepções e conceitos distorcidos a respeito de onde vinha e de sua identidade. “Meus níveis e habilidades intelectuais e culturais constantemente foram questionados por conta disso, como se alguém vindo de uma região afastada não tivesse acesso ao conhecimento social, artístico ou político que alguém de qualquer outra área do país tem”, conta, acrescentando que vê na sua própria experiência “um exemplo clássico da xenofobia mal digerida do estereótipo do sulista brasileiro”. Elias conta que já foi questionado sobre suas raízes por conta de seu tom de pele. “Me perguntavam como eu podia ser do Norte, sendo que eu sou ‘tão clarinho’?”. De seu ponto de vista, de quem ficou cara a cara com a xenofobia, por conta desse estereótipo

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de que nortistas são pessoas atrasadas, ignorantes e sem cultura, sempre vem também a ideia de cor, que diz que esses fatores negativos são herdados por pessoas de cor (negros e indigenas). A xenofobia se faz presente na vida de muitos que optam por mudar de região. A aversão, o preconceito ou os pré-julgamentos com o estrangeiro ou com qualquer um que tenha costumes diferentes ainda persiste na vida de muitos, até mesmo, daqueles que saem de regiões do norte do País para viver no Sul brasileiro. A advogada de Direitos Humanos Camila Lucchese explica que a xenofobia é considerada crime no Brasil e a pena é de reclusão de um a três anos com multa. Camila ainda explica que a situação pode ser agravada se o crime for cometido por intermédio de meios de comunicação, como a internet. “Segundo a Lei n. 7.716/89, com redação dada pela lei 9.459/97, serão punidos crimes resultantes de discri-


minação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. De acordo com a advogada, os crimes que se enquadram como xenofobia no Brasil são: condutas como expulsão de estrangeiros, comentários desrespeitosos sobre o povo, cultura, inferiorização de costumes, tradições e pessoas, ridicularizar sotaques, tipo físico, demonstrar incômodo pelo fato de o estrangeiro estar vivendo no Brasil. Camila explica que, em Curitiba, há atendimento especializado para pessoas em situação de vulnerabilidade e vítimas de preconceito na Divisão de Homicídios e Proteção à pessoa (DHPP) da Polícia Civil. Isabela Cunha, de 24 anos, veio de São Luís no Maranhão para buscar uma oportunidade de graduação em

O argentino Rodrigo Serra, de 22 anos, mora em Curitiba há nove anos e,relata sua chegada e vivência pelo Brasil com muita alegria. Segundo Serra, as pessoas não fazem comentários maldosos por conta de sua origem. “Quando cheguei ao Brasil, na época da escola, meus professores falavam que a Argentina só tinha carne, vinho e dança de bom. Senti isso como comentário maldoso, mas paravam quando percebiam. Depois disso, eu nunca sofri nenhum tipo de preconceito”. O estudante ainda relata que sente um preconceito maior em relação aos estrangeiros no Brasil em época de competição de futebol. “Em época de Copa do Mundo, ou Copa America, surge a dúvida se por acaso o Brasil enfrentar a Argentina, para quem

“Me perguntavam como eu podia ser do Norte, sendo que eu sou ‘tão clarinho’?” Elias Gorayeb, estudante de Artes Visuais

Design de Moda, um curso que não é muito presente na capital maranhense. Com um ano e meio morando em Curitiba, já está feliz com bons círculos de amizades e cursando a graduação dos sonhos. Mas nem sempre tudo é como o esperado. Isabela relata que várias vezes já teve que encarar preconceitos explícitos com ela simplesmente pelo fato de ser nordestina. “Ah parece mesmo o rostinho, o formato do rosto, da cabeça chata”, é o comentário de um motorista de um aplicativo de mobilidade urbana ao saber da sua naturalidade. Em outro momento, o comentário é: “Então, não você, mas o povo que vem de fora, de outras regiões, eles vandalizam”. Isabela relata que, naquele momento, o motorista começou com um discurso de que o povo que vinha de fora era responsável por todas as coisa ruins que acontecem na cidade, como a pichação, a sujeira. “Embora ele esteja me isentando disso, isso não faz dele uma pessoa menos xenofóbica.”

eu vou torcer. Eu acredito que esses jogos devem unir culturas diferentes e não aumentar o preconceito.” Segundo o sociólogo Gilberto de Miranda, existem dois termos usados para preconceitos xenófobos. “O etnocentrismo acontece quando a pessoa reconhece que há uma cultura diferente da dele, porém trata inferior a cultura do outro e o relativismo cultural, quando a pessoa reconhece que há outras culturas no mundo mas entende que a cultura do outro é a cultura do outro e não se deve misturar com a sua”. Miranda explica que as pessoas praticam xenofobia e preconceito como uma forma de reprodução. “Porque outra pessoa faz um tipo de brincadeira ou tem alguma fala xenofóbica, outras pessoas copiam, principalmente quando vem de um líder, alguém com cargo superior, e que representa muito para ela, como por exemplo um presidente”.

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A exploração da madeira e o desmatamento puseram a araucária em extinção. Hoje, pesquisadores acreditam que o seu valor não está no tronco, mas no pinhão

Henrique Zanforlin

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a região metropolitana de Curitiba, perto da cidade de Lapa, um mar de araucárias se estendia pelas planícies, e suas sementes eram bastante consumidas pelos indígenas que lá habitavam. Com a chegada dos imigrantes, aquela árvore ganhou extrema importância econômica: o tronco centenário tinha um diâmetro que não dava para abraçar, e a sua madeira reta a tornava perfeita para a produção de móveis. “Há 60 anos, tinha valor a terra onde havia pinheiro. Tem gente que ficou milionária porque comprou terra”, conta José Assir Lima, agricultor, produtor de abobrinha, pepino, repolho, alface, que possui 40 cabeças de gado. Ao contrário da vastidão de araucária que se imagina, sua fazenda possui

Henrique Zanforlin

Raízes do Pinhão

José Assir de Lima admira suas araucárias.


um céu azul e limpo. O que restou da exploração dos imigrantes se resume a algumas nuvens verdes, copas das poucas araucárias que protegem os bois do Sol. Uma boa pinha tem em média 150 pinhões, 30 vezes a mais que Assir, como é mais conhecido. Ele tem cinco filhos maduros, uma deles é atleta, Ele conta que ela gostava de cuidar das vacas, tirar o leite, sentir o vento no rosto, um espírito que a levou ao atletismo para correr a prova dos 800 metros. Outros dois estão estudando Agronomia, para, quem sabe, continuar o trabalho do pai. O produtor não gosta muito de araucárias: “É uma coisa que o terreno fica sem valor, ainda mais mato. Quem vai querer comprar uma área para ficar lá só o mato?”. Mas, como não pode evitá-las, há alguns anos fez um teste: pegou os pinhões que

gião. Seus vizinhos levam pinhão para ele, que chegou a vender mais de 100 sacos de pinhão, cerca de 3 mil kilos por viagem. Apesar de 2019 não ter sido um ano bom para a sua venda, a semente continua sendo um fator importante de sua vida financeira. “É uma produção extra e com a qual você não gasta

nada, não precisa adubar, não precisa pulverizar”. Além disso, ele conta que o fato de a araucária produzir por três meses torna o negócio ainda mais interessante, é um dinheiro que passa despercebido. “Eu e minha esposa estamos interessados, já andamos atrás de, futuramente, fazer disso uma renda para quando me aposentar.”

O plano de Assir é objeto de estudo para uma dupla de pesquisadores da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Valdeci Constantino é doutor em Produção Vegetal, e desenvolve métodos que visam viabilizar a produção de pinhão em escala. “Hoje em dia, não tem produtor de pinhão, não José Lima, agricultor existe ainda. O que há é extrativista, então o cara vai coletar o pinhão no caíram em seu terreno e foi vender na mato que ele tem”. Com o uso de enCentral de Abastecimento do Paraxertos e manejo adequado, uma arauná (CEASA). Como ele faz todas as cária pode começar a produzir pinhão quartas e sextas feiras, acordou a 1 com dez anos de idade, 5 a menos hora da manhã para chegar lá pouco do que seria o natural. Além disso, a antes das 3h, ficando lá até meio dia. técnica permite a seleção das espécies O retorno financeiro o surpreendeu e e de sexo, o que otimiza a produção. logo ele ficou conhecido em sua re“Posso fazer previsões de produtivida

“É uma coisa que o terreno fica sem valor, ainda mais mato. Quem vai querer comprar uma área para ficar lá só o mato?”

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de com base nas espécies que plantei, além de controle de qualidade ao longo dos meses.” O pesquisador também explica que a safra não ter sido boa é uma característica natural da planta, que gasta muita energia para produzir a pinha, e depois precisa de um repouso antes do próximo inverno. Segundo dados da Secretaria de Agricultura e Abasteci-

mento, a safra de pinhão na região da Lapa, em 2018, foram 10 mil quilogramas inferior do que a do ano anterior. O preço pago aos produtores, por sua vez, aumentou cerca de 10%, chegando a R$ 2,72 por quilo.

Constantino ainda explica que a produção de pinhão em escala é uma forma de preservar a araucária, que hoje resta apenas 1,5% da mata original. Pelo fato de a araucária viver por mais de 500 anos, o estímulo do plantio pode reconstruir essa vegetação. Ou seja, mesmo que o agricultor viva até seus sonhados 100 anos Valdeci Constantino, pesquisador de idade, suas araucárias ainda estarão produ-

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“A araucária não deu certo pela beleza, não deu certa pela legislação, a única maneira é pelo bolso.”

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E como Assir gosta, ele diz já ter tido oportunidade de se mudar para cidade, mas preferiu manter-se na tradição, nas festas regionais polonesas de sua esposa e a comida caseira, como pinhão assado na brasa. zindo pinhão para seus filhos, netos e futuras gerações.“A araucária não deu certo pela beleza, não deu certa pela legislação, a única maneira é pelo bolso.” O terreno onde Assir mora vem desde seu avô, que, contra todos da família, emprestou dinheiro para o único neto que tinha gosto pela terra, e que até hoje sonha em virar fazendeiro. Assir mudou quando se casou, há 32 anos, e à época o agricultor só tinha uma bicicleta, uma picape e as poucas vacas emprestadas do seu avô. Nesses anos todos, ele criou sua família e aos poucos fez uma plantação, chegando a ter 40 funcionários e 200 mil pés de morango. Foi quando uma chuva de granizo destruiu sua plantação e o afundou em dívidas. Passou os próximos três anos pagando contas e os poucos funcionários que restaram. Por isso, ele fala que não pressiona os filhos para continuarem o negócio da família. É preciso gostar.

A professora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) Cilene Ribeiro é pesquisadora na área de patrimônio nutricional, e conta que o pinhão é muito mais do que uma semente, e faz parte da nossa cultura. “A comida não é uma coisa neutra, tem muitos sentidos e muitos significados, a gente tem muitos laços afetivos, muitas memórias.” Isso dá ao pinhão um valor maior do que o nutricional, ambiental ou até mesmo econômico. O pinhão carrega consigo um sabor de família, de inverno. “As pessoas se reuniam ao redor de pequenos braseiros para assar o pinhão direto nessa brasa. Então, existe até uma simbologia de catar o pinhão na mata e comer junto.” Apesar de a brasa ter sido substituída por uma panela, a comida ainda nos aproxima e faz presença nas festas tradicionais. O que seria da festa junina sem o pinhão?

Araucária enxertada.

Repensando o pinhão

Farinha à base do pinhão ajuda celíacos O jeito de comer pinhão não muda há séculos, e é isso que está tentando fazer a pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Cristiane Helm. A nutricionista está desenvolvendo uma farinha a base de pinhão, que possui um baixo teor de gordura, e alto valor de proteínas e fibras alimentares, as quais previnem doenças gástricas. Ela conta que dessa forma é possível conservar o alimento, “conseguimos baixar o teor de umidade para 5%, podendo então ser estocado e durar por meses.” A farinha também está sendo vista como uma alternativa para quem sofre de doença celíaca, uma espécia de reação alégica ao glúten, proteína encontrada no trigo e na cevada.

Henrique Zanforlin

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No compasso do tempo A Sociedade Recreativa Internacional Ă gua Verde abre sua histĂłria de vida

Carolina de Andrade Gabriel Dittert Thais Porsch Gabriela Savaris

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“Veja, é por tradição nossa aqui, que o vice vire presidente. Isso acontece há vários anos.”, justifica o senhor Rubens da Cunha ao ocupar o mais alto cargo executivo da Sociedade Recreativa Água Verde. Vestindo uma polo cujo tamanho parece ser dois números maior do que seu, Cunha parece animado em receber visita para contar um pouco sobre a

bem para o corpo, para alma, e para o espírito.” Acabou se tornando assíduo dos bailes que ocorrem sextas e sábados, e onde todo mundo se conhece e enche de gente. Domingo chega a ter mais de mil pessoas dançando nos salões. Antes de sair da sala, Cunha entrega um panfleto em que diz que aniversariante do dia ganha um bolo. Porém já teve gente que se aproveitou a promoção. “Já aconteceu de o cara chegar aqui 4 horas da tarde, pegar o bolo e não ficar para o baile”, reclama rindo. Agora eles convencionaram que o bolo seja entregue às 9 da noite no baile da última semana do mês, após o parabéns.. Cunha precisa pegar no corrimão para subir a escada até onde fica o bar da casa e os salões. Não parece dia com a penumbra intencional do lugar. Thais Porsch

Thais Porsch

A

o entrar na sala, o cheiro de cloro fica para trás. Comparado ao cômodo anterior, este é mais espaçoso a ponto de caber um sofá preto, uma pequena mesa com quatro cadeiras, e uma maior que, nota-se pelo tamanho e o amontoado de papéis em cima, pertencer ao cargo do presidente da Sociedade Recreativa Internacional Água Verde. Atrás dela está um senhor de cabelos brancos finos penteados para trás e um sorriso no rosto de quem não parece ter chegado aos 82 anos.

