Revista in-consciência - Ano I - Ed.IV - julho-agosto - 2015

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in-CONSCIร NCIA Ano I - nยบ IV - julho-agosto de 2015 ISSN - 2357-8548


Sobre as seções da revista: OPRÉ: Seção onde damos uma prévia de um texto que só será desenvolvido na próxima edição. OAUTOR: Seção onde comentamos de maneira livre sobre um autor e sua obra. OLEITOR: Seção onde aparecem textos enviados por leitores (a seção só acontece quando recebemos textos) Res. Cin.: Resenha de cinema. Ilustrações, diagramação e capa: José Nilton C. S. Jr.


in-CONSCIÊNCIA Ano I - nº IV - julho-agosto de 2015 Expediente: Revista in-Consciência: Periódico sobre humanidades. Literatura, cultura, crítica e filosofia. ISSN - 2357-8548 Revisão: Reinilza Teixeira; José Nilton C. S. Jr. Editores: José Nilton Carvalho Santos Júnior (J.N.Jr.); Reinilza Teixeira dos Santos (R.T.) Endereço : Rua do Oriente, 332. Uibaí-Bahia. CEP: 44950-000 email : revistainconsciencia@gmail.com site: http://revista-in-consciencia.blogspot.com.br/ Fechamento dessa edição: 30/08/2015. Tiragem: 150 (Textos assinados são de responsabilidade do seu autor e não refletem a opinião da revista)

sumário

eDITORIAL - rACISMO E sORVETE

p.4

A Poética do Olhar

p.6

Vós que ignoreis... ignorais

p.9

(Oleitor) Notas sobre literatura

p.12

(Oleitor): Breve itinerário da Fotografia e sua relação com a Cidade p.15 (rESENHA): Prefácio Interessantíssimo

p.19

(Opré) Um drama desumano

p.21

(Poesia) Nuançes

p.22

(Poesia): Insone (1)

p.23

(Conto) Quid pro Quo Ironias

p.24 p.26


editorial

Racismo e sorvete

B

rasil, uma terra que foi e ainda é palco de grandes embates acerca de questões raciais. Uma terra que teve seus habitantes dizimados física, cultural e ideologicamente por uma raça estrangeira com o discurso da salvação de um “povo bárbaro” do seu pobre estado primitivo. Diante das gigantescas proporções dessa terra, as atrocidades aqui cometidas não foram menores. Tamanhos intuitos exigiam mão de obra, insuficientes os nativos, seria necessário cruzar o oceano para destituir outros nativos das suas terras, presenteando-os com o solado da bota de uma raça nobre, com a subjugação completa do seu corpo e da sua mente, com a humilhação e a inferiorização. Para não falar de tantos outros povos que aportaram aqui e se envolveram nesse processo de formação da grande miscigenação que formou a híbrida raiz étnica do povo brasileiro. Essa semana, sentado com minha namorada na mesa em frente a uma sorveteria, a dona do estabelecimento nos tomou por confidentes. Cochichando expressou sem cerimônia (como que tomada por uma certeza de semelhança de pensamento conosco), quem sabe por sermos brancos, uma série absurda e deprimente de impropérios e racismos da mais vil estirpe. Eu fiquei pasmo. Na mesa ao lado, a razão do discurso entre dentes da nobre senhora: um casal formado por uma loira e um negro tomava sorvete. Bestificado como estava, não disse palavra, ao meu silêncio ela não recuou, e enquanto não culminou com a última frase: “Deus me livre de morar em uma casa com um vizinho

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EDITORIAL

preto”, ela não calou seu vergonhoso discurso. Esse tipo de coisa nos abala de maneira incongruente visto que o que vemos na televisão já seria suficiente para não nos surpreendermos mais, porém a proximidade e a consciência da permanência silenciosa desse tipo de preconceito no seio da sociedade não deixa de ser alarmante. Ainda é possível ser pior, pois, a preferência do problema não sobrecai unicamente na cor da pele, não, antes ela tem um contingente ainda maior e mais diversificado, mas, que por relações arbitraria e negativamente íntimas, se junta de certo modo à questão racial: a pobreza. Antes da cor da pele a pobreza já é definidora em qualquer parte. É o cosmopolitismo do pobre como salienta Silviano Santiago. Se preto e pobre, tem o currículo infalível para a discriminação e o preconceito encrustados e invariavelmente espalhados pelos quatro cantos do mundo. A ação discriminadora da polícia no Rio de Janeiro que tanto “chocou” pessoas Brasil afora não é senão a ponta do iceberg. Ir preso por estar sem dinheiro é muito menos aviltante do que ser preso por estar com a pele que nasceu. Mas… pois é, a razão está fincada nas duas coisas. Realmente não há como uma situação ser mais aviltante. Fiquei pensando comigo, estivesse eu no Rio, indo para Ipanema, e fosse a dona da sorveteria um PM, os pouco menos de 50 reais que tinha no bolso não seriam motivo de prisão, claro, mas seriam dignos de uns bons tabefes. J.N.Jr.

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A POÉTICA DO OLHAR… “O ser sensível é como um espelho d’água, encrespado ao mais ligeiro vento!” Fayga Ostrower

