Revista in-consciência - Ano I - Ed.V - setembro-outubro - 2015

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in-CONSCIร NCIA Ano I - nยบ V - setembro-outubro de 2015 ISSN - 2357-8548

C.P.


J.D.

Sobre as seções da revista: OPRÉ: Seção onde damos uma prévia de um texto que só será desenvolvido na próxima edição. OAUTOR: Seção onde comentamos de maneira livre sobre um autor e sua obra. OLEITOR: Seção onde aparecem textos enviados por leitores (a seção só acontece quando recebemos textos) Res. Cin.: Resenha de cinema. Ilustrações: Cléber Pontes e Jaine Dourado; Capa: Cléber Pontes


in-CONSCIÊNCIA Ano I - nº V - setembro-outubro de 2015 Expediente: Revista in-Consciência: Periódico sobre humanidades. Literatura, cultura, crítica e filosofia. ISSN - 2357-8548 Revisão: Reinilza Teixeira; José Nilton C. S. Jr. Editores: José Nilton Carvalho Santos Júnior (J.N.Jr.); Reinilza Teixeira dos Santos (R.T.) Endereço : Rua do Oriente, 332. Uibaí-Bahia. CEP: 44950-000 email : revistainconsciencia@gmail.com site: http://revista-in-consciencia.blogspot.com.br/ Fechamento dessa edição: 30/10/2015. Tiragem: 150 (Textos assinados são de responsabilidade do seu autor e não refletem a opinião da revista)

sumário eDITORIAL - oNDE mORA O tERROR?

p.4

Um Drama Desumano

p.6

O Irmão Misterioso da Poesia

p.9

(Oleitor) Obstáculo

p.17

(rES. cIN.): Devaneio

p.19

(Poesia): Amor?

p.22

Ironias

p.23


editorial

Onde mora o terror?

H

á alguns anos atrás, da comemoração exaltada de grande parte do mundo por causa do “acontecimento” da morte de Osama Bin Laden, eu questionei o fato, questionei a alegria pela morte de uma pessoa, e acima de tudo, questionei a ideia ilegítima e ingênua de que aquele acontecimento seria um afeto ou mesmo um arranhão na estrutura terrorista que ganhava corpo naquela época e hoje está em plena forma. Não tinha sentido comemorar a morte de um terrorista, isso era óbvio para mim, os acontecimentos recentes comprovam a afirmação. Meu pensamento é facilmente compreendido e expresso: o terrorista é um apaixonado, o nome da sua paixão é fé, mas como todo apaixonado uma m o r t e espetacularizada é o C.P. oposto de uma ofensa, de um desfalque ou mesmo de um desânimo. É o contrário. Ele vive, treina, se dedica para a sua morte, pelo seu sacrifício. Quanto maior a extensão do efeito e do conhecimento do seu efeito, melhor. Acreditasse eu numa outra vida consciente, não teria dúvida alguma de que Osama exultava quando faziam anúncios oficiais e festas pela sua morte. Era a coroação. O terror não tem um fim em si, sua retentiva é o efeito posterior, ainda que o imediato seja grave e forte. O nome é evidente,

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EDITORIAL

terror é um sentimento, um sentimento que serve para controlar as pessoas. Para mantê-las caladas, banhadas de suor frio, dóceis. A própria ideia da morte de um terrorista, se levada a uma análise inteligente é um desproposito. Matar alguém que já está disposto e convicto a matar-se é fazer-lhe um favor. Matar um terrorista, em vez de ser um evento de congratulações devia ser encarado como o fato de inevitabilidade da ocasião, senão um ocaso lamentável, uma vez que só alimenta ainda mais a gana e a ira dos outros. Dentre toda a vastidão do Ocidente há que se pensar por que a França tem sido o alvo preterível do Estado Islâmico. Qual o motivo da insistência? Desde o Charlie Habdo, onde era evidente a motivação, a França não deixou de ser alvo preferido dos terroristas. É preciso pensar nisto. Teria o apoio Francês aos Estados Unidos na invasão de Afeganistão, Líbia, Iraque, etc, algo a ver com isso? Teria esse tipo de intervenção ajudado a impulsionar a criação de grupos terroristas que hoje assombram o ocidente? São mais algumas coisas a se pensar; No entanto, as ameaças continuam a uma série de outros países e, mesmo com a resposta lamentável da França bombardeando a Síria e matando crianças e civis, é perceptível que o Estado Islâmico só ganha força. Penso que a incidência cada ver maior de jovens se recrutando no movimento terrorista tem a ver com o esvaziamento de sentido que a nossa sociedade criou. Onde estão os sentidos que movem o indivíduo a viver? Onde está a credibilidade aos governantes, aos representantes das populações de diversos países?, não há mais sentimento de pertença a nada. Pelo menos nada durável. Daí surge essa síndrome de Erostrato, diante da vida sem sentido nenhum, faz-se algo terrível e detestável, porém visível e repercutível, para que a vida tenha um “quê”. Aquiles sabia do seu destino, escolheu-o e perpetuou o seu nome. Alimentamos os anseios dos Erostratos e Aquiles e pagamos pela lamentação e pela fúria irracional. Onde mora, de fato, o terrorismo? J.N.Jr.