Cidadãos e fundadores em frente a Sociedade no século XIX. história da instituição. “Eu sou sócio aqui do Água Verde uns 30 e tantos anos, mas não os bailes. Eu frequentava aqui para jogar bocha”, ressalva, rapidamente, antes que escape um juízo de valor. Viúvo há 20 anos, Cunha começou a frequentar os bailes sob a prescrição do médico, e não parou mais. “O médico falou para dançar todos os dias. Faz

Após a reforma que foram obrigados a fazer por causa do incêndio, há dois anos, em um dos salões foi colocado taco de madeira, por pressão do público. Segundo Cunha, é para eles dançarem e baterem o pé. Ele faz uma demonstração alegre na pista vazia fazendo jus ao barulho que

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“Achei tudo muito diferente dois bailes que eu era acostumada a ir, lá no interior não podia dançar sozinha, os meninos tinham que chamar.” Rosangela Wolff - cuidadora

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Thais Porsch

causa no salão. “Aqui até algumas mulheres vêm vestidas com moda gaúcha.” Uma música sertaneja dos anos 1990 ressoa no outro lado de uma sala abafada em que fica disposto um bar com um balcão de madeira, um caixa, e algumas mesas dispostas com cadeiras de ferro. O som vem do outro salão. Lá se veem alguns casais já dançando, sem percepção do tempo. Homens e mulheres que há muito já passaram da mocidade, mas que sabem mexer seus pés no ritmo da música como se tivessem nascido com o dom. Cunha corrige a si próprio ao apontar que já era presidente, e não vice, quando o incêndio aconteceu, em novembro de 2017. Relembrando os momentos anteriores, relata que os bailes já tiveram a presença de artistas famosos, mas que, após a reforma, destruiu tudo. “Os bombeiros contam que esqueceram uma panela ligada na cozinha arrendada.” O incidente fez a sociedade ficar fechada até maio do ano seguinte. O clube sobrevive, basicamente, dos bailes, já que a entrada é paga para aqueles que não são associados, e também da academia ao lado, que também foi arrendada. Cada associado paga R$ 70 por mês. “São 140, 150 associados, mas só 30 ou 40 que chegam a votar nas reuniões”. “Às vezes nós distribuímos isso aqui.” Ele entrega um cartão. “Nós damos um convite para o pessoal vir para o baile, porque tem gente que não tem dinheiro.” Ali está escrito ‘Convite VIP’. É uma entrada de graça para qualquer dia que tenha baile.

BAILE DE ENCONTROS Rosangela Wolff, mas conhecida por todos como Rô, parou de lavar a louça quando perguntei há quanto tempo ela frequenta os bailes da Sociedade Água Verde. “Eu? Faz...Faz 14 anos”, disse ela. A Sociedade Recreativa Internacional Água Verde existe desde 1905. Em seu site, a sociedade afirma que os bailes acontecem sempre de quinta-feira a domingo, e avisa que “é proibido:

entrar de bermuda, chinelo, sandália, boné, chapéu, camisa de time, regata, agasalho e tênis”. Os jovens de hoje que tentassem entrar no salão, provavelmente seriam barrados. Rô é empregada doméstica e trabalha na mesma casa há mais de 20 anos. Mesmo depois de a senhora para quem trabalhava morrer, em 2015, ele continuou trabalhando lá e cuidando do filho excepcional da idosa, junto com uma outra cuidadora. Ela nunca deixou de aproveitar os fins de semana que tinha livre e, quando indagada se tinha conhecido o marido dela nos bailes fala: “Conheci”, rindo nervosamente. Conta que chegou ao baile com as amigas, assíduas frequentadoras, mas não havia mesa. “A garçonete, a Eliane na época, ela foi e falou com ele, que estava sozinho numa mesa. E pediu se podíamos sentar lá.” O então futuro marido de Rô apenas disse: “Só tem um problema: eu bebo, fumo e danço.” E ela retrucou: “Isso não tem problema que a gente também faz”. Porém, o primeiro encontro não a conquistou logo de cara. O homem que havia dito que dançava tinha na verdade dois pés esquerdos.“Você dança coisa nenhuma, falei a ele. Conheci ele em fevereiro, em junho começamos a namorar.” A cuidadora e doméstica revela que já foi outros bailes, mas não gostou de nenhum, se familiarizou mesmo com o Água Verde, bairro onde também trabalha. Rô e seu marido frequentam até hoje, mas sua última passada por lá não a agradou muito: “Era horrível a banda, a garçonete disse que tava mais pra velório do que pra baile”. Quando a Rô chegou a Curitiba, houve uma espécie de choque com a moderna capital. “Achei tudo muito diferente dois bailes que eu era acostumada a ir, lá no interior não podia dançar sozinha, os meninos tinham que chamar. Hoje, já pode, tem até mulher dançando com mulher. Bom, hoje em dia tá tudo assim mesmo”, desabafa ela. Mas salienta para que não fique nenhum mal entendido: “Eu não. Mesmo aqui eu sento e fico ali, vou dançar na pista só. Esse negócio de ficar rebolando não é comigo”.

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Franz Fleischfresser João Matheus D’Ambros

À

A batalha para manter a história e a tradição de um dos maiores clubes do futebol amador de Curitiba

s sete da manhã começam e acabam lá por nove da noite, às vezes onze. Essa é a rotina dos que, muito mais que torcerem, cuidam do União Capão Raso Futebol Clube, um dos times participantes da liga suburbana de futebol da capital paranaense. Laércio Prussak e Leocádio Furman, o Léo, respiram o clube que amam, e como diz o ditado, quem ama cuida. Todos os sábados estão ali, fazem um café da manhã carregado, com pães e frutas fresquinhas, servem a todos os atletas e , muitas vezes , até os familiares deles. Os dois cuidam de cada centímetro do clube que, em novembro, completará 67 anos de uma história riquíssima no futebol da cidade, sendo apontado como um celeiro de craques, tendo revelado os ex-jogadores, Cuca (hoje treinador), Ribamar e também, o próprio Léo.

Malutron e encerrando sua carreira no Rio Branco de Paranaguá. Mesmo com tantos grandes nomesno currículo, o melhor momento na carreira é o título pelo Capão Raso, clube em que declara ter a sua raíz e que foi fundado por seu pai e seus tios em 1952. Em um time de futebol, é comum existirem disputas pelas posições na zaga, no meio ou no ataque, porém, quando menores, ambos brigavam pela posição de gandula, tamanha era a conexão com o Capão.

“1981 foi um dos anos mais importantes da história do Capão Raso.” Laércio Prussak, técnico do time .

Furman, aos 18 anos, foi campeão atuando pelo time, sendo levado então para o Coritiba Futebol Clube por ninguém mais ninguém menos que Dirceu Krüger, o Flecha Loira, ídolo do Coritiba, o qual o observou por três meses, por trás das traves, antes de tomar a decisão. Depois do Coxa, Léo ainda jogou no Paraná Clube e Londrina, CRB e CSA, passando por

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Nome fotógrafo

Suburbana enraizada

Prussak, apesar de tantas lembranças boas relacionadas ao clube, não vê um momento que o marcou tão bem quanto o título do amador de 1981. Com 15 anos na época, viu três ou quatro ônibus lotados de torcedores deixarem a Rua Deputado Waldemiro Pedroso rumo a Arena da Baixada, onde venceram a difícil batalha contra o Sobe Iguaçu, sagrando-se campeões. Após levantarem o caneco, os torcedores o caneco. Foram três dias consecutibos de festa, sem deixarem o clube, há quem diga que a festa durou de quarta à segunda-feira. Para Prussak, são essas lembranças boas, de união e amizade, que mostram que aquilo é amor, um sentimento muito diferente daquele que se tem ao torcer para clubes profissionais como Athletico e Coritiba, por exemplo. Ele afirma ainda que hoje é difícil encontrar a mesma identifica-


ção por parte dos jogadores, antigamente só jogavam jogadores do bairro e que, apesar de levar o título de amador, o campeonato hoje é profissional. De fato, hoje, muita coisa mudou, o futebol amador se tornou caro e envolve muitas coisas. O Capão Raso sobrevive da venda de rifas e ajudas de todos os torcedores para pagar água e luz, mas conta, também, com parcerias, as quais não investem dinheiro, porém colaboram com materiais, como redes, telas e bolas de futebol. Pode parecer pouco, mas são fundamentais e evitam gastos consideráveis do clube.

(para atletas acima de 50 anos), o clube envolve muito a comunidade. São realizados, com frequência, feijoadas e churrascos para os torcedores, jogadores e suas respectivas famílias. A suburbana traz muitas pessoas, e a intenção de Prussak e Furman é justamente essa, procurar trazer as famílias, para que possam compreender o dia a dia do Capão, como exemplo, as esposas, que estão sempre presente nos jogos e demais eventos, juntamente dos filhos, os quais ajudam a cuidar do local.

Leonardo Cordasso

No último sábado estiveram por lá, e com certeza estarão no próximo, afinal, sem eles, não sabe-se o que seria do União Capão Raso Futebol Clube.

Além do futebol, que conta com as categorias juvenil, adulto e 50tinha

O melhor 50tinha do Brasil

A capital do Paraná é considerada por muitos jogadores e dirigentes, a sede do melhor campeonato amador para atletas com 50 anos ou mais. Não é à toa que inúmeros ex-jogadores, ex-campeões brasileiros e até atletas que atuaram pela seleção brasileira, participam deste charmoso campeonato. A partida da vez lotou o estádio João Carlos de Oliveira Sobrinho. O time da casa, Capão Raso/Cadillac, recebeu o Botafogo São José dos Pinhais e acabou perdendo por 3x0. Mas para muitos que ali estavam, o placar pouco importava. Para o excampeão brasileiro com o Coritiba, Elizeu Rolim, o que importava vinha de fora. “O mais importante é o vestiário e o papo com os colegas antigos. Obviamente o jogo é bom para continuarmos na ativa, nós sempre teremos um espírito competitivo. Mas isso fica em segundo plano quando reencontramos nossas antigas amizades, rever amigos de longa data não tem preço”. O craque de 58 anos já se prepara para

a disputa do sessentinha nos próximos anos, e mesmo com a idade avançada, vestiu a camisa de número 10 e não deixou a desejar. O jogo, ocorrido no sábado (31), envolveu reencontros inesquecíveis. Elizeu enfrentou o goleiro com quem foi campeão brasileiro, em 1985, pelo Coxa, Gerson Dall’Stella, o qual mostrou que a idade não tirou sua habilidade em guardar a meta, pegando uma penalidade decisiva no segundo tempo, além de adversários como Dago, ex-meio-campo do Fluminense, e o exzagueiro do São Paulo, Valber. Outros grandes nomes eram aguardados no União Capão Raso, mas não compareceram, como Túlio Maravilha e Donizete Pantera, mas que com certeza serão figuras garantidas nas fases futuras do folclórico torneio. Os encontros que foram possíveis, além de trazerem alegria dentro de campo, realizam o desejo de muitos torcedores, que agora tem a oportunidade de acompanhar ao vivo os jogadores que não viram no passado. esporte | revistacdm 27


Heróis da madrugada Todas as noites, pessoas abdicam seu sono para socorrer quem precisa Beatriz Tedesco Camille Casarini Fernanda Xavier

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orários comerciais não são suficientes quando uma emergência acontece. Por isso, existem profissionais que se disponibilizam a atender em horas incomuns, principalmente de madrugada. Muitos nem recebem pelas horas extras que fazem, mas continuam atendendo, simplesmente, por amor à profissão. Esse é o caso de Reinaldo Batista, pastor há 23 anos, além de ser teólogo e professor de Teologia. Costumeiramente, ele é chamado durante a madrugada por pessoas desesperadas que estão passando por algum problema, como conflitos familiares, doenças, tentativa de suicídio e morte. Não importa a hora nem o local: quando recorrem a ele, ele vai. Na maioria das vezes, Reinaldo vai acompanhado de outro pastor para aconselharem e darem apoio espiritual às famílias. O pastor conta que já aconteceu de precisar ir visitar uma família por duas semanas seguidas, todas as madrugadas, para orar e aconselhar e isso o marcou. “Também já aconteceu de eu passar a madrugada inteira conversando e aconselhando uma família e, às 7 horas, ter que ir dar aula até o meio-dia.” Batista destaca que sempre orienta quem atende a buscar ajuda médica, psicológica e psiquiátrica quando

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necessário. “Nós fazemos a parte espiritual e sempre conversamos com a família para que, se preciso, seja feito o encaminhamento a um profissional da saúde. Grande parte das pessoas precisa de tratamento médico.” Reinaldo afirma que o que o motiva a ter esse esforço e aceitar atender as famílias na madrugada é o amor de Deus e a certeza de que foi chamado para cuidar de pessoas. “O amor de Deus é o principal. Se não fosse isso, acho que eu não faria.” Quando o pastor volta para casa após um atendimento de madrugada, a gratidão vence o cansaço. “Eu tenho a sensação de dever cumprido, sinto que a minha parte eu fiz. Sempre valeu a pena e sempre vai valer.” Marco Aurelio Iurk hoje trabalha como professor, mas anteriormente era policial militar. Ele conta que sua escala era intercalada entre dias e noites, com folgas de 24 horas entre os turnos e depois se repetia novamente. Beatriz Tedesco


“Era uma escala que tinha suas ‘vantagens’, permitia que pudesse fazer serviços extras, o famoso ‘bico’.” Para Iurk, os dias mais complicados para trabalhar à noite eram os de confrontos armados e prisões em flagrante, pois sempre ultrapassavam do horário de saída, geralmente às 8 horas, quando outras equipes chegavam. Dentre as muitas, ele lista algumas dificuldades de trabalhar nesse turno, como frio, fome, sono e a dificuldade de conciliar estudos, mas acredita que toda essa rotina acostuma. Segundo o ex-policial, devido ao fato de a escala ser alternada, ou seja, com jornadas de trabalho de dia e à noite, não havia uma rotina, o que o impedia de se acostumar. Ele conta que o seu cotidiano acabava influenciando as pessoas ao seu redor. “Geralmente, nos dias depois das escalas noturnas, quando podia, eu dormia a dia todo.” Marco Aurélio explica que,

pessoal, reduzindo o tempo em casa com a família. “Apesar de poder negar o atendimento, você vê a pessoa em uma situação de apelo, que já recorreu a outras pessoas que não auxiliaram. Isso mexe com a consciência, soa realmente como sou a pessoa que pode resolver o problema dela.” Glaser ressalta que só um profissional autônomo ou empreendedor consegue ter flexibilidade no trabalho, podendo atuar em horários não comerciais. Assim, apesar dessa rotina afetar a vida pessoal, é possível recuperar o tempo trabalhado em um outro momento, descansando ao lado da família. A saúde é outro fator necessário a ser considerado. O veterinário explica que isso pode realmente ser uma “bomba relógio”. Para que a saúde não seja afetada, é necessário disciplina para organizar o tempo com atividade física, sono e refeições. “Às vezes que não me cuidei nesse sentido, percebi meu corpo sofrendo as consequências como resfriado, ganho de peso e imunidade baixa”.

“Eu tenho a sensação de dever cumprido, sinto que a minha parte eu fiz. Sempre valeu a pena e sempre vai valer.” - Reinaldo Batista, pastor quando não se dorme direito, o humor tende a ficar diferente também, mas diz acreditar que não tenha adquirido nenhum problema psicológico. Outro profissional que está sempre de prontidão para atender quem precisa é o médico veterinário Thiago Glaser. Ele possui uma clínica própria e também atende a domicílio e conta que, em São José dos Pinhais, onde fica seu estabelecimento, a demanda é grande. Não há na região um hospital veterinário de referência que fique aberto durante a noite. O médico veterinário fala que muitas pessoas recorrem a ele pela madrugada, o que acaba afetando a sua vida

Apesar das chamadas de madrugada não serem tão recorrentes na região em que o médico atua, muitos atendimentos fora do horário comercial acontecem. Alguns até podem ser resolvidos por mensagem, mas outros necessitam o deslocamento do profissional. Porém, para ele é muito gratificante ser o porto seguro das pessoas: “É um dos melhores momentos você estender a mão pra quem precisa. Às vezes, até esqueço de cobrar a consulta, por sair feliz vendo a pessoa ou família tranquilizada e contente”. Muitas vezes a consulta fica em segundo plano. O médico acaba sendo uma fonte de amparo, independentemente do horário, para os “pais e mães” de bichos. Glaser conta que a maior parte dos clientes são mulheres e, assim, acaba sendo um aporte emocional muito grande.