O termo poesia tem sua origem no vocábulo grego póēisis, derivado do verbo poiéu, que quer dizer “ação de fazer algo, produzir, inventar, criar” (BENDER, 2012, P. 101). Essa palavra foi absorvida pelo latim e transformada em ‘poēsis’-is passando a significar “criação literária em versos” (Idem). O poeta, que também provém do grego poiētés ou poēta em latim é, não apenas o autor, mas executor dessa função criativa, que dá valorosos créditos à poesia. Não é à toa que ele, desde o limiar dessa arte era visto como um ser encantado. Na Grécia Antiga, ele era o escolhido dos deuses, aquele que narrava os mitos e que possuía uma palavra incontestada. Entretanto, quando a filosofia começa a questionar os mitos, e as contradições destes, desmontam o seu caráter inquestionável, a figura do poeta fica ameaçada. Mas a poesia continua a ser exaltada por todos. São vários os filósofos e estudiosos que formularam concepções sobre a poesia, o fazer poético. A concepção mais conhecida, provavelmente seja a de Aristóteles que vê o poeta como imitador, visão ainda hoje cultuada, porém que em um determinado momento não favoreceu o poeta. Basta lembrarmos o episódio descrito em A República, quando se discute que o poeta imitativo deve ser expulso da cidade por representar um perigo à formação da juventude. Essa noção, por muito tempo, foi encarada como real, verdadeira, sobretudo no âmbito acadêmico que prima pelo racional. Embora (simbolicamente) banido da cidade, transformado em poeta maldito, o caráter sublime da poesia conseguiu se manter e o poeta não perdeu a sua capacidade de encantar, de transportar às pessoas para um universo que nem sempre dialoga com o real, mas que neste produz ressonâncias e em mágicos cantos quebram as barreiras que eventualmente os separam, mesmo por que a poesia é isso LIBERDADE: criativa, interpretativa, imaginativa; a realidade redesenhada pelo poeta através de um simples olhar em versos configurado. E, é justamente isso o que encanta nos poetas, o seu constante olhar de estranhamento sobre as coisas. Assim, a xícara na qual dia a dia saboreia o café é sempre a velha xícara, com a mesma funcionalidade, mas face ao seu olhar ingênuo, porém sensivelmente perspicaz, a cada segundo se renova, se transmuta num objeto grandioso, que o pasma, como se jamais houvesse posto os olhos nele. Associado à necessidade de definir o que é poesia, esse olhar de espanto já foi descrito por uma infinidade de poetas e escritores. Rubem Alves o chamou “arte de ver”, opinião comungada pela poetisa Cecília Meireles, essas “pequenas felicidades certas” como coloca, e que, segundo ela “é preciso aprender a olhar, para poder vê-las”, corroborando, mais uma vez, com a ideia de Rubem Alves de que “os poetas ensinam a

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A POÉTICA DO OLHAR…

ver”. O poeta Alberto Caieiro foi ainda mais preciso ao utilizar a metáfora do recémnascido para ilustrar a visão do poeta: E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto, E eu sei dar por isso muito bem... Sei ter o pasmo essencial Que tem uma criança se, ao nascer, Reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento Para a eterna novidade do Mundo...

Esses dois últimos versos sintetizam a relação do poeta com o mundo, com as coisas, bem como a visão que tem deles. Embora essa perspectiva reforce o entendimento da poesia como a arte do “eu”, ela vai de encontro ao conservadorismo crítico, que muitas vezes, desconsiderando tratar-se de uma linguagem do coração, da alma, ataca a poesia nesse aspecto subjetivo, ao passo que busca aplicar a ela uma rigorosidade, sem dúvida, alheia à sua natureza. O poeta e escritor Edgar Allan Poe, no seu ensaio “O princípio poético” é incisivo ao censurar a relação da poesia com a verdade, denominando essa atitude de “heresia do Didático”, e insiste no descompromisso moral da poesia, afirmando o seguinte: “Metemos em nossas cabeças que escrever simplesmente um poema pelo poema e confessar que tal foi o nosso desígnio seria confessar-nos radicalmente carentes da verdadeira dignidade e força poéticas: mas o fato é que, se nos permitíssemos olhar para dentro de nossas próprias almas, descobriríamos imediatamente que ali, sob o sol, nem existe nem pode existir qualquer trabalho mais inteiramente dignificado, mais supremamente nobre, do que este mesmo poema, este poema per si, este poema que é um poema e nada mais, este poema escrito somente por ele mesmo” (SALLES Apud POE, 2004, p. 79).

A crítica de Poe aos teóricos perseguidores da “verdade”, de certa forma nos remete àquilo que outrora disse Quintana: “Quem não compreende um olhar, tampouco compreenderá uma longa explicação!” De fato, as pessoas que questionam, que se ocupam de destrinchar a poesia em busca de uma materialidade que certamente escapa à própria essência dela, é porque desconhecem essa visão estranha do ser sensível, bem como a mágica habilidade de tornar visíveis aos olhos alheios todas essas sutilezas. Essa incompreensão, por vezes leva a questionar: será que os sentidos dos poetas comportam alguma anomalia, ou anormal seria enxergar as coisas, o mundo com a estreiteza de um fabricante de tinteiros cuja utilidade do produto responde pela visão reducionista de quem o produz? Muito ao contrário disso, aos olhos do poeta tudo cintila, se reconfigura, se completa na dinâmica do contínuo reinventar e, portanto, perpétuo renascer, dando aos inúmeros seres, deles amantes, sublime leveza no seu

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A POÉTICA DO OLHAR…

viver. E quem pode compreender a “lógica” disso, senão o próprio poeta que destila em cada piscar de cílios filetes dessa alegria, dessa “eterna novidade” onde a poesia fincou suas raízes? R.T.

REFERÊNCIAS BENDER, Mires Batista. Mário Faustino, lapidador de palavras; in: A escrita criativa: pensar e escrever literatura. Coord. Luís Antônio de Assis Brasil. Orgs. Camila Canali Doval, Camila Gonzatto da Silva, Gabriela Silva. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012. SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. 3ª edição. São P a u l o . FA P E S P. A n n a b l u m e , 2 0 0 4 . D i s p o n í v e l e m : https://books.google.com.br/books?id=Iup6-UEqWxsC&printsec=frontcover&hl=pt-BR. Acesso em:

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Vós que ignoreis… ignorais. Está, no mínimo, insuportável passear por alguma rede social hoje em dia, se incautamente não é possível ignorar os debates cada vez mais arraigados e intensos sobre política, sexualidade, status social. As palavras que ecoam como o piar do Vultur gryphus nos andes entre outras, são: Corrupção! Família! Ostentação!. Infelizmente, a única semelhança com os grandes abutres do novo mundo é: enquanto estes ingerem para o interior dos seus sistemas digestivos, variados tipos de putrefações, aqueles, expelem do interior dos seus sistemas límbicos, a putrefação da ignorância violenta. A ignorância, algumas vezes, soa branda aos ouvidos, tanto que incute um desejo íntimo de instrução, de salvação daquela alma suplicante de entendimento. Raríssimos casos. Na maioria das vezes ela soa atordoante, ofensiva, detestável. Dilacera os ouvidos alheios, incutindo quase sempre um pavor inicial que, quando não se consubstancia em piedade legítima, legitima um ódio impiedoso. Por quê? Por que a ignorância tem origem e tem motivos. E por que ela é variavelmente compreendida. Não é por acaso a semelhança e a sutil diferença do pensamento desses dois grandes escritores franceses sobre o assunto. Balzac, numa de suas Scènes da vida parisiense que compõe a Comédia Humana, lança a seguinte ideia: “A ignorância é a mãe de todos os crimes. Um crime, antes de tudo, é uma falta de raciocínio”, faz isso ao descrever um dos bairros do conto “A Prima Bette”. Não é uma ideia de todo original, é antes, uma adaptação do que disse Rabelais em 1564 no seu Le Cinquième Livre, por meio de uma de suas personagens que viajavam com Pantagruel e a noite acordava todos para beber, ‟Foi ele quem primeiro bebeu e disse : - Vós os do outro mundo dizeis que a ignorância é a mãe de todos os males, e isso é verdade ; contudo não a banis de vossos entendimentos, e viveis nela, com ela e por ela”. Rabelais constrói aqui a representação justa do pardieiro da ignorância que cresce na nossa sociedade atual. Não a ignorância inocente que exige piedade e ajuda, não a ignorância da falta quase total de conhecimento, não a ignorância afetada dos caducos, mas a ignorância torpe dos ignóbeis, a ignorância dos que não dispõe de um conhecimento vasto, mas que o possuem em alguma medida, porém, obtuso, invertido, transformado. O ignorante orgulhoso de sua ignorância, que vive nela, com ela e por ela. Seria isso, portanto, a abordagem inicial, a sugestão que nos é dada pela observação banal e cotidiana merecidamente reverte pensamentos como esses, senão semelhantes. Como disse, a ignorância em si, não irrita, não fere, mais facilmente, causa piedade, coisa que não se pode dizer do orgulho da ignorância. Este só não o é mais sofrível (na maioria das vezes) para os outros como para o próprio e ingênuo orgulhoso (embora certa essa ideia não é apaziguadora). Tem-se portanto uma nova reviravolta e, com alguma paciência e exercícios de respiração, a piedade retorna,

