Revista in-consciência - Ano II - Ed.VI - [especial-política] - 2016

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in-CONSCIÊNCIA Ano II - nº VI - [especial - «política»] de 2016 ISSN - 2357-8548


Sobre as seções da revista: OPRÉ: Seção onde damos uma prévia de um texto que só será desenvolvido na próxima edição. OAUTOR: Seção onde comentamos de maneira livre sobre um autor e sua obra. OLEITOR: Seção onde aparecem textos enviados por leitores (a seção só acontece quando recebemos textos) Res. Cin.: Resenha de cinema. Capa, diagramação e ilustrações: José Nilton C. S. Jr.


in-CONSCIÊNCIA Ano II - nº VI - [especial - política] de 2016 Expediente: Revista in-Consciência: Periódico sobre humanidades. Literatura, cultura, crítica e filosofia. ISSN - 2357-8548 Revisão: Reinilza Teixeira; José Nilton C. S. Jr. Editores: José Nilton Carvalho Santos Júnior (J.N.Jr.); Reinilza Teixeira dos Santos (R.T.) Endereço : Rua do Oriente, 332. Uibaí-Bahia. CEP: 44950-000 email : revistainconsciencia@gmail.com site: http://revista-in-consciencia.blogspot.com.br/ Fechamento dessa edição: 29/09/2016. Tiragem: 150 (Textos assinados são de responsabilidade do seu autor e não refletem a opinião da revista)

sumário

eDITORIAL - pOLÍTICA E vIRAGEM

p.4

A Participação da Mulher no Processo Eleitoral

p.6

Da Vergonha de Votar

p.9

(Res. Cin.) O Bem Amado

p.12

(Oleitor - Poesia): Entre o Primário e o Secundário p.15 (Oleitor - Poesia): Teus Olhos

p.16

(miniCONTO) QUOTIDIANO

p.17

Ironias

p.18


editorial

Política e Viragem

M

e pergunto onde foi parar a simplicidade merecida das cidades do interior em termos de política. Onde foi parar a sugestão proposta à Protágoras de que se você quer uma boa obra de carpintaria contrata-se um bom carpinteiro? Desde quando começou a prevalecer a ideia de que o “tempo de política” (fatídica expressão que define bem a inócua separação absoluta entre política e vida cotidiana) é o tempo da falta de razão, do abuso, da incoerência, da violência entre irmãos, da falta de ética, da aceitação inconteste de todo tipo de prática criminosa, a saber: mercado estilo feira livre de consciências, oferta sob o bojo de “quem dá mais” de famílias inteiras, troca a toque de caixa de atos civis antes respeitadíssimos, por chapa, adobo, areia, botijão, (e por que não?) bebida, dinheiro, combustível, emprego, promessa.... e do escândalo como medida padrão? Eu gostaria de saber como as coisas tomaram esse pé e ninguém percebeu. Não, não é um lampejo de ingenuidade, não é um disparate, não é uma cegueira manual. É que por mais visionário que você seja, por mais realista que seja, ser surpreendido pelo estado de coisas que se apresenta hoje é dramático. Grande parte das pessoas parece ser tomada por uma doença mental, se tornam broncas, agressivas, estúpidas, incapazes de um diálogo sem ofensas e de uma perspectiva da realidade que não seja bipolar e antagônica, do tipo “eu estou certo o outro está errado e não merece respeito!”. A possibilidade de uma conversa, uma discussão racional e saudável entre pessoas de lados políticos opostos está completamente abolida, é impossível. A explanação racional de argumentos e a apreciação desapaixonada e lúcida deles é um sonho utópico. Os modelos comuns de sempre continuam: o candidato ignorante, agressivo e demagogo vomita aberrações (muitas vezes ataques brutais à língua nacional) em cima de palanques e carros de passeata. O eleitor que deseja um emprego, ou