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Como é a vida pós-reality? Personagens de diferentes programas contam como foi enfrentar a realidade após o programa Por Heloísa Bianchi, Isabela Lemos e Matheus Zilio

“O importante lá dentro não era cozinhar bem, mas sim ser um bom personagem. Na segunda prova, eu entendi que aquilo era um jogo. Lá, eu entendi que era para fazer TV para se dar bem”, conta Monique Gabiatti, chef de cozinha renomada e ex-participante da segunda edição do MasterChef Profissionais. Tudo mudou para ela quando finalmente entendeu que o reality show não era um programa de gastronomia, e sim um reality de gastronomia. Mundialmente conhecido, o reality show se fundamenta na premissa de que é algo “real”, como já sugere o nome. A grande questão que o diferencia de qualquer outro programa ou novela é que se parte do pressuposto de que as pessoas ali estariam sendo elas mesmas e não agindo sob um script. Ser vigiado pelas câmeras, ter sua imagem repercutida por milhões de pessoas, pressionar-se a encenar uma persona que, às vezes, nem é a sua - e quando ela aparece, a audiência aumenta. Essa é a receita para o sucesso de um reality. Monique conta que a rotina de gravação era bem cansativa, apesar dos participantes não ficarem confinados em uma casa, eles chegavam às 8 horas e saiam entre às 21 e 22 horas. Ao chegarem no estúdio, já estavam sem seus celulares pessoais, perdendo contato com o mundo. Em uma sala

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pequena, sem televisão ou rádio, os participantes esperavam ser chamados. “O mais difícil nesse processo é você ter que criar uma intimidade com pessoas que nunca viu na vida”, relata. A chef de cozinha explica que estipulou uma meta para si mesma: chegar ao top cinco do programa. Por já ter um nome no meio gastronômico antes de ser chamada para participar do MasterChef Profissionais, sair sendo extremamente criticada pelos jurados, ou muito cedo do programa, poderia afetar negativamente a sua imagem. Atualmente, dona do restaurante Cozinha, Monique consegue enxergar o impacto positivo do programa em sua vida. Ela afirma que a experiência televisiva apenas somou ao seu currículo, e que seu público é dividido quase que igualmente tanto em pessoas que admiravam seu trabalho anteriormente quanto em pessoas que passaram a acompanhá-la devido ao MasterChef. Heloísa Bianchi

Monique Gabiatti preparando a famosa paella em Gabbiano Ristorante, na Barra da Tijuca (RJ).


Em 2017, na categoria de programas e séries, o Big Brother Brasil (BBB) foi o termo mais procurado no Google, seguido por A Fazenda. Mesmo entrando em sua 20ª edição, o BBB não perde relevância - muito menos os outros realities. Em 2018, o site SEMrush.com divulgou que o MasterChef, programa de disputa culinária exibido às terças-feiras na Band, tornou-se o reality mais buscado pelos internautas em fevereiro, acumulando mais de 733,5 mil pesquisas, seguido por A Fazenda, com 673 mil e Big Brother Brasil, com 200 mil pesquisas. A jornalista, doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora na área de Televisão Maura Martins explica que o brasileiro já é um grande amante da televisão e que, pelo reality parecer um escape à representação, ele acaba atraindo os espectadores. “Nós somos apaixonados pelo autêntico e por aquilo que foge das mídias. Dentro do telejornalismo, por exemplo, há uma quantidade de câmeras de celular que aparecem em uma tela, câmeras de vigilância, e por que isso é tão atraente à população? Porque ali parece que estamos vendo o real fora do controle do próprio jornalismo”, afirma.

“Me surpreende que, ano após ano, ainda tenham pessoas que estejam realmente apostando alto para na repercussão que esse programa pode dar à sua vida.” Monique Gabiatti, ex-Mastercheff O BBB está chegando à sua 20ª edição com o mesmo modelo de programa instaurado nos anos 2000. Ainda assim, possui uma legião de fãs pelo país inteiro. Segundo Maura, isso acontece porque, por mais que o formato seja o mesmo, os programas e narrativas se renovam a cada temporada. “O Big Brother conta com uma narrativa que, às vezes, dá certo e outras vezes, não. A edição deste ano, por exemplo, foi muito criticada justamente por ter uma narrativa excessivamente leve, pois todos estavam preocupados com

os personagens e a história não se desenvolvia como esperado”. Para Maura, a edição busca por estereótipos de personas, tais como a loira, o fortão, a pessoa mais pobre - e ela espera que cada um desempenhe o personagem designado de acordo com sua narrativa. Ela não acredita que haja edição no sentido de distorção, mas sim no sentido de que o programa é levado ao ar através de uma narrativa condizente com que a emissora espera e que, por isso, o programa acaba criando a narrativa de quem é herói, vilão, etc. “Me surpreende que, ano após ano, ainda tenham pessoas que estejam realmente apostando alto para a repercussão que esse programa pode dar à sua vida. Ainda que pareça que os efeitos sejam muito nocivos, visto que há uma perda de privacidade, estigma que se cria da pessoa para sempre, temos vários relatos de pessoas que queriam ser artistas e sempre ficaram associadas à brecha de um reality. Isso reflete um valor da cultura que enxerga a celebridade enquanto valor máximo”, opina a jornalista. O Big Brother Brasil, é um exemplo de reality que muitas pessoas buscam com a expectativa de lançar uma carreira nos holofotes. Porém casos como o da atriz Grazi Massafera, que participou da edição do programa em 2005, não são tão comuns. Com a modernidade e diversidade de plataformas para se promover, muitos buscam alternativas para se manter no comentário público. A youtuber Clara Aguilar, que participou da 14ª edição do BBB, é um exemplo disso, após o programa abriu um canal, o qual se conecta com um público diversificado, essa é a sua profissão hoje. A ex BBB ao se lembrar de sua experiência dentro do reality, conta foi mais tranquila do que esperava, ela não teve dificuldades em se adaptar ao programa. “Tem muita gente que faz coisas que não gostamos, mas eu sabia que aquilo ali não ia ser para sempre. Toda semana eu achava que ia sair, então eu fui vivendo um dia após o outro.” A youtuber explica que, apesar de o programa ter proporcionado diversas

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“Hoje em dia, confesso que o De Férias com o Ex não teve impacto negativo na minha vida, muitos positivos inclusive. Me conheci muito como pessoa, e aprendi a trabalhar todos os defeitos em mim que percebi dentro da casa.”, diz o participante. A maior dificuldade que o ex-participante conta ter passado dentro do programa foi a convivência. “São pessoas com personalidades muito distintas, para realmente acontecer brigas, então são participantes com

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oportunidades de trabalho, a exposição veio junto. Porém, como ela gosta de se expor e já lidava com críticas antes de entrar no Big Brother, ela soube trabalhar bem com a exposição. “Eu acho que quando as pessoas que você ama e estão perto de você gostam de você e do jeito que você é, então não tem que se importar com pessoas que nem convivem com você, que só ficam atrás da tela de um computador te julgando, por coisas que eles nem sabem”, conclui Clara.

Clara Aguilar finalista do BBB 2014, hoje trabalha com o Youtube. Outro programa de reality show que se tornou bastante popular é o De Férias com Ex da emissora MTV, que está indo para sua quinta temporada. O seu modelo reúne dez pessoas em um destino paradisíaco, sendo cinco homens e cinco mulheres, dentro de uma casa por um mês. O intuito é literalmente “causar”, já que a proposta do programa é trazer um ex de um dos participantes a cada semana para dividirem essas “férias”, visando criar caos e brigas dentro da casa. Durante o período de confinamento, eles não têm contato com o mundo fora da casa. O ex-participante Claudinho, da segunda temporada do reality, explica que ao ser convidado pelo Instagram para participar do programa, ele enxergou o convite como uma oportunidade de ganhar visibilidade. Sua sensação é que ele estava prestes a entrar em “um hospício mesmo”, pois a primeira temporada foi marcada por barracos e discussões bastante intensas.

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personalidade fortes, temperamentos complexos de mais e com gostos e características muito diferentes.” Ele conta que mesmo assim a experiência foi ótima, e que fala com muitas pessoas da casa até hoje, seu único pesar é que pelo programa ser editado, muito conteúdo foi cortado para caber nos 11 episódios do reality. Quando observado de perto, um reality show pode se tornar muito mais do que uma maneira de entretenimento. É de lá que a cultura de um país é colocada a prova, afinal os personagens apesar, de na maioria das vezes, serem padrões, suas atitudes são comuns e inerentes à sociedade. Portanto, além de uma maneira de promoção de personalidades, pode servir como reflexão do que ainda pode ser feito, do que pode ser melhorado.

A ARTE SEM MÁSCARAS O artista é aquele que busca, através do seu local de fala, ajudar, de certa forma, transformar, inovar, trazer


novas tendências e quebrar costumes. No Brasil, são diversas as possibilidades de encontrar uma voz através da arte, e mesmo que poucos escutem, o artista persiste. Vencedor da segunda temporada do The Voice Brasil com quase 30 milhões de votos e dono de uma das performances mais relembradas ano após ano (ao lado de Marcela Bueno), Sam Alves conta que teve a oportunidade de trabalhar com grandes mestres na indústria da música devido ao programa. “Aprendi muito sobre os bastidores desses realities e pude ver o tanto de trabalho que é para todos os envolvidos”. O cearense educado nos EUA chegou a fazer audição às cegas ao The Voice USA, mas acabou não tendo nenhuma cadeira virada. Ele conta que, no reality norte-americano, ficou confinado num hotel por quase dois meses antes mesmo das audições às cegas. Não era permitido postar nada nas redes sociais e nem sair do hotel se não fosse numa van, em grupo e agendado para locais previamente autorizados. “Havia pessoas da equipe do programa que se infiltravam no hotel para ouvir Reprodução TV Globo

se estávamos conversando sobre o The Voice fora de nossos quartos”, relata. As experiências nos dois realities foram totalmente diferentes: nos EUA, viveu confinado em hotel e no programa não teve nenhuma cadeira virada. Já no Brasil, além de ter vencido o programa com grande aclamação do público, não havia nenhum tipo de confinamento. Cada um ficava na sua casa e só viajava para o Rio quando tinha gravações ou o programa ao vivo para filmar. Para Alves, o lado negativo da experiência foi sua vida pessoal virar foco das atenções. Ele explica que, alguns meses antes de vencer, ninguém sabia quem ele era e depois queriam saber cada detalhe de sua vida pessoal - e ainda não se acostumou sobre. “Eu não gosto de ser o centro das atenções quando estou fora do palco. Eu gosto de ser o centro das atenções quando canto. Quando estou no palco, eu me sinto livre, não me sinto julgado e nem pressionado a ser algo”. Um outro lado negativo citado pelo vencedor da segunda temporada do gera ter que viver de uma imagem da qual não queria viver. A sua equipe o pressionava para que não falasse, agisse, ou até se comportasse de uma forma que fosse contrária à imagem que queriam vender. “Com o tempo, fui lutando contra isso, lutando pela minha liberdade artística e pessoal para ser quem eu realmente era”. Atualmente, o cantor afirma que o Sam antes do The Voice Brasil era simplesmente alguém que estava se descobrindo, e ainda continua se descobrindo mais a cada dia. Ele era mais reservado com a forma que se apresentava para as pessoas, mas hoje já gosta de mostrar sua verdadeira essência. “A verdade é que as pessoas só estão me enxergando de verdade mais agora do que antes. Sem máscaras. E pretendo mostrar mais e mais através da minha arte”.

Sam Alves vencedor do The Voice Brasil em 2013, hoje mora nos Estados Unidos.

Recentemente, os tablóides reportaram seu relacionamento com o modelo Leo Moreira. Ele enxerga que esse tipo de notícia possa dar forças à comunidade LGBTQ e a aqueles que se sentem perdidos ou até frustrados com a sua própria sexualidade.

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Um barro só Localizado no sul de Curitiba, o bairro Umbará teve seu início na segunda metade do século 19 e, ainda hoje, permanece desconhecido pela maioria dos curitibanos Anelise Wickert Gabriel Domingos Mariane Pereira

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omo um típico e bom bairro de origem italiana, além das casas antigas, tradição e muita cultura, o Umbará tem grandes famílias que carregam nomes importantes para o bairro, como Tortato, Zonta, Nichele, Negrello, Bonato, Moletta, Gabardo, Costa, Joai e uma derivação do mesmo, mas terminada em y, ficando Joay.

O Umbará representa 5,16% do território total de Curitiba, e o último censo demográfico do IBGE apontou uma população de 18.730 mil habitantes. De 2000 a 2010, o crescimento populacional anual do Umbará saltou de 0,99% para 2,53%. As mulheres são maioria entre os habitantes, representando 50,51% da população do bairro.

As famílias são muito conhecidas e possuem diversas propriedades e comércios. Mas o bairro também tem moradores que vieram de fora para construir a vida com quem morava lá, como é o caso de Antonio Bernardo Blasius, de 72 anos.

Sirley Maria Joay tem 70 anos, é irmã de Marilene e tem mais duas irmãs. As três moram no Umbará e outra no Capão Raso, mas, como de costume, desde muito tempo, todo domingo, se reúnem em família na casa onde cresceram para conversarem e tomarem café, com a mesa sempre farta. Como em uma verdadeira casa de descendentes de italianos, o que não falta são as conversas agitadas e em voz alta.

Nascido no interior de Santa Catarina, em 1947, Antonio era de família humilde e, em 1968, veio pela primeira vez para Curitiba devido a um tratamento de saúde e acabou permanecendo na cidade.Morou por algum tempo em uma pensão e arrumou emprego de cobrador de ônibus. E com muito sacrifício, comprou um terreno no bairro, pois com o que ele ganhava dava apenas para a alimentação e a prestação do terreno. “Dormi em albergues, debaixo de pontes, passei fome, mas consegui”, conta Antonio. Em 1975, aos 28 anos, com casa própria, o aposentado se casou com Marilene Antonia Joai, que também tem 72 anos e é natural de Curitiba, descendente de italianos e moradora do Umbará. Foi assim que formaram uma família. Marilene conta que seus avós foram os primeiros da família a morarem no bairro e, em seguida, seus pais se casaram e continuaram a morar lá. Os imigrantes que popularizaram o bairro, também foram responsáveis por diversificar a produção agrícola, introduzir a indústria e voltar-se para o abastecimento do mercado de Curitiba. Um dos marcos do bairro é a Paróquia de São Pedro, construída inicialmente em 1896, e que teve papel na organização social das colônias do bairro.

Assim como Marilene, Sirley continua morando no bairro, e como nunca se casou, ainda mora na casa que foi de seus pais, construída em 1946. Seu pai, Claudio Joay, logo após voltar da Segunda Guerra Mundial, quando foi pracinha (nome dado aos soldados brasileiros), construiu a casa, casou-se com Joana Maria Costa e tiveram quatro filhas, entre elas Sirley e Marilene.