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VÓS QUE IGNOREIS...IGNORAIS.

ainda que de sobreaviso, pois: o ignorante, é um cego. Mas não, e propriamente, não qualquer tipo de cego. A cegueira, tal como a denominamos costumeiramente é uma enfermidade dos olhos. A incapacidade da visão enquanto instrumento, enquanto afetação de um dos nossos principais sentidos, enquanto interferência física da relação do homem com o mundo. Obviamente não é a esse tipo de cegueira que aproximei a ignorância. Mas aquela semelhante à de Saulo ao levantar-se da terra, que “apertis oculis nihil videbat”¹. Essa passagem da bíblia é ambígua, como grande parte das suas referências à cegueira. A ambiguidade nos será portanto bastante útil para entender essa forma particular de “não enxergar”. Em Jo 9:39 disse Jesus: “ego in hunc mundum veni, ut qui non vident, videant: et qui vident, caeci fiant”². Mais uma ambiguidade pertinente, pois é bastante simples entender o mérito de fazer enxergar aos cegos, mas, que dizer de fazer cegos os que veem? Ora, evidente que ele fala ao mesmo tempo de duas cegueiras distintas. Essa distinção está explicita na concepção arraigada historicamente que temos da relação entre luz e entendimento, cegueira e ignorância. A metáfora é a mesma. Jesus não falava somente sobre uma medicina mágica de curar os olhos dos cegos, mas de levar o entendimento cristão, aos descrentes, aos cegos “dessa luz”. Fica evidente a dicotomia que gera ambiguidade proposital na bíblia quanto à cegueira, fica evidente a pertinência de trazer, essa reflexão sobre a ignorância, da bíblia. Antônio Vieira, no magistral Sermão da Quinta Quarta-Feira da Quaresma nos remete mais uma vez àquela dificuldade primordial que tanto irrita e que tanto dificulta a convivência no mundo atual, segundo Vieira, “O cego que hoje viu Cristo, padecia uma só cegueira: os cegos que nós havemos de ver, sendo as suas cegueiras muitas, não as padecem, antes as gozam e amam: vivem delas, delas se alimentam, por elas morrem e com elas.”(VIEIRA, p.178, 2014)³, Não há relação mais aparente, em si a ignorância é relevante, mas não tem um preceito destrutivo ou ofensivo, os seus sucedâneos morais dentro do comportamento humano sim e estes nos afetam drasticamente. A dificuldade em conviver com a ignorância que está em nós e que nos rodeia não é senão esta, e visivelmente não é pequena; só sendo santo para aceitá-la com cordialidade. Não sendo santo e fazendo uma interpretação literária da bíblia, como aqui se faz, as dificuldades se multiplicam e mesmo a esperança numa redenção benfeitora e pacífica parece distante. No entanto, mais uma vez Vieira nos acode, apontando para um facilitador dessa enroscada questão. Ao separar os três piores tipos de “cegueira dos que veem” ele nos diz que a pior é do que não vê a própria cegueira, do que a ignora. “O cego que conhece a sua cegueira não é de todo cego, porque, quando menos, vê o que lhe falta: o último extremo da cegueira é padecê-la e não a conhecer”(Idem, p.192). É um ponto crucial para poder com-viver com a ignorância: não ser o pior cego, enxergar pelo menos a própria cegueira. Quem sabe esse seja uma forma possível de lidar com o fato. A ignorância exaspera, e precisamos não ser imunes à nossa. Não cometer o mesmo erro criticado é ou deveria ser o primeiro passo de quem critica. O problema se mostra como a solução. É principalmente a observância do

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VÓS QUE IGNOREIS...IGNORAIS.

padecimento dessa cegueira-mor juntamente ao orgulho blasé do cego, o que mais afeta nossa ira, o que mais fere nossa razão. Não padecer do mesmo mal é o nosso cuidado. Avulta-se então o conhecimento da própria ignorância, nós, os sabedores desse fato desagradável teríamos uma menor facilidade de orgulhar-nos do que não se chega a termo sem dificuldade, como esse saber. Temos ainda outras questões que nos parecem demasiado contraditórias para respostas objetivas, estas, obscuram o ornamento lógico das respostas. Por que saber, conhecer algo, é motivo de vergonha imposta? Até onde (e como sucedâneo direto) e com que graça, a ignorância é preferível à probidade intelectual? A pedra de toque não mais afia, está afiada. A convivência, o diálogo e as noções impostas democraticamente passam a largo pelo orgulho ignorante. A saber, dizem que por vista grossa. Por algum tipo de força enternecida historicamente estamos mais propensos à piedade que ao combate. Qual mais honesto, válido, rigoroso? Santos ou combatentes, a escolha é vossa.

J.N.Jr.

NOTAS ¹ At 9:8 [abrindo os olhos, não via ninguém] ² [eu vim a este mundo para... que os que não veem vejam e os que veem sejam cegos] ³ VIEIRA, Antônio. Sermões, tomo II. - São Paulo: Hedra, 2014.