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EDITORIAL - Política e Viragem

qualquer outro bem espúrio de qualquer espécie acotovela-se nas ruas, os oportunistas ainda mais ávidos fazem peregrinação diária à casa dos candidatos ou chefes de campanha, as mulheres se ofendem entre si das mais variadas formas e esbanjam orgulho de serem lembradas em passeatas específicas para elas, oriundas do mesmo oportunismo barato agora maquiado com preocupações de gênero ilegítimas e falsas enquanto seus esposos, namorados ou pretendentes berram invocações de aposta a outros homens igualmente despossuídos, tentando a todo custo perderem o que não podem em nome de quem não merece, uma face economicamente triste e tragicamente comum nesses dias. Notícias não confirmadas voam por todo lado, fulano que “pulou”, cicrano que apanhou, beltrano que roubou, etc, etc, etc. Nada novo debaixo do sol com exceção da ignorância instantânea que se abate sobre indivíduos que até então se tinha por pessoas de consciência, informados, dir-se-ia até que, de inteligência reconhecida. Por algum fenômeno obscuro caíram no engano mais rasteiro: insatisfeito com x a resposta é y. O problema desses doutos é que, instruídos que são, formulam bem argumentos contra x, argumentos elaborados, cobertos de verdade, porém, esquecem que a dualidade do “isto ou aquilo” em que entraram não favorece a y, que, assim como x, é totalmente vulnerável aos mesmos argumentos, não se sustentam. Atacando a X evidenciam pelas próprias palavras as falhas de y que tentam esconder irrefletidamente. A ignorância não cria bons argumentos para o ataque, portanto não se ataca, numa eleição em que tanto x quanto y são desprezíveis politicamente, bons argumentos sempre batem nos dois. A falta de opção gera essas incríveis aberrações. A aberração mais alarmante é esta, ligada à questão da ignorância que abate hoje até as pessoas “conscientes”. Aparentemente a “viragem” denunciada por Saramago atinge além dos políticos também essas mentes subrepticiamente, embora instruídas e aparelhadas para resistir. Será uma adulteração mental proposital? “O poder tem destas coisas, vira os políticos como se eles fossem uma peúga. A primeira viragem chama-se pragmatismo, a segunda oportunismo, a terceira conformismo. A partir daqui, melhor deixar de contar.”1 J.N.Jr. 1

Saramago, José. “Democracia surda e assassina”. O Globo, Rio de Janeiro, 20 de março de 2004 [Entrevista a Daniela Birman].

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A PARTICIPAÇÃO DA MULHER NO PROCESSO ELEITORAL Se a emancipação da mulher, como quer Fourrier, é o barômetro que mede o grau geral de emancipação de um povo, o que dizer de uma sociedade cuja participação feminina no âmbito da política ainda é ínfima? No Brasil, ao contrário do que muitos pensam, a luta da mulher para exercer os seus direitos políticos não termina com a conquista do sufrágio na década de 1920, ou posteriormente, em poder candidatar-se e concorrer às eleições. Ao longo desses quase cem anos, muitas foram as batalhas que o dito “sexo frágil” teve que travar contra uma sociedade (machista e retrógrada) para fazer valer tais direitos. Durante décadas a mulher esteve quase totalmente à margem do processo eleitoral. Para se ter uma ideia, em meados da década de 90 a sua participação no Congresso Nacional não chegava a 5%. Assim, pensando em mudar esse contingente a deputada Marta Suplicy com o apoio da bancada feminina aprova a Lei 9100/95, que determina 20% das vagas para as mulheres. No entanto, a lei não teve os resultados esperados, e dois anos depois é aprovada a Lei 9504/97, que fixou em 30% essa cota. Em 2009, ela sofre nova reforma e de acordo com a Lei 12034/09 os partidos não somente tem a obrigatoriedade de reservar os 30% de suas vagas para as candidatas do sexo feminino, como a preenche-las. A criação de tais medidas contribui para atenuar este quadro. Porém, elas não têm correspondente na prática, visto que pouco mais de 10% dessa cota é preenchida. É isso mesmo, embora haja todo um aparato legal que assegure à mulher o direito de concorrer aos cargos públicos majoritários, a sua participação efetiva nos partidos brasileiros como chefes de governo, conforme já salientamos, é mínima. Diante disso, não podemos deixar de indagar o porquê de toda essa contradição. Os fatores que podem explicar essa desconcertante realidade são vários. Poderíamos supor previamente que a mulher não deseja adentrar a essa esfera, o que não seria ilógico, pois tendo a liberdade de escolha cabe apenas a ela mediante as transformações que vimos, optar por candidatar-se ou não. Infelizmente, a questão não é tão somente subjetiva, diríamos até que ela é de ordem estrutural e social. Mas por que estrutural? Os partidos e coligações brasileiras têm, de fato, reservado o número estabelecido de vagas às candidaturas femininas, o Tribunal Superior