“Foi sempre assim, e a gente pede para virem arrumar algumas coisas como asfalto, mas demora muito e acabam não resolvendo.” Maria Celeste Tortato, 45 anos, diarista

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Os pontos turĂ­sticos vĂŁo desde casas antigas ĂĄ igrejas e parques, onde os moradores se reuniem aos finais de semana.


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Sirley comenta que gosta de morar no bairro e na casa de seus pais, que mesmo sendo antiga, ainda permanece em boas condições e se iguala a diversas outras casas antigas das famílias mais tradicionais do bairro. “Eu nasci aqui, me criei aqui e para mim está bom. As famílias antigas se conhecem, mas as que chegam novas por aqui a gente não conhece e não sabe sobre eles, mas pode perguntar para as famílias antigas que todos se conhecem do tempo antigo do Umbará, das festas, confraternizações e da igreja também.” Ela ainda conta que alguns problemas atrapalham a vida no bairro, já que a segurança não é tão boa quanto deveria ser, algumas ruas não têm asfalto e falta acessibilidade. E quanto aos ônibus, Sirley comenta que, apesar de serem poucos na linha, para ela está bom, já que antigamente nem passavam ônibus próximo à casa dela. Em termos de infraestrutura, o censo 2010 aponta que menos da metade, 49,09%, das casas do Umbará está ligada à rede geral de esgoto. Por outro lado, todo o bairro possui coleta de lixo e pouco mais de 4% das casas ainda não está ligada à rede geral de abastecimento de água. O trânsito é movimentado. Em proporção, são 1,90 automóvel para cada habitante, o que representa 0,44 a mais do que a média de Curitiba. Ao todo são 9.841 veículos, a maioria carros (que representam 5.802) e, curiosamente, cinco tratores. As ruas sem asfalto também são um grande problema para quem mora no bairro, já que, várias são de terra batida, e outras, mesmo pavimentadas, são extremamente precárias e com buracos. Além da falta de asfalto, muitos lugares não têm calçadas, e não dispõem de acesso para as pessoas deficientes, como é o caso de Antônio. Ele é cego e sua esposa precisa ajudá-lo em tudo quando estão na rua, devido à grande quantidade de buracos.

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“Mesmo com todos esses problemas, a vida por aqui é bastante calma e tranquila. Eu faço meus serviços de casa, cuido da minha horta, dos meus cachorros, das minhas galinhas, eu gosto daqui”, conta Sirley. Maria Celeste Tortato tem 45 anos, trabalha como diarista e todos os dias sai para trabalhar, usando as poucas linhas de ônibus do bairro. Ela conta que a maior dificuldade é o tempo entre um ônibus e outro, já que, a linha que ela pega, chamada Luiz Nichele, só tem um veículo, que precisa fazer a viagem toda até o terminal do pinheirinho e voltar para o bairro, o que leva em torno de uma hora e meia. Desde que ela se instalou por lá, em 2006, a situação do bairro continua a mesma, como se ele estivesse fora do mapa de Curitiba. “Foi sempre assim, e a gente pede para virem arrumar algumas coisas como asfalto, mas demora muito e acabam não resolvendo. Além disso, quando tem sujeira, galhos de árvore, e até mesmo mato, nós mesmos temos que limpar porque a prefeitura não vem até aqui, e nosso bairro tem bastante vegetação, árvores, chácaras, olarias e grameiras.” Porém, a maior dificuldade, de longe é a falta de infraestrutura básica para a vida em sociedade, como contou Raphael Reis da Silva de 21 anos, que é morador do bairro desde 2008. Segundo ele, o bairro possui apenas uma agência bancária e dois postinhos de saúde. Em 2018, um deles acabou pegando fogo, o que causou confusão e mais demora nos atendimentos, já que a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) mais próxima fica no bairro vizinho. Apesar de todos os problemas do bairro, o Umbará é visto pelos moradores como um bairro tranquilo e bom de morar, com muito lazer e lugares para visitar, casas antigas, chácaras e uma natureza que não se encontra em outros bairros da cidade. Mas, por ser afastado acaba se tornando desconhecido por muitos curitibanos.


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As ruas do Umbará ainda são de chão batido, mesmo a cidade inteira sendo de asfalto.

Do “um barral”, expressão utilizada pelos primeiros habitantes, surgiu o nome Umbará. A referência é a terra fértil, que em dias de chuva torna-se barrenta, e se popularizou na fala de imigrantes europeus, que ao chegarem aqui se referiam ao local como “um bará”, ou seja, um barro só. Todos os moradores se conhecem e as histórias das famílias são contadas até hoje, nos almoços e encontros de domingo, nas ceias dos feriados, nas esquinas e praças da região. Antônio Bernardo Blasius relata que, apesar de conhecer outras partes da capital, os matagais da zona sul conquistaram um espaço importante em sua vida: “Foi aqui que eu consegui tudo que eu tenho, construí minha casa e criei meus filhos, que hoje têm suas próprias famílias aqui no bairro também”. Para ele, o Umbará é mais que um bairro, é um lar.

“Mesmo com todos esses problemas, a vida por aqui é bastante calma e tranquila. Eu faço meus serviços de casa, cuido da minha horta, dos meus cachorros, das minhas galinhas, eu gosto daqui.” Sirley Joay, 70 anos, do lar

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Hora do azar

Transtorno de Jogo (TJ) é uma patologia reconhecida pelo 5º Manual Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) e atinge 1% da população brasileira Barbara Schiontek, Rita Vidal, Thiliane Leitoles

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ocê pode ganhar um bônus hoje, mas amanhã você vai lá e perde tudo.” A fala de Chico* expõe a realidade de quem sofre do Transtorno de Jogo (TJ), admitido pelo 5º Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) como dependência, no ano de 2013. Ele diz que foi caminhoneiro a vida toda e, durante seus longos percursos pelas estradas brasileiras, teve grande contato com jogos de máquinas caça níqueis - as quais, segundo ele, motivaram o brilho de seus olhos e a perda do dinheiro dos fretes por 20 anos. A psiquiatra Fernanda Mattias Sartori afirma que, de acordo com a DSM-5, podem existir dois tipos de jogador: o problema e o patológico. O primeiro é aquele que percebe que joga muito e acaba tendo algumas complicações decorrentes disso, entretanto, segundo a especialista, ainda encontra-se em nível controlado. Já o segundo caracteriza a pessoa que desenvolveu dívidas ao longo do tempo, e, além disso, apresenta problemas em ambiente profissional e familiar, visto que, por compulsão, mente para poder persistir no hábito. Para Carlos*, “ganhar o dinheiro de novo é fácil, difícil é recuperar o caráter.” Ele, que também se apresenta como jogador compulsivo, diz que sua relação com jogos de baralho vem de família. Sair do trabalho e ir direto para uma mesa de bar era rotina para Carlos*, que achava perda de tempo ficar em fila de mercado para fazer compras, mas deixava de comer para passar horas jogando. Fernanda conta que a maioria dos transtornos são considerados etimológicos, ou seja, decorrem de um processo evolutivo. Entretanto, a psiquiatra explica que, em alguns casos, percebe-se o fator genético com maior predominância, mas geralmente o transtorno é uma junção das duas coisas. “Quando a questão é genética, pode ser até mais difícil de tratar.” João*, que desenvolveu a paixão por jogar ainda criança, afirma nunca ter investido grandes quantias, todavia, decidiu participar do grupo de apoio

por perceber que poderia vir a desempenhar algum transtorno. Com muita franqueza, o jogador decidiu assumir que não abandonaria o hobby, entretanto, adotou uma nova estratégia: jogar sem arriscar sua estabilidade financeira. “Se eu perder, eu pago um mico.” Para João*, a mudança de perspectiva foi decisiva para seu progresso no tratamento, bem como o grupo de Jogadores Anônimos (JA) em Curitiba. De acordo com Fernanda, o valor do grupo é que são pessoas reunidas com problemas semelhantes, portanto, o simples fato de expor e ouvir histórias, já transmite maior conforto e empatia. A médica alega que o acolhimento diminui a culpa e a vergonha, sentimentos comuns em portadores de TJ. “Eu fiquei tão constrangido quando tive que ir a uma delegacia assinar B.O por estar em um cassino clandestino. Meu nome saiu no jornal da cidade”, conta Silva*, hoje fundador e coordenador do grupo JA em Curitiba. Em 2009, ele diz que precisava de dinheiro para pagar um boleto, foi quando apostou pela última vez. O jogo rendeu em um minuto, mas em outro, o fez perder até o que não tinha. “Aquela noite eu pensei muito em suicídio.” Em São Paulo, onde morava, Silva* foi a um grupo de apoio pela primeira vez, compartilhou sua história e sentiu-se inspirado a despertar em outras pessoas aquele sentimento. Quando em Curitiba, ele percebeu a falta de um grupo que apoiasse jogadores compulsivos e, há um ano, iniciou as reuniões do JA, atitude que, para ele, foi como renascer. Hoje, a psiquiatra aponta que, de acordo com pesquisas realizadas na área, o TJ atinge 1% da população brasileira. Todavia, para Fernanda, esse dado não condiz com a vida real, uma vez que, durante o estudo, os jogadores respondem ao questionário e têm sua identidade preservada, o que pode levá-los a não reconhecer determinados pontos. Já na prática, a doutora diz que o jogador compulsivo, muitas vezes, nem chega a procurar ajuda devido a vergonha associada ao vício.

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Rita Vidal

OS OLHOS DE FORA O apoio da família faz-se importante e essencial ao paciente de Transtorno de Jogo, bem como em qualquer outra compulsão ou patologia. A psiquiatra comenta que, na maioria dos casos, a pessoa não apresenta total consciência da situação em que está inserido, portanto, o ideal, segundo ela, é que os familiares busquem demonstrar apoio e evitar confronto, já que isso pode induzir a pessoa a continuar. Além disso, Fernanda afirma que propor tratamento ou procurar ajuda profisional é o passo mais importante. O apoio da família faz-se importante e essencial ao paciente de Transtorno Palavra da especialista A psiquiatra Fernanda Mattias Sartori afirma que não existe tratamento de forma medicamentosa para o paciente que porta Transtorno de Jogo (TJ), visto que um medicamento só pode ser considerado quando se tem uma pesquisa em que um grupo apresente melhora a partir do fármaco. O que funciona como tratamento são as sessões de consulta com psicólogos e, segundo a especialista, as linhas que demonstram maior resultado são as comportamentais e cognitivo-comportamental. Ela reitera que, quanto ao tempo de tratamento, não é possível definir, pois pode variar de acordo com o caso e seus fatores.

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de Jogo, bem como em qualquer outra compulsão ou patologia. A psiquiatra comenta que, na maioria dos casos, a pessoa não apresenta total consciência da situação em que está inserido, portanto, o ideal, segundo ela, é que os familiares busquem demonstrar apoio e evitar confronto, já que isso pode induzir a pessoa a continuar. Além disso, Fernanda afirma que propor tratamento ou procurar ajuda profissional é o passo mais importante. “Se nós estamos aqui com meu pai hoje, é porque o amamos, mas a situação é complicada”, diz Eliane Patriota, filha de Adauto Patriota, que sofre de Transtorno de Jogo. Segundo Eliane, a situação assistida e encarada de fora foi frustrante principalmente porque, para ela e sua irmã, a maturidade precisou ser desenvolvida ainda na juventude, já que várias dívidas decorrentes do vício de seu pai ocasionaram grandes danos à toda família. O pai de Eliane, hoje com 84 anos, nunca aceitou ajuda médica, nem mesmo conseguiu admitir seu vício. “A compulsão leva tudo, faz a pessoa esquecer as responsabilidades, a família e até de si mesma.” A filha ainda ressalta que a ajuda de outros familiares foi determinante para que sua mãe pudesse recompor as estruturas dentro de casa. Ainda que não existam medicamentos específicos para o vício em jogo, Fernanda explica que podem ter

No início das reuniões do JA, os integrantes do grupo realizam uma oração e repetem o dizer: “Só por hoje, evitarei a primeira aposta!”.


comorbidades associadas. As principais, segundo ela, são: depressão, transtorno de ansiedade, transtorno de personalidade e vício em outras substâncias, sendo as mais frequentes álcool e nicotina. De acordo com a psiquiatra, essas outras doenças terão influência sobre o tipo de tratamento, apenas psicoterápico ou também medicamentoso. “Foi triste demais ver meu marido naquela situação. O pior é que não era apenas o jogo, tinha o álcool também.” Esse é o relato de Maria Patriota, mãe de Eliane e esposa de Adauto. Maria reforça a dificuldade citada por Eliane e ainda comenta que já chegaram a perder três casas por dívidas de jogo. Apesar de, segundo ela, o álcool não ser uma substância que ele sinta falta hoje em dia, o jogo, claramente,

Jogos em estabelecimentos As práticas de jogos são apenas permitidas quando exploradas por estabelecimentos, empresas ou serviços autorizados pelo governo brasileiro. Ou seja, de acordo com a legislação do país, é proibido estabelecer ou explorar jogos de azar em lugares públicos ou acessíveis ao público.

A advogada criminal Renata Ceschin Melfi de Macedo explica que a lei não foi pensada em torno, apenas, do ato de ganhar ou perder, mas sim pela maneira que estes acontecem. Segundo a especialista, quando o resultado do jogo depende exclusiva ou principalmente de sorte, é dever do Estado intervir.

nunca deixou de cativá-lo.

“A compulsão leva tudo, faz a pessoa esquecer as responsabilidades, a família e até de si mesma.” Eliane Patriota, servidora pública À MARGEM DE LEI Atualmente, a legislação no Brasil condena determinados tipos de jogo, bem como a participação de ‘jogos de azar’. De acordo com o artigo 50 da Lei de Contravenções Penais (Lei 3688/41), jogos de azar são aqueles em que a competência ou habilidade do jogador é irrelevante para o ganho ou perda em competições. Para João*, jogador compulsivo, algumas questões não permitem que a lei seja de fácil compreensão. “O problema dos jogos de azar é você apostar dinheiro e perder. Mas baralho, sinuca e outros também terminam com alguém perdendo ou ganhando. Por que esses são liberados?”

Entretanto, Renata não acredita na efetividade da lei, já que, segundo ela, o Brasil não apresenta poder de fiscalização nesta área. A advogada ainda comenta que a situação de rastreamento da prática de jogos ilegais no Brasil pode envolver a proteção ou negligência dos próprios agentes vigilantes, o que dificulta a aplicação da lei. * Os jogadores em recuperação Chico, Carlos, João e Silva tiveram suas reais identidades resguardadas por pertencerem a um grupo de apoio que mantém a preservação dos integrantes como uma de suas diretrizes.

