Cinema do IMS Poços, outubro de 2025

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As canções

, de Eduardo Coutinho

destaques de outubro

Ao longo da Ocupação Eduardo Coutinho, o Cinema do IMS apresenta uma seleção de obras do cineasta. Em As canções, Coutinho convida pessoas comuns a falarem das músicas que marcaram suas vidas. A exibição será seguida de um karaokê na jabuticabeira do IMS Poços. Será exibido também o clássico Dona Flor e seus dois maridos, que tem Coutinho como roteirista.

A Retrospectiva Adelia Sampaio, se eles apagam a gente reescreve apresenta um apanhado de filmes dessa pioneira do cinema brasileiro, junto a Xica da Silva, de Carlos Diegues, escolhido por Adelia para integrar sua Carta Branca pela atuação excepcional de Zezé Motta.

O Dia D, celebração do aniversário de Carlos Drummond de Andrade, apresenta O padre e a moça. Primeiro longa-metragem de Joaquim Pedro de Andrade, o filme é livremente inspirado em um poema de Drummond. Acompanham a exibição uma mesa de debates e leitura de poemas.

Ainda este mês, o mais novo lançamento da produtora mineira Filmes de Plástico, O último episódio, de Maurilio Martins: um filme de época em torno de paixões infantis e do misterioso último episódio de Caverna do dragão. Antonio Pitanga apresenta, em Malês, uma história que se passa na maior insurreição de escravizados da história do Brasil. Aclamado no Festival de Veneza, Toque familiar, longa de estreia da cineasta e coreógrafa Sarah Friedland, disputa um novo ponto de vista sobre mulheres idosas e o processo de perda de memória. Retorna aos cinemas o sucesso Amores brutos. Exibido em cópia restaurada, o filme lançou as carreiras internacionais do diretor Alejandro González Iñárritu e do ator Gael García Bernal.

[imagem da capa]

O último episódio, de Maurilio Martins

Denúncia vazia, de Adelia Sampaio
Amores brutos, de Alejandro González Iñárritu
Malês, de Antonio Pitanga

Em cartaz

Amores brutos (Amores perros)

Alejandro González Iñárritu | DCP, restauração 4K

Malês

Antonio Pitanga | DCP

O último azul

Gabriel Mascaro | DCP

O último episódio

Maurilio Martins | DCP

Paris, Texas

Wim Wenders | DCP, restauração 4K

Toque familiar (Familiar Touch)

Sarah Friedland | DCP

Retrospectiva Adelia

Sampaio: se eles apagam, a gente

reescreve

Adulto não brinca

Adelia Sampaio | Arquivo digital

Denúncia vazia

Adelia Sampaio | Arquivo digital

O mundo de dentro

Adelia Sampaio | DCP

Olhar dos anos 60

Adelia Sampaio | Arquivo digital

Scliar, a persistência da paisagem

Adelia Sampaio | Arquivo digital

Carta branca a

Adelia Sampaio

Xica da Silva

Carlos Diegues | DCP, restauração 2K

Ocupação Eduardo Coutinho

As canções

Eduardo Coutinho | Arquivo digital

Dona Flor e seus dois maridos

Bruno Barreto | DCP

DIA D

O padre e a moça

Joaquim Pedro de Andrade | DCP

Amores brutos (154')

O último azul (86')

19:00 Toque familiar (91')

(114')

Toque familiar (91')

19:30 ocupação eduardo

coutinho

As canções (90')

Neste dia não haverá sessões de cinema

19:00 ocupação eduardo

coutinho

Dona Flor e seus dois maridos (117')

19:00 Amores brutos (154') 4

16:00 O último episódio (112')

19:00 Toque familiar (91')

16:00 Malês (114')

19:00 Xica da Silva (117') 18

16:00 ocupação eduardo

coutinho

As canções (90'), sessão de abertura da exposição

16:00 retrospectiva adelia sampaio

Denúncia vazia + Scliar, a persistência da paisagem + O mundo de dentro + O olhar dos anos 60 + Adulto não brinca (46')

18:00 O último episódio (112') 1/11

16:00 dia d

O padre e a moça (90'), sessão seguida de debate e recital de poesia

16:00 O último azul (86')

18:30 Paris, Texas (145')

16:00 O último episódio (112') 18:30 Amores brutos (154')

ocupação eduardo

coutinho

Dona Flor e seus dois maridos (117')

18:30 Malês (114')

15:30 Amores brutos (154')

18:30 Malês (114')

16:00 ocupação eduardo

coutinho

Dona Flor e seus dois maridos (117')

18:30 Toque familiar (91')

Programa sujeito a alterações. Eventuais mudanças serão informadas em ims.com.br.

Qual a música da sua vida?

GG Albuquerque

Texto originalmente publicado em outubro de 2023, como parte da mostra de filmes Coutinho 90 no Cinema do IMS Paulista.

“É uma história bonita, triste. Mas é a história da minha vida”, diz Maria Aparecida, introduzindo seu relato autobiográfico. Sentada numa cadeira preta posicionada num palco, com cortinas igualmente pretas ao fundo, ela conta a sofrida história: uma gravidez quando ainda era jovem, seguida pela rejeição dos pais e uma alienação parental que quase a levou a matar a filha e cometer suicídio em sequência – até entrar em cena o homem que seria seu futuro marido. Foi um encontro casual no vagão do trem, que evoluiu para o amor da vida, resultando em um casamento de mais de 50 anos. “Eu sempre falo pra ele: não precisa você me amar não, bem. Meu amor dá pra nós dois, e ainda tem sobra. Eu amo demais esse homem. Se eu puder dar minha última gota de sangue por ele, eu dou. E se eu tiver que morrer por ele, eu vou morrer. E vou morrer satisfeitíssima.” Entre metáforas de morte e um amor sem bordas, uma história bonita, triste, que culmina com dona Aparecida cantando os versos do bolero “Perfídia”: “Sofre a tua dor resignadamente”. Além de Maria Aparecida, dezenas de outras pessoas sentam-se na cadeira de As canções e cantam músicas que marcaram suas vidas, narrando as memórias inesquecíveis que tiveram o citado som como trilha sonora. São histórias de nostalgias,