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A PARTICIPAÇÃO DA MULHER NO PROCESSO ELEITORAL

Eleitoral (TSE) apelado para palestras, propagandas na mídia, etc., e ainda assim o percentual de mulheres que se aventuram na carreira política é mínimo. Só não podemos dizer que o seu desinteresse ou recusa não são justificáveis. Primeiro, aquilo que vem a público nem sempre corresponde à realidade. A verdade é que as cotas apenas mascaram o acesso delas aos partidos e coligações que, de fato, é bem mais restrito. Eles não dão o suporte necessário para que a mulher tenha uma campanha satisfatória que culmine na sua eleição. Como é o partido que determina a propaganda eleitoral gratuita, da mesma forma que a vinculada no rádio e na TV diariamente no intervalo da sua programação, esse privilégio não raro, é facultado aos homens. A situação é caótica, mas esse não é o mais grave dos fatores. Não seria difícil para a mulher que já venceu tantas adversidades superar mais essa, não estivesse ela enraizada numa questão histórica e cultural contra a qual não é fácil lutar. É fato que a mulher conquistou a emancipação, mas ao que parece, isso só se aplica à esfera pública, no que concerne ao espaço privado esse vento de liberdade ainda é só um sopro. Assim como o homem, a mulher tem hoje o direito de trabalhar fora, ter a sua independência, mas em relação ao lar, muitas delas continuam em posição servil, pois independentemente das ocupações externas dela e do companheiro (quando o tem) em particular, as tarefas da casa lhe são delegadas; a mulher moderna na sua jornada dupla pouco pode dedicar-se a um terceiro encargo, a isso, muitas vezes, deve-se também a ineficácia da lei que desde o início vimos falando. Todos esses fatores estão interligados, o resultado é que para as eleições de 2016, segundo o TSE, as mulheres representam para o cargo de prefeito (12,57%); vereador (32,79%), poderia até ser um número significativo, se não correspondesse à totalidade do país. Muitos chegam a responsabilizar os partidos e coligações por esses baixos percentuais, questionando a ausência de punição para aqueles que não preenchem as vagas destinadas às mulheres, mas será que estão sendo justos? A mulher hoje tem liberdade para se candidatar, inclusive este é um direito assegurado por lei, mas se ela não se sente impelida, a culpa é do partido? Essa é apenas a pontinha do iceberg, a inibição da mulher para a política só se explica pelo ranço da velha tradição patriarcal, que insiste em assombrar e contemplar esse grupo com os dissabores do espaço doméstico. Infelizmente a mulher ainda não conseguiu vencer as perigosas amarras sociais, que, camufladas num contexto onde ela acredita reinar, podam as suas potencialidades quanto à liberdade plena. Concluímos então, que de nada adianta a criação de cotas, de um

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A PARTICIPAÇÃO DA MULHER NO PROCESSO ELEITORAL

partido feminista, como inclusive já debatemos aqui, e infinitas outras medidas, se a mulher não mudar a sua postura no próprio âmbito familiar e posteriormente social, pois enquanto ela aceitar essa herança maldita do patriarcalismo, não chegará à conquista plena dos seus direitos. Se isso já tivesse sido corrigido, talvez as cotas nem seriam necessárias, bastaria fazer valer a nossa Carta Magna, em especial o trecho que garante sermos todos iguais independentemente de sexo, raça, credo ou religião, e optar pelo sim ou não em relação a candidatar-se. É o que deve ser feito, quem sabe uma simples mudança de postura não seja o passo mais importante nesse processo, e que possamos reverter esse preocupante quadro, pois a diminuta participação da mulher na política constitui um dos maiores entraves à plenitude da democracia brasileira. R.T.