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Os quebranozes do cĂĄrcere Agentes penitenciĂĄrios relatam uma perspectiva diferente dos presĂ­dios paranaenses

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Heloísa Bianchi Isabela Lemos Matheus Zilio

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icardo Paz, agente penitenciário há 13 anos, entrou no sistema com 22 anos e esse foi seu primeiro e único trabalho até hoje. De segunda a sexta-feira, trabalha na Penitenciária Industrial de Guarapuava, onde o sistema é diferente dos outros presídios: foi feita de forma que os presos possam trabalhar. A unidade foi concebida a fim de buscar a ressocialização do preso, uma política adotada pelo governo do Estado em busca de oferecer novas alternativas para os internos, proporcionando-lhes trabalho e profissionalização, visando, além de melhores condições para sua reintegração à sociedade, ao benefício da remissão da pena. “É um ambiente hostil, feito por cercas e grades, então, a gente não tem contato direto com os presos, já teve no passado contato direto com eles, mas não deu certo porque ocorreu uma rebelião na penitenciária”, explica Paz. Ele se refere à rebelião de 2014, na qual 13 agentes penitenciários e alguns detentos foram feitos de refém durante 48 horas, resultando em agentes feridos, destruição da penitenciária e muitos traumas. Ricardo era um dos reféns. O motim ocorreu quando 40 presos viram a oportunidade de render 13 agentes enquanto estavam sendo deslocados dentro da própria unidade. No primeiro dia, cinco detentos foram feridos e encaminhados a hospitais com ferimentos leves e traumatismo craniano moderado. No dia seguinte, os rebelados amarraram e vendaram um agente em um para-raios, além de espancarem outros reféns constantemente. A penitenciária de Guarapuava era considerada um modelo no país por trabalhar com a ressocialização do detento, mas, depois de 2014, ficou conhecida também como o local onde ocorreu uma das piores rebeliões na instituição. “Fui agredido, passaram cola quente não só em mim como

nos outros integrantes também. Me torturaram psicologicamente dizendo que eu ia morrer. Espancaram alguns agentes, me bateram também. Ficamos sem comida e sem água. Tentaram atear fogo em alguns setores. A rebelião foi para mim um divisor de águas”, conta Paz. O estado do Paraná não cumpre a resolução estabelecida pelo Departamento Penitenciário Nacional (DPN) de que cada agente penitenciário deve ter, no máximo, cinco detentos para cuidar. Atualmente, há 3 mil agentes penitenciários - 90,6% homens e 9,4% mulheres - para um total de mais de 29 mil detentos, de acordo com o Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Penitenciários, do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR). Além disso, estes 3 mil não trabalham apenas como agentes. São também colocados em setores como administrativo, grupo de intervenção e escolta para cobrir a demanda do departamento penitenciário. Esse vácuo no número de pessoas para exercer o cargo de agente acaba gerando, além de excesso de trabalho, riscos de vida. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Sindicato dos Agentes Penitenciários do Paraná (Sindarspen), entre 2013 e 2015, aconteceram 28 rebeliões no Paraná, resultando em 57 agentes penitenciários feitos de reféns. Uma média de nove rebeliões com 19 agentes tomados como vítimas por ano. A categoria relata consequências gravíssimas, tais como quadros de estresse pós traumático - desencadeando insônia, choro, angústia, medo, atitudes agressivas, além da sensação de abandono e impotência com a ausência de atenção e assistência do Estado para o acolhimento e acompanhamento psicossocial das vítimas. O diretor-presidente do Sindarspen, Ricardo Carvalho Miranda, atua como agente há 11 anos e teve experiência no Presídio Estadual de Piraquara. Ele

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conta que, recentemente, aconteceu um motim no Complexo Médico Penal, no qual dois agentes estavam encarregados de acompanhar 90 presos em trânsito. Um deles foi esfaqueado no pescoço e quase saiu infartado. Miranda está afastado do trabalho como agente por ser presidente do sindicato, porém, acabando seu mandato, retornará à penitenciária. Ele relata que, após um dos agentes onde trabalhava sofrer uma tentativa de assassinato, recebeu ameaças frequentes por parte de presos porque, como travaram as visitas, atendimento jurídico e pátio de sol, sofreram uma pressão muito grande e ele foi afastado e internado em uma

tecem com frequência. O que é mais divulgado pela mídia são casos extremos de rebelião, em que os agentes ficam vários dias com reféns. E, de acordo com ele, casos de agressão de presos contra agentes penitenciários são comuns. Hoje, para suprir o déficit que há, seriam necessários, no mínimo, 2 mil agentes penitenciários. O governo prevê a construção de 14 novas penitenciárias. Esse total é apenas para as penitenciárias que existem. Então, seria necessário mais um número a depender de qual a capacidade dessas unidades, um número extra de contratação. “Nós não temos condições humanas de garantir a execução penal porque o nosso número de agentes penitenciários é muito ínfimo”, para Miranda, é muito provável que, se não houver mais contratações, o sistema penitenciário do Paraná vai entrar em colapso e terá que suspender as atividades.

Nos últimos nove anos, 16 agentes foram assassinados no Paraná, segundo o Sindarspen. clínica psiquiátrica porque não conseguia mais se desligar da atividade. “Eu sonhava com rebelião e morte, eu não deixava o portão da casa aberto, sempre ia conferir para ver se estava com cadeado, pedi à minha mãe para mudar de emprego porque eles já sabiam onde ela trabalhava. Isso tudo afetou não só a minha vida, mas a da minha família como um todo.” Neste caso da rebelião, havia cinco agentes para fazer a movimentação de mil presos dentro da penitenciária. Na Casa de Custódia de Piraquara (CCP), por plantão, são 25 agentes penitenciários para cuidar de 1.600 presos - o local tem capacidade para 460 presos. Na Penitenciária Central do Estado, também há uma média de 30 agentes penitenciários para trabalhar na penitenciária, mas eles assumem postos fixos e acabam sobrando dez agentes para movimentar todos os detentos. O número de agentes penitenciários está muito aquém do que realmente estipula a resolução do conselho nacional de política pública criminal. Miranda explica que casos como esse, de um agente ser esfaqueado, acon-

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CONSEQUÊNCIAS DE UM SISTEMA DESPEDAÇADO O Sindarspen relata um alto índice de transtorno mental e comportamental dentro dos servidores públicos do Estado, os agentes penitenciários são os que mais sofrem de transtornos comportamentais e mental. Morrem muito cedo, na casa dos 50, com câncer ou decorrente de outras doenças justamente pelo estresse gerado. “Temos um grande problema: o agente penitenciário não consegue se aposentar. Ele acaba morrendo antes de conquistar a aposentadoria”, conclui Miranda. “Eu tento não pensar sobre os riscos do meu trabalho, eu tento imaginar que onde eu trabalho é um lugar tranquilo, calmo e seguro. Essa é a forma com que eu lido com a situação”, diz Ricardo Paz. Para ele, o ambiente não é seguro: a qualquer momento pode acontecer uma rebelião, uma fuga


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ou uma invasão. Mas o agente acredita que é preciso pensar positivo para sobreviver à rotina de trabalho. Nos últimos nove anos, 16 agentes foram assassinados no Paraná, segundo o Sindarspen. A psicóloga Leani Kreuz atua na Penitenciária Central do Estado (PCE II US) e atende aos detentos, não agentes. Nas penitenciárias, não há suporte psicológico a eles. Ela explica que, inevitavelmente, os agentes recorrem a ela para procurar ajuda psicológica e, após orientá-los, encaminha-os

São bem complicadas as situações de trabalho e todos nós passamos pelas mesmas coisas.” Atualmente, são 1.700 para serem atendidos por uma psicóloga e uma estagiária em psicologia. Leani relata que, há alguns anos, estudantes de psicologia foram até o presídio para oferecer apoio psicológico aos agentes penitenciários e tiveram que suspender o projeto porque os agentes não iam até eles. Ela nunca entendeu o porquê disso. Paz não recebeu nenhuma ajuda do sistema depois de sua experiência como refém. “O Estado não disponibiliza, ele oferece pelo setor público, mas não resolve nada. Não resolveu minha vida, não consegui marcar consulta e fui chamado de vagabundo pelos médicos do Estado. Eles achavam que a gente inventava que estava doente porque depressão e estresse pós- traumático não são doenças visíveis.”

‘‘Fui chamado de vagabundo pelos médicos do Estado.’’

Ricardo Paz, agente penitenciário para um profissional. “Atendo muitos agentes com alcoolismo, dependência química, depressão e síndrome de Burnout - que se caracteriza por um esgotamento físico, emocional e grande insatisfação pessoal”. O que Leani mais ouve dos funcionários é sobre o sentimento de realizarem um trabalho que não tem o valor reconhecido pela sociedade. Recentemente, ela ouviu um dos agentes dizer que gostaria que alguém falasse “isso foi obra minha, eu fiz um trabalho digno de reconhecimento”. Alguns enxergam que vão chegar ao final de carreira e não ter feito ou construído nada, e que ninguém vai lembrar deles de uma forma positiva porque foram carcereiros.

O agente foi afastado durante um ano no trabalho, fez tratamento privado durante três anos, mas foi forçado a voltar antes contra indicações de profissionais. Seu quadro piorou, teve depressão, não conseguia exercer sua função, gerava confusão com presos e funcionários, isso acabou ocasionando o desvio de função de trabalho dele para o setor administrativo da unidade.

O que acontece - não só com agentes penitenciários, mas com as pessoas que trabalham dentro do sistema prisional - é a síndrome da prisionização, que surge entre a relação dos dois presos: o apenado e o funcionário, que acabam adotando transformações que vêm do ambiente prisional, bem como suas dinâmicas. A psicóloga explica que isso afeta o comportamento e sociabilidade das pessoas ali e é um dos motivos de os agentes não se desligarem da profissão 24 horas por dia. “Antigamente, era um psicólogo para cada 400 presos, e o governo cortou.

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Joka Madruga

Ricardo Miranda durante a assembleia geral extraordinária dos agentes penitenciários.


Denise Corrêa dos Santos, agente penitenciária há 12 anos na Colônia Penal Agrícola, explica que, de fato, não possuem um convênio, porque o Estado vive cortando gastos e não paga tratamentos psicológicos. Contudo, ela explica que seu problema psicológico não foi totalmente decorrente da cadeia, em seu caso, o problema começou dentro de casa, em um relacionamento abusivo. O primeiro abuso sexual aconteceu com seu ex-marido, pai de sua filha. Denise começou a pegar “nojo de homem”, até mesmo de seus colegas de trabalho. E isso foi deixando ela cada vez mais doente, a depressão pós-parto, o local insalubre, o estresse do trabalho. Ela tentou se suicidar duas vezes. Foi dependente de medicamento para dormir e antidepressivos durante quatro anos. Denise relata que, no Estado, quando se busca ajuda profissional, os agentes

passam por uma perícia: “minha doutora me deu um atestado de 30 dias, porque eu precisava fazer o tratamento, não tinha condições de trabalhar do jeito que eu estava. Relatei tudo que estava acontecendo na perícia, e eles recusaram o meu atestado médico para o tratamento da minha saúde. E eu continuei trabalhando”. “Creio que, um dia, eu vou conseguir voltar a trabalhar com segurança, creio que as cicatrizes estão sendo curadas. Hoje, eu já consigo ter mesmo que um contato mínimo com os presos, já consigo manter o equilíbrio”, afastado da área de segurança no presídio, Ricardo Paz espera que um dia possa voltar a desempenhar o papel que tinha. AS FIONAS DO SISTEMA CARCERÁRIO Em seis meses que Denise assumiu seu posto, metade da colônia já tinha “comido ela”, e ela nunca havia saído

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com ninguém. Foi um assédio muito grande, relata ela: perguntavam-se quem iria pegar a Denise primeiro. “Eu sempre fui o troféu aqui, porque até então trabalhavam apenas mulheres fim de carreira, que eles falavam, ou seja, as senhoras aposentadas. “No começo eu era a Denisinha, depois eu era a pequena, e hoje sou conhecida como Zika.” Foram várias situações de assédio que Denise enfrentou. Colegas querendo forçar um beijo, encurralando ela em um canto, mas ela conseguiu contornar a situação e encontrar uma maneira de efetuar seu trabalho.

licença não-remunerada, porque teve que se mudar para outro estado, já que a facção criminosa simplesmente teve acesso a toda a rotina dela. Ricardo Paz conta que, infelizmente, os presos os veem como um carrasco, eles não entendem que erraram e que os agentes penitenciários estão apenas representando o Estado e fazendo seu trabalho. Eles acabam levando para o pessoal, e isso traz riscos à categoria.

Miranda explica que essa situação é difícil, já que os presos não enxergam de maneira mais ampla, que são duas classes, a dos agentes e os presos. Isso acaba causando uma questão de serem inimigos, quando, na verdade, os dois estão em condições subumanas devido ao Estado e isso causa o caos no sistema Denise Corrêa, agente penitenciária presidiário. “Quando o “A gente aprende a ser muito bruta no Estado não fornece roupa, comida, sistema. A nossa princesa é a Fiona, assistência jurídica e psicológica, os não a Barbie.” A agente explica que presos colocam a culpa no agente desenvolveu comportamentos para penitenciário.” evitar que fosse tratada dessa maneira. Por haver apenas um banheiro Miranda conta que a maior conquista para homens e mulheres, ela optou que o sindicato obteve nos últimos por fazer sua higiene íntima com um anos foi a mudança na escala de tralenço umedecido para não criar uma balho dos agentes, pois antigamente imagem fantasiosa em seus colegas era obrigatório o regime de 12 horas de trabalho. Para eles, do mesmo jeito de trabalho por 36 horas de descanso que ela sai de seu horário de traba- ou seja, dia sim e dia não de trabalho, ela se deita. Foi desta forma que lho. Isso aumenta o tempo longe do conseguiu evitar o assédio entre os cárcere e, consequentemente, a qualicolegas de trabalho. dade de vida dos trabalhadores.

“A gente aprende a ser muito

bruta no sistema. A nossa princesa é a Fiona, não a Barbie.”

GARGALOS DENTRO E FORA DOS MUROS “Esta não é uma profissão que você desliga o computador, vai para casa e dorme. Você vai para a sua casa, tem que mudar o caminho que faz, tem que monitorar onde seus filhos estudam”, explica Ricardo Miranda. Ele relata que, recentemente, conversou com uma agente penitenciária que está afastada porque os presos sabiam onde sua filha estudava, quem era seu namorado e qual academia frequentava. Foi preciso que ela pedisse uma

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Apesar disso, os agentes persistem porque veem o bem no trabalho que fazem. “Às vezes, você tira do seu bolso pra fazer um trabalho dentro do estado. Eu gosto do que eu faço, tem dificuldades, mas quando você vê que o que você faz deu certo, você achar uma coisa que foi fruto do seu trabalho, impedir que entre uma droga ou impedir que fujam presos. Esses são fatores positivos que animam, saber que você está fazendo o serviço corretamente”, conclui Paz.


O agente penitenciรกrio tem expectativa de vida de 45 anos, de acordo com estudo do Instituto de Psicologia (IP) da USP.