desilusões, superações, erros, desencontros, alegrias, saudades, fantasias e tragédias. Mas, sobretudo, histórias de amor, tristes, bonitas, como descreve dona Aparecida. No filme, as músicas não são um mero pano de fundo. Elas indicam maneiras de inventar uma cultura sentimental, construindo um imaginário coletivo de como sentir o amor – e, claro, do que é sofrer. Os versos e as vozes de Roberto Carlos (o mais citado), Waldick Soriano, Maria Bethânia, Agostinho dos Santos, Noel Rosa, Aracy de Almeida, Silvinho, Tom Jobim e Jorge Ben são a espinha dorsal dos modos de experimentar o arrebatamento das paixões. A canção parece expressar algo que não seria possível no mundo cotidiano, alguma coisa que somente a fala não é capaz de incorporar. Um dos personagens do filme conta que, quando sua esposa faleceu, ele se despediu da mulher e “pediu para ela ficar longe”. Por trás das câmeras, Eduardo Coutinho indaga: “Como é pedir para alguém que morreu ficar longe?”. Ele não responde diretamente. Em vez disso, canta os versos de uma música, com letra feita por ele mesmo. A música é a resposta e também a marca de um sentimento ambíguo, a insistência de uma memória, a cicatriz de uma mágoa, o fundo indizível da experiência.

À primeira vista, As canções não demonstra o experimentalismo radical de outros trabalhos de Coutinho – como Jogo de cena (em que as fronteiras entre a ficção e o documental são tensionadas até o limite), Um dia na vida (feito inteiramente com imagens da TV aberta brasileira, simulando a programação de um dia inteiro) ou O fim e o princípio (um filme feito do zero, sem pesquisa prévia, locação ou personagens estabelecidos). A assinatura do diretor faz-se notável, sutilmente, no método de seleção de personagens, na condução de entrevistas e no trabalho de montagem.

Coutinho anunciou em jornais e espalhou panfletos pela rua com a pergunta: “Qual a música da sua vida?”. Dezenas de pessoas entraram em contato, mostrando-se interessadas em conversar a respeito. Após uma conversa inicial, mais de 40 homens e mulheres se sentaram para uma entrevista com o diretor. Desses, cerca da metade entrou para o corte final do filme. Cada um se senta diante da câmera e conta sua história tendo a música como mote inicial. O diretor, no entanto, explora também detalhes preciosos, como os momentos em que as pessoas se levantam e continuam em cena, às vezes se despedindo – como é o caso do comandante Barbosa e sua saída

triunfal cantando “A volta do boêmio”. Assim, Coutinho aponta para como as pessoas comuns também fabulam e encenam discretamente as suas próprias biografias e constroem suas autoimagens. A escolha de não incluir trilha sonora também é oportuna, revelando as diferentes expressões faciais de cada personagem, alguns mais convictos e entregues, outros mais tímidos, recatados, por vezes inseguros.

Além disso, há também o modo de entrevistar. Coutinho consegue ser atencioso e paciente, mas também direto e sem meias-palavras ao fazer perguntas delicadas. Aos poucos, os personagens vão se abrindo em suas camadas mais profundas. Sonia, por exemplo, diz que não amou nenhum outro homem desde o seu namorado de adolescência – e que continua acompanhando o ex-parceiro pelo Orkut. Outra mulher diz que, em 20 anos de relacionamento, nunca se sentiu verdadeiramente amada. Enquanto isso, um idoso admite que fez sua mulher sofrer por muitos anos e agora tenta compensar no fim da relação. Já um outro homem chora ao cantar “Esmeralda”, de Agostinho dos Santos, e lembrar de sua mãe – que, ao contrário do que imaginamos, está viva. Ele comenta: “Não sei por que foi que eu chorei, é uma lembrança boa. O choro foi esquisito.”

Em certo ponto, Coutinho pergunta a uma das suas entrevistadas se o fato de relembrar aquele episódio e comentá-lo publicamente ajudava a cicatrizar as feridas. Ela então responde: “Foi como botar um fecho de ouro e contar pra todo mundo que procurei outro caminho”. É nesse movimento que As canções emerge como uma delicada sessão de terapia. Não no sentido de cura ou de uma utópica salvação pela arte, mas como um compartilhamento cordial e sincero daquilo que há de mais íntimo. Nessa dinâmica de escuta, o filme constrói uma sensibilidade rara entre documentários: em vez de causos espetaculares, as histórias daquelas pessoas parecem falar diretamente sobre nós, conosco. Histórias tão únicas quanto iguais, tão particulares quanto coletivas – tudo cabe nas vidas nessas canções tristes, bonitas que habitam o Brasil e vivem em seu povo.

O padre, a moça

Desde 2011, a cada 31 de outubro o IMS organiza o Dia D - Dia Drummond, para celebrar o dia de nascimento do poeta Carlos Drummond de Andrade, cujo acervo está em parte sob a guarda do instituto.

Este ano, a celebração do Dia D, no IMS Poços, inclui a exibição de O padre e a moça, de Joaquim Pedro de Andrade, longa-metragem livremente inspirado no poema de Drummond aqui reproduzido.

1. O padre furtou a moça, fugiu

Pedras caem no padre, deslizam

A moça grudou no padre, vira sombra, aragem matinal soprando no padre.

Ninguém prende aqueles dois, Aquele um

Negro amor de rendas brancas.

Lá vai o padre, atravessa o Piauí, lá vai o padre, bispos correm atrás, lá vai o padre, lá vai o padre lá vai o padre lá vai o padre, diabo em forma de gente, sagrado.

Na capela ficou a ausência do padre

E celebra a missa dentro do arcaz.

Longe o padre vai celebrando vai cantando todo amor é o amor e ninguém sabe onde Deus acaba e recomeça.

2. Forças volantes atacam o padre, quem disse que exércitos vencem o padre? Patrulhas

rendem-se

O helicóptero desenha no ar o triângulo santíssimo, o padre recebe bênçãos animais, ternos relâmpagos douram a face da moça.

E no alto da serra

O padre entre as cordas da chuva o padre

no arcano da moça o padre.

Vamos cercá-los, gente, em Goiás

Quem sabe se em Pernambuco?

Desceu o Tocantins, foi visto em Macapá Corumbá Jaraguá Pelotas em pé no caminho da BR-15 com seu rosário na mão lá vai e a moça vai dentro dele, é reza de padre.

Ai que não podemos contra vossos poderes guerrear ai que não ousamos contra vossos mistérios debater ai que de todo não sentimos contra vosso pecado o fecundo terror da religião.

Perdoai-nos, padre, porque vos perseguimos.