Referências SAPUCAIA MACHADO, Monica. Mulheres e o Poder. Disponível em: http://ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13879. Acesso em: 24 de setembro de 2016. Tribunal Superior Eleitoral. Eleições 2016: mulheres representam mais de 30% dos candidatos. Disponível em: http://www.tse.jus.br/imprensa/noticiastse/2016/Setembro/eleicoes-2016-mulheres-representam-mais-de-30-doscandidatos. Acesso em: 24 de setembro de 2016.

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DA VERGONHA DE VOTAR Supõe-se que não é só das mentes ígneas dos pessimistas que eclode a sensação de que, em determinado momento, não haverá mais nada. Parece uma boa hora para tal suposição. Mas que nada? Se de um direito conquistado à duras penas em todos os âmbitos, lugares e épocas em que ele foi inicialmente cerceado, renhido por entre lutas e sangue, sonhado e almejado pelas mãos ávidas do seu valor, só resta a vexatória instância da vergonha, há que se considerar uma nova opinião sobre os pessimistas. Temos um nada a vislumbrar, o nada da escolha. Explicitamente vulgar a acepção, porém verdadeira, rende-se o vernáculo à sua raiz latina: o naufrágio do sufrágio. Para explicar esse sentimento titular que se aglutina dentro do indivíduo ao sair de casa, conduzido mais pelo dever que pelo direito de votar, poderíamos partir da perspectiva mais evidente, a fragilidade democrática. Mais ou menos assim. Por todos os lados, hoje, ataca-se a democracia, e não é uma alusão às fantasias delirantes de meia dúzia de grupos que falam em favor de ditadura, monarquia ou disjunções antigoverno como anarcocapitalismo e anarcoliberalismo (sem o menor critério). Esta súcia de ignorantes históricofilosóficos não será levada em conta no momento. Mas antes, a vertente mais lógica dentro de uma perspectiva crítica que existe desde que existe democracia. Esta, histórica e já delineada de algumas formas diferentes no decorrer do tempo, toma atualmente uma fórmula que pode ser observada sinteticamente nas palavras de Ranciére “O novo ódio à democracia pode ser resumido então em uma tese simples: só existe uma democracia boa, a que reprime a catástrofe da civilização democrática.” (RANCIERE, p.10-11, 2014). Esta incidência direta sobre a civilização democrática tem um fim cautelosamente detalhista, e o detalhe é a individualidade do cidadão, do cidadão empoderado dentro de um sistema que, pelo menos em tese, lhe confere esse poder. Só esse cidadão pode formar a sociedade que detém o favor dessa democracia e dela provém o direito que em suma, é o ponto de ataque principal: a sociedade que quer que todos sejam iguais e que todas as diferenças sejam respeitadas.