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OLEITOROLEITOROLEITOR

Notas sobre literatura A literatura como reflexão tem as vantagens de não se circunscrever a regras metodológicas, não necessitar de estagiários ou recursos de financiamento, nem precisa de aval de comunidades de cientistas profissionais. É nesse aspecto, uma forma independente de reflexão e interpretação do mundo acessível a subalternos e uma forma de encontrar com visões de mundo e versões da história que não são aceitas pelo mainstream das ciências humanas. Ela também antecipa objetos de estudo. História é tanto o conhecimento sobre o devir do ser humano no tempo quanto o conhecimento sobre como se enxerga – através de conceitos, paisagens imaginárias e visões de mundo. Daí que todas as narrativas históricas são ambíguas porque expressam uma visão de mundo sobre um determinado acontecimento, período e seus atores, como também obedecem a uma estrutura de texto que encadeia os fatos, estrutura o real desaparecido no campo da imaginação e da abstração – o laboratório dos historiadores segundo Marx. Enquanto os cronistas, viajantes e missionários são valorizados como testemunhas objetivas, os romancistas são levados em um segundo nível, como se não fossem dotados da objetividade necessária. Martius é mais aceito como fonte histórica do que Machado de Assis. Em verdade, pode se tratar do oposto. Sua ficção se aprofunda nas relações sociais, investiga as causalidades dos processos e busca a representação da totalidade da sociedade, ou ao menos do panorama ou do que o autor considera importante. Tem mais embasamento do que as descrições de estrangeiros em determinados aspectos. A história da literatura busca a literatura como reflexo do real, ao mesmo tempo em que ela fixa o tempo e o passado em um produto que substitui o próprio movimento do real e inspira, justifica, legitima e condena determinadas ações dos sujeitos. Logo, o movimento do real é influenciado pelas representações que a literatura faz dele. A literatura deve se entender como práxis porque é reflexão sobre as questões do tempo. Toda tese de modernização e progresso é irmã da tese do congelamento do tempo. Para criar o herói do progresso, o mito do pioneiro, é preciso esvaziar o cenário de historicidade, de processo, fixando-o num tempo imemorial da tradição e mesmo naturalizando o espaço e animalizando o homem que lá vive de modo a instaurar o vazio, a tábula rasa da natureza na qual o homem civilizado implanta a sociedade. Só assim o pioneiro triunfa. Ao contrario, frente a uma sociedade dinâmica e mutante e a uma cultura complexa, o pioneiro se transforma em genocida, assassino em massa. A verdade está mais próxima do meio e as sociedades coloniais são tragédias de barbárie e

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NOTAS SOBRE LITERATURA

narrativas de progresso, mas também são fusão de culturas e sociedades. A literatura do progresso é utópica quando enfatiza o que pode ser e busca o potencial e futuro, em geral entendendo que técnica, instrução formal e acumulação de capital são o limiar do avanço humano. A literatura crítica ao progresso pode ser do 1) tipo romântico e saudosista e enfatizar o que foi, em especial quando trata da memória das elites decadentes, ou pode ser do 2) tipo antimoderna e anticapitalista ao narrar as contradições do processo e dar ênfase ao real como ele é, gerando antíteses, não projetos. Essa força do romance – mas também do cinema, das HQs e da televisão – na instauração da verdade, tendo a ciência como uma trincheira de retaguarda transferiram para o campo da cultura boa parte das lutas ideológicas contemporâneas. Não é à toa que os intelectuais engajados da contemporaneidade não são historiadores ou filósofos, mas críticos da literatura e da cultura, embora as fronteiras estejam cada vez mais indefinidas. Said, Spivak, Hall, Bhabha, Jameson, Williams e outros expoentes da crítica contemporânea. A teoria cultural começou a criticar a televisão, a literatura não-canônica porque procurava dialogar com o proletariado do ensino noturno e da formação política; levar a academia à universidade. Após as derrotas históricas da esquerda, ela faz o contrário, leva a cultura de massas para a universidade, esvaziando o conteúdo histórico. A ficção tem a fragilidade de sua subjetividade, sua independência frente a provas empíricas, à verossimilhança, a desvantagem de ter a opção do imaginário. Essa fragilidade ocorre em relação ao discurso científico, aquele que Bourdieu usa para falar em poder simbólico, visto que o discurso científico se apresenta como neutro, isento de interesses. Todavia, se levarmos em conta que a ficção tem a vantagem da emoção e que a fé, como lembra Gramsci, é elemento central na convicção, o romancista possui mais verdade que o técnico. O romancista é central na produção da identidade cultural de um território e supera nisso o técnico e o cientista, quando fala a verdade sobre o lugar. Nesse sentido, para o indivíduo, o romancista regional é mais importante do que o universal, pois ele fala de si em sua particularidade, enquanto o universal, no máximo, fala do para si na generalidade. Somente o memorialista, o historiador local, que alia provas e afetividade familiar e territorial, supera o romancista ao falar a verdade sobre o lugar. De acordo com Valter Soares, é recente o período em que a história e a literatura tem fronteiras bem definidas, notadamente a história social inglesa tem a influencia dos escritores realistas do cotidiano do século XIX – interesse que Marx, em O Capital, citava Balzac, enquanto Pikkety, em O Capital no século XXI, cita Balzac e Austen. No século XIX, em decorrência do avanço do Iluminismo e do Positivismo é que a história sofreu ondas cientificizantes de modo a se apartar dos escritores. Com Braudel é que o divórcio se consolidou: a história explicaria as estruturas e

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NOTAS SOBRE LITERATURA

narrar ficaria com os literatos. O cultural não pode ser separado do econômico. Ambos estão entrelaçados e foram dissociados pela divisão intelectual do trabalho e pelo lócus estratégico da crítica marxista da economia política na luta ideológica da guerra fria. Porém, por mais exasperadoras que tenham sido as polêmicas, é reducionista entender a economia sem a cultura e a cultura sem a economia. O determinismo genético, cultural, geográfico, o atavismo a qualquer tipo humano como imanente ao meio terminam por desumanizar o homem, por roubar a condição humana do sujeito. Não se trata de pensar o homem enquanto o autor da história ao seu gosto e modo, mas como ser que reage e escolhe, embora não nas condições por ele escolhidas, nem obtendo os resultados almejados. A dificuldade de edição para os poetas e profetas das margens pode ser interpretada como uma exclusão social e regional, produto de uma subalternização estrutural. Eles publicam pouco e são pouco reconhecidos porque são marginais. O discurso que atribui a essa classificação um complexo de vítima precisará responder porque tanto lixo editorial é produzido nos centros, mas não nas periferias, porque aí simplesmente (quase) não se produz. Flávio Dantas Martins