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A ciĂŞncia descobre a ayahuasca

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Chacrona (Psychotria viridis)

O chá, conhecido como o “vinho das almas” por diversas matrizes religiosas, vem sendo pesquisado no processo de cura de doenças, como a depressão Bruno Talevi Deborah Neiva Helena Sbrissia Lucas Grassi

M Enteógeno - ou manifestação interior do divino” é o efeito que certas substâncias dão, funcionando como alteradoras da consciência ao induzir ao estado xamânico.

arina Stivi é diagnosticada com depressão e ouviu falar sobre a ayahuasca pela primeira vez dentro do consultório de seu psiquiatra. Uma vez que, por orientação do médico, ela parou de fazer uso de medicamentos que conflitavam com o chá e conseguiu estabilizar o seu quadro clínico, procurou tribos indígenas itinerantes que passam por São Paulo para fazersessões de cura através do “vinho das almas”. Do quíchua aya — espírito ou ancestral — e huasca — vinho ou bebida quente, seu chá, comumente ligado à religião do Santo Daime, é uma bebida de cunho enteógeno feita a partir da junção de duas plantas encontradas na Floresta Amazônica: o cipó jagube e um arbusto chamado chacrona. Seu uso é permitido pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad). Seis anos depois de ter experimentado o ayahuasca pela primeira vez, Marina se diz ser fiel à bebida ancestral. As consequências no quadro depressivo foram visíveis, tanto que atualmente seu tratamento não inclui nenhum tipo de medicamento artificial, apenas o acompanhamento psicológico com terapeuta. Por fazer uso da chá apenas sob orientação dos chefes indígenas, Marina tem acesso ao ayahuasca apenas quando as tribos fazem excursões

Chacrona (Psychotria viridis)

para sua cidade, aproximadamente duas vezes por ano. Na região de São Paulo, as tribos Huni Kuin e Yawanawa fazem esse tipo de trabalho, no entanto clãs peruanos também vêm até o Brasil para realizar cerimônias de cura. Com alta há cinco anos, Marina pretende se ater ao hábito de procurar recuperação de problemas emocionais através do chá. “Entendo que o processo da cura foi toda uma movimentação minha também, de autocuidado, conhecimento, de olhar pra coisas em mim que eu queria curar, me abrir pra espiritualidade. Mas acho que sempre que eu tiver alguma coisa pra curar vou buscar [o chá] com certeza. Ayahuasca é um presente.” A liberação foi feita em 2004, por causa das religiões com ritos em torno da bebida, e a substância não é considerada uma droga, mas uma erva medicinal. A ayahuasca é utilizada em comunidades religiosas sincréticas, como o xamanismo, kardecismo, catolicismo, umbanda e ritos orientais. A combinação das duas plantas gera um líquido espesso e amarronzado, que contém o DMT, ou n-dimetiltriptamina, e inibidores da monoamina oxidase. As substâncias combinadas agem no sistema nervoso central e promovem desde visões psicodélicas até euforia e experiências físicas, como vômito. O culto ao redor de chás remete à Grécia antiga, em que os mitos eleusianos falavam sobre pessoas que tomavam a bebida à base de centeio – o kikion – e tinham visões, aberturas de consciência sobre a vida, a morte e o planeta em volta deles. “A história da humanidade traz consigo o uso de psicoativos, permitindo a abertura da consciência e expandindo sua concepção do ‘próprio-eu’, catalisada em torno da bebida – uma verdadeira ferramenta religiosa, como o próprio nome ‘enteógeno’ revela, ou seja, o ‘Deus dentro de nós’” explica a jornalista e antropóloga Amanda Vicentini, que faz a pesquisa de sua tese de mestrado baseada nos efei

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tos e a religião associados ao chá de ayahuasca. Ela diz que é tudo muito particular, porque cada ser humano se entende a partir de suas próprias experiências. Na rotina do dia a dia, vivendo no automático, o homem esquece da busca metafísica do sentido da vida, e o uso de bebidas como o ayahuasca é uma opção para compreender as verdades de um jeito próprio. Segundo a antropóloga existe, dentro de cada um, uma centelha que busca uma compreensão de algo maior. O doutor em Física Aplicada à Medicina e Biologia Draulio Barros de Araújo realizou pesquisas sobre o efeito do chá no corpo humano. Segundo Araújo, a composição química do chá age diretamente no sistema nervoso, especialmente nos receptores de serotonina (neurotransmissores responsáveis por regular sono, humor e apetite sexual). É por causa dessa atividade no sistema cognitivo que o chá estimula efeitos visuais e auditivos. Durante as quatro horas em que o chá atua no cérebro, o usuário é levado a um estado alterado de consciência, em que há uma mudança significativa na maneira que você interage e percebe suas emoções e pensamentos. De acordo com as pesquisa de Araújo, o uso contínuo do chá a médio prazo pode trazer consequências positivas, como efeitos antidepressivos e ansiolíticos, ou seja, diminuem a ansiedade e tensão. Outra possível decorrência do uso do chá é a diminuição do uso abusivo de substâncias tóxicas (drogas e entorpecentes, por exemplo). A CURA PELO AYAHUASCA Ainda não há estudos que obtiveram resultados positivos ou negativos quanto ao uso de ayahuasca a longo prazo, mas Araújo alerta que assim como toda substância, há contra indicações e riscos. “Neste momento em particular, a ciência tem ficado mais reticente na utilização do chá para pessoas que tenham tendências em ter alguma variação de surtos psicóticos, como pacientes com esquizofrenia ou transtorno bipolar. Fora isso, a substância é extremamente segura.”

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Uma pesquisa publicada pelo grupo Hallak no Journal of Clinical Psychopharmacology, em 2016, analisou a ingestão do ayahuasca em pessoas diagnosticadas com depressão refratária, ou seja, que não conseguem a cura completa da doença apenas com os medicamentos comuns, e também que nunca haviam se submetido à ingestão do chá.

Acontece quando o paciente não responde da forma esperada após ter feito tratamento com pelo menos dois medicamentos de classes diferentes usados em dose eficaz e por tempo adequado.

Após oito horas, foram realizados exames de imagem que demonstravam a ação da substância em três lugares distintos do cérebro — aquelas responsáveis pelo controle do humor e das emoções (núcleo accumbens, ínsula direita e área subgenual esquerda). Antidepressivos comuns também agem nessas áreas, apenas necessitam de um tempo de resposta maior. Avaliações do humor realizadas no dia e nas três semanas seguintes mostraram uma redução importante dos sintomas depressivos até o 21° dia. Apesar de dentro de igrejas o chá já ser usado para beneficiar problemas como vício e depressão, na área médica essa prática ainda está em fase de testes. Além dos tratamentos já citados, estudos estão analisando a possibilidade do uso do chá natural como recurso terapêutico para pessoas diagnosticadas com estresse pós-traumático e transtorno obsessivo compulsivo. A professora universitária Evary Anghinoni fez o uso da bebida com a prescrição de uma psicóloga. Segundo ela, houve apenas uma sessão com a concepção da ayahuasca. “No meu caso houve um direcionamento para a liberação de correntes familiares, traumas passados. Questões da minha psique que eu precisava desenvolver.” Evary conta que conseguiu trabalhar isso, mas que as mudanças fizeram parte de todo um processo ao invés de partir somente da substância. “Eu fui, trabalhei o que precisava, e, junto com as consultas com a minha psicóloga eu consigo evoluir nas minhas questões constantemente”. A professora argumenta que não crê que o chá sirva para objetivos específicos — pelo menos não a partir da experiência que teve.

Jagube (Banisteriopsis caapi)


A história do ayahuasca

Tal qual os mitos indígenas, a religião em torno da infusão começa de forma xamânica e sincrética

Em 1930, o borracheiro maranhense Raimundo Irineu Serra foi para a região da Floresta Amazônica e teve contato com a bebida com um xamã peruano. Nessa ocasião, teve a visão da Virgem da Conceição, um exemplo de sincretismo religioso, e ficou nove dias na mata, se alimentando apenas de água e mandioca para receber a doutrina do Santo Daime: 130 hinos e todos os ensinamentos, ritualizando a bebida com uma fundação cristã.

A Ayahuasca é uma ferramenta poderosa na questão do retorno para a religião e o contato com o transcendente e o espiritual – a bebida tem potencial terapêutico para questões de ordem psicológica, podendo ajudar além de apenas o contato religioso. As reuniões de congregações em torno do chá ajudavam as pessoas “à margem da existência” – suicidas, alcoólatras e usuários de drogas, em sua maioria.

A partir da religião em torno do chá que se insere a Ayahuasca para o homem urbano, difundindo e diversificando a ritualização em torno da bebida. A religião do Santo Daime é rígida e disciplinada em seus hinários e ensinamentos – e algumas pessoas preferem se voltar a algo mais xamanista, indígena, e por isso buscam uma espiritualidade diferente, inserindo religiões ambientais, meditação, mantras orientais, candomblé e umbanda: existem vários centros de consumo em que se misturam outras espiritualidades, um verdadeiro sincretismo.

Na América do Sul, a Ayahuasca era usada como instrumento para entender melhor a vida, enraizada na relação dos povos com a natureza. A técnica envolvia a intermediação de um xamã/curandeiro, que conhecia mais sobre o universo, o oculto etc. Cada cultura desenvolvia seu ritual em volta do uso da bebida. Há o voo da águia, animais ancestrais e poderosos, visões sobre a vida e todos variam um pouco de como se davam seus rituais. Parte da espiritualidade, da transcendência de alguns povos da amazônia envolvia o chá e o consumo da bebida desde sua pré-história.

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Thais Porsch

Menstru(ação) a invisibilidade no cotidiano Meninas relatam suas histórias envolvendo o período mestrual nas escolas públicas Thais Porsch Carolina de Andrade Gabriel Dittert Gabriela Savaris

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A

os 12 anos, Tais havia se tornado uma das primeiras meninas da sua sala a menstruar. Ainda que fosse um marco importante na vida de uma garota, ela conta hoje, aos 15 anos e “desacanhada”, que foi tranquilo conversar com suas amigas da sala sobre o assunto, porém admite que não havia nenhuma orientação de professora sobre o tema.

das pedagogas, mas a gente pensou: ‘Meu, fica na sala das pedagogas’, mas a gente tem vergonha de ir lá, e imaginamos que no banheiro ficaria mais exposto, e o diretor aceitou a ideia, mas não deu muito certo. Na mesma semana. destruíram tudo, roubaram e até a caixinha levaram embora”, conta.

“Nunca foi trabalhado em sala isso. Os professores não comentavam. Sempre foi um tabu.”

Além de passar por todos os sintomas decorrentes do período menstrual, as meninas têm que lidar, ainda, com a vergonha e com o medo de constrangimento. “Quando eu estudava em escola pública, tinha meninas que faltavam por causa disso, porque ela não tinham condições de comprar um absorvente. Eu nunca tive que passar por uma situação assim, mas eu já vi muito.” Na falta da atuação governamental, as iniciativas são criadas na sociedade pelas próprias pessoas. Ou melhor, pelas meninas. É o caso de Luana, que surpreendentemente não teve vergonha em nenhum momento ao falar do assunto. Muito pelo contrário. Aos 15 anos, estudante do ensino médio, ela relata que muitas vezes se sentiu intimidada ao ter que ir até a coordenação para pedir orientação quando menstruava. Porém, junto com sua colega, tentaram, por iniciativa própria, deixar uma caixa no banheiro da escola com alguns absorventes. “A ação, no entanto, não deu certo”, suspira, desanimada. “Havíamos conversado com o diretor, e ele disse que já havia na sala

PAPEL DA EDUCADORA No outro lado da sala de aula, muitas vezes os professores não têm uma clara percepção que poderia ajudar na orientação das meninas sobre o tema. Professora de História há 25 anos, Carina Nogueira, 51, leciona na rede estadual de ensino no município de Colombo, região metropolitana de Curitiba. Ao aceitar ser entrevistada, a educadora, com um olhar apreensivo, contou que não havia pensado tão a fundo sobre um tema tão pragmático, como o uso de absorventes no período da pré adolescência, e que as perguntas a fizeram relembrar que, quando jovem, não tinha dinheiro para comprar absorvente, o que deveria ser algo de fácil acesso, já que é uma necessidade básica. Thais Porsch

“Nunca foi trabalhado em sala isso. Os professores não comentavam. Sempre foi um tabu. E, tipo, sempre que acontecia alguma coisa com alguma menina, os professores só falavam ‘vai lá na enfermaria’, e aí lá tinha absorventes, sabe? Só que, assim, eles não tentavam ajudar”, relembra com um sentimento de impotência.

A adolescente disse que uma - Tais, estudante. vez, quando seu ciclo menstrual se iniciou na escola, preferiu chamar sua mãe para ir embora, interrompendo sua aula.

A cólica menstrual torna esse período ainda mais díficil.

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“Às vezes, elas moram longe, não estão perto de um mercado, perto de uma farmácia, não podem ir sozinhas, e aí? Isso aí a gente não problematizou com elas, talvez nem nas aulas de Ciências. Não sei se é conversado sobre isso. Deveríamos trabalhar a questão do corpo. Às vezes, vemos a ação das enfermeiras dos postos de saúde que vão até a escola falar da vacina HPV, mas fora isso, não existe mais nada”, questiona a professora sobre a abordagem do tema nas escolas. O uso de absorventes e a menstruação, segundo a historiadora, ainda são tabus presentes na sociedade, e não apenas no Brasil. Carina puxa da memória um filme ao qual assistiu sobre o indiano Arunachalam Muruganantham, que revolucionou e possibilitou às mulheres de uma zona rural na Índia o acesso a absorventes, muitos caros e cercados de preconceitos no país. A educadora compartilha que, onde leciona, os absorventes estão disponíveis na sala da pedagoga, e que a qualquer momento as meninas podem pegá-los, quando precisam. Mas a questão vai muito além da distribuição nas escolas. Falta ensino sobre o conhecimento do corpo feminino. “Se você não recebe essas informações, significa que os pais e as mães não receberam essas informações. E se você não tem essa informação, como você vai notar que tem algo de diferente no seu corpo? E que é questão de saúde ir no ginecologista? Você precisa ter conhecimento de como utilizá-lo, há um limite no seu uso, e o mau uso pode trazer uma série de consequências”, ressalta a psicóloga Danielly Brandão, que trabalha na ONG Bom Aluno.

entre tantas outras que um jovem carente tem que enfrentar, quando estão menstruadas. Danielly ressalta, com indignação nos olhos, que o Brasil é o país com a maior porcentagem de imposto sobre absorventes, chegando a 25%. No Canadá, em 2015 a taxação foi abolida, já que as mulheres pagam, ao longo da vida, um imposto muito maior, devido ao consumo do item.

POLÍTICAS PARA MENINAS A advogada Maria Cláudia fica inconformada ao chegar à conclusão de que o assunto ainda é um tabu por relacionar o sexo com a transformação do próprio corpo feminino. “A menstruação é tida como algo desagradável e sujo. Mulheres têm vergonha de falar sobre o tema e há a constante tentativa de camuflar o período menstrual para que o assunto não venha à tona. Isso cria barreiras para discutirmos alternativas de acolhimento de mulheres jovens e adultas que sentem extremo desconforto nesse período, como cólicas intensas e desmaios. Usufruir de eventuais protocolos voltados a mulheres relacionados à menstruação, significaria, necessariamente, assumir estar menstruada, o que poderia implicar um sentimento de exposição.” A advogada comenta que essas questões não devem impedir a criação de

“Às vezes, vemos a ação das enfermeiras dos postos de saúde que vão até a escola falar da vacina HPV, mas fora isso, não existe mais nada.”