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DA VERGONHA DE VOTAR

Porém, essa perspectiva obviamente não causaria vergonha nenhuma ao ser social, no máximo, o sentimento de medo seria mais plausível ante a iminência de ruptura no sistema que, como dizem, dos piores é o melhor. Não é essa a causa do sentimento colocado, a fragilidade da democracia é só mais um dos problemas do cidadão e isso não deixa de ser irônico por que nada mais terrível do que ter problemas sérios para defender determinada questão essencial, e sofrer de um sentimento que mina as forças para a própria defesa da causa, origem do sentimento debilitante. Em outras palavras, um problema interno da democracia causa um sentimento que restringe, esgota o poder de quem a defende. Por força de ironia temos na Constituição já no seu primeiro Artigo, “Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” e logo no capítulo IV – Dos Direitos Políticos tem-se “Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei...”. Traduzindo-os, temos a origem e o detentor efetivo do poder como sendo o povo, e este mesmo tem o direito e o dever de escolher por meio do voto quem o representará no exercício do poder que é DELE. Perfeito. Colocando em segundo plano uma série de proposições sérias sobre as possibilidades de escolha do eleitor nas Ciências Políticas: a abordagem psicológica do modelo Michigan, as teorias sociológicas e economicistas, a teoria da escolha racional de modelo downsiano, a investigação de modelo demográfico-descritivo, a análise de comportamento de Lamounier ou a abordagem como “Dever Cívico” determinista de Jon Elster, sobra ainda o cerne da vergonha inaudita, instaurada profundamente no espirito de quem observa a falha residual que ignora toda a sorte de resoluções da democracia, a falha que incapacita o cidadão, a falha que subsiste mesmo que tudo mais seja adequado. A falta de escolha. Portanto, imagine o cenário mais sublime, o povo educado, consciente, despido totalmente da alienação que hoje lhe é a própria carne, livre dos vícios próprios e incutidos, absolutamente preparado e disposto à execução do seu dever cívico, disposto ao ato constitucional nobre chamado “raiz da democracia”. Imagine a cena, ao chegar o momento, ápice do seu orgulho

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DA VERGONHA DE VOTAR

enquanto parte da sociedade, ciente dos seus direitos e deveres, detentor do saber das suas necessidades urgentes e próximas, preparado racionalmente para o sim e para o não, se lhe faltam as escolhas tudo desmorona. A falta de escolha é o último insulto à democracia, o seu cancro paradoxal. O título chacoalha no bolso de quem vai cabisbaixo à urna. Pesalhe na algibeira a espada com a qual vai ferir a si mesmo e aos demais. Escolhendo na falta, sujará as mãos com a nódoa do erro consciente, não escolhendo na anulação, chorará a tristeza do desperdício de direitos elementares. J.N.Jr.

Referências RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2014.

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rES. cIN.

O BEM AMADO “Demagogo, bem falante, teatral no mau sentido, sua palavra prende sua figura impressiona e convence”. Dias Gomes.

Adaptada da peça Odorico, O bem amado e Os Mistérios do Amor e da Morte (1962), a novela O bem amado (1973), de Dias Gomes, faz uma crítica à sociedade brasileira daquela época, em especial, ao regime militar vigente. Por meio da personagem Odorico que o título faz menção, satiriza a figura do coronel e do político inescrupuloso e corrupto, capaz das maiores façanhas para chegar ao poder e nele se manter. Odorico Paraguaçú é um coronel e fazendeiro que ambiciona a prefeitura de Sucupira (cidade fictícia do litoral baiano). Apesar dos seus opositores, tem um trunfo que lhe garante a vitória. Ele é amado pelo povo, principalmente pelas mulheres. Além disso, apresenta como projeto de governo algo que os habitantes dali muito almejam, a construção de um cemitério, já que os moradores de Sucupira são obrigados a enterrarem os seus mortos na cidade vizinha: É preciso garantir o depois-de-amanhã, para ter paz e tranqüilidade no agora. Quem é que pode viver em paz mormentemente sabendo que, depois de morto, defunto, vai ter que defuntar três léguas pra ser enterrado? Uma vergonha! Mas, eu, Odorico Paraguaçu, vou acabar com essa vergonha [...] prometo acabar com essa humilhação para nossa cidade, que é ter que pedir a outro município licença pra enterrar lá quem morre aqui. E vou cumprir. (GOMES, p. 22-3)

Odorico é apelativo, sagaz, ele consegue atingir o povo em um ponto certeiro. Todos desejam dar aos seus mortos uma última morada digna, no “seio da terra onde nasceu”, e assim com o slogan “vote em um homem sério e ganhe um cemitério”, ele é eleito. Curiosamente o projeto que lhe possibilitou chegar ao poder, será o maior entrave na sua gestão, e marcará o declínio do coronel-prefeito. Isso por que, o tal cemitério é, de fato, construído, porém como por castigo, não morre mais ninguém na cidade. É aí que começa a desesperada saga do prefeito por um defunto, no intuito de inaugurar a obra que o consagraria. Para a ocasião ele contratou banda de