3. E o padre não perdoa: lá vai levando o Cristo e o Crime no alforje e deixa marcas de sola de poeira.

Chagas se fecham, tocando-as, filhos resultam de ventre estéril mudos e árvores falam

tudo é testemunho

Só um anjo de asas secas, voando de Crateús, senta-se à beira-estrada e chora porque Deus tomou o partido do padre.

Em cem léguas de sertão é tudo estalar de joelhos no chão é tudo implorar ao padre que não leve outras meninas para seu negro destino ou que leve tão leve que ninguém lhes sinta falta, amortalhadas, dispersas na escureza da batina.

Quem tem sua filha moça padece muito vexame; contempla-se numa poça de fel em cerca de arame.

Mas se foi Deus quem mandou?

Anhos imolados não por sete alvas espadas mas por um dardo do céu: que se libere esta presa à sublime natureza de Deus com fome de moça. Padre, levai nossas filhas!

O vosso amor, padre, queima

como fogo de coivara não saberia queimar.

E o padre, sem se render ao ofertório das virgens, lá vai, coisa preta no ar.

Onde pousa o padre

é Amor-de-Padre onde bebe o padre

é Beijo-de-Padre onde dorme o padre

é Noite-de-Padre mil lugares-padre ungem o Brasil mapa vela acesa.

4. Mas o padre entristece. Tudo engoiva em redor. Não, Deus é astúcia, e para maior pena, maior pompa. Deus é espinho. E está fincado

No ponto mais suave deste amor.

Se toda a natureza vem a bodas, e os homens se prosternam, e a lei perde o sumo, o padre sabe o que não sabemos nunca, o padre esgota o amor humano.

A moça beija a febre do seu rosto. há um gládio brilhando na alta nuvem que eram só carneirinhos há um instante.

– Padre, me roubaste a donzelice ou fui eu que te dei o que era dável?

Não fui eu quem te amei como se ama

Aquilo que é sublime e vem trazer-me, rendido, o que eu não merecia mas amava?

Padre, sou teu pecado, tua angústia?

Tua alma se escraviza à tua escrava?

És meu prisioneiro, estás fechado em meu cofre de gozo e de extermínio, e queres liberar-te? Padre, fala! ou antes, cala. Padre, não me digas que no teu peito amor guerreia amor, e que não escolheste para sempre.

5. Que repórteres são esses entrevistando um silêncio?

O Correio, Globo, Estado Manchete, France-Presse, telef otografando o invisível?

Quem alça cabeça pensa e nas pupilas rastreia uma luz fosforescente responde não?

Quem roga ao padre que pose e o padre posa e não sente que está posando entre secas oliveiras de um jardim onde não chega o retintim deste mundo?

E que vale uma entrevista se o que não alcança a vista nem a razão apreende é a verdadeira notícia?

6. É meia-treva, e o Príncipe baixando entre cactos sem mover palavra fita o padre na menina-dos-olhos ensombrada.

A um breve clarear, o Príncipe, em toda sua púrpura como só merecem defrontá-lo os que ousam um dia. Os dois se medem na paisagem de couro e ossos estudando-se.

O que um não diz outro pressente. Nem desafio nem malícia nem arrogância ou medo encouraçado: o surdo entendimento dos poderes.

O padre já não pode ser tentado.

Há um solene torpor no tempo morto, e, para além do pecado, uma zona em que o ato é duramente ato.

Em toda a sua púrpura o Príncipe desintrega-se no ar.

7. Quando lhe falta o demônio e Deus não o socorre;

quando o homem é apenas homem por si mesmo limitado, em si mesmo refletido; e flutua vazio de julgamento no espaço sem raízes; e perde o eco de seu passado, a campainha de seu presente, a semente de seu futuro; quando está propriamente nu: e o jogo, feito até a última cartada da última jogada. Quando. Quando. Quando.

8. Ao relento, no sílex da noite, os corpos entrançados transfundidos sorvem o mesmo sono de raízes e é como se de sempre se soubessem uma unidade errante a convocar-se e a diluir-se mudamente Mas de rompante a mão do padre sente o vazio do ar onde boiava a confiada morna ondulação

A moça, madrugada, não existe

O padre agarra a ausência e eis que um soluço humano, desumano e longiperto trespassa a noitidão a céu aberto

A chama galopante vai cobrindo um tinido de freios mastigados

e de patas ferreadas, e em sete freguesias

passa e repassa a grande mula aflita.

Urro de fera fúria de burrinha grito de remorso choro de criança?

Por que Deus se diverte castigando?

Por que degrada o amor sem destruí-lo?

e a cabeça da mula sem cabeça ainda é o rosto de amor, onde sem sigilo a ternura defesa vai flutuando?

Um rosto de besta entre as ciências do padre entre as poderosas rezas do padre nenhuma para resgatá-lo

Resta deitar a febre na pedra e aguardar o terceiro canto do galo

No barro vermelho da alva a mão descobre o dormir de moça misturado ao dormir de padre.

9. E já sem rumo prosseguem na descrença de pousar, clandestinos de navio

que deitou âncora no ar

Já não se curvam fiéis vendo réprobo passar, mas antes dedos em sustos implantam a cruz no ar

A moça, o padre se fartam da própria gula de amar O amor se vinga, consome-os laranja cortada no ar.

Ao fim da rota poeirenta ouve-se a igreja cantar

Mas cerraram-se-lhe as portas e o sino entristece no ar.

O senhor bispo, chamado com voz rouca de implorar, trancou-se na sua Roma de rocha, castelo de ar.

Entre pecado e pecado há muito de epilogar.

Que venha o padre sozinho, o resto se esfume no ar.

Padre e moça de tão juntos não sabem se separar.

Passa o tempo no destinguo entre duas nuvens no ar.

10. E de tanto fugir já fogem não dos outros mas de sua mesma fuga a distraí-los. Para mais longe, aonde não chegue a ambição de chegar:

área vazia no espaço vazio sem uma linha uma coroa um D.

A gruta é grande e chama por todos os ecos organizados.

A gruta nem é negra de tantos negrumes que se fundem nos ângulos agudos a gruta é branca, e chama.

Entram curvos, como numa igreja feita para fiéis ajoelhados.

Entram baixos terreais na posição dos mortos, quase.

A gruta é funda a gruta é mais extensa do que a gruta o padre sente a gruta e o padre invade a moça a gruta se esparrama sobre o musgo, o calcário, o úmido medo

à maneira católica do sono. Primas de luz primeira despertando de uma dobra qualquer de rocha mansa. Cantar angélico subindo em meio a cega fauna cavernícola e dizendo de céus mais que cristãos sobre o musgo, o calcário, o úmido medo

da condição vivente

Que perdão mais solene se humaniza e chega à provação e paira em benção?