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OLEITOROLEITOROLEITOR Breve itinerário da Fotografia e sua relação com a Cidade Embora a invenção da fotografia seja atribuída ao francês Louis Jacques Mandé Daguerre, não se pode considerá-la como criação de uma única pessoa, afinal ela é fruto da acumulação de inúmeros avanços técnicos e científicos que remontam às tentativas de aperfeiçoamento da câmara escura¹ pelos renascentistas. Segundo Walter Benjamin “vários pesquisadores, trabalhando independentemente, visavam o mesmo objetivo: fixar as imagens da câmera obscura, que eram conhecidas pelo menos desde Leonardo”². Portanto, desde o inicio do século XIX esses sujeitos estão determinados a fixar a imagem de um objeto ou paisagem num plano unidimensional. Joseph Nicéphore Niépce, trabalhando em colaboração por correspondência com Daguerre, consegue fixar uma paisagem urbana numa placa de estanho sensibilizada quimicamente em 1826, batizando o processo de “heliografia”. Em seguida, Daguerre também consegue a façanha, a qual nomeia “diorama”. Com a morte de Niepce, Daguerre aperfeiçoa o processo e o patenteia com o nome de Daguerreotipo. No Brasil, atua quase que anonimamente outro pioneiro da fotografia, Antoine Hercules Romuald Florence - ou simplesmente Hercules Florence, um francês que se radicou e constituiu família em São Paulo. As pesquisas realizadas pelo historiador e jornalista Boris Kossoy durante a década de 1970 apontam que o pesquisador francobrasileiro conseguiu fixar uma imagem em 1832, antes de Daguerre e com método tecnicamente superior, tendo sido a palavra “photographie”, que sobrevive até os nossos dias, criada por Florence para batizar sua descoberta. Os estudos de Kossoy que levaram ao reconhecimento internacional de Hercules Frorence estão organizados no livro "1833: a Descoberta Isolada da Fotografia no Brasil", publicado em 1980 pela editora “Duas Cidades”. A prática de fotografar os espaços urbanos nasce concomitante à própria fotografia. Esta técnica revolucionária surgida no bojo das transformações tecnológicas da segunda Revolução Industrial, em meados do século XIX, é também contemporânea das primeiras transformações urbanísticas sofridas pelas grandes cidades europeias atingidas por essa industrialização. Assim que aceita pela comunidade científica, a fotografia é logo mobilizada a prestar contas aos diversos ramos da ciência, muito mais que a arte, portanto, as primeiras fotografias do espaço urbano possuem claramente uma finalidade de documentação e registro, mais que propriamente uma intenção artística. A partir da segunda metade do século XIX muitos fotógrafos trabalham contratados por gestores públicos no registro das ruas antes, durante e após as intervenções, prática muito utilizada até os dias de hoje como promoção e propaganda política no registro das mudanças com relação a gestões anteriores, mudanças geralmente inscritas como sinônimo de “progresso”. Segundo a

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BREVE INTINERÁRIO DA FOTOGRAFIA E SUA RELAÇÃO COM A CIDADE

pesquisadora Anne de Mondenard³, o fotografo francês Henri Le Secq em 1852, já realiza os primeiros registros da demolição dos bairros medievais de Paris. Isso não significa que correntes partidárias a um uso artístico da fotografia não tenha existido, elas tem seu momento de atuação, no entanto com uma expressividade mais tímida. Na Europa do fim do século XIX, tem relevo uma vertente pictorialista que se posiciona radicalmente contra o uso documental e científico da fotografia, cerram fileiras nesse segmento especialmente os velhos pintores puristas, que veem na fotografia um grande auxilio para o seu labor artístico. Para além dos clássicos temas paisagísticos campestres, alguns expoentes dessa corrente como o inglês Alvin Langdon procuram explorar também algumas ambiências urbanas, como efeitos de luz, sombra e fumaça nas ruas. A implantação da eletricidade nas grandes metrópoles amplia o campo das experiências estéticas para esses fotógrafos experimentalistas, para os quais a cidade se torna um imenso laboratório. As inquietações que movem os primeiros fotógrafos de rua em suas deambulações estéticas não diferem muito das questões que inspiram escritores das mais variadas matizes literárias e movimentos artísticos a produzir textos e poemas que tem como palco a cidade moderna emergente no século XIX, aliás, em grande parte dessa produção a cidade encarna o próprio agente central da trama, personagem e palco de si mesma, especialmente nas fotografias. Ambas as categorias estavam interessados numa exploração seguida de uma exposição das ambiências urbanas então existentes, porém desconhecidas de grande parte da população citadina, como se a preocupação desses artistas estivesse centrada em apresentar aos habitantes da urbe a própria cidade em que vivem, desconhecida de muitos, especialmente seus espaços marginalizados, a que certos setores da sociedade jamais se ariscam a conhecer de outra maneira. Não atoa, tais produções parecem estar marcadas por um forte signo de denúncia social, ou ganham essa interpretação num momento posterior, em leituras praticadas “a contrapelo”. É claro que inúmeros fotógrafos fazem esse tipo de registro por razões outras, alguns movidos pela admiração a um novo modelo de cidade que emerge, com seus monumentos espetaculares, altos edifícios e largas avenidas; outros, na margem oposta, são impelidos por um forte sentimento de saudosismo com o velho mundo urbano que se desmaterializa, e buscam imortaliza-lo através da unidimensionalidade do plano fotográfico. O que ambas as vertentes de fotógrafos possuem em comum é uma aguçada sensibilidade com relação às transformações de seu tempo, uma delicada capacidade de leitura do seu presente, observáveis no vasto número de registros e álbuns fotográficos produzidos entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do XX, os quais se debruçam sobre as cidades ainda medievais e coloniais que sofrem processos irreversíveis de “adaptação” aos novos ditames da sociedade industrial, são cidades que morrem para que nasçam metrópoles, produtos urbanos dessa ascendente industrialização. Os primeiros livros de fotografia surgem na segunda metade do século XIX, tendo como tema justamente a vida nas ruas da emergente cidade moderna industrial. Eugène Atget, William Klein, John Thomson, Charles Marville, Jacob Riis e Max Missmann são alguns dos principais nomes dessa geração de fotógrafos precursores que atuam em grandes