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música, escreveu um discurso que precisava de constantes reformulações, já que apesar dos seus ardis, o “sonhado defunto” nunca vinha. Por ironia, ele próprio iria estrear o famoso “Campo-santo”. Figura caricata, Odorico Paraguaçú está longe de ser um modelo de decência, ao contrário, ele é o protótipo do político corrupto, manipulador, astuto e carismático. Não é à toa que o traço mais marcante dessa personagem é a competência linguística. Ele lança mão de um discurso vazio (demagógico), permeado de neologismos e “invencionices”, um léxico deveras ímpar, que somado à sua bela retórica e força de persuasão, consegue cativar a grande massa, que embora não compreenda muito bem os seus “arroubos linguísticos” o veem como um homem culto. A palavra é o elemento primordial para um político, daí a ênfase do nosso dramaturgo a esse aspecto, pois desta maneira ele não só ridiculariza o discurso dos políticos brasileiros, como provoca uma reflexão acerca daquilo que ouvimos. Entretanto, não é só no aspecto linguístico que as semelhanças saltam aos olhos. É também na cobiça pelo poder e nas artimanhas várias para chegar a ele. Odorico presenteava os seus aliados para garanti-los neste posto, e também pela possibilidade de arrebanhar outros, um expediente bastante comum nos dias de hoje. Estamos às vésperas de mais um pleito eleitoral e o que vemos por todos os cantos desse imenso Brasil é uma “reprodução maciça de Odoricos” (linguajar, jeitos e trejeitos). É incrível como o coletivo, por anos esquecido, ganha relevo frente aos interesses desses “manjados senhores”. Como para eles os fins justificam os meios, comercializam-se cargos no atual ou futuro governo, consultas, exames médicos, remédios, materiais de construção, bebidas, etc., é assim que os verdadeiros Odoricos conseguem o “apoiamento” do povo. Esse tipo de personagem, sendo a triste alegoria do político brasileiro, tem certa familiaridade com o público e uma grande repercussão seja na literatura, como vemos nas obras de Jorge Amado, seja na teledramaturgia, que pelo maior alcance entre as massas tornou populares figuras como os coronéis Jesuíno e Boanerges da novela Cabocla (1977), inspirada no romance homônimo de Ribeiro Couto; Zico Rosado, de Saramandaia (1976), também de Dias Gomes; e atualmente o coronel Afrânio de Sá Ribeiro da novela Velho Chico (2016), que responde pela alcunha de Coronel Saruê. Este último representa tão bem os nossos políticos, que virou tema de música de campanha em diversas cidades. Seria engraçado, se não fosse trágico presenciar uma figura folclórica

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como Odorico Paraguaçú saltar das páginas do livro ou da tela da TV, onde se eternizou no imaginário popular, materializar-se, ganhar vida nas nossas ruas, praças e pequenas localidades. Porém, vida não é uma encenação, de modo que só temos a lamentar a incorporação deste personagem no fazer político da realidade. R.T.

Referências GOMES, DIAS. O bem amado. Farsa sociopolítico-patológica em 9 quadros. 12ª edição. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: http://www.editorarecord.com.br/images/livros/capitulo_ruU00B.pdf. Acesso em: 26 de setembro de 2016.

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OLEITOROLEITOROLEITOR Ilusório e necessários aos Peregrinos usuários. Se nem só de pão Vive o homem, disso Ninguém tem dúvida. Mas ninguém vive Um só dia sem pão. O resto, por conta Das náuseas, das Dores de cabeça, dos Excessos; às vezes é Secundário. Se nem só da matéria Vive o homem, necessitamos do espiritual, de Deus. Tão incompreensível ante os seus poderes e o revelado no mundo.