Que festiva paixão lança seu carro de ouro e glória imperial para levá-los à presença de Deus feita sorriso?

Que fumo de suave sacrifício lhes afaga as narinas?

Que santidade súbita lhes corta a respiração, com visitá-los?

Que esvair-se de males, que desfal ecimentos teresinos?

Que sensação de vida triunfante no empalidecer de humano sopro contingente?

Fora ao crepitar da lenha pura e medindo das chamas o declínio, eis que perseguidores se perseguiam.

Amores brutos

Amores perros

Alejandro González Iñárritu | México | 2000, 154’, DCP (Retrato Filmes), restauração 4K

As histórias pessoais de três personagens são entrelaçadas a partir de um acidente de carro na Cidade do México: Octavio, o dono de um cachorro de lutas clandestinas que quer fugir com sua cunhada Susana; Daniel, que deixa sua esposa para viver com a supermodelo Valeria; e Chivo, um homem em situação de rua que tenta voltar para a família.

Passados 25 anos de sua estreia, o filme, que lançou as carreiras internacionais de Alejandro González Iñárritu e Gael García Bernal, retorna aos cinemas em uma nova restauração 4K. Em entrevista a Anthony D’Alessandro para o portal Deadline, o diretor conta:

“Naquela época, no México, produziam-se apenas sete filmes por ano. Em 30 anos, ninguém tinha tido um filme no Festival de Cannes além de Arturo Ripstein. Fora isso, éramos invisíveis no cinema internacional. Não havia mercado nacional

para o cinema mexicano. Foi um período horrível, quase todos os filmes eram subsidiados pelo governo. Você precisava se tornar membro do sindicato para poder ser diretor de fotografia. Foi um milagre [tirar esse filme do papel]. Na época, existia uma empresa chamada Altavista que decidiu criar uma companhia de financiamento privado. O roteiro era longo. Eu trabalhava muito com publicidade e rádio, e eles conheciam meu trabalho. Concederam-nos 2 milhões de dólares. No México, não havia carreira como cineasta. Você fazia um filme, e agradecia por ter tido uma chance. E, nessa chance, era preciso colocar tudo o que você pensava, tudo o que desejava. É por isso que o filme é minimalista e um guacamole de ideias densas, de contradições – trata-se de um experimento tropológico que é a nossa cidade, a Cidade do México. Colocamos todo o nosso coração. Eu não tinha nenhuma expectativa, e fiz tudo o que pude. Éramos jovens. O filme ficou pronto, eu o editei em casa e o enviei para o comitê de Cannes.”

Após uma rejeição inicial pelo comitê latino-americano de seleção da edição de 2000 do Festival de Cannes, Amores brutos foi selecionado para a mostra paralela Semana da Crítica, onde recebeu o Grande Prêmio. Sua restauração foi lançada este ano na seleção oficial do festival, na seção Cannes Classics.

[Íntegra da entrevista, em inglês: tinyurl.com/ perrosagi]

Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia).

Malês

Antonio Pitanga | Brasil | 2024, 114’, DCP (Imovision)

Uma jornada de resistência e coragem, ambientada na Salvador de 1835. Durante seu casamento, dois jovens muçulmanos são arrancados de sua terra natal na África e escravizados no Brasil. Separados pelo destino cruel, ambos lutam para sobreviver e reencontrar-se, enquanto se veem envolvidos na maior insurreição de escravizados da história do Brasil: a Revolta dos Malês. Mais de 45 anos após seu longa-metragem anterior, Antonio Pitanga, um dos mais importantes atores do cinema e televisão brasileiros, retorna à direção com Malês. Em entrevista a Afonso Bezerra para o programa de rádio Bem Viver, o artista conta as origens do projeto: “Malês é um projeto que eu tô voltado nele há praticamente 26 anos, quando tive um movimento com Glauber Rocha, ainda vivo. Eu fazia o último filme dele, A idade da terra, e nós, baianos que saímos da Bahia pra morar no Rio e São Paulo. E esse

filme, A idade da terra, era exatamente a proposta, o movimento que ele tava fazendo para que voltássemos pra Bahia, porque, no que saímos da Bahia, a gente deixou um espaço vazio na política e na cultura. [...] Glauber disse: ‘Tá na hora de a gente voltar pra casa, Pitanga’. E um dos projetos dele, que ele me tocava, era fazer exatamente Malês. Ele disse: ‘Vamos voltar e eu quero produzir Malês pra você’. E o Glauber já morreu há quase 30 anos e ficou adormecido ali. Foi quando me deu a vontade, vendo o filme do Spielberg, Amistad, digo: ‘Nós temos uma história maravilhosa que é a história do Brasil’. Não é a história do negro. É a história do Brasil. É um dos mais importantes, ou o mais importante levante feito no país, com o negro do islã, o negro do candomblé, negro católico, a população em si negra escravizada que, nesse movimento, teve a possibilidade e a bandeira correta de levantar uma democracia, contra o preconceito, contra o tipo de perseguição, de racismo. Exatamente aí que eu deitei em cima dessa narrativa, dessa história, e disse: ‘Vamos fazer esse filme’.

Com argumento de Orlando Senna (codiretor de Iracema, uma transa amazônica e Gitirana) e roteiro de Manuela Dias (autora das novelas Amor de mãe e do remake de Vale tudo), Pitanga contracena no filme com seus filhos, Camila Pitanga e Rocco Pitanga.

[Depoimentos extraídos de: tinyurl.com/malesims]

Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia).

O último azul

Gabriel Mascaro | Brasil, Chile, Holanda | 2025, 86’, DCP (Vitrine Filmes)

Para maximizar a produtividade econômica, o governo ordena que os idosos se mudem para colônias habitacionais distantes. Tereza, 77, se recusa – em vez disso, embarca em uma jornada pela Amazônia que mudará seu destino para sempre.

Com um elenco que inclui Denise Weinberg e Rodrigo Santoro, o mais recente filme de Gabriel Mascaro foi vencedor do Urso de Prata no Festival de Berlim 2025, na Alemanha, onde também recebeu os prêmios do Júri Ecumênico e do Júri de Leitores do Berliner Morgenpost. No Festival Internacional de Cine en Guadalajara, no México, também recebeu os prêmios de Melhor Filme Iberoamericano de Ficção e o Prêmio Maguey de Melhor Interpretação para Denise Weinberg.