A psicóloga, que ajuda na capacitação de jovens nascidos em famílias humildes por meio da educação, comenta, indignada, a partir da sua experiência na instituição, as complexidades que as meninas têm que lidar nas escolas,

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- Carina Nogueira, professora. políticas públicas voltadas a pensar na mulher nessa etapa, mas deveriam, sim, incentivar a criação de programas para que sejam debatidos temas como sexualidade, corpo e prazer femininos, para que mulheres conheçam melhor seus corpos e seja possível debater esses temas com maior naturalidade.


INFORMAÇÃO INCORRETA

Thais Porsch

A médica ginecologista Kadija Rahal Chrisostomo atende mulheres e meninas de classe média alta. Ainda sim, ela confirma que há falta de diálogo entre suas pacientes sobre o tema: “Muitas vezes não se fala em menstruação perto dos

“Desde cedo, sempre fui muito influenciada a não ter vergonha de ser quem eu sou, e todas as mulheres da minha família são independentes. Então, sempre conversamos sobre todos os assuntos. Viver em um meio onde estou confortável ao falar, com certeza foi um fator decisivo para ser

No Brasil, os impostos incidem em 30% no valor do absorvente. irmãos ou pai. As informações que obtêm geralmente vem da mídia e amigas, de uma forma incorreta”.

quem eu sou, e não ter vergonha de falar que estou menstruada, e não estou em uma boa semana.”

Kadija já trabalhou em diversos lugares, em clínicas particulares, públicas, dentro e fora de Curitiba, e fala que informação é uma questão chave para melhorar a qualidade de vida de jovens, como organização de palestras, conscientização de anticoncepcionais, preservativos, vacinas.

Mariana afirma que nem todas as meninas têm a possibilidade de viver no mesmo ambiente em que foi criada, e que podem ter vergonha ou não entender o que está acontecendo quando iniciado o período de puberdade feminina. Ela comenta que, durante sua adolescência, teve aulas de educação sexual, mas não sobre o período pré-menstrual e menstrual que envolve uma sensibilidade corporal muito maior.

Durante a puberdade, há, segundo a ginecologista, “uma série de modificações físicas e psicológicas , um período que leva, em média, quatro anos. Há o estirão de crescimento, redistribuição da gordura corporal e aparecimento dos caracteres sexuais secundários (mamas, pilificação em região genital e axilar)”. Uma série de mudanças, nada fácil para se enfrentar sozinha. Quando perguntada sobre o assunto, Mariana da Matta, de 20 anos, sorri e tranquilamente relata sua experiência com o assunto. Para ela, conversar sobre questões femininas sempre foi muito normal e frequente, já que foi criada em uma família com muito mais mulheres do que homens.

Conheça o projeto de Lei 6603/2019 Lei Municipal do Rio de Janeiro determina o fornecimento de absorventes para as estudantes em escolas públicas.

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Henrique Zanforlin

Com açúcar, com afeto Aplicativos de relacionamento sugar atraem jovens pelo Brasil, que recebem apoio financeiro e ajuda nos estudos Henrique Zanforlin

A

princípio pode parecer um aplicativo de relacionamento como qualquer outro: fotos da pessoa, um texto introduzindo seus gostos, desejos… até que chegam os detalhes. Além de uma minuciosa descrição contendo altura, cor dos olhos, do cabelo, da pele e, ironicamente, estado

civil, há também a média salarial e o patrimônio pessoal. São os aplicativos do chamado “relacionamento sugar”, e a sua mensalidade pode chegar à R$ 999. Antes de mergulhar nesse mundo, é necessário aprender alguns termos:

SUGAR DADDY. [ DE AÇÚCAR + PAI ] Adj. Homem maduro com estabilidade econômica, que possui interesse e desejo de ajudar financeiramente jovens, em troca de companhia.

SUGAR BABY. [ DE AÇÚCAR + BEBÊ ]. Adj. Jovens, majoritariamente mulheres, que buscam ou possuem um sugar daddy, seja para receber viagens, presentes ou auxílio financeiro.

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Afinal, o que é o relacionamento sugar? O relacionamento sugar, em si não é algo recente, ele apenas se tornou formalizado e popularizado recentemente. Segundo a ferramenta Google Trends, a procura pelo termo só começou em 2016, se popularizando no último ano. Consiste em duas pessoas que, após muita conversa, criam um acordo que beneficia ambas as partes, normalmente em torno de uma questão financeira. É importante não confundir relacionamento sugar com prostituição. A* tem 18 anos, estuda Enfermagem, e explica que o relacionamento sugar é menos superficial: “Você cria uma afinidade com o daddy, sempre estão ali, se ajudam, conversam.” Foi em uma conversa com o seu vizinho que A* se interessou pelo assunto. O que era para ser apenas uma brincadeira, se tornou uma vida dupla para a estudante. Pouco após ingressar no aplicativo em abril, ela começou a se relacionar com um homem de 30 anos, que mora em uma cidade próxima. Seu sugar daddy paga os gastos do cartão de crédito e a faculdade de A*, uma média de R$ 2 mil. A* namora há quatro anos e mora junto com o seu namorado, que não

mento, está mais para descontrair”. Porém, caso o seu sugar daddy não tivesse mais condições de financiá-la, ela admite que seria improvável que o relacionamento se mantesse. “As pessoas que entram nesses sites geralmente tem muito dinheiro…”. A*, que está em sites de relacionamento sugar, diz que nunca tentou aplicativos tradicionais. “Quem entra em Tinder é porque, de certa forma, não tem competência de conseguir alguém pessoalmente”. CNPQ Sugar Assim como A*, H* está no ensino superior, cursa Direito e tem 19 anos. Ela é alta, magra, tem o cabelo castanho e o rosto fino, como uma modelo.

Print tirado de uma usuária sugar mommy.

“Você cria uma afinidade com o daddy, sempre estão ali, se ajudam, conversam.” A*, estudante sabe sobre o sugar daddy. Por isso, ela evita pedir presentes que exponham a mudança em sua condição financeira. A estudante trabalha e, por vezes, faz plantão no turno da noite, dinheiro que, agora que possui apoio do sugar, utiliza para sair com suas amigas.

A estudante recebia auxílio de baixa renda, mas sua bolsa foi cortada com a recente redução de verbas para a educação do governo de Jair Bolsonaro. Enquanto ela procura um estágio, faz encontros como sugar baby para manter a qualidade de vida.

Para ela, o relacionamento sugar funciona como uma válvula de escape. “É uma companhia que não está ali para te cobrar como no relaciona-

Segundo uma pesquisa realizada pelo site Universo Sugar, 155 mil sugar babies recebem patrocínio para seus estudos, sendo o Paraná o quarto

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maior estado da lista. Além disso, estima-se que metade desses eram desistentes, ou seja, passaram por alguma dificuldade financeira e após o relacionamento sugar retornaram aos estudos. H* está entre as 30 mil sugar babies do Paraná, e conta que demorou para achar um sugar daddy confiável, havia muita coisa que ela não estava disposta a fazer. A dificuldade dela é compreensível, uma vez que o número de sugar daddies disponíveis é três vezes menor ao de sugar babies.

os sugar daddies possuem uma questão exibicionista, quase narcisista de bancar outra pessoa. Outra característica, que ela pôde observar, é que a maioria era casado e com filhos. “São pessoas que tem muita necessidade de conversar, de se abrir”.

“São pessoas que tem muita necessidade de conversar, de se abrir.”

Os encontros da estudante são saídas casuais, como lanche ou café. Diferentemente das outras entrevistadas, ela nunca teve relações sexuais com os sugar daddies. Ao final, ela recebe pelo tempo, um valor que era previamente negociado. “Depende muito da situação, de R$ 50 a R$ 300.” Para ela,

H*, estudante Um dos motivos pelo qual H* só se encontra casualmente com seus daddies é o preconceito da sociedade. Ela tem medo que isso possa afetar sua futura carreira como advogada. “Eu tenho uma imagem a prezar, a sociedade vive muito de aparência.” Caso aconteça de ela ser descoberta, acredita ser “ossos do ofício”, como se fosse um trabalho freelancer. Apesar de não passar propriamente dificuldades financeiras, a estudante defende que “viver é mais que sobreviver, envolve lazer”. Com o dinheiro que recebe, ela compra roupa, maquiagem, pinta o cabelo e sai com os amigos. Motivo pelo qual ela apoia esse tipo de relacionamento. “Querendo ou não, é uma forma rápida de ganhar dinheiro”. O homem mais velho com quem ela já saiu estava em seus 50 anos, idade para ser seu pai. Pessoalmente, ela não tem interesse em se envolver com pessoas mais velhas, muito menos em relacionamentos. Ela vê esse momento como uma fase, e diz que não quer passar o resto da vida dependendo de “dinheiro de velho”. Porém, às vezes H* se arrepende de sair com alguns daddies. Ela conta que certa vez, o homem tocava-a sem permissão. Como ela ainda queria receber o dinheiro, pedia educadamente para que ele parasse, mas o sugar daddy insistia. Ao final, ela levantou-se chorando e foi embora. Ele ainda tentou entrar em contato com ela

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pelo telefone, oferecendo R$ mil por mês com três encontros no pacote. H* recusou. DNA Sugar Por se tratar de um termo recente, ainda há muita discussão sobre o significado do relacionamento sugar. Marcelo Estrázulas tem 40 anos, é psicólogo e sugar daddy, mas se diz um daddy mais sentimental. Ele acredita que a definição das redes sociais é fria, e não dá espaço para qualquer tipo de afetividade. Marcelo defende que sugar daddy é um homem que, por natureza, gosta de “abrir as asas” sobre a mulher, protegê-la, e que busca na moça uma jovialidade, sorriso e bom humor. Ele acredita que essas são características que as mulheres instintivamente buscam em seu parceiro, e que por mais “desconstruída” que a sociedade possa parecer, a maioria possui um desejo secreto do chamado príncipe encantado. “Eu acho que está escrito no DNA da figura feminina aquela coisa mais romantizada de ter um homem desse estilo.” O psicólogo acredita que o sugar daddy é capaz de oferecer viagens e experiências que talvez a sugar baby não tivesse condição de conhecer, e que isso ajuda a torná-la um ser humano melhor. Marcelo defende que um homem maduro tem capacidade de “lapidar” psicologicamente e emocionalmente a moça, “tornando a mais tolerante, educada, uma pessoa mais bacana de se conversar”. Assim, ele acredita que mesmo que não exerça uma atividade profissional, ela poderia crescer como ser humano. Marcelo baixou o aplicativo mas não o manteve por muito tempo. Para ele,

“Eu acho que está escrito no DNA da figura feminina aquela coisa mais romantizada de ter um homem desse estilo.”

os sugar daddies “estão no topo da pirâmide”, e por isso acabam sendo alvos de supostas mulheres oportunistas. O daddy ainda comenta sobre o risco, disse que muitas tiram prints das conversas e pedem dinheiro para não expor o homem. Sugar com data de validade Para a psicólogo e terapeuta Patrícia Guillon, o sugar daddy é fruto de um problema social: a dificuldade de se aceitar o envelhecimento. No Brasil, a idade tem um estigma negativo, que leva a pensamentos como impotência, isolamento social, falta de energia e mau humor. Guillon afirma que buscar uma sugar baby é uma forma de maquiar essa aparência, é uma tentativa de se reinserir na sociedade. Ela também diz que há um sinal de baixa autoestima, tanto por parte do sugar daddy quanto da sugar baby. O homem não aceita o seu envelhecimento e a mulher se submete a condições que, muitas vezes, não precisaria. Ambos tentam ostentar um estilo de vida que não possuem. Sugar por acaso M. teve um relacionamento sugar em 2017, antes de se popularizar. Ela tem 23 anos e parou os seus estudos para cuidar do filho. Foi em 2016 que um holandês entrou em contato com ela pelo Facebook, e assim evoluiu um relacionamento à distância. Após um ano, o programador de 33 anos passou a ajudá-la financeiramente, sem nunca tê-la visto pessoalmente. No começo, M. diz que não acreditava, mensalmente o daddy depositava R$ 3 mil, que ela sacava para planos futuros. O relacionamento deles era aberto, e apesar do estrangeiro se declarar loucamente apaixonado, M. sempre deixou claro que não o amava, e que inclusive saía com outros homens. No fim de agosto eles se encontraram pessoalmente, mas a história foi outra. Ele tinha planos para casar, constituir família e dar uma formação, mas M* diz que “a família falou mais alto”, e recusou a proposta. Eles não se falam desde então.

Marcelo*, psicólogo

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Nome fotógrafo

Dermatites: de dentro pra fora Doenças de pele que, além de machucarem, trazem como um dos principais efeitos colateriais a baixa autoestima Por Beatriz Tedesco, Camille Casarini e Fernanda Xavier

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A

dermatite é uma doença que afeta inúmeras vidas e acaba mudando, inclusive, a vida de famílias. Um exemplo é Mary Hellen Poli, mãe de uma adolescente de 15 anos. Conta da dificuldade que enfrentou com a filha na época em que a garota ainda tinha 14 anos e nenhum médico a diagnosticou corretamente. “No começo, ninguém sabia dizer o que era. Ela chegou a usar vários produtos fortes, inclusive sabão de pedra e permanganato de potássio. Não sabíamos o que era.” Outro caso é o da jovem Stephane Laynez, 23 anos, arte-educadora. Ela conta que descobriu a doença após ter uma crise grande dos 15 aos 17 anos. “Foram dois anos em que eu ia a médicos e ficava sem resposta. Somente o último médico acertou no diagnóstico e no tratamento. Hoje eu sei o que me afetou na época. Foi um momento bem delicado da minha vida.”