Entre o primário e o secundário Se nem só de pão Vive o homem, Muito menos de vinho. Se o pão sobrepõe O vinho ou este àquele, Ou se ambos constituem Realidade Una e irrefreável, são Outros quinhentos e, talvez, Não venha a caso. Se nem só de pão vive o homem, é certo que carecemos de um pouco de vinho, ao nosso território um muito de pandeiro, de samba, de requebro, de mulata; com quadris, bustos e bunda febris. E ainda, demais dos Folguedos, da música, da Dança, do futebol, da Sinuca; dos jogos em Geral e, evidentemente, Ante o ópio da religião, O narcotizante etílico, Tão risonho, nostálgico,

Gicélio de C. Dourado.

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OLEITOROLEITOROLEITOR

Teus olhos Teus olhos são como poemas Poemas doces, puros e suaves Suaves como a brisa da manhã Doce como o canto das aves Que me despertam a cada amanhecer E puros como as gotas da chuva Que fazem a relva florescer Teus olhos são como espelho Espelho da minha alma Transforma minha agonia em calma Alegrando cada dia mais o meu viver. Esse olhar meigo e sincero É para mim de grande valor No mundo tudo que quero É ver os teus olhos brilhantes Parecendo dois diamantes Demonstrando-me amor São teus olhos para mim Escuros por natureza E de tão rara beleza Que às vezes me envaideço E quero-os só para mim. Eronnaide Alves (Grama de Uibaí)

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miniCONTO: QUOTIDIANO

Quotidiano “Enquanto dormia, só não lhe encantava aturdido um pouco de sonho, um pouco de treva, aquela dúvida. Há tempos amarga, junto de qualquer gesto desastrado, era uma aglutinação. Ele sabia, havia essa sublime força, estranha força de nunca acertar. Crispa no lençol a sombra da sua mão, se sente todo arestas, todo inconveniência, arrasta o peso nauseabundo do seu corpo amanhecido e torce ‘com essa manhã desfaz-se a maldição’”. Procura rapidamente a poeira de um espelho, se projeta entre aquele jogo de luzes côncavas irrefletidas antes de si, antes de se antever imagina como seria a profundidade do reflexo, a textura do reflexo. A imagem não o decepciona, ele sempre erra e, se tudo está péssimo, algo também está errado. Então tudo está bem, tudo bem. Pés no chão, por cima e por baixo do lixo... essa dor de gente, esse cheiro de gente, é que ainda incomoda.” J.N.Jr.

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IRONI@S

J.N.Jr.

LI. Se o voto fosse mesmo secreto, radicalmente, inclusive para quem vota, ter-se-ia um álibi. Sendo como é, resta o peso na consciência. LII. Ouvi, por acaso, um discurso político. O som que emanava do comício chegou aos meus ouvidos. Fiquei estupefato, espantado, horrorizado, não é que por um instante alguém quase foi sincero? LIII. A eficiência dos políticos é impecável, tão logo acumulam promessas de campanha, ao ganhar, conseguem não cumprir tudo num só mandato. LIV. Não vejo problema no uso comum de comparar políticos com animais, apelidá-los. O único problema é como vai funcionar o revezamento com o rato. LV. Até ontem eu temia pelo futuro político do Brasil. Mas aí vi uns vídeos na internet de pessoas defendendo a volta da Monarquia e percebi que não tem mais jeito. LVI. Até ontem eu temia pela vida da Democracia, triste aleivosia, ela é tão real no país quanto Aelo a Harpia. LVII. Até ontem eu temia pela ignorância generalizada que toma conta de tudo, quando do período eleitoral. Porém depois solucionei o entrave. Ignoreio. LVIII. Dizem que o voto é a nobre arma do povo. Percebi-me muito mais humilde pois ver um político incita o desejo pela vulgaridade de um .38. LIX. Ainda no século XIX José de Alencar desejava a “alforria do voto”. A experiência familiar nas eleições do interior provam que isso ainda é um sonho, em termos de voto não chegamos nem na “Lei do ventre livre”. LX. Se o voto é a raiz da democracia, o voto de cabestro é a raiz quadrada.

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