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UM DRAMA DESUMANO Nas últimas semanas os olhos do mundo tem se voltado para o comovente drama protagonizado pelos milhares de homens, mulheres e crianças – vítimas da guerra civil na Síria. Pessoas, que, movidas pelo instinto de sobrevivência, se submetem diariamente a perigosas travessias, buscando através das fronteiras alcançar outros países onde possam se exilar. É curioso que esse conflito, que já se arrasta há mais de quatro anos, só agora tenha chamado a atenção do mundo. Isso, em tese, se deve ao histórico de guerras e violências tão comuns no Oriente Médio, mas, principalmente, ao destino dos refugiados. A princípio, em escala maior, eles buscavam os países vizinhos, como Líbano, Jordânia e Turquia. Ao passo que hoje, se deslocam rumo aos países ricos da Europa, que estão sempre em foco, em evidência. Além disso, a violência, sobretudo no interior da Síria, onde os ataques são mais veementes, torna inviável a vida naquele país, acelerando o fluxo de pessoas em torno das fronteiras. A situação é crítica, conforme mostram as estatísticas, já são milhões de mortos e desabrigados em fuga ou vivendo em condições sub-humanas nos campos para refugiados. É com base nesse gigantesco contingente que a ONU classifica esta tragédia como a “maior crise humanitária já vista desde a Segunda Guerra Mundial”. De fato, o horror, o drama que estas pessoas estão vivendo é tocante, daí ter atraído a atenção de ativistas, entidades políticas e religiosas, como o próprio Papa Francisco, que esta semana apelou para que as paróquias acolhessem algumas dessas famílias. Muitos países estão cedendo a esse apelo. No entanto, alguns deles têm sido alvo de críticas por não o fazerem da maneira devida. Talvez, como creem os grupos humanitários, eles não estejam sendo tratados com a dignidade e o respeito que são devidos a todo ser humano. Por outro lado, estamos falando de um verdadeiro “caos” e, ninguém está preparado para lidar coerentemente com ele. É pensando nisso, mas sobretudo em não haver a mais remota possibilidade de término dessa guerra, que os grupos humanitários, entidades não governamentais, ativistas e suas próprias vítimas cobram das lideranças políticas mundiais ações de intervenção. Com efeito, não se pode negligenciar uma realidade tão brutal, é preciso buscar atenuantes, e o primeiro passo certamente é acolher essas pessoas e mantê-las com dignidade, afinal, não se trata meramente de uma questão política ou ideológica, mas de uma questão HUMANA. E essa, sem dúvida, dado o contexto, é uma questão crucial. Em nenhuma outra parte do mundo os direitos humanos são tão negligenciados, quanto no Oriente Médio. Nações que, em sua maioria, ainda são conduzidas por governos antidemocráticos, onde cidadãos têm suas liberdades coletivas e individuais cerceadas, as mulheres ainda vivem sob a total dominação dos homens, e populações inteiras alheias aos seus direitos, guiadas por gestores reacionários que ignoram sua própria condição de seres

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UM DRAMA DESUMANO

humanos. Colocada a situação dessa maneira, não é de se estranhar que tenha chegado ao ponto que está, pois recordando o que enfatizou Eleanor Roosevelt em 1948, no preâmbulo do documento que constitui a Carta Magna da Humanidade: “O desconhecimento e o desprezo dos direitos humanos conduziram a atos de barbárie que revoltaram a consciência da Humanidade e o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do Homem”.

De fato, quando não há respeito à vida e a própria condição do homem é negligenciada, abortam-se direitos essenciais a ela, e não podemos esperar menos que a barbárie. É obvio que esse histórico tende a levar as pessoas a encararem com certa naturalidade o que tem ocorrido na Síria. Isso explica a postura de pessoas de contextos diferentes, que devido à situação ali se encontravam, e ao invés de demonstrarem o mínimo de sensibilidade, de humanidade, se portaram com espantosa selvageria. Um desses casos foi o da cinegrafista da TV húngara N1TV, Petra Laszlo, que durante uma filmagem foi flagrada chutando refugiados, que fugiam da polícia no campo de Roszke (fronteira da Sérvia) e aplicando uma rasteira em outro, que inclusive, estava com uma criança no colo, um ato cruel que revela o total desrespeito aos seres humanos, que naquele episódio mais se assemelham a animais, pelo tratamento que recebem. Porém, a cena que mais chocou e comoveu o mundo foi a do menino Aylan Kurdi de três anos de idade, morto em um acidente numa praia da Turquia quando, acompanhado da família, tentava atravessar o mar para chegar à Europa. Dos quatro membros que compunha a sua família apenas um, o pai Abdullah Kurdi, sobreviveu. A imagem da criança morta na beira da praia, nos braços do soldado, enterneceu e chocou o mundo. E, assim como a notícia da morte do menino, ela foi destaque nos principais jornais, sites e noticiários. Segundo o próprio pai da criança, em entrevista recente ao Fantástico, a morte do filho teria aberto as portas do mundo para os refugiados. É onde questionamos: a que preço? Mas, de fato, comovidos com a repercussão do caso, bem como com a crescente violência naquele país, que a cada dia expulsa números alarmantes de pessoas do seu seio, muitas nações buscaram meios de ajudar esses refugiados, também por interferência da ONU. Acontece, porém, que o drama não termina com o encontro de um lugar para se abrigar, ao que se sabe, muitos refugiados vivem em situação de miséria, quando não, animalizados nos campos de acolhimento. Pessoas de formação intelectual elevada, que já viveram confortavelmente em seu país, após serem arruinadas pela guerra veem-se reduzidas a intrusas em países estranhos. É evidente que diversos fatores, tais como os interesses políticos e econômicos da Síria e seus aliados motivaram esse conflito, basta pensarmos nas poderosas