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BREVE INTINERÁRIO DA FOTOGRAFIA E SUA RELAÇÃO COM A CIDADE

metrópoles como Paris, Nova York, e Londres. Outras cidades que se metropolizavam no período como Manchester e Berlim também são alvos de objetivas que devassavam os espaços dos abandonados bairros pobres proletarizados, nas mais adversas condições de salubridade. Muitos desses registros tornam-se compilações no formato de álbum fotográfico ou livro de fotografias, geralmente acompanhados de textos dos próprios fotógrafos ou de amigos escritores, jornalistas, urbanistas etc., é o caso do pioneiro “Street Life in London”, do fotografo inglês John Thomson em parceria com o jornalista Adolf Smith, onde a dupla apresenta um quadro cruel da pobreza londrina, esse tipo de colaboração entre jornalistas e fotógrafos se populariza no século XX, através do fotojornalismo. É importante que se ressalte o caráter heroico das incursões fotográficas protagonizadas por essas primeiras gerações de fotógrafos de rua. O avanço voraz da técnica contemporânea nos faz passar despercebidos pela sua indispensável historicização, e consequentemente, não damos a importância devida à questão das inúmeras dificuldades enfrentadas por esses sujeitos, especialmente no tocante a sua locomoção. Os primeiros daguerreotipos são muito pesados, sua locomoção geralmente é feita através de transporte, muitas vezes carruagens puxadas por cavalos, e exigem uma verdadeira montagem e desmontagem em cada cenário fotografado, sem contar o longo tempo de espera pelo registro. Agora imaginemos esse processo aplicado a condições ou espaços adversos, a exemplo de ruinas medievais ou bairros proletários entrecortados por estreitas vielas intransitáveis para qualquer veículo, onde todo o material teria que ser transportado à mão. Não atoa, o trabalho do fotografo no período exigia um ajudante, para auxiliar em toda essa logística que o registro fotográfico demandava. Na obra nova-iorquina “How The Other Half Lives”, encontramos textos do próprio autor, Jacob Riis, que apresenta a cidade pobre e marginalizada aos demais citadinos que praticamente a desconhecem, especialmente os que compõem a burguesia. Há também os casos em que tais fotografias ilustraram produções acadêmicas e literárias de escritores, urbanistas, arquitetos, historiadores etc., as imagens de Atget e Brassai, por exemplo, são encontradas em livros das mais diversas áreas do conhecimento. Alguns desses fotógrafos, ainda no século XIX, já buscam apresentar novas visões e perspectivas da cidade moderna, a exemplo de Félix Nadar que produziu registros espetaculares de Paris do alto de um balão, e que não satisfeito partiu para os esgotos da capital francesa, apresentando aos parisienses a parte subterrânea e invisível da cidade4. Dentre todos os fotógrafos do século XIX aqui citados, certamente o que mais se destaca é Eugène Atget, muito embora o reconhecimento não o tenha alcançado em vida. Enquanto a Paris moderna dos bulevares hausmanianos fervilha ao ritmo acelerado dos bondes e automóveis, este debilitado francês de meia idade arrastava sua pesada parafernália fotográfica pelos bairros e ruas mais antigas e deterioradas da cidade, em outras palavras, por suas ruínas medievais com sentença de demolição garantida. Talvez possamos situar Atget naquela vertente de fotógrafos europeus movidos por um forte sentimento de nostalgia com relação ao velho mundo urbano pré-industrial, uma vez que existe uma cidade moderna que é intencionalmente excluída de seus recortes. Diferentemente de Marville, seu trabalho não é

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BREVE INTINERÁRIO DA FOTOGRAFIA E SUA RELAÇÃO COM A CIDADE

encomendado e é integralmente voltado para a cidade antiga que ainda suspira nas margens distantes do centro, passava o dia “a perambular metodicamente por ruas desertas, esquecidas, bairros distantes, antigos prédios, adentrando-os para devassar sua intimidade e fotografar mobiliários mais antigos ainda”5. Atget exerce grande influência em um conterrâneo chamado Pierre Verger, que atua nos anos 1940 em uma velha cidade brasileira chamada Salvador, popularizada na literatura Amadiana como “Cidade da Bahia”.

Marcelo N. Rocha NOTAS ¹ A Câmara Escura foi uma espécie de precursora da fotografia, que consiste numa caixa composta por paredes opacas, que possui um orifício em um dos lados, e na parede paralela a este orifício, uma superfície fotossensível é colocada. ² BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas vol. 1. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. Editora Brasiliense, 1987, 3º edição. ³ MONDENARD, Anne de. A Emergência de um Novo Olhar Urbano Sobre a Cidade: As Fotografias Urbanas de 1870 a 1918. Tradução: Eveline B. Kavakama. Proj. História, São Paulo, 1999. 4

DRUMMOND, Washington Luis Lima. Retratos da Bahia e Centro Histórico de Salvador (1946 a 1952) – uma cidade surrealista nos trópicos. UFBA, Faculdade de Arquitetura – PPGAU. Salvador, 2009.

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ANDRADE, Mário de. Prefácio Interessantíssimo. In. Poesias Completas. - São Paulo. Círculo do Livro, 1976. p.19.

RESENHA O Prefácio Interessantíssimo de Mário de Andrade se resumiria facilmente numa palavra: ironia. Começa pela ideia de fundar, na segunda expressão do seu texto uma escola literária – o desvairismo – para acabar com ela no final do texto na promessa de fundar outra em livro próximo. É um prefácio que pela própria natureza seria de outra “conta” que não literária – se remete à literatura, antecipa-a, fala dela. É um prefácio do seu livro sendo dele mesmo parte, já que não pertence ao gênero que ironicamente nomeia. O autor cria este prefácio para definir algumas concepções estéticas, as quais, concebe ele, são as suas e as que norteiam sua escrita subjetivamente, já que ao final ele dirá “Quando escrevi Paulicéia Desvairada” não pensei em nada disto”, ou seja, é uma visão crítica posterior que, aliás, não poderia deixar de ser já que para o autor, o impulso criador não deve ser arremetido, pausado, controlado sob nenhuma hipótese. “quando sinto a impulsão lírica, escrevo sem pensar tudo o que o meu inconsciente grita” (ANDRADE, p. 19, 1976)

Este será o seu principal mote, retornará a ele durante todo o texto, intercaladas entre exemplos e citações, as afirmações sobre o modo de escrever (criar) sobre a força da inspiração aparecem frequentemente. O contato com as bases estéticas do modernismo acontece dentro desse mesmo “mote lírico”, “Acredito que o lirismo, nascido no subconsciente, acrisolado num pensamento claro ou confuso, cria frases que são versos inteiros, sem prejuízo de medir tantas sílabas, com acentuação determinada.” (ANDRADE, p. 23, 1976)