Em entrevista a Nataliia Serebriakova para o portal Dirty Movies, o diretor conta: “Minha bisavó começou a pintar aos 80 anos – do nada. Isso realmente me ensinou como alguém pode redescobrir a vida nessa idade. Aconteceu depois que meu avô faleceu, e esse momento sutil me afetou profundamente. Fez com que eu quisesse explorar o corpo idoso no cinema – como o filme pode abordar essa perspectiva?”

“Raramente vemos protagonistas idosos em papéis centrais no cinema narrativo ou na literatura. Quando comecei a pesquisar referências, me deparei com Ozu. A narrativa dele é incrível, mas seus personagens idosos muitas vezes olham para o passado – para um tempo que já passou, um tempo do qual eles não participam mais. Há uma sensação de deslocamento, como se existissem apenas na memória. O trabalho do Haneke também é brilhante, mas, em seus filmes, a presença da morte é iminente – há sempre um prazo, um limite pairando no ar.”

“Percebi uma lacuna na forma como retratamos corpos idosos no presente. Eu não queria fazer um filme sobre o passado, mas sim sobre um corpo que está vivo, experimentando as contradições do presente, redescobrindo a vida. É interessante como os gêneros tradicionais muitas vezes não permitem isso. Por exemplo, em filmes distópicos, pessoas idosas raramente são protagonistas. A rebelião é vista como algo da juventude. Eu quis quebrar essa tradição – trazer os idosos para dentro do gênero e permitir que eles incorporem a experiência de rebelião contra o sistema.”

“Assim, o filme mistura elementos de fantasia, distopia e até de coming-of-age. Mas por que o coming-of-age deve se limitar aos adolescentes?

Existem tão poucos ritos de passagem para os idosos. O que criei no filme é que, ao atingir certa idade, o Estado coloca você em um espaço designado.”

[Íntegra da entrevista, em inglês: tinyurl.com/ ultimoazulgm]

Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia).

O último episódio

Maurilio Martins | Brasil | 2025, 112’, DCP (Malute e Embaúba Filmes)

Erik, um garoto de 13 anos, alimenta uma paixão platônica por Sheilla e, para se aproximar dela, diz ter em casa uma fita com o lendário último episódio do desenho Caverna do dragão. Com a ajuda de seus melhores amigos, ele precisa criar uma solução para a enrascada em que se meteu. O último episódio é o mais novo lançamento da produtora mineira Filmes de Plástico. Em depoimento disponível no material de imprensa do filme, o diretor Maurilio Martins (No coração do mundo) conta: “Há muitos traços biográficos, ainda que não seja a minha história, ainda que aquilo nunca tenha acontecido comigo. O filme se passa em 1991, e eu tinha 13 anos em 1991. Eu não necessariamente morei na casa onde o personagem mora, mas ela fica em frente à minha casa. Por coincidência, é uma casa que, desde a primeira versão do roteiro, eu sempre quis que fosse ali onde o filme fosse filmado.”

“Eu acho que, mais do que a cidade de Contagem, eu tenho me aprofundado ainda mais no lugar onde eu nasci, cresci e vivi minha vida inteira, que é o Laguna. Quase como se fosse uma cidade dentro da cidade. Em parte, porque a gente sempre viveu um pouco isolado, tanto da região mais central de Contagem quanto da região central de Belo Horizonte.”

“E tem uma coisa que é muito importante de se dizer. Eu acho que esse filme cumpre um papel que, de certo modo, os nossos filmes vêm cumprindo, mas é a primeira vez que a gente faz um filme de época, a primeira vez que a gente precisa recriar um espaço. E aí entra um traço que é muito triste, no sentido da preservação. Na periferia, existe algo que funciona como um sinal de obtenção de uma vida melhor. Um indicativo muito forte de que sua vida está melhorando é quando você consegue reformar a sua casa, derrubar e construir outra, trocar o muro, trocar o passeio. Essa reforma, essa mudança, é muito constante na periferia. Por isso, você não tem quase nada preservado. A ideia de preservação caminha para outros lados.”

“Então, no filme, a gente tenta, inclusive se valendo de efeitos especiais, reconstrução em 3D, apagamento de algumas coisas, reconstruir ao máximo, dentro do que é possível, essa Contagem dos anos 1980. Esse bairro Laguna dos anos 1980, início dos 1990 – mais especificamente os anos 1990, porque o filme se passa em 1991. Acho que as fotos utilizadas ali e aquele vídeo conectam ainda mais a gente com esse espaço. E, claro, também nos valemos das poucas construções que ainda foram preservadas, que ainda se mantiveram. Tivemos um trabalho de arte

belíssimo, magnífico, especialmente na reconstrução da mercearia, dos ambientes internos. Isso provoca algo muito forte e te coloca muito próximo do que era, mesmo depois de tudo o que já passou.”

“Dentro do que a gente podia, cinematograficamente falando, acho que fomos muito fiéis a esse espaço. E isso me dá um orgulho muito grande.”

Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia).

Paris, Texas

Wim Wenders | Alemanha, França, Reino Unido | 1984, 145’, DCP (O2 Play), restauração 4K

No meio do nada, um homem magro, de terno escuro e boné de beisebol vermelho surge no calor escaldante do deserto entre os Estados Unidos e o México. Seu nome é Travis. Ele bebe um último gole de água e segue em frente, obstinadamente, para uma região inóspita que os moradores chamam de Parque do Diabo. Travis pode parecer mudo e perdido, mas é movido pelo desejo de se reconectar com a família.

Com roteiro de Sam Shepard e uma trilha sonora marcante de Ry Cooler, o filme de Wim Wenders foi vencedor da Palma de Ouro, principal prêmio do Festival de Cannes, em 1984.

“Lutei muito para estar na posição em que estou agora”, declarou Wenders em entrevista do mesmo ano à revista Film Quaterly. “Depois dos problemas dos últimos anos, cheguei a um ponto em que a única saída para mim foi pegar uma câmera, andar pela rua e simplesmente olhar as coisas.

De certa forma, a narrativa sempre foi um... bloqueio romântico, um problema. Comecei como pintor, e um pouco disso permaneceu em mim. Sempre pensei que o cinema – a própria coisa, os filmes – foi inventado, antes de tudo, para testemunhar o século XX. Sempre me senti muito atraído pelos documentários, mas também sempre achei que os longas-metragens são, de certa maneira, os verdadeiros documentos do nosso tempo. Especialmente quando são fantasias ousadas, como, digamos, Um corpo que cai, de Hitchcock. Se alguém daqui a 500 anos encontrasse Um corpo que cai, teria uma noção bastante clara de como era a América em 1958. [...] Acredito que seja extremamente saudável – uma espécie de terapia para qualquer um que tenta contar histórias – sair sem ter nada para contar, sem narrativa, sem ficção, e tentar encontrar a forma certa de representar algo. Insisto muito que isso faz parte do meu trabalho.”