“É autoimune, é de dentro pra fora. Por isso, a lógica é tratar de dentro para fora também.” - Mary Hellen Poli, servidora pública A arte-educadora conta que o tratamento auxiliou para que ela voltasse a ter uma vida normal novamente, e cita como exemplo tomar banho que antes era muito doloroso. Já Gabriel Zaninelli, 21 anos, é ilustrador, designer gráfico e teve sinais da doença desde seus primeiros anos de vida. Assim, desde cedo apresentou inflamações e ressecamento na pele. “Durante minha infância meu quadro não era grave. Apesar dos hidratantes recomendados não funcionarem, eu não me queixava. Fui uma criança como qualquer outra.” Contudo, conforme foi crescendo, Gabriel começou a precisar de mais cuidados, que nem sempre foram efi-

cazes. Então buscou os mais variados tratamentos alternativos vendo que os dos médicos não funcionavam sempre. A espiritualidade foi um deles. “Me ajudou muito. Mas, por outro lado, me trouxe uma positividade tóxica. Passei a acreditar em curas milagrosas. Quando voltei para o mundo real e percebi que as coisas não são tão simples, entrei em uma depressão profunda. Precisei buscar ajuda de um psiquiatra. Isso me auxiliou muito.” A filha de Mary também sofreu durante o processo de tratamento. Quando algumas feridas se espalharam pelo corpo e ficaram em carne viva, a adolescente começou a tomar antibióticos. E, para não se contaminar, parou de ir para a aula e passou os últimos três meses de 2018 em casa. Por fim, após a realização de uma biópsia, a jovem foi diagnosticada com dermatite espongiótica. A mãe, então, a levou a um alergologista. Vendo que não tinha melhora, ela decidiu procurar grupos que falassem sobre o assunto na internet. Entrou então em um grupo do Facebook, que possuía mais de 20 mil membros. Gabriel e Stephane também participam do grupo que Mary entrou. Nele, a mãe conseguiu encontrar diferentes tipos de tratamentos indicados pelos membros. E, após algumas tentativas, achou uma combinação de medidas que acabou melhorando 80% do corpo da filha. A mãe conta que ela não é de mostrar sua autoestima abalada, mas, nas férias, ficou constrangida de ir para a praia. “Então, eu disse para ela que ninguém a conhecia ou pagava as suas contas, assim ninguém podia julgá-la. Até por que não tinha motivo para sentir vergonha da situação.” O ilustrador conta que a doença o privou de inúmeras coisas, como sair de casa. “Se estou em crise, não boto o pé pra fora”. Além disso, Gabriel já pediu demissão de dois empregos por conta do estresse que acabava o afetando. “Algumas vezes preciso usar roupa de frio em dias quentes para não mostrar a pele, e em outro preciso tirar roupas quentes por conta do excesso de calor que faz coçar.”

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Já Stephane conta que, muitas vezes, a pele machucava com a roupa, o que fazia com que muitas pessoas perguntassem o que era e acabavam se afastando por temer ser algo contagioso: “Uma vez um homem se recusou a sentar ao meu lado no ônibus por achar que era algo transmissível e relacionado com a falta de higiene”. “As manchas e o jeito que as pessoas me olhavam ainda me machucava muito. Mas com o tempo, vi que minhas necessidades com o meu corpo deveriam vir acima de tudo. Hoje minha relação comigo mesma é o que dou mais valor.” Contudo, Stephane conta que a doença fez ela perceber como é importante perceber os sinais do corpo, e dar atenção. Como tem a doença desde que nasceu, ao contrário da filha de Mary e da arte-educadora, Gabriel fala que a doença o fez ter uma visão deprimente da vida. “É uma grande tortura. Não consigo viver e não consigo morrer. Já perdi a esperança de ter relacionamentos, tenho vergonha de todos. Fico fechado no meu quarto.” Ele aconselha que as pessoas que possuem a doença procurem por algo que lhes dê algum prazer, como a arte é para ele. Além disso, ele ressalta a busca pela ajuda psicológica/psiquiátrica, “indispensável”. Mary Hellen é um caso que acabou enxergando algo além da doença, ela aprendeu muito com a doença da filha.“É autoimune, é de dentro pra fora. Por isso, a lógica é tratar de dentro para fora também.” A dermatologista Michelle Pontes conta que os principais sintomas da dermatite são vermelhidão, coceira e descamação da pele. Os tipos mais comuns da doença são: dermatite atópica, dermatite de contato, dermatite perioral e eczema numular (ver quadro abaixo). Ela afirma que o diagnóstico e realizado por meio de exame clínico e somente quando há dúvida diagnóstica pode ser solicitada a biópsia da pele. Michelle explica que os principais tratamentos para a dermatite são o uso de corticoides tópicos, cremes hidratantes, orientações sobre ba-

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nhos e afastamento de substâncias que possam ser responsáveis pelo desencadeamento da doença, no caso da dermatite de contato. “Em alguns casos, podem ser necessárias medicações orais como imunossupressores e até medicamentos biológicos.” Segundo a especialista, a dermatite pode ser desencadeada ou piorada por estresse emocional, ansiedade e depressão, por isso, cuidar da saúde psicológica também é muito importante no tratamento contra a doença. A dermatologista orienta que quando uma criança ou adulto suspeitar de alguma alteração na pele, seja ela vermelhidão, coceira ou descamação, deve procurar um médico dermatologista para o diagnóstico correto e orientações e tratamentos direcionados para cada pessoa, pois, segunda ela, existem vários tipos de dermatite e os tratamentos não são os mesmos. Michelle ressalta que o uso de cremes corticoides deve ser muito bem orientado, pois eles causam vários efeitos colaterais. E também destaca que infecções podem vir junto com a dermatite, sendo necessário, muitas vezes, o uso de antibióticos. “Sempre procurar um especialista e seguir suas orientações é a melhor dica.” A psicóloga Odivânia Krüger, especializada em terapia cognitiva Comportamental, participou de uma pesquisa com grupos de famílias com crianças que tinham dermatite, no Hospital Evangélico, em Curitiba. Ela comenta que existe um programa chamado de escola de atopia, onde participam os pais e crianças com dermatite e afirma que dermatite causa um sofrimento psicológico para toda a família. “As crianças são discriminadas na escola, porque a doença é pouco conhecida e imaginam que é algo contagioso. Muitas professoras reclamando para os pais, falando que não têm cuidado com a criança”, disse ela. Krüger comenta que essa reação das pessoas causa um sofrimento, não só para a criança, pois compromete a socialização, fazer amigos e ter relacionamentos, mas também para os pais, que recebem críticas dos outros por falta de cuidado com a criança. “Para


as mães é difícil, porque elas veem a situação e não têm o que fazer. Como é uma doença crônica, é bem complicado, gera um sofrimento para toda a família.”Ela fala sobre o olhar das outras pessoas para os portadores da doença e acabam evitando situações como ir a praia e usar roupa curta.

“Sempre procurar um especialista e seguir suas orientações é a melhor dica.” - Michelle Pontes, dermatologista Em casos de dermatite, é comum existir um componente emocional, de acordo com a psicóloga. “Normalmente, quando a família está passando por alguma crise ou dificuldade, acabam piorando as crises, aumenta a coceira, piora o estado geral da doença e isso

Tipos mais comuns • de demratite

Dermatite atópica: apresenta erupções na pele que coçam e apresentam crostas. Seu surgimento é mais comum nas dobras dos braços e na parte de trás dos joelhos. Pode vir acompanhada de rinite alérgica ou asma.

Dermatite de contato: reação inflamatória na pele que acontece por conta da exposição a um componente que causa alergia ou irritação. Seus principais sintomas são: vermelhidão, coceira, erupção cutânea e descamação. Não é contagiosa e geralmente aparece mais nas mãos e rosto.

afeta a autoestima da pessoa.” Conta que algumas das principais queixas recebidas são relacionadas a áreas que ficam expostas como pescoço e colo. As feridas ficam com aspecto avermelhado ou esbranquiçado, há vezes em que surgem espécies de feridas, crostas. Odivânia afirma que o ideal é que além do acompanhamento médico, seja feito um psicológico, pois existem casos onde a terapia acabou favorecendo para o desaparecimento dessa doença. “Às vezes, um adulto pensa que fez algo de errado, sendo um defeito do corpo mas esquecem que é um fator genético, biológico, agravado pelo emocional, mas não é um castigo ou algo que fez de errado.” Ela lembra que conflitos familiares dentro de casa podem piorar o caso, por isso é importante que todos sejam tratados. A baixa autoestima pode se somar a outros fatores e, um dia, desenvolver depressão e outros problemas. “Causa um sofrimento psíquico para a pessoa, que não tem amor próprio, se cobra muito, tende a ser mais perfeccionista. O ideal é que ela faça terapia para que consiga ter uma relação diferente consigo mesma”, finalizou a psicóloga.

Dermatite perioral: aparece na região da face, principalmente ao redor da boca e nariz. Pode evoluir para a região ao redor dos olhos, quando passa a ser denominada dermatite periocular.

Eczema numular: é caracterizada por placas de eczema simétricas que aparecem em várias partes do corpo. Esse tipo de dermatite é mais frequente no inverno por conta do ressecamento da pele. Vale ressaltar que a dermatite pode ocorrer em todos os tipos de pele!

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A história jamais vista de uma das avenidas mais conhecidas da capital paranaense

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João D’Ambros

A vida através da Padre Anchieta


Leonardo Cordasso Franz Fleischfresser

T

odo dia seu Francisco Viana acorda às 5h30, prepara um café reforçado e deixa tudo pronto para a esposa, que levantará mais tarde. Depois de tomar o café, ele escova os dentes, põe o uniforme e vai até o terminal. Em Colombo, pega o ônibus cheio, quase sem espaço para respirar e vai até o Cabral, chegando lá sobe no lotado inter 2, indo até o do Campina do Siqueira, por fim, apanha o Centenário – Campo Comprido, chegando a estação tubo Gastão Câmera à Rua Padre Anchieta, onde está trabalhando há dois meses.

Logo após conhecer seu Francisco, continuei subindo a rua e conversando com todas as pessoas que por ali passavam. Foi assim me deparei com Matheus Depetris, um jovem de apenas 16 anos, vindo de Ponta Grossa, mas que passou dez anos de sua vida em Itajaí, no litoral catarinense. Ele mora em Curitiba há quase três anos, e o motivo de tantas mudanças é o trabalho de seu querido pai, que trabalha como gerente de vendas. Mas ele ainda continua com o sonho de

“Nós que trabalhamos na rua sempre tentamos nos ajudar, o importante é estar unido.”

Seu Francisco é só mais um personagem, que entre idas e vindas, está sempre transitando pela rua, uma linha reta repleta de histórias, pessoas, árvores, flores e, é claro, o famoso vermelhão. A Padre Anchieta pode ser considerada uma pequena rua se formos pegar a extensão como parâmetro, porém a “pequena” via pública, que começa logo após o terminal Campina do Siqueira e acaba três quarteirões da Praça da Ucrânia, está sempre em movimento: são moradores, trabalhadores e pessoas que estão apenas de passagem, seja fazendo exercício físico, comendo em algum estabelecimento ou apenas visitando parentes e amigos.

Cristina Ferreira, vendedora de frutas. criança, se tornar um grande piloto de avião e ninguém mais habituado à mudanças do que ele. Matheus mora na Martin Afonso, via rápida paralela à Padre Anchieta, mas estava, como sempre, na donairosa rua da canaleta para vender seus brigadeiros com a intenção de pagar a viagem de formatura do terceirão, que o levará até Porto Seguro. Por ser uma rua bem movimentada, em questão de pedestres, ele escolheu aquele lugar como ponto estratégico de vendas. Ele também afirmou gostar bastante da região, apesar de não

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esconder o descontentamento com o clima curitibano. Uma esquina após conversar com Matheus, encontrei Cristina Ferreira, uma ambulante, que vende goiabas e peras na frente da Caixa, ao lado da estação tubo “Bigorrilho”. Cristina diz estar naquele local há quase seis meses. Ela é uma mulher de fibra que mora no Campo Comprido e vem todo dia com sua eterna kombi para vender suas frutas na Padre Anchieta. Enquanto ia oferecendo os produtos às pessoas que passavam e mexendo no cabelo, a vendedora explicou o motivo por gostar tanto de trabalhar na região, ela considera um lugar muito seguro e altamente movimentado, contando que as pessoas que trabalham naquela região fazem uma troca com ela, trocando cartelas de EstaR (Estacionamento Regulamentado) por frutas fresquinhas. O que mais incomoda a ambulante, naquela região, é a quantidade de “malandro esperto”, como ela define. Cristina nunca sofreu ou viu nenhuma ação fisicamente violenta, mas, infelizmente, já caiu em alguns golpes, perdendo R$ 40 uma vez. Ela observa, constantemente, infratores tentando “golpear” pessoas de idade, principalmente o do bilhete premiado. Com um sorriso no rosto, e um abraço apertado, a mulher se despede e segue trabalhando, eu sigo o caminho da encantadora Padre Anchieta atrás de mais histórias. Próximo à Praça da Ucrânia, encontrei o seu Clóvis Braun, um senhor que estava indo comprar pão as 15h15 da tarde. Logo quando o abordei, abriu um sorriso e, na maior calma e tranquilidade, conversou, conversou e conversou comigo. Contou que é um dentista do Exército, aposentado, e mora na Padre Anchieta há mais

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“Curitiba? Nunca foi uma opção morrar para cá, mas hoje acredito que tenha sido a melhor escolha.”

Clóvis Braun, dentista do Exército aposentado

de 30 anos. Na conversa, seu Clóvis contou quase tudo sobre sua história. Ele é gaúcho de Porto Alegre, rodou o Brasil inteiro e quando foi mandado para Curitiba não queria vir de jeito nenhum, porém seguiu o que lhe foi mandado e acabou residindo e gostando da capital paranaense. O problema é que seu Clóvis gostou tanto da cidade que mesmo após a aposentadoria resolveu ficar em Curitiba e nunca mais voltou para as terras gaúchas. Ele afirma gostar muito da região da Padre Anchieta, pois todas as ruas são bem asfaltadas, os quarteirões têm calçadas para os pedestres transitarem em segurança, não falta nada em relação a estabelecimentos e adora o clima curitibano. Após mais uma boa e longa conversa, me despedi de uma das pessoas mais educadas e receptivas que conheci na vida, seguindo a minha caminhada. Em frente à Praça da Ucrânia, no edifício Capri, me aproximei da última pessoa com quem iria conversar. Um senhor um pouco eufórico e que gostava de papear sobre a vida ou qualquer outra coisa. Seu Hamilton Junior trabalhava como representante de uma empresa que vendia feijões cariocas, porém a empresa faliu e ele,


“Padre Anchieta é a solução para eu conseguir a viagem de formatura.”

Junior conta que fica, diariamente, surpreso com o movimento da canaleta. Diz que apenas na Padre Anchieta se pode observar esse fenômeno: gente correndo, caminhando, andando de bicicleta, skate, patins, etc. Ele afirma que os moradores ao redor veem a rua como um refúgio no meio da selva de pedra, para praticar esportes e respirar ar fresco, pois, como ele explica, apesar do movimento moderado de carros na rua, o túnel de árvores que a cobre em seu percurso inteiro passa a sensação de tranquilidade e leveza. Apesar dos vários elogios, Hamilton se mostrou levemente preocupado com o grande número de casos de jovens pegando “rabeira” nos ônibus. Ele ainda diz que, cerca de dez dias antes dessa

Matheus Depetris, vendedor de brigadeiro

nossa conversa, presenciou um acidente, no qual um jovem caiu e teve ferimentos leves após pegar a famosa “carona” com os vermelhões. E esse foi mais um dia normal na Rua Padre Agostinho. Centenas de dezenas de pessoas passando, e que apesar de todos os imprevistos do dia a dia, sabem aproveitar toda essa simplicidade que a vida proporciona.

Seu Clóvis, morador da Padre Anchieta há mais de 30 anos aproveita a vida de dentista do Exército aposentado.

João D’Ambros

à procura de emprego, acabou virando porteiro de um dos prédios que complementam as laterais da rua.

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