O Processo de Construção da Habitação Social em Brasília/DF

Primer Congreso Iberoamericano de Historia Urbana Ciudades en el tiempo: infraestructuras, territorios, patrimonio 23, 24 y 25 de noviembre de 2016 Santiago de Chile

Mesa Nº: 6 Título de la mesa: Urbanização e desenvolvimento nos anos sessenta

Título de la ponencia: O Processo de Construção da Habitação Social em Brasília/DF Nombre del/de los autor/es: Izadora Carvalho Laner Pertenencia institucional del/de los autor/es: Universidade de Brasília (UnB) Correo electrónico del/de los autor/es: izalaner@gmail.com

Resumen: [300 palabras] O artigo analisa as primeiras políticas de habitação social executadas em Brasília, através do estudo da Vila Sarah Kubitschek, atualmente Taguatinga, primeira cidade-satélite consolidada na Capital, em 1958. Brasília poderia ter representado um novo cenário para a solução dos problemas relacionados à periferização das cidades. Contudo, consolidou-se uma cidade fortemente segregada, cuja desigualdade social é evidenciada através do distanciamento e dependência entre as Cidades Satélites e o Plano Piloto, ainda que as primeiras tenham conquistado certa autonomia.

Taguatinga foi construída a revelia do Plano de Lúcio Costa, onde afirmava que os migrantes residiriam na capital provisoriamente. Com a rápida expansão irregular em torno da cidade livre – em oito dias o assentamento possuía quatro mil moradores1 – o Governo, preocupado com a proximidade em relação ao centro, realocou tal população a 20 km distantes do Plano Piloto, antecipando a criação de Taguatinga.

Para entender a abordagem do poder público na construção da habitação social em Brasília, analisaram-se as origens da intervenção do Estado na questão habitacional, no início do século XX, quando se tornou um problema de ordem pública. Até então, a intervenção mínima do Estado e a ação da iniciativa privada na habitação social levou a construção de cortiços precários insalubres, considerados como ameaça à saúde pública.

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Nair Sousa, Maria Machado, Luciana Jaccoud, “Taguatinga: o improviso do plano urbanístico e a pressão popular”, in: Aldo Paviani (Org.), Brasília: Moradia e Exclusão, Brasília: Universidade de Brasília, 1996.

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Tal discurso higienista foi utilizado pelas elites na expulsão da população de baixa renda para áreas distantes e isoladas do centro. O controle rígido dos cortiços levou a um processo de demolição que impulsionou a periferização nos centros urbanos.

A construção da política habitacional em Brasília, apesar de situar-se em outro contexto de ocupação, enfrentou problemas semelhantes aos da origem da habitação social. Buscou-se então traçar um paralelo entre esses dois momentos históricos, analisando as semelhanças entre a reforma higienista e a ocupação empreendida pelo governo na construção de Brasília.

Ponencia: [4.000 palabras] 1. O contexto da habitação social no Brasil: Da origem da intervenção estatal, em fins do século XIX à Fundação da Casa Popular, em 1946.

A primeira crise habitacional em São Paulo ocorreu entre 1886 a 1900. Seu rápido desenvolvimento econômico e industrial provocou a urbanização acelerada, ocasionando o crescimento indiscriminado de loteamentos e aumentando a necessidade de infraestrutura urbana. A implantação de tais serviços, contudo, não acompanhavam as transformações pelas quais passava a cidade; havia uma significativa escassez de infraestrutura e saneamento, principalmente nos bairros mais pobres, que gerava uma situação de risco para a população.

Durante a Primeira República, o Governo mantinha uma postura de não interferir diretamente, deixando de ofertar infraestrutura que acompanhasse o crescimento urbano na época. Essa função foi delegada à iniciativa privada; uma de suas ações mais importantes foi a Criação da Companhia Cantareira em 18772, encarregada pelo abastecimento de água e esgotamento sanitário em São Paulo.

As primeiras habitações populares construídas no Brasil, caracterizadas como cortiços e casas de cômodos, possuíam condições de precariedade semelhantes às habitações dos trabalhadores europeus durante a Revolução Industrial em meados do século XIX. A urbanização acelerada e o crescimento demográfico contribuíram para a situação degradante da moradia urbana. Tal foi o crescimento populacional que as habitações eram construídas ocupando o menor espaço possível, sem a oferta mínima de saneamento e conforto. Com relação à saúde, as dimensões reduzidas, a escassa iluminação e ventilação, provocando amontoamentos de

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Nabil Bonduki, Origens da habitação social no Brasil, São Paulo: Estação Liberdade, 1998.

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indivíduos e coisas em espaços confinados, eram entendidas como condicionantes de um meio propício à geração de moléstias.3 1.1. A questão habitacional como um problema de saúde pública: As origens da intervenção estatal no campo da habitação social.

Os cortiços e casas de cômodos eram construídos visando maior economia, gerando moradias baratas à população de baixa renda e potencializando o lucro dos construtores e proprietários. Consistiam em cômodos de 11 a 18 m², dispostos ao longo de um corredor, abrigando famílias de até dez pessoas. Geralmente os cortiços possuíam apenas instalações sanitárias e hidráulicas coletivas.4 Correia detalha a visão construída, tanto pelo Estado quanto pela burguesia industrial, da moradia do pobre, entendida como uma ameaça constante não só à saúde pública, mas a ‘moralidade’ da sociedade burguesa. As condições de vida e moradia da população de baixa renda, para a classe dominante, incitavam os maus costumes e a promiscuidade, a falta de higiene e a propagação de doenças; havia o constante receio da proximidade entre os bairros mais valorizados e as áreas ocupadas por moradias populares.

Em termos morais, a casa do pobre era vista como ambiente promíscuo e embrutecedor, onde se originavam a imoralidade, os desvios, a mendicância e a revolta. Seus amontoamentos, misturas e sujeira eram vistos como absolutamente incompatíveis com uma vida familiar sadia e regrada. Por não ser um ambiente acolhedor, era responsabilizada por atirar seus moradores às ruas, aos bares e bordéis, onde se entregavam aos vícios, devassidão, ócio, enfim, a toda uma série de atividades marginais à sociedade do trabalho, que então a burguesia estava empenhada em construir. 5 Apesar da precariedade dos núcleos urbanos da época, as habitações populares eram construídas apenas pela iniciativa privada. O que existia como intervenção pública no campo da habitação social até 1940 limitava-se à normatização das tipologias, onde os projetos habitacionais a serem construídos necessitariam da aprovação da municipalidade. Inexistia uma política pública na qual o governo se encarregasse de executar integralmente um programa habitacional, a fim de garantir aos trabalhadores moradia com condições mínimas de habitabilidade.

A intervenção do Estado através de leis consistia em regulamentar e especificar os tipos habitacionais a serem construídos, sujeitando as habitações populares às transformações do mercado imobiliário. Quanto melhores as condições de moradia, maior seria seu valor,

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Telma Correia, Construção do Habitat Moderno no Brasil, 1870-1950, São Carlos: RiMa Editores, 2004, p. 4

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Bonduki, op. cit.

Correia, op. cit., p. 8

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impossibilitando que parte da população, cuja renda dependia de salários extremamente baixos, pudesse usufruir das condições mínimas de moradia exigidas.

O incentivo concedido às empresas privadas para a construção habitacional foi bem aceito e difundido desde o Império até a era Vargas. Para o poder público e os higienistas, era uma forma de favorecer melhorias no padrão de habitação popular; já a iniciativa privada visava apenas aumentar os lucros, visto que o Governo concedia diversos subsídios, incluindo a isenção de impostos para que as empresas financiassem a construção de habitações com um padrão de moradia mínimo recomendado pelos higienistas: a vila operária.

1.2. A contribuição da reforma higienista para o processo de periferização das cidades Criaram-se, no final do século XIX, as Diretorias de Higiene, destacando a Diretoria de São Paulo e a Comissão de Inspeção de Cortiços do Bairro Santa Iphigenia, no Rio de Janeiro, para controlar a propagação de doenças epidêmicas e diminuir a insalubridade das habitações populares, vistas como os maiores focos de propagação. Suas ações foram consideradas por muitos estudiosos como violentas e equivocadas, agindo de forma imediatista e não atacando a base do problema, que seria a urbanização acelerada e desordenada, falta de habitações em condições mínimas de salubridade e a desigualdade econômica e social.

A partir da intervenção pública sanitária, verificou-se a intenção de eliminar os cortiços das áreas mais valorizadas. Até a primeira metade do século XX não houve, contudo, políticas que realocassem os moradores, deixando aos desabrigados a opção de ocupar áreas distantes dos centros por seu baixo valor imobiliário. As medidas higienistas, bem como a criação de normas construtivas aceleraram o processo de segregação espacial, agora com o incentivo do poder público.

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A síndrome da epidemia trazia pânico à população urbana, justificando toda e qualquer medida que a Diretoria de Higiene e a Polícia Sanitária propusessem. A cidade ficou à mercê da ordem sanitária: a inviolabilidade do Domicílio tornou-se letra morta, casas foram interditadas, demolidas ou queimadas.

É importante reconhecer que as condições das habitações de baixa renda, no início do século XX, configuravam um problema real de saúde pública, relacionado à propagação de doenças como a febre amarela. A reforma higienista cumpriu importante papel ao transformar a problemática em uma questão governamental, possibilitando ações de controle social e sanitário.

Contudo, a abordagem violenta e autoritarista da força policial e a apropriação do discurso

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Bonduki, op. cit., p. 32

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higienista pelas elites tornaram-se instrumentos para a imposição de uma política de exclusão social.

O Conjunto de cortiços do Vale do Bexiga, cujo proprietário era o fazendeiro Francisco Barros, foi considerado um dos mais importantes assentamentos populares de São Paulo, em 1920. O principal edifício do conjunto, denominado “Navio Parado”, correspondeu ao primeiro bloco habitacional da cidade e se tornou um símbolo da produção privada na habitação social.

Apesar de clandestino, é um exemplo da reivindicação do direito a cidade por parte da população mais prejudicada com os efeitos da urbanização. Os moradores do complexo habitacional desenvolveram tal força interna que a própria polícia não conseguia adentrar no local, tampouco removê-los de suas moradias. Sua demolição, em 1948, para dar lugar à construção das unidades habitacionais programadas pelo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários, o IAPS, marca o início do processo de provisão de habitações sociais pela esfera pública.7 1.3. A criação das vilas Operárias como modelo ideal de habitação Acreditava-se, no início do século XX, que a situação de miséria e marginalização vivida pela população pobre era favorecida pelo meio. Corrigindo-se o meio – condições de moradia – seria possível melhorar a qualidade de vida da população. Surge, assim, um modelo de habitação ideal, sob a visão higienista dos sanitaristas e engenheiros da época. A partir da moradia ideal, foram construídas vilas operárias em todo o país, sobretudo nos grandes centros urbanos industriais, como Rio e São Paulo. A construção das vilas ficava sob o encargo das próprias indústrias, já que o objetivo era prover a seus operários habitações que atendessem às condições mínimas de habitabilidade.

Essa preocupação com a qualidade da moradia do operário e seu estado de saúde relacionava-se com o aumento de sua capacidade produtiva. A precariedade das habitações impossibilitava aos trabalhadores o descanso ao fim de uma longa jornada de trabalho, comprometendo sua eficiência. Segundo Bonduki e Colela, a criação de vilas operárias era favorável economicamente aos industriais, pois além de favorecerem um ambiente mais saudável aos trabalhadores, possibilitava exercerem certo controle sobre seu tempo livre.

Assim como em toda a história da habitação social no Brasil, a política de construção das vilas operárias contou com boas soluções, providas de infraestrutura, e outras que sequer respeitavam os padrões mínimos de higiene. Contudo, as vilas eram construídas em áreas periféricas, predominando o controle e a exclusão social. Como afirmou Colela,

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Bonduki, op. cit.

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Houve grandes diferenças entre as vilas, algumas contavam com habitações melhores, escolas, creches e outras mal possuíam casas, cujo padrão higiênico era duvidoso. Morar em casa de vila operária significava estar distante duplamente das lutas sindicais e políticas, uma vez que o imóvel estava atrelado ao emprego e localizava-se em áreas retiradas. Perder a moradia numa época de oferta escassa e cara era um luxo a que esses trabalhadores dificilmente poderiam se dar.

Os conjuntos habitacionais permaneceram sendo produzidos pela iniciativa privada até o surgimento da Fundação da Casa Popular. Como não havia um controle social dos aluguéis até a lei do inquilinato em 1942, estes eram submetidos à dinâmica do mercado imobiliário, definindo valores crescentes e incompatíveis com os salários dos trabalhadores, que já eram incapazes de suprir as necessidades básicas de subsistência. A Lei do inquilinato surge como medida de congelar o valor dos aluguéis para se tornarem compatíveis ao poder aquisitivo da população.

A atuação do Estado na questão habitacional, anteriormente à criação da Fundação da Casa Popular em 1946, esteve intimamente ligada ao pensamento higienista: a moradia do pobre era vista como uma ameaça a saúde pública e o governo intervêm a partir da regulamentação de um modelo ideal de habitação higiênica. Aliado a isso, as elites se apropriaram desse discurso para difundir a exclusão social: Os cortiços insalubres foram retirados dos centros forçando essa população a ocupar áreas distantes e isoladas, em condições precárias de infraestrutura. A partir de então, iniciou-se o processo de segregação espacial das grandes cidades, significativamente presente na política de construção das cidades-satélites em Brasília, que decorreu na implantação de Taguatinga, em 1958.

2. O processo de construção da habitação social em Brasília: O caso de Taguatinga/DF A construção de Brasília poderia representar uma nova oportunidade para instaurar melhores condições de moradia a boa parte da população brasileira. O fato de se tornar um grande canteiro de obras ocasionou um elevado fluxo migratório para a região. Não se planejou, porém, que tal população residisse permanentemente na Capital. Não foram previstos assentamentos suficientes para atender à demanda populacional, gerando um crescente déficit habitacional antes mesmo da conclusão das obras do Plano Piloto. Restava aos migrantes à ocupação em áreas irregulares, próximas à Cidade Livre, que oferecia certo nível de atividades urbanas e serviços básicos.

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Patrícia Colela, O que não mudou na habitação popular: dos cortiços a comercialização de moradias em Brasília, Brasília: Universidade de Brasília, 1991, p. 27.

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Famílias vindas de todas as partes do país, em busca de melhores oportunidades, compunham o contingente habitacional das áreas invadidas. Os baixos salários e a especulação imobiliária impediam que essa população residisse nos assentamentos destinados aos trabalhadores, como a Vila Planalto e o acampamento da Cidade Livre.

Um dos principais fluxos migratórios que contribuiu para a construção de Brasília originouse do Nordeste. Com seca de 1958, aliada à frágil estrutura econômica de baixos salários e agricultura de subsistência, grande parte da população nordestina migrou para outras regiões do país em busca da sobrevivência. Devido à falta de infraestrutura para abrigar toda essa população, proliferaram as ocupações irregulares nas proximidades do Plano Piloto, consideradas pelo Governo como áreas invadidas que precisavam ser removidas para locais mais distantes.

2.1. A construção das cidades-satélites como impulso à segregação espacial A remoção das invasões para locais distantes e isolados do Plano Piloto impulsionou a periferização vigente até os dias atuais. O fato de estas invasões constituírem amontoados de habitações precárias e insalubres levou a inversão do Plano concebido por Lúcio Costa, com a construção antecipada das cidades satélites, iniciando um processo de segregação espacial. No Plano, as satélites constituíam uma solução para a expansão urbana, e só seriam construídas quando o Plano Piloto atingisse a demanda ocupacional para o qual foi pensado. Foi preciso, então, encontrar uma solução imediata para o déficit habitacional. Segundo Colela, afora raras exceções, a solução encontrada pelas autoridades, desde o início da construção de Brasília, para resolver problemas de “invasões”, foi a erradicação para áreas distantes e desprovidas de infraestrutura.

Desde o início da construção de Brasília era notável, até mesmo por seus fundadores9, a segregação social que acompanhou seu processo de consolidação. O Plano Piloto era definido por um padrão de vida impossível de ser mantido pelos operários, levando a expansão dos assentamentos irregulares. Havia um pensamento de que a permanência dos migrantes operários na capital, levando a reivindicação de uma ocupação legítima, foi a causa principal do crescimento desordenado de Brasília.

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O crescimento da cidade é que ocorreu de forma anômala. Houve uma inversão que todos conhecem, porque o plano estabelecido era para que Brasília se mantivesse dentro dos limites para os quais foi planejada, de 500 a 700 mil habitantes. Ao aproximar-se desses limites, então, é que seriam planejadas as cidades-satélites, para que essas se expandissem ordenadamente,

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Lúcio Costa, Considerações em torno do Plano Piloto de Brasília, Brasília: I Seminário de Estudos Urbanos de Brasília, 1974, p. 26

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racionalmente projetadas, arquitetonicamente definidas. Esse era o plano proposto, Mas ocorreu a inversão, porque a população a que nos referimos (os candangos) aqui ficou, e surgiu o problema de onde localizá-la (...). Daí a criação dos núcleos periféricos, para transferir as populações, dando terreno para que se instalassem de uma forma ou de outra. Como consequência, os núcleos transformam-se em verdadeiras cidades, as chamadas cidades-satélites, que tomaram o lugar das cidades-satélites que deveriam ocorrer. Assim, as cidadessatélites anteciparam-se à cidade inconclusa, cidade ainda arquipélago, como estava – agora já mais adensada mas ainda não-concluída. A cidade ainda está oca. Entretanto, dois terços da população de Brasília mora nessa periferia, o que foi, naturalmente, desvirtuamento.

Semelhante ao pensamento que levou ao desenvolvimento da reforma higienista nas principais cidades brasileiras, a configuração de assentamentos irregulares próximos ao Plano Piloto, onde situariam as residências mais nobres de Brasília, gerou certo receio na classe dominante, temendo que a área mais rica da cidade acabasse envolta em moradias populares.

Assim como no higienismo, as “invasões” em Brasília eram entendidas como uma ameaça social, gerando graves impactos na configuração da cidade, evidenciando a ideia de exclusão social na qual foi consolidada.

2.2.

Política de remoção dos assentamentos irregulares – O caso de Taguatinga

O crescente fluxo migratório para Brasília advindo do Nordeste, em decorrência da seca de 1958, está interligado a consolidação da Vila Sarah Kubitschek, origem de Taguatinga. Composta em sua maioria por nordestinos, a rápida expansão da invasão – em um período de oito dias, constituiu-se um núcleo habitacional de quatro mil moradores – passou a ser vista como um fator preocupante pela NOVACAP, em vista da possibilidade de se expandir ao redor do Plano Piloto. É importante destacar a situação precária de infraestrutura e moradia característica dos assentamentos irregulares na época, necessitando de uma solução assistencial imediata, correspondente à remoção antecipada da população para o local de implantação da primeira cidade-satélite do Distrito Federal, Taguatinga.

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Ao longo da estrada Brasília-Anápolis, à direita de quem se dirige à cidade goiana defronte da cidade livre, cerca de quatro mil pessoas se instalaram em menos de oito dias. Moravam da maneira mais precária: Barracões de madeira velha, de lata, de folhas de zinco, de sacos de cimento.

Não havia fossas. Nem água. Promiscuidade e falta de higiene. Tudo construído em poucos dias, principalmente durante a noite, para burlar a vigilância dos fiscais.

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Ernesto Silva, “Como nasceu Taguatinga”, in Wílon Lopes, Taguatinga tem memória, Brasília: Comunidade, 1991, p. 52.

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O assentamento da Vila Sarah Kubitschek era formado por migrantes que foram impedidos, pela Guarda Especial de Brasília, de adentrarem na Capital. Considerando a expansão descontrolada da Cidade Livre, o poder público utilizou a força policial para a contenção populacional na região, impedindo a entrada pela rodovia Brasília-Anápolis. Aconselhados a retornarem as suas cidades de origem, muitos optaram por se fixar nas margens da estrada, próximo a Cidade Livre, sob as mais precárias condições de vida.

Taguatinga surgiu como a primeira cidade-satélite planejada a ser construída em 1958, ainda que, na época, o assentamento “Cidade Livre”, que deu origem ao Núcleo Bandeirante, já havia se consolidado como núcleo habitacional permanente. Proposta e construída pelo Governo para abrigar os moradores removidos da Vila Sarah Kubitschek, a distribuição dos primeiros lotes foi feita às pressas, antes mesmo da implantação de infraestrutura urbana. Os lotes foram cedidos a partir do direito de posse pelo comodato, por tempo determinado e com a promessa de que, futuramente, a área seria provida de serviços básicos como água, luz, esgotamento sanitário e pavimentação. 12 As primeiras negociações entre a NOVACAP e os moradores da invasão, que levaram a implantação de Taguatinga, ocorreram no jantar elaborado em homenagem à JK, na Cidade Livre, em 31/05/1958. A população reivindicava a regularização da Vila Sarah Kubitschek, para se instalarem permanentemente na área. Os manifestantes, ao ficarem sabendo da presença de JK no jantar de homenagem na Cidade Livre, organizaram uma interferência. Avisado da intenção dos manifestantes, o Presidente foi aconselhado a não comparecer, enviando como seu representante o Engenheiro Ernesto Silva, então Diretor da NOCAVAP, para entrar em acordo com a população.

Decidiu-se pela remoção dos moradores da invasão para o que seria a primeira cidade satélite de Brasília, denominada Vila Sarah Kubitschek na época de sua inauguração em 06/06/1958, passando por Santa Cruz de Taguatinga, até Taguatinga, como é conhecida atualmente.13 Munido de uma planta rascunhada, Ernesto Silva iniciou a distribuição de lotes em 05/06/1958. A política de remoção da invasão para a primeira cidade satélite de Brasília, a 27 km do Centro Administrativo, contou com a ação da Guarda Especial de Brasília, para controlar a expansão da ocupação, bem como na remoção das moradias para a área destinada, na periferia de Brasília. A partir da leitura de relatos e depoimentos dos primeiros moradores de Taguatinga, é possível verificar uma postura violenta e autoritária nas ações da GEB, contribuindo para a resistência dos moradores à remoção. No primeiro dia, apenas uma família foi convencida a autorizar a remoção de sua moradia para Taguatinga.14

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Alberto Bahout, Taguatinga – Pioneiros e Precursores, Brasília: Editora H P Mendes, 1978.

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Bahout, op. cit.

Ibid.

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Daí as invasões, o recurso dos excluídos para permanecerem na área da nova capital, como uma maneira insistente de contribuírem para a grande obra, apesar dos inúmeros sacrifícios pessoais. Aliás, consta que durante a transferência da população da Vila Sarah Kubitschek para Taguatinga, naquela ocasião uma área desnuda de cerrado sob chuva, ocorreram problemas de doenças e óbitos familiares dos transferidos. Isso faz parte dos relatos anônimos de Candangos que presenciaram essa mudança e testemunharam cenas desconhecidas das páginas brilhantes e elogiosas da magnificência da arquitetura da Capital.15 Semelhante a construção das vilas operárias no início do século XX, as políticas habitacionais empreendidas em Brasília de remoção das invasões para áreas periféricas regulares com infraestrutura prevista, contemplavam apenas aos trabalhadores de baixa renda que possuíssem certo nível de estabilidade financeira, excluindo boa parte da população necessitada.

Por isso, os assentamentos informais continuaram a se expandir em áreas próximas às cidades satélites já urbanizadas.

Nesse contexto, Taguatinga surge já com áreas de invasão, as Vila Matias e Vila Dumas, demonstrando que a forma como as políticas de habitação social foram programadas geravam a exclusão social, selecionando aqueles que teriam o privilégio da moradia legítima.

Apesar da precariedade que Taguatinga foi implantada, a cidade se consolidou como um núcleo urbano de grande importância para a região. Ainda que localizada a 20 km do Plano Piloto, é considerada atualmente o principal núcleo comercial do Distrito Federal. Segundo dados da Companhia de Planejamento do Distrito Federal – Codeplan, em 2011, dos 41,7% da população de Taguatinga que exerce atividade remunerada, 28,7% desenvolve atividades comerciais. Passados 56 anos após sua fundação, em 1958, Taguatinga abriga cerca de 221 mil habitantes, correspondendo a 7,7% da população total do Distrito Federal, estimada em 2,852 milhões no ano de 2014, segundo dados do IBGE.

3. Considerações finais A ideia de que o pobre e sua moradia representavam uma ameaça à saúde pública, além de graves impactos sociais, e por isso deveriam ser removidos para áreas distantes do centro, esteve presente tanto nas medidas de reforma higienista do final do século XIX e início do XX, como nas políticas habitacionais consolidadas em Brasília, durante o período inicial de sua construção. Ao traçar um paralelo entre esses dois importantes recortes temporais na historiografia da habitação social no Brasil, é possível estabelecer uma relação entre a política higienista que levou a construção das Villas operárias no início do século XX e as políticas de 15

Nair Sousa, Maria Machado, Luciana Jaccoud, op. cit., p. 63.

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criação das cidades-satélites periféricas em Brasília, especificamente Taguatinga. A periferização das cidades durante a reforma higienista perdurou por toda a história da habitação social no Brasil. Mesmo a construção de Brasília, que surge como um possível cenário para a adoção de novos rumos à política habitacional desenvolve-se sob um processo de segregação espacial pautado na exclusão social: os primeiros assentamentos de interesse social são removidos para áreas distantes do centro administrativo. A cidade configura-se a partir de um isolamento entre as cidades satélites, habitadas pela classe média e baixa, e o Plano Piloto, restrito como lugar de moradia à pequena parcela de maior renda.

As ações do Estado, tanto na reforma higienista, quanto na construção das cidadessatélites em Brasília, foram pautadas pela ideia de que a moradia do pobre constituía uma ameaça a saúde e a moralidade de uma sociedade que a classe dominante buscava construir. Em ambos os casos, a elite utilizou-se do pensamento higienista para difundir a ideia de exclusão social, receosa de uma configuração urbana que integrasse diversas classes sociais e econômicas. Com a retirada dos cortiços dos centros e a expulsão dos desabrigados para áreas periféricas, surge o processo de segregação espacial nos grandes centros urbanos.

Das primeiras intervenções públicas, com a normatização e controle social das moradias populares, surge o conceito de habitação ideal segundo os preceitos higienistas, reproduzido na construção das Vilas Operárias. A relação entre os preços elevados dos aluguéis e os baixos salários, até a criação da Fundação da Casa Popular em 1946, impediu que grande parte da população de baixa renda pudesse residir em tal modelo habitacional, contribuindo para a proliferação de cortiços clandestinos pelos excluídos. Da mesma forma, a política de habitação social que deu origem a Taguatinga só atendia a famílias de servidores de baixa renda que possuíssem certa estabilidade financeira, excluindo boa parte dos migrantes do direito à moradia.

Taguatinga é então consolidada juntamente com a proliferação de invasões e favelas, ocupadas pela população excluída do direito à moradia. O que era para ser uma política de interesse social, que cumprisse com as condições mínimas de moradia a parcela da população mais necessitada, acabou se tornando uma política de exclusão social.