“Há também uma visão mais ampla, que é a situação do cinema, da realização de filmes agora, em 1984. E, claro, há uma história de 60 ou 70 anos. Fiz vários filmes que estavam mais preocupados em refletir a si mesmos do que em refletir qualquer coisa que existisse fora do cinema. E você pode chamar isso de vida, ou verdade, ou seja lá o que for. Realidade. Não importa. Quero dizer, todas essas palavras proibidas. E eu vejo muitos filmes, e estava ficando frustrado não apenas com meu próprio trabalho e sua reflexividade, mas também com outros filmes, porque parecia que não havia mais saída. Qualquer filme que você fosse assistir, sua nutrição, sua vida, sua alimentação, suas raízes, vinham de outros filmes. Do próprio cinema. Eu já não via mais nada que

realmente tentasse redefinir uma relação entre a vida e as imagens feitas a partir da vida. Hoje em dia, qualquer coisa que você vá assistir, você se senta lá e, depois de um tempo, percebe que está envolvido de novo em algo que nasceu e tem recapitulado uma experiência que vem de outros filmes. E acho que isso é realmente um beco sem saída muito sério para algo que eu amo profundamente: o cinema. E eu também fiz a minha parte nisso.”

“Paris, Texas foi – não diria desesperado, porque eu não estava tão desesperado enquanto o fazia –, mas, ao final de O estado das coisas, não havia outra escolha senão redefinir, ou reencontrar, ou redescobrir o que é isto: filmar algo que existe, e filmar algo que existe totalmente à parte dos filmes.”

Quatro décadas depois, o filme retorna aos cinemas em uma restauração 4K feita no laboratório L’Immagine Ritrovata, em Bolonha, a partir do negativo original 35 mm, com supervisão de Wenders.

[Íntegra da entrevista, em inglês: tinyurl.com/ paristexasww]

Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia).

Toque familiar

Familiar Touch

Sarah Friedland | EUA | 2024, 91’, DCP (Imovision)

Uma mulher de 80 anos está na transição para uma vida assistida. Enquanto lida com a adaptação na casa de repouso, ela começa a criar conflitos consigo mesma e com seus cuidadores, em meio às mudanças de sua memória, sua identidade e seus desejos.

A estreia de Sarah Friedland no longa-metragem foi amplamente aclamada na edição de 2024 do Festival de Veneza, onde Toque familiar conquistou os prêmios Leão do Futuro (Melhor Filme de Estreia); Melhor Direção, na seção Orizzonti; e Melhor Atriz, para Kathleen Chalfant. A cineasta, que vinha de uma carreira focada em filmes coreográficos, desenvolveu o filme como um roteiro de movimentos, inspirado nas vivências com sua avó, que desenvolveu demência e se tornou não verbal, e também no trabalho como cuidadora de idosos. Parte da proposta residia em disputar a imagem

da velhice e da demência unicamente como uma narrativa de declínio ou de sofrimento do ponto de vista do entorno familiar.

“A ideia que fundamentou a linguagem visual para nós foi a de querer captar não apenas as percepções sensoriais de Ruth, mas, literalmente, a forma como ela constrói sentido para o mundo e para si mesma através do corpo”, declara a cineasta em entrevista a Nicolas Rapold para a Filmmaker Magazine. “Uma das características do tipo de filme [que retrata velhice e perda de memória] que você descreveu, sem citar nomes, é que a narrativa da decadência se baseia em pensar a pessoa unicamente a partir do seu eu cognitivo. Quando as faculdades cognitivas mudam ou declinam, conclui-se que a pessoa já não é mais ela mesma. E acho que parte da minha formação coreográfica me leva a me interessar justamente por personagens e pela noção de identidade que surge da corporificação e de outros sentidos. Algo que muitas pessoas não sabem sobre as experiências de perda de memória é que, para muitos, outros sentidos se intensificam mesmo quando as faculdades cognitivas declinam – o tato, o paladar, o olfato, as experiências de linguagem corporal e postura ficam mais aguçados. Portanto, queríamos criar a perspectiva de Ruth não pelo olhar ocular dela – existem apenas dois planos de ponto de vista literal no filme –, mas pela sua perspectiva incorporada, e elaborar uma linguagem visual que captasse Ruth através do toque, dos gestos, das experiências sonoras.”

“Uma das coisas que descobri como cuidadora foi que algo universal entre nós é o desejo de expressar nossa agência e autonomia de diferentes maneiras. Mesmo quando meus clientes

precisavam de cuidados para existir no mundo social e enfrentar o dia, eu me comovia profundamente com as pequenas formas pelas quais ainda expressavam sua autonomia e independência. Por exemplo, para uma mulher com quem trabalhei, escolher sua roupa todos os dias era incrivelmente importante. Essa escolha era onde ela encontrava agência. Para outra artista com quem trabalhei, fazer sua própria lista de compras e escolher cada vegetal pessoalmente era muito importante. Há ecos de todas essas pessoas em Ruth. Eu queria retratar a continuidade desses adultos, e não apenas seu declínio. E, em uma nota pessoal, as duas avós que tive são mulheres autoritárias, mandonas, afiadas! Acho que a forma como atribuímos essa ‘fofura’ às mulheres mais velhas é extremamente sexista e infantilizante. Eu queria mostrar a continuidade do poder e da autoexpressão de Ruth, porque é isso que eu conheci como verdade nas mulheres mais velhas que me são próximas.”

[Íntegra da entrevista, em inglês: tinyurl.com/ familiarsf]

Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia).

Retrospectiva Adelia Sampaio: se eles apagam, a gente reescreve

Celebrar Adelia Sampaio é reconhecer uma trajetória de mais de cinco décadas marcada por coragem e invenção no cinema brasileiro. Primeira mulher negra a dirigir um longa no país, com Amor maldito (1984), uma das primeiras obras da América Latina a tratar a lesbofobia de forma direta, Adelia abriu caminho em uma indústria marcada por exclusões. Autodidata, iniciou na Difilm e construiu sua própria produtora, assinando curtas, como Denúncia vazia, e documentários, como AI-05: o dia que não existiu, além de produzir filmes fundamentais, como O segredo da rosa, de Vanja Orico, e Parceiros da aventura, de José Medeiros.