É o modo de interagir com o impulso criador que é reclamado pelo poeta, não se deve barrar, frear esse movimento subjetivo. A inspiração é fugaz, violenta. Qualquer impecilho a perturba e mesmo emudece. Arte, que, somada a Lirismo, dá Poesia, não consiste em prejudicar a doida carreira do estado lírico para avisa-lo das pedras e cercas de arame do caminho. Deixe que tropece, caia e se fira. (Idem)

Essa é a base, explicada pelos entremeios. Há também as explicações, os motivos do autor no ato de explicar-se, “Não acho mais graça nenhuma nisso da gente submeter as comoções.” (Idem, p. 26) Dentro de um estado estético de novidade, é em defesa dessa novidade que o autor continuará teorizando sobre o “impulso lírico” que “clama dentro de nós como turba enfuriada” (Idem, p. 27). Sendo de uma renovação da poética que ele fala e defende, como sepultar a melodia e descobrir, como na musica,

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COMENTÁRIO - PREFÁCIO INTERESSANTÍSSIMO

em poesia o valor da harmonia?, ora (responde o poeta) fazendo com “que se sigam palavras sem ligação imediata entre si: estas palavras, pelo fato mesmo de não seguirem intelectual, gramaticalmente, se sobrepõem umas às outras, para nossa sensação, formando, não mais melodias, mas harmonias.” (Ibidem, p. 29)

Temos até aí uma teoria nascente, mas, cercada de exemplos, a entendamos pelo mais didático: Si pronuncio "Arroubos", como não faz parte de frase (melodia), a palavra chama atenção para seu insulamento e fica vibrando, à espera duma frase que lhe faço adquirir significado e que não vem. (Idem)

Segundo o poeta, na falta da palavra ou frase posterior que comumente não só dá significado como conclui a melodia da poesia “velha”, é exatamente a espera dessa conclusão que não chegará a termo “na poesia nova” que faz a palavra ansiosa, arder, vibrar, consumir-se em sua incompletude dando harmonia ao poema. Posteriormente ele argumentará em favor do desejo de dissonância do homem como também da forma de apreensão da obra de arte de um modo geral, citando inclusive a pintura e a escultura para dizer que esse sequencialismo, essa completude advindas do costume de frear o impulso lírico, é incompatível com a compreensão das artes “que nunca é imediata” e que “coordenamos (em) atos de memória consecutivos, que assimilamos num todo final” (Idem p.31) e por isso não necessita do encadeamento progressivo e clássico. A ironia perdura até o fim e encontra seu clímax no final do prefácio. Nesse momento que o leitor, provavelmente, já se convenceu do desvairismo (que seria a escola à qual o livro pertenceria), pela força enunciativa, pela argumentação e pela própria afetação do autor que conclui a teoria dizendo que não pensou em nada disso ao escrever o livro, (isso seria emperrar o impulso criador), que ele, ao contrário, chorou, cantou, riu, berrou. Diz ele que quem assim se sentir, entenderá. O autor termina a teoria como se brincasse, se redime da própria argumentação em defesa da própria obra e liberta o leitor pois, uma escola, seria “Uma imbecilidade de muitos para a vaidade de um só.” (Idem p.38). A ironia abre e fecha a texto. J.N.Jr.

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O PRÉOPRÉOPRÉOPRÉOPRÉOPRÉOPRÉ UM DRAMA DESUMANO Nas últimas semanas os olhos do mundo tem se voltado para o comovente drama, protagonizado pelos milhares de homens, mulheres e crianças – vítimas da guerra civil na Síria. Pessoas, que, movidas pelo instinto de sobrevivência, se submetem diariamente a perigosas travessias, buscando através das fronteiras alcançar outros países onde possam se exilar. É curioso que esse conflito, que já se arrasta há mais de quatro anos, só agora tenha chamado a atenção do mundo. Isso, em tese, se deve ao histórico de guerras e violências tão comuns no Oriente Médio, mas, principalmente, ao destino dos refugiados. A princípio, em escala maior, eles buscavam os países vizinhos, como Líbano, Jordânia e Túrquia. Ao passo que hoje, se deslocam para os países ricos da Europa, que estão sempre em foco, em evidência. Além disso, a violência, sobretudo no interior da Síria, onde os ataques são mais veementes, torna inviável a vida naquele país, acelerando o fluxo de pessoas em torno das fronteiras. A situação é crítica, conforme mostram as estatísticas, já são milhões de mortos e desabrigados em fuga ou vivendo em condições sub-humanas nos campos para refugiados. É com base nesse gigantesco contingente, que a ONU classifica essa tragédia como a “maior crise humanitária já vista desde a Segunda Guerra Mundial”. De fato, o horror, o drama que essas pessoas estão vivendo é tocante, daí ter atraído a atenção de ativistas, entidades políticas e religiosas, como o próprio Papa Francisco, que essa semana apelou para que as paróquias acolhessem algumas dessas famílias. Muitos países estão acolhendo esses “peregrinos”. No entanto, alguns deles tem sido alvo de críticas por não os assistirem da maneira devida. Talvez, como creem os grupos humanitários, eles não estejam sendo tratados com a dignidade e o respeito que são devidos a todo ser humano. Por outro lado, estamos falando de um verdadeiro “caos” e, ninguém está preparado para lidar coerentemente com ele. É pensando nisso, mas sobretudo em não haver a mais remota possibilidade de término dessa guerra, que os grupos humanitários, entidades não governamentais, ativistas e suas próprias vítimas cobram das lideranças políticas mundiais ações de intervenção. Com efeito, não se pode negligenciar uma realidade tão brutal, é preciso buscar atenuantes, e o primeiro passo certamente é acolher essas pessoas e mantê-las com dignidade, afinal não se trata meramente de uma questão política ou ideológica, mas de uma questão HUMANA.

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NUANÇES Pinta-se a poesia Como a mais sublime das artes Ponte onde se enlaçam A crueza do humano e a pureza do divino Subentende-se, assim, Que essa arte secular, Contempla o obscuro. Calcada em belas palavras, Sofisticadas rimas e imagens, A poesia esconde seu gosto à carnificina. Quantos seres mortalmente feridos, Com a alma em sangue a esvair Deixaram, pela janela que a dor abriu, A poesia entrar… Da sua carne se alimentar…. E, ali mesmo, em cantos floridos repousar? R.T.

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Insone (1) A noite escoa pelo dorso manso do espaço, o espaço cobre minha fibra insone, o sono esquece do meu eu e minto para a lembrança que o traga, atento. Invento a morte, essa companheira fiel, para a tragicidade simples de um evento enfático. Nego a resposta, ferro e fogo, da sua apatia, do seu silêncio impossível e degradante, e necessário e perfeito. Acalanto para quem não dorme é a morte e sua certeza infalível. A certeza do dia vindouro é a cena banal e irresponsável do dia, do sol, da luz, presente nessa escuridão falsa, repentina e passageira que..... por hora, e sempre, repousa ao meu lado. J.N.Jr. 23


Quid pro Quo Não me lembro bem como me encontrava ali, parecia que o tempo silenciosamente havia cessado o trabalho na minha memória, não sei exatamente quanto dela ou de tempo? Não sei. Estava neste momento erguido fora de casa, o sol brilhava demais… o verde das folhas, tudo muito vivo, exagerado, ou era a mim e meus olhos que mais facilmente ficamos afetados. A terra tinha uma textura grotesca, áspera, seca. Eu temia profundamente ter que me abaixar ou cair e tocá-la. No entanto, o dia estava belo e simples. Independente de mim. Alguém sai da casa pela porta dos fundos em movimentos rápidos. Olha para a esquerda, para a direita, eu mais ao fundo aperto os olhos tentando me recordar onde dormi, como levantei, bebi água? Dei alguns passos vacilantes para trás, cambaleei, adiantei-me a uma galha de coco que pendia semi-arrancada. Adiante, me falaram: - Vamo lá no riacho tomar uma?… Assenti automaticamente sem ter por isso e descemos logo após recolher algumas coisas: bebida, copo, cigarro. Atrás de uma armação velha de madeira coberta de palha em cima do “girau” havia um caminho entre tufos grandes de capim secos. Eu ia atrás sem pensar em nada, só ouvindo os sons dos meu pés tocando a terra e o impacto remissivo do caminhar. Minhas lembranças continuavam embaralhadas. Saltamos uma cerca, passamos por um caminho que cortava o riacho entre algumas juremas-pretas, um galho riscou no meu ombro que voltei ao som clássico da carne rasgando. - Sai minha puta!, gritei ao puxar o galho de jurema no sentido contrário. Chegamos na outra volta do riacho, perto das pontas dos galhos do Tamborio. Seco, só se distinguia o riacho pelo liso de umas pedras protuberantes. Sentamos creio que conversando, e ao sentar percebi o quanto minhas costas exigiam pela horizontal. - Tu trouxe limão? - Não. - Pôrra, nem eu, pensei que tava na sacola… vou lá buscar. Eu me firmei deitado desconfortavelmente sobre umas raízes tentando recobrar o que quer que fosse da noite passada. Alguma coisa flutuava na minha memória, eu porém não a conseguia reter. Me esforçava, repuxava a lembrança, elástico maldito. Nada. Decerto que sofria, sofria de um malestar visceral, uma agonia mental também me atormentava embora não soubesse precisar qual dos sentimentos era decorrência do outro. Não fosse o mundo parecer o mesmo, o céu azul, o vento fresco, as árvores e todo o resto, diria eu que habitava a própria geografia do inferno. /o azul do céu parecia negro. O frescor do vento era acre e denso. As árvores eram espectros de

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QUID PRO QUO

verdemarrom que faziam um vudu de galhos balouçantes ao meu redor. Se na natureza há o toque das mãos de deus, minha sensação fazia de deus o próprio cavalo de Átila. Sentia uns estremecimentos que me transcendiam e ao olhar, via toda a terra desentoando na mesma tremura a partir de mim. Um gosto de vento ao contrário fazia da minha boca um palmo elíptico e sanguíneo do saara. Meus dedos se contorciam em espasmos tamborilantes como se tocassem o batuque de todas as misérias arrítmicas. Estava desaprendendo a respirar, sentia como se me afogasse numa mistura de oxigênio perdido e ignorância cognitiva. Tentei correr para alcançar a respiração que fugia por baixo das raizes mas não sabia mais me postar na vertical. Tentei me desesperar, no entanto as ideias zuniam e confundiam-se co próprio desvanecer caótico, não sabia como proceder ao desespero. Fragmentos acelerados de agonia voavam num transe acelerado pelos meus ouvidos ultra-sensíveis. Eu era a representação mecânica da involuntariedade e sentia, e auscultava o sangue bolinando dentro de minhas artérias como fileiras intermináveis de bolas de gude acesas. Passos… Alguém diz: - E aí, bora? - Bora, coloca uma aí pra mim, sem limão por favor. J.N.Jr.

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IRONI@S

J.N.Jr.

Ironia XLI: "O aparato, fino trato da mão. Ampara o traço, que no espaço desenha o retrato do não." Ironia XLII: O ignorante orgulhoso tem o cérebro de boneca russa: um oco dentro do outro. Ironia XLIII: A persistência do homem sobre a terra prova alguma dessas conjecturas: Não há vida alienígena inteligente, ou, há vida inteligente alienígena ordeira, pacífica e esnobe, ou, há vida não-inteligente alienígena. Ironia XLIV: A N.A.S.A. anunciou a descoberta de água em Marte coincidentemente dias antes do lançamento do blockbuster hollywoodiano mundial «Perdido em Marte». Fica a questão: antes do lançamento de Sin City ano passado onde estava a N.A.S.A. que não anunciou a descoberta de como clonar Eva Green? Ironia XLV - Até ontem eu temia pela música brasileira. A separação de Joelma e Chimbinha fez raiarem novas esperanças. Ironia XLVI - Até ontem eu temia pela condição humana (Arendt, parceria..). Depois da terceira dose e do silenciar das vozes, a quarta é a prioridade. Ironia XLVII: Até ontem eu temia pelo mercado editorial brasileiro. Mas o lançamento da nova pseudo-filosofia do Padre Fábio me deu fôlego para esperar a reedição das obras de Kierkegaard. Ironia XLVIII: Até ontem eu temia pelos interesses culturais dos jovens. Mas passei pela praça observando e... bom, só chorei mesmo. Ironia XLIX: Até ontem eu temia pela duração dessa nova onda evangélica no Brasil. Mas percebi que vou morrer antes do retorno de Sebastião. Aleluia. Ironia L: Guia politicamente incorreto..., leia qualquer um deles e tenha uma desilusão imediata. Não dos temas e personagens abordados como imaginam os autores. Do gosto literário atual mesmo.

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Aluna do 1º G no Colégio Estadual Manoel Levi.


Críticas, sugestões, elogios, comentários, textos ou ilustrações para publicação: revistainconsciencia@gmail.com


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