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UM DRAMA DESUMANO

potências que estão agindo em favor próprio por traz do Regime, a exemplo da Rússia. Inversamente, aquelas que têm poder de intervenção permanecem em cima do muro, apáticas, indiferentes. Entretanto, a principal razão é ideológica e está arraigada na própria cultura desse povo, o levante da “primavera árabe” não teria estimulado essa reação se os países do conhecido “mundo árabe”, de alguma maneira, fossem afeitos à liberdade e à democracia. O que se observa, lamentavelmente, é o contrário disso. Esses dois princípios constituem uma questão espinhosa em países como a Síria. Para se ter uma ideia o atual presidente Bashar al-Assad está no poder desde o ano 2000. Ele foi escolhido como sucessor do pai, o ditador Hafez al-Assad, morto naquele ano e que governou o país por mais de três décadas. Quando assumiu o poder Al-Assad teria feito promessas que nunca cumpriu; os direitos e liberdades dos cidadãos foram restringidos por uma medida de emergência, enquanto uma pequena minoria gozava de todos os privilégios advindos dessa posição. Assim, um conflito dessa envergadura não pode, de fato, ter como causa a repressão a grupos que lutam por democracia, e sim, o que essa liberalidade acarreta em uma nação que opõe-se rigorosamente a ela, como a tudo que está vinculado à liberdade, seja ela coletiva ou individual. Esse “impasse ideológico” tem provocado estatísticas intermináveis. A cada dia um novo contingente de mortos e refugiados são esboçados. E enquanto essas pessoas assistem, quase impotentes a violação dos seus direitos mais básicos, como aqueles proclamados pela Carta Magna da ONU no seu artigo 3º: “Todas as pessoas têm direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. O mundo cobra uma posição das lideranças políticas mundiais, mas aquelas que poderiam intervir, investir contra o abuso do Regime na Síria, não o fazem de fato. No fim, todos estão buscando a diplomacia, o que é melhor para si, para as suas relações, enquanto a pessoa humana é colocada em posição secundária. E, embora a banalização da morte, do abandono, não favoreça uma postura diferenciada, ela precisa ser revista. A vida humana, em toda e qualquer circunstância, deve ser encarada como prioridade e todos os direitos inerentes a ela respeitados.

Referências Declaração Universal dos Direitos do Homem. Disponível em: http://www.humanrights.com/pt/what-are-human-rights/universal-declaration-ofhuman-rights.html. Acesso em: 12 de Novembro de 2015. Oito capítulos para entender a guerra na Síria que dura mais de 4 anos. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/10/151012_crise_siria_entenda_rb. Acesso em: 01 de Novembro de 2015.

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O irmão misterioso da poesia Acredito não exagerar ao dizer que dificilmente um aluno de Letras se forma sem ter ouvido falar, lido uma citação, ou conhecido de fato a obra de Júlio Cortázar. É certo que o ensaísta, o Cortázar teórico, só muito tardiamente chegou aos leitores brasileiros. Muito antes desse já havia chegado, porém, o grande escritor do fantástico e do maravilhoso, ou o tradutor de Poe. Exaltar aqui a grandeza de Cortázar enquanto escritor e ensaísta seria desnecessário. O que não podemos, no entanto, é deixar de demonstrar a sua acuidade ao falar sobre um tema específico que é o que nos interessa nesse momento: o conto. O referido ensaio que aparece no segundo volume da obra crítica de Cortázar se tornou imprescindível para qualquer um que se interesse pelo gênero “conto”. Imprescindível por dois motivos principais dos quais um está ligado mais ao trajeto do ensaísta como escritor e o outro à sua capacidade de elaboração teórica. Respectivamente, no ensaio estão presentes a figura de alguém que não só se propõe a teorizar sobre o conto, mas um escritor que conhece sobre o assunto o suficiente para chegar à conclusão de que “Enquanto os contistas levam adiante sua tarefa, já é tempo de se falar dessa tarefa em si mesma, à margem das pessoas e das nacionalidades” (1999, p. 350), ou seja, alguém que faz uma reflexão bem fundamentada no conhecimento do gênero enquanto leitor, e na produção do gênero enquanto escritor. Sabemos que somente o conhecimento e a escritura não são suficientes para garantir um texto ensaístico, e aí vem o outro motivo que faz do texto imprescindível, a acuidade interpretativa do autor, sua escritura bem urdida e sua capacidade em expor suas teses em argumentos e em imagens. Cortázar não se contenta em dizer habilmente em palavras o que defende no momento da argumentação, como bom escritor, são necessários ainda ilustrações vivas que mostrem ao leitor a imagem do argumento, a metáfora do convencimento. Pretende-se com esse artigo, refletir sobre o que fica da argumentação cortázariana sobre um gênero que no ambiente literário vem passando por vertiginosas transformações se considerarmos dos clássicos machadianos aos atuais microcontos trevisanianos. Para tanto segue-se o lastro das argumentações que compõe o ensaio de Cortázar comentando seus pontos principais, em contraponto com as atuais reflexões teóricas sobre o gênero que, por sua vez, também levam em consideração o texto do ensaísta argentino. CONSTANTES ELEMENTOS INVARIÁVEIS Solicitamente, creio que a uma possível indagação posterior, antes mesmo de teorizar sobre o conto, Cortázar se põe a justificar a empreitada, a dizer por que teorizar

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O IRMÃO MISTERIOSO DA POESIA

sobre o conto. Entre suas várias motivações podemos destacar as principais por ordem de acumulação. Primeiro temos a importância que o conto vinha ganhando no período, alude o autor que já havia também uma grande acumulação de contos produzidos “no passado e no presente”, portanto, desse primeiro motivo se auto impõe a necessidade de um “balanço”. Essa acumulação ainda possibilita a função do crítico que, fatidicamente, não pode trabalhar sem “material”. O caráter realmente teórico que fundamenta o ato de produzir um balanço sobre o conto, deve advir de uma base lógica e, essa base, Cortázar vai exprimir categoricamente: Tenho a certeza de que existem certas constantes, certos valores que se aplicam a todos os contos, fantásticos ou realistas, dramáticos ou humorísticos. E penso que talvez seja possível mostrar aqui esses elementos invariáveis que dão a um bom conto a atmosfera peculiar e a qualidade de obra de arte. (CORTÁZAR, 1999, 348)

Uma teoria não seria válida se primariamente fosse presa a algum aspecto específico que a detivesse em validade de examinar todo e qualquer conto. A esses elementos pródigos que soturnamente fazem parte da complexa definição do gênero devemos a teoria subjacente. O desenrolar dessa justificação está no que o autor chama de “uma ideia viva do que é o conto” (CORTÁZAR, 1999, p.350). Decorrente da necessidade enfatizada, vamos ter sua primeira definição do gênero, dentre outras, no decorrer do ensaio: “É preciso chegarmos a ter uma ideia viva do que é o conto, e isso é sempre difícil na medida em que as ideias tendem para o abstrato, para a desvitalização de seu conteúdo, enquanto que, por sua vez, a vida rejeita esse laço que a conceitualização lhe quer atirar para fixá-la e encerrá-la numa categoria. Mas se não tivermos a ideia viva do que é um conto, teremos perdido tempo, porque um conto, em última análise, se move nesse plano do homem onde a vida e a expressão dessa vida travam uma batalha fraternal, se me for permitido o termo; e o resultado dessa batalha é o próprio conto, uma síntese viva ao mesmo tempo que uma vida sintetizada , algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência”. (CORTÁZAR, Idem)

Esta definição quase alegórica revela traços do autor no teórico, do contista no ensaísta. É por meio de metáforas hipersensíveis que Cortázar vai fazer sua primeira definição do gênero. Por conseguinte sua definição ainda se ajunta a um motivo ulterior, pós-ficção, visto que se configura na sensação do leitor: “a profunda ressonância que um grande conto tem em nós” (CORTÁZAR, Idem). No pequeno livro intitulado “A Teoria do Conto”, Gotlib, mesmo que num curto espaço físico, faz de fato um livro de teoria, ou melhor, um livro que problematiza a teoria do conto já que em muitos pontos a especificidade de teorizar esse gênero (como especificidade e não como um tipo de narrativa atada às teorias da narrativa já existentes) é extremamente problemática.

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O IRMÃO MISTERIOSO DA POESIA

Ela coloca resumidamente essa problemática assim: Tais mil e uma páginas referentes ao problema da teoria do conto poderiam se resumir em algumas direções teóricas marcantes: há os que admitem uma teoria. E há os que não admitem uma teoria específica. Isto quer dizer que uns pensam que a teoria do conto filia-se a uma teoria geral da narrativa. E nisto têm razão. Como pensar o conto desvinculado de um conjunto maior de modos de narrar ou representar a realidade? Mas aí surgem diferenciações: embora sujeito às determinações gerais da narrativa, ele teria característica específica de gênero, tal como existem características específicas de romance? de teatro? de cinema? de novela de TV? Quais os limites da especificidade do conto enquanto um tipo determinado de narrativa? E mais ainda: o que faz com que os contos continuem sendo contos, apesar das mudanças que, naturalmente, foram experimentando, no curso da história? Em que aspectos permaneceriam eles fiéis às suas origens? (GOTLIB, 2006, p8)

Devemos entender, de certo modo, que a incursão de Cortázar é mais ao estilo mesmo do conto, curta e de impacto, visto que ele não se detém nas acepções históricas e se foca nos problemas elementares. No caso das justificações e motivações da teoria, além dos autores com suas práticas pessoais, se diferenciam ambos basicamente no modo. Gotlib parte admitindo que não é possível não iniciar pela história, enquanto Cortázar parte para o embate propriamente dito: motivo, definição e categorização teórica primária. DEFINIÇÕES METAFÓRICAS: da fotografia ao boxe Um dos pontos mais interessantes do ensaio de Cortázar são as metáforas que ele se utiliza para representar o conto, defini-lo, compará-lo. Como pudemos ver na sua primeira definição do gênero, as metáforas e comparações são verdadeiras imagens de uma sensibilidade literária muito aguçada. O próprio título desse artigo remete a uma dessas metáforas: o irmão misterioso da poesia. Percebe-se o sentido, ao mesmo tempo em que comprova-se a imensa dificuldade de definição do conto, por isso o autor faz uma aproximação dele com outro gênero, a poesia. Acredito que o autor aí remeta ao que é, desde sempre, entendido na poesia: o fato de que nada nela é por acaso. Assim sendo, a assimilação é legítima, uma vez que diferentemente do romance, o conto não pode se deter com circunlóquios, divagações, estratagemas da prosa, cada palavra se torna nele, assim como na poesia, parte essencial, significativa e proposital. Mas, com certeza, são as duas metáforas maiores e de sentido semelhante as mais conhecidas dos leitores de Cortázar, as que comparam o conto ao romance. Antes o autor se refere à conhecida vastidão de estudos teóricos sobre o romance em contraste com o parco número de incursões teóricas sobre o conto: Moro num país — França — onde este gênero tem pouca vigência, embora nos últimos anos se note entre escritores e leitores um interesse crescente por essa forma de expressão. De qualquer modo, enquanto os críticos continuam acumulando teorias e mantendo exasperadas polêmicas acerca do romance,

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O IRMÃO MISTERIOSO DA POESIA quase ninguém se interessa pela problemática do conto. (CORTÁZAR, 1999, p. 348-349)

A comparação com o romance, muito anterior a Cortázar é colocada por ele como uma forma utilizada na tentativa de entender o “caráter peculiar do conto”. Sua primeira comparação com esse intuito ainda se inculca no dizer teórico e parte da ideia de que “o romance se desenvolve no papel, e, portanto, no tempo de leitura, sem outros limites que o esgotamento da matéria romanceada” (CORTÁZAR, 1999, p. 350), enquanto o conto já nasce partindo da ideia de limite. Posteriormente aparece a primeira metáfora entre o romance e o cinema em contraposição ao conto e à fotografia: Nesse sentido, o romance e o conto se deixam comparar analogicamente com o cinema e a fotografia, na medida em que um filme é em princípio uma "ordem aberta", romanesca, enquanto que uma fotografia bem realizada pressupõe uma justa limitação prévia, imposta em parte pelo reduzido campo que a câmara abrange e pela forma com que o fotógrafo utiliza esteticamente essa limitação (...) Enquanto no cinema, como no romance, a captação dessa realidade mais ampla e multiforme é alcançada mediante o desenvolvimento de elementos parciais, acumulativos, que não excluem, por certo, uma síntese que dê o "clímax" da obra, numa fotografia ou num conto de grande qualidade se procede inversamente, isto é, o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que seja significativo, que não só valha por si mesmo, mas também seja capaz de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto. (CORTÁZAR, 1999, p. 350-351)

Exatamente por propor, com metáforas, uma argumentação teórica que conjuga algumas das vertentes de teorização do conto, como por exemplo, a questão da extensão e a questão da unidade de efeito de Poe, o autor congrega assim os elementos mais discutidos, mantendo a pontualidade do ensaio. A próxima metáfora aproximativa foi, segundo o autor, sugerida por outro escritor argentino, nela temos uma inesperada aproximação da literatura com o boxe: Um escritor argentino, muito amigo do boxe, dizia-me que nesse combate que se trava entre um texto apaixonante e o leitor, o romance ganha sempre por pontos, enquanto que o conto deve ganhar por knock-out. É verdade, na medida em que o romance acumula progressivamente seus efeitos no leitor, enquanto que um bom conto é incisivo, mordente, sem trégua desde as primeiras frases. Não se entenda isto demasiado literalmente, porque o bom contista é um boxeador muito astuto, e muitos dos seus golpes iniciais podem parecer pouco eficazes quando, na realidade, estão minando já as resistências mais sólidas do adversário. (CORTÁZAR, 199, p.351)

Ainda que inesperado, essa comparação se revela extremamente capaz de traduzir a ideia que sugere. Tendo como pressupostos que não há espaço e tempo no conto para que o escritor possa proceder “acumulativamente”, só lhe resta apostar numa forma que dê tudo de si imediatamente e desde a primeira palavra.

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O CONTO E SEUS ELEMENTOS Após a justificação do trabalho e as felizes definições acompanhadas por metáforas comparativas, Cortázar entra no certame de tentar encontrar quais os elementos que constituem um bom conto. No desenvolvimento que observamos no ensaio a partir desse momento, pode-se destacar sistematicamente alguns fatores que se mostram mais prementes e são essenciais, segundo o autor argentino, para compreender os elementos que mais profundamente marcam os “bons contos”. O primeiro elemento destacado, nominado “elemento significativo”, chama a atenção para o primeiro fator que destacaremos aqui na seleção dos pontos principais. Segundo ele “O elemento significativo do conto pareceria residir principalmente no seu tema” (CORTÁZAR, 199, p.352), ao que ele já conjuga num princípio formulatório dizendo que “Um conto é significativo quando quebra seus próprios limites com uma explosão de energia espiritual que ilumina bruscamente algo que vai muito além do pequeno e às vezes miserável episódio que conta.” (Idem). Destacaremos portanto, dentre os argumentos do autor aqueles concernentes a dois fatores principais, começando com o que acaba de ser sugerido: o tema para posteriormente analisar-se a escrita. O tema O ensaísta começa por sugerir que no tema residiria o elemento significativo e portanto, o tema seria fator condicionante na construção de um bom conto. Porém, essa ideia demonstra só aparecer inicialmente para que possa ser melhor refutada na continuidade, como de fato o faz o autor. Sendo o tema elemento de indelével importância na qualidade do conto, o que dizer portanto dos contos de Tchecov, por exemplo, que segundo o autor tem por temas “a pequena, insignificante crônica familiar de ambições frustradas, de modestos dramas locais, de angústias à medida de uma sala, de um piano, de um chá com doces” (CORTÁZAR, 1999, p.352-353)? O autor irá chamar a atenção de que o tema em si, para ser significativo, não necessita tratar de acontecimentos grandes, nobres ou extraordinários, já que o que fará dele algo excepcional não está propriamente no seu conteúdo objetivo. Para o autor: O excepcional reside numa qualidade parecida com a do ímã; um bom tema atrai todo um sistema de relações conexas, coagula no autor, e mais tarde no leitor, uma imensa quantidade de noções, entrevisões, sentimentos e até idéias que lhe flutuavam virtualmente na memória ou na sensibilidade; um bom tema é como um sol, um astro em torno do qual gira um sistema planetário de que muitas vezes não se tinha consciência até que o contista, astrônomo de palavras, nos revelasse sua existência. (CORTÁZAR,1999, p. 354)

Essa capacidade de abertura contida no tema excepcional, seria o que

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transcende a pequenez ou a banalidade de sua aparência para uma série de outros elementos que se ligam à essência da condição humana. O autor ainda salienta que a descoberta desse elemento significante em qualquer tema, faria mesmo parte do que constitui um escritor, ou seja, o escritor de fato é o primeiro a sofrer o efeito atordoante de certos temas, atentando a isso como um chamamento à sua percepção. No entanto, uma vez “existindo” «tema», é preciso do que discutiremos a seguir, o segundo fator, o que transformará esse «tema» em conto: a escrita. A escrita Uma vez conseguido a justificação, a definição, o tema, se faz necessário o fator último que, sem ele, todo o restante de nada serve. O ofício do escritor, como destaca Cortázar é o único ponto capaz de coadunar todos os outros fatores. Uma vez que “há tema” de nada ele serve se não receber o tratamento necessário para que o bom conto possa existir. Segundo o autor, em “literatura não valem as boas intenções”, portanto o escritor, uma vez tocado pelo tema: Descobre que para voltar a criar no leitor essa comoção que levou a ele próprio a escrever o conto, é necessário um ofício de escritor, e que esse ofício consiste entre muitas outras coisas em conseguir esse clima próprio de todo grande conto, que obriga a continuar lendo, que prende a atenção, que isola o leitor de tudo o que o rodeia, para depois, terminado o conto, voltar a conectá-lo à sua circunstância de uma maneira nova, enriquecida, mais profunda e mais bela. E o único modo de se poder conseguir esse seqüestro momentâneo do leitor. (CORTÁZAR, 1999, p.357)

Fica claro que de nada adiantaria todo um processo preliminar para se consumar num mau tratamento, numa escrita que não pudesse elevar a estreiteza do tema ao nível de causar no leitor o mesmo impacto que levou o escritor a escolhê-lo. A escrita, pois, se configura como o termo indispensável e crucial para que o autor e o leitor compartilhem de um efeito de epifania semelhante. O leitor, como final desse ciclo afirmará o sucesso ou o fracasso do conto. Nisso Cortázar também é feliz na comparação entre o conto e uma ponte: E é então, que o conto tem de nascer ponte, tem de nascer passagem, tem de dar o pulo que projete a significação inicial, descoberta pelo autor, a esse extremo mais passivo e menos vigilante e, muitas vezes, até indiferente, que chamamos leitor. (CORTÁZAR, 1999, p.356)

Ao escritor cabe, além de tudo, a sensibilidade de traduzir na sua escrita esse elo de ligação, construir essa ponte com o leitor. Ricardo Piglia, nas suas “Teses sobre o conto” chama a atenção, nesse processo de escrita/construção do conto, para um caráter que podemos supor, vêm de uma influência que também é de Cortázar: Edgar Allan Poe. Piglia enfatiza a questão do mistério e do enigma na forma de contar:

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O IRMÃO MISTERIOSO DA POESIA Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias. (...) O conto clássico (Poe, Quiroga) narra em primeiro plano a história 1 (...) e constrói em segredo a história 2 (...). A arte do contista consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Um relato visível esconde um relato secreto, elíptico e fragmentário.//O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na superfície.[...] Como contar uma história enquanto se conta outra? Essa pergunta sintetiza os problemas técnicos do conto. // Segunda tese: a história secreta é a chave da forma do conto e de suas variantes. (PIGLIA, 2004. pp.89-91)

As considerações de Piglia partem de uma investigação tenaz das origens. Suas teses revelam uma preocupação evidente com a leitura de um vasto material a fim de encontrar uma grande série de exemplos variados para confirmá-las. Dai sua retomada constante de textos de Leschov, Edgar Allan Poe, entre outros contistas clássicos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Que dizer, hoje, ao se deparar com um texto como: “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta”, início de um dos contos mais conhecidos de Machado de Assis, ou com outro que de tão condensado pode ser posto aqui na íntegra: - Uma grande Putinha é você? - Sou. Eu sou. - Uma cadelinha fogosa? - Sim. Sim. Ela ajeita o óculo para acertar o fio na agulha: - Sou cadelinha. Sou putinha. Só me deixa pregar o botão nesta camisa. E daí sou tudo o que você quiser. (TREVISAN, 2005, p.95)

Um conto clássico de Machado de Assis, e outro conto de uma escritor que embora ainda vivo já seja considerado clássico, Dalton Trevisan. Ambos, com todas as suas diferenças que vão da narrativa ao plano do efeito, seriam ainda passíveis do olhar embasado no ensaio de Cortázar? A pergunta pode ser mais bem elaborada visto que é o ponto principal desse artigo: O ensaio de Cortázar ainda pode funcionar teoricamente para um analista dos contos contemporâneos? Acredito que a resposta mais acertada seja, sim. A elaboração de Cortázar prima por se afastar de uma série de elementos que situam o texto no seu tempo, o que poderia fazer dos conceitos também restritos à uma produção temporal. Ele procura cautelosamente discutir questões muito mais gerais e universais, principalmente por atrair numa mesma síntese, ideias de outros teóricos, formando assim, uma compreensão mais completa e mais abrangente. Gotlib se reporta às formulações cortazarianas no final do seu livro por considerar que nele aglutinam-se a maioria das

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questões teóricas que ela discute anteriormente. Constata: Vimos várias destas condições, ao percorrermos as teorias do conto. Mas Cortázar parece dar o fecho necessário, ao considerá-las em conjunto, como “um sistema de relações”, em que cada elemento tem sua função específica, insubstituível. (GODLIB, 2006, p.66)

É certo que com o avanço tecnológico incessante, com as novas e cada vez mais velozes formas de leitura sob os mais variados meios, há uma interferência factual sobre a escrita literária e, consequentemente, sobre esse gênero há muito já estabelecido que é o conto. Podemos, sem muitas dificuldades, entrever as diferenças que existem entre um conto de Dalton Trevisan ou de outro contista pós-moderno e de Machado de Assis ou outro escritor clássico do século XIX. Com todas as diferenças não se constitui uma ruptura em que não permaneçam em cada conto elementos imprescindíveis de sua constituição histórica enquanto gênero, estas, não desaparecem embora possam se alterar em estilo, intensidade e perspectiva. Uma teoria do conto precisa ainda superar uma série de entraves na sua constituição, principalmente no que concerne à questão de sujeição ou não às outras teorias da narrativa. No entanto, acredito que sob o intuito de lançar bases elementares para a compreensão do conto e corroborado pelos estudiosos atuais, Cortázar continua sendo uma leitura válida e imprescindível.

REFERÊNCIAS

CORTÁZAR, Julio. Obra Crítica, volume 2. Organização de Jaime Alazraki; tradução de Paulina Watch e Ari Roitman – Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1999. GOTLIB, Nádia Batella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 2006. MACHADO, de Assis. Obra Completa. 3. ed. v. 2. Rio de Janeiro, Aguilar, 1974. PIGLIA, Ricardo. Formas Breves. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. TREVISAN, Dalton. 111 Ais. L&PM Pocket, 2005.

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OBSTÁCULO Embalado Açoitado Rasgado Estraçalhado pela sombra da noite, Já não ouço o anúncio dos tribunais e nem o badalar dos sinos dos clérigos. Estes reunidos, descomunal impropério aos anseios coletivos. Já não miro, se é que tem alguma estrela cadente sobre o céu, e as que correm sobre a noite que se abre; intensa, extensa e infinitamente imensurável, exceto o ínfimo claro de seu trajeto, já não formam sequer uma penumbra, de sorte que, sob a sinistra sombra da noite, não fotografo, não vislumbro nenhuma paisagem. Meus amigos e sonhos morreram todos e sob o breu da noite, já não cultivo nenhuma centelha de memória deles. No paraíso dos internautas, ante a ausência de interlocutores, coisas palpáveis com cor, cheiro e movimento, vivo a monologar. Por que tenho 17


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acordado com tudo que é exatamente o oposto do que aspiro e creio? A esse propósito, por que tenho ido ao templo, oro, ajoelho e professo fé em Deus, se sou todo sombra, e mais ainda, o mais cético dos céticos? Fazer tudo isso, o possível e o impossível em nome do estatuto social sob pena de não me evaporar, mais uma contradição, uma estúpida hipocrisia. E o pior, por que temer a solidão, se sou uma solidão ambulante em pessoa, completamente alheia aos olhos da multidão? Tudo teve ao meu alcance e por puro medo e coação, tudo me escapou. Projetamos, sonhamos, deleitamos com a possibilidade do além circunscrito, mas nos agoniamos, nos apavoramos com a ideia de vivê-lo. Naufragamos no vazio do nosso mundo. Tudo neste, por puro medo e coação, por todo o desígnio das convenções, por séculos de sombra e escuridão, é vazio, tão somente vazio e nada mais. Gicélio de Castro Dourado, professor e poeta belocampense.

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rESENHA. CINEMA DEVANEIO? O retrato das relações conjugais foi muito bem traçado no filme Who's Afraid Of Virginia Woolf “Quem Tem Medo de Virginia Woolf”, baseado na peça de mesmo nome, de Edward Albee, e que marca a estreia do diretor Mike Nichols. Produzido por Ernest Lehman, o filme lançado há mais de 30 anos, ainda desperta grande interesse no público. Essa atração se explica pelo fato de abordar um tema sempre atual, as relações “amorosas”, e também pela brilhante atuação dos atores, em especial os protagonistas Elizabeth Taylor (Martha) e Richard Burton (George). Já no princípio da trama, nos deparamos com uma atmosfera sombria, que envolve o espectador até o seu final. Martha (filha do dono da universidade) e George (professor dessa instituição) caminham pela rua deserta às duas da madrugada de sábado, embriagados, retornando de uma festa promovida pelo pai dela. O comportamento de ambos dão indícios de que não se trata de um casal comum, e sim, no mínimo, excêntrico. Ela, altiva, interpela o marido acerca de um filme no qual a atriz Beth Davis teria atuado, ao que ele demonstra não ter conhecimento de tal referência. Nesse primeiro diálogo se percebe as agudas farpas trocadas pelo casal, que no decorrer da narrativa fílmica intensificam-se, e os dois se aprimoram naquele jogo de ofensas mordazes. Em meio a esse clima pouco ameno, ela anuncia que terão visitas, trata-se de um jovem casal recém-chegado à cidade, o também professor da universidade Nick (George Segal) e sua esposa Honey (Sandy Dennis), o quarteto compõe todo o elenco do filme. O jovem casal, que surge na narrativa timidamente, a princípio parece servir de parâmetro de “normalidade” para toda aquela loucura vivenciada pelos anfitriões. Porém, logo são contagiados por aquela atmosfera destrutiva na qual gradativamente assumem um papel cada vez mais importante junto aos veteranos. O filme apresenta algumas peculiaridades, primeiramente o número de personagens, apenas os dois casais, conforme já foi

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mencionado, existem outros poucos presentes na história, mas não na trama. Além disso, há os cenários, a rua, o bar e a casa de George e Martha – onde se passam a maior parte das cenas – convenhamos que esse é o ambiente ideal para aquilo que o filme se propõe, desnudar as relações conjugais, mostrando o seu lado inverso, não o das flores, da ternura e cintilações do amor, que todos fazem absoluta questão de exibir, mas o do rancor, do desgaste e do pesado apego, ali eles desenvolvem os seus perversos jogos de ódio e amor. George e Martha vivem em um ambiente particular, a casa onde habitam, nada é, além de um sombrio palco no qual atuam todo o tempo, empenham-se ao máximo para macular a figura do outro, depreciando, por tabela, a própria instituição do matrimônio, vista, sobretudo naquele contexto como algo sagrado. De tão entregues à representação desta relação doentia, apenas em pequenos lapsos ou flashes, o que presumimos ser a realidade concreta do casal se revela, uma realidade pouco atraente, já que precisam mergulhar na loucura, protagonizando um drama diário e interminável para suporta-la “a loucura seria um refúgio contra a irrealidade do mundo”, afirma a personagem Martha. Mas, o que na perspectiva dela seria irreal? Certamente aquele mar de rosas, em que muitos dizem viver, quando, muitas vezes, isso não passa de aparência, a simples ostentação de uma máscara calma e feliz para camuflar vazios e ruínas. Assim, Lehman, na pele desse brilhante casal faz uma crítica muito bem fundamentada àquelas pessoas que preferem viver de aparências, ignorando a verdade dos seus sentimentos. Outra questão digna de nota é o fato do filme se passar em uma única noite, isso já seria suficiente para desviar a nossa atenção de um drama comum, e nos direcionar para um verdadeiro espetáculo, exatamente o que o filme representa. Um drama muito bem encenado, até para fazer jus ao famoso clássico da Broadway, a peça de Albee, que o inspirou, o casal, inclusive encerra o filme cantarolando tristemente o trecho: Quem tem medo de Virginia Woolf Quem tem medo de Virginia Woolf Eu tenho, George (responde Martha)

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O tempo de duração do filme, nos remete ao romance Mrs Dalloway, de Virgínia Woolf, que se passa em um único dia, dia em que a protagonista Clarissa Dalloway dará uma grande festa em homenagem ao amigo Richard, o romance, naturalmente gira em torno desse evento, que serve de pano de fundo para relevantes discussões. Esse romance inspirou um outro The Hours “As Horas” (1998), de Michael Cunningham, que posteriormente daria origem ao filme homônimo, do diretor Stephen Daldry. Em Quem Tem Medo de Virginia Woolf, um conjunto de referências literárias e cinematográficas, por alguma via, acaba se cruzando. Não é à toa, que essa trama é tão carregada, trazendo cenas intensas, como no momento em que os sinos tocam, mau presságio, que anuncia o fim. Ali, o drama chega ao seu ápice com a “morte” do suposto filho do destrutivo casal, é quando o jovem professor finalmente enxerga a verdade, que se encontrava diluída na perversa insanidade dos seus anfitriões. George apaga a luz, como ao término de um show, iniciando com Martha um diálogo intranquilo, mas de maneira calma, e ali é como se um ciclo com a noite se fechasse sucumbido pela fotografia do jardim sombrio, que na tela se congela, misturada à melancólica música que embala a cena. No espectador persiste além do inquietante vazio a pergunta: que frustração exigiria do ser humano o uso eterno de uma máscara combativa para poder suportá-la? Acredito que o próprio drama, que dispensa elogios, já nos deu essa resposta. R.T.

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Amor? Compreendida. Amada. É com isso que sonha toda mulher. - Quero aquela rosa presa ao último raio de sol, antes que os destemidos ventos a dispersem abobada afora. - Aqui está querida! - Obrigada AMOR.

J.D.

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IRONI@S

J.N.Jr.

Ironia LI: A profusão de novos escritores no Brasil é fantástica. Atente-se para o sentido da palavra. Basta ler uma dúzia de exemplos para não se acreditar na realidade de suas publicações. Ironia LII: Disse Lefebvre que a virtude da imitação e a imitação como virtude mundializava-se. Disso pelo menos não podemos acusar os novos escritores atuais: não se imita sem conhecer nada e a wikipédia fica muito evidente. Ironia LIII: Aqui vai uma dica para as hordas de entes asquerosos de «Brasília» que hoje explicitamente não buscam senão safarem-se da culpa dos seus crimes. Há um tipo de crime, limpo, válido, adequado, soberano e o melhor, impunível!; considerem-no em favor de todos nós: suicídio. Ironia LIV: Observando a qualidade e integridade do corpo legislativo brasileiro, não somente hoje (esse cume da indecência), mas num amplo espectro para o passado, percebe-se por que a beleza de Díke, se transformou na execrável, porém, comum, expressão «letra seca da lei». Ironia LV - Ontem conversei com uma meretriz, por incrível que pareça a tradição de Moll Flanders ainda não morreu. Ironia LVI - Nunca espere pouco de uma puta. Para o bem, para o mal, a entrega é total. Subentende-se os vieses das vias do capital, para si expansivo, para tal, emocional. Ironia LVII: Será que Ortega Y Gasset chegou a vislumbrar que o «homemmassa» sairia de si mesmo de forma tão natural e icônica como nos nossos tempos? Digo, as redes sociais não são o exemplo de ambiente pacífico, mas por favor, substituir a violência natural pelas frases abstratas do Instagram é muito pouca vantagem. Racham nossas cabeças tal e qual. Ironia LVIII: Chegando o «tempo da política», por despeito ou por vingança, o povo vota, na desgraça. Ironia LIX: Chegando o «tempo da desgraça», por respeito ou só por graça, ainda chamam de política. Ironia LX: Chegando o «tempo da política», e a massa acrítica, dita povo, e aquele voto, escolha dita, conflita. Não vê que explícita perdeu a graça. Disfarça a mão, e o mal... abraça. Disfarce a razão, e o erro... repita.

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Críticas, sugestões, elogios, comentários, textos ou ilustrações para publicação: revistainconsciencia@gmail.com


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