Esta retrospectiva integra a programação do Cinema IMS dedicada às mulheres pioneiras na direção, que já incluiu Ida Lupino, e homenagens a cineastas que marcaram a história, como Jorge Bodanzky e Billy Woodberry. Ao trazer para o centro a obra de Adelia Sampaio, o IMS reafirma a urgência de reconhecer e difundir a contribuição de uma cineasta cuja trajetória tensiona silenciamentos históricos e inscreve novas possibilidades de leitura do cinema brasileiro. Seu legado, que constitui memória, segue inaugurando caminhos que fazem de Adelia Sampaio pioneira do cinema negro feminino no país.

A programação teve início em setembro e segue em cartaz no Cinema do IMS Poços.

Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).

Denúncia vazia

Adelia Sampaio | Brasil | 1979, 8’, Arquivo digital (Acervo da diretora)

Sem recursos para o aluguel de outro apartamento, dois velhinhos resolvem suicidar-se depois de receberem uma intimação de despejo. Denúncia vazia é o primeiro filme dirigido e roteirizado por Adelia Sampaio, que já tinha uma carreira na direção de produção de filmes. “Passar de diretora de produção para direção já é uma coisa complexa”, disse em entrevista à revista Filme Cultura, publicada em 1988. “Partindo da premissa de que cinema é efetivamente uma arte muito elitista, eu não estou inclusa nesse padrão. Sou uma mulher, também é uma coisa meio complicada, não dão muito crédito. Embora para mim a dificuldade no que tange a montar uma estrutura para realizar um trabalho meu não foi muito complicada, em função de muitas pessoas com as

quais trabalhei no cinema e que, de certa forma, me conheciam. Agora, dessas pessoas, eu conto a dedo as que acreditavam na possibilidade de eu ter condições, realmente, de dirigir um trabalho. O Denúncia vazia foi a primeira arrancada, numa tentativa de manipular o plano, de saber o eixo, quer dizer, a coisa técnica de cinema. E pegando o Rodolfo Arena, que, para mim, é uma pessoa muito importante, eu tinha o maior carinho e um grande respeito por ele, pela trajetória profissional dele. O Arena disse para mim uma coisa muito engraçada: ‘Você não se preocupe com a minha ribalta, eu quero ver se você realmente aprendeu tudo isso que você diz estar pronta pra fazer. Eu não vou te dar a minha contribuição, apenas vou ceder minha imagem e meu trabalho de ator. Agora, se você me dirigir errado, eu vou sair errado no filme.’ E, depois de pronto, uma das pessoas que mais defenderam o filme foi o Arena. Ele achou que eu consegui passar uma coisa que é a angústia e a sensibilidade daqueles velhos. Isso, para mim, foi muito importante. E, na parte técnica, eu estava fazendo o meu primeiro curta-metragem com um fotógrafo que também estava fotografando pela primeira vez, e que foi, durante muitos anos, assistente do José Medeiros, que é o Paulão [Paulo Cesar Mauro]. De certa forma, também há uma coisa do cinema brasileiro: quando o filme fica muito bom e é de um estreante, a pessoa logo justifica: ‘Não, isso é de um fotógrafo que era muito experiente e que deu as dicas’. E eu escolhi o Paulão também por causa disso.”

Entrevistada em 2016 no programa Espelho, de Lázaro Ramos, Adelia conta: “O curta foi para o Festival de Brasília, e, pra minha surpresa, uma filha dos velhinhos tava lá. E me disse: ‘Que louco, como é que você adivinhou que mamãe tinha mania de ver álbum de fotografias, tomar chazinho, enfim...’. Eu fiquei muito gratificada com o Denúncia por isso.”

[A entrevista da Filme Cultura está disponível em: tinyurl.com/denunciavaziaas; e o programa Espelho está disponível para assinantes Globoplay no link: tinyurl.com/espelhoas]

Adulto não brinca

Adelia Sampaio | Brasil | 1980, 8’, Arquivo digital (Acervo da diretora)

A tradição da malhação do Judas no subúrbio. O boneco é colocado na rua como um cadáver, e um bando de crianças se vê às voltas com as consequências dessa inovação.

Scliar, a persistência da paisagem

Adelia Sampaio | Brasil | 1991, 16’, Arquivo digital (Acervo da diretora)

Scliar, um pintor do mundo, mergulhado no tempo de seu silêncio. Tudo que o artista buscava trazer para a pele e o coração de sua pintura é a vibração interior de cada habitante do mundo. A vibração cromática não vem das tintas, e sim da terra que colhe a cada lugar que visita. Scliar usava terra para dar cor às suas telas. Filme feito em paralelo à exposição homônima do artista plástico Carlos Scliar em 1991 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

O mundo de dentro

Adelia Sampaio | Brasil | 2018, 8’, Arquivo digital (Acervo da diretora)

O mundo de dentro aborda a geração dos anos 1960, especialmente o choque causado pelos casos de HIV/aids que começaram a surgir no período pós-ditadura no Brasil.

Olhar dos anos 60

Adelia Sampaio | Brasil | 2024, 5’, Arquivo digital (Acervo da diretora)

Uma geração alegre, inquieta e enérgica, que protagonizou muitas revoluções e movimentos de contracultura, devastada pela ditadura militar e pela aids.

Carta branca a Adelia Sampaio

Convidada a apontar para três referências cinematográficas, Adelia Sampaio mira em Xica da Silva, de Cacá Diegues, o trabalho atoral de Zezé Motta e a fotografia de José Medeiros. Sobre Rio, Zona Norte, destaca a conexão entre Nelson Pereira dos Santos e Grande Otelo; para ela, o filme é “a cara do Nelson, ninguém filmou melhor que ele”. Também de Carlos Diegues, destaca Chuvas de verão, sobretudo pela representação de dois personagens idosos, cada um em sua varanda, que se apaixonam e pelos trabalhos de Miriam Pires e Jofre Soares. Adelia chegou a convidar Jofre para atuar em seu primeiro filme, Denúncia vazia, mas ele teria recusado e indicado que ela fizesse o convite a Rodolfo Arena, que foi quem efetivamente levou o papel.

Os filmes escolhidos por Adelia serão exibidos mês a mês no Cinema do IMS Poços.

Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).

Xica da Silva

Carlos Diegues | Brasil | 1976, 117’, DCP (Cinemateca Brasileira), restauração 2K

Na segunda metade do século XVIII, a mulher negra escravizada Xica da Silva torna-se o centro das atenções no distrito Diamantino, onde estão as minas mais ricas do país. João Fernandes, representante da Coroa Portuguesa, apaixona-se por Xica e a transforma na Rainha do Diamante, satisfazendo todos os seus desejos extravagantes. Alertado pelos inimigos do casal, o rei de Portugal manda um emissário a fim de impedir que cresça o poder de Xica na colônia.

A exposição Ocupação Eduardo Coutinho, com curadoria de Carlos Alberto Mattos e da equipe Itaú Cultural, apresenta a trajetória de Eduardo Coutinho, sua obra e seu processo de criação. Um rico material audiovisual, somado a documentos, objetos e fotografias de seu acervo pessoal e de amigos e colegas de profissão, ajuda a conhecer e relembrar o cineasta. Concebida e apresentada pelo Itaú Cultural em São Paulo, a mostra esteve em cartaz no IMS Rio, e agora chega a Poços de Caldas, onde ganha uma nova expografia e uma programação de atividades paralelas.

Durante todo o período da exposição, o Cinema do IMS apresenta uma seleção de filmes do diretor, junto a textos críticos e outras atividades.

No dia 18 de outubro, abertura da exposição, o público terá a exibição de As canções, seguida de visita mediada pela exposição e karaokê.

As canções

Eduardo Coutinho | Brasil | 2011, 90’, Arquivo digital (VideoFilmes)

Homens e mulheres cantam e falam sobre as músicas que marcaram suas vidas.

Em entrevista a André Bernardo, em dezembro de 2011, Coutinho relata: “A princípio, a ideia era fazer um filme só sobre músicas do Roberto Carlos. Mas, aí, já viu, né? Ia dar um trabalho danado negociar os direitos das músicas. Daí, resolvi fazer um filme sobre anônimos cantando músicas que marcaram suas vidas. Foi o filme mais rápido e barato que já fiz. Só para você ter uma ideia, gravei 42 depoimentos em seis dias. A câmera não tem zoom. A luz é sempre a mesma. O cenário é um só o filme inteiro. Levei só dois meses para selecionar os participantes. A história do Brasil que me interessa é essa. É a história da canção brasileira. Não estou falando de Pixinguinha ou de

Hermeto Pascoal. Estou falando de canção. A canção é o maior patrimônio brasileiro. No filme, apareceu gente cantando tudo que é tipo de música: de Noel Rosa a Jorge Benjor, de Silvinho a Roberto Carlos, de Orlando Silva a Nelson Gonçalves. Curiosamente, não tivemos uma música estrangeira sequer. Isso me intrigou bastante.”

“Olha, para ser honesto, a única fraude que eu cometi no filme foi incluir a música da Wanderléa, ‘Ternura’. Em 1999, conheci uma das personagens do filme. Na ocasião, Fátima [personagem de Babilônia 2000] era hippie. Hoje, virou evangélica. Só que a música da vida dela era um hino religioso. Nada contra. Mas não combinava com a história dela. Foi quando pedi que cantasse ‘Ternura’, da Wanderléa.”

[Íntegra da entrevista em: bit.ly/cançõesims]

Ingressos:

Dia 18/10: Entrada gratuita. Distribuição de senhas 60 minutos antes da exibição. Limite de uma senha por pessoa. Sujeito à lotação da sala.

Dia 23/10: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).

Dona Flor e seus dois maridos Bruno Barreto | Brasil | 1976, 117’, DCP (Cinecolor) Roteiro de Eduardo Coutinho, Bruno Barreto e Leopoldo Serran

Durante o carnaval de 1943 na Bahia, Vadinho (José Wilker), um mulherengo e jogador inveterado, morre repentinamente. Sua mulher, Dona Flor (Sônia Braga), fica inconsolável, pois, apesar de ter vários defeitos, ele era um excelente amante. Após algum tempo, ela se casa com Teodoro Madureira (Mauro Mendonça), um farmacêutico que é exatamente o oposto do primeiro marido. Ela passa a ter uma vida estável e tranquila, mas tediosa, e, de tanto “chamar” por Vadinho, um dia ele aparece nu na sua cama. Um pai de santo se prontifica a afastar o espírito de Vadinho, mas existe um problema: no fundo, Flor quer que ele fique, pois ela tem um forte desejo que precisa ser saciado.

No livro Sete faces de Eduardo Coutinho, o crítico e pesquisador Carlos Alberto Mattos comenta: “O percurso de Coutinho é marcado ainda por várias curiosidades. Quando estudante de cinema em Paris, dirigiu uma peça de teatro (sua única vez na direção teatral), Pluft, o fantasminha, de Maria Clara Machado. Atuou no filme Os mendigos, de Flávio Migliaccio, em 1963, quando reunia material para filmar Cabra. Seu primeiro longa-metragem foi uma comédia política, O homem que comprou o mundo (1967), em que também colaborou no argumento, fez o roteiro final e uma figuração. E foi corroteirista de vários filmes de ficção, entre eles Dona Flor e seus dois maridos (1976), antes de se embrenhar de vez no gênero em que ficou conhecido e respeitado como um dos maiores do mundo.”

Dona Flor e seus dois maridos tem o roteiro adaptado por Eduardo Coutinho, Bruno Barreto e Leopoldo Serran e é baseado no romance homônimo de Jorge Amado. Tendo levado mais de 10 milhões de espectadores aos cinemas, Dona Flor foi, por 34 anos, a maior bilheteria do cinema nacional, superado por Tropa de elite 2. Ainda hoje, o filme figura na lista das 10 maiores bilheterias brasileiras.

Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia).

Neste ano, o Dia D, que celebra o aniversário do poeta Carlos Drummond de Andrade, acontece em Poços de Caldas. A programação inclui a exibição do filme O padre e a moça, do diretor Joaquim Pedro de Andrade, inspirado em poema de Drummond, seguida de mesa de debates. Na sequência, no auditório, um recital de piano e leitura de poemas.

Entrada gratuita. Distribuição de senhas 60 minutos antes da exibição. Limite de uma senha por pessoa. Sujeito à lotação da sala.

O padre e a moça

Joaquim Pedro de Andrade | Brasil | 1965, 90’, DCP

Em seu livro Versiprosa, Carlos Drummond de Andrade escreve, sob o título “Em preto e branco”: “O padre e a moça no cinema./ Emoção mais funda quem há de/ sentir ante este filme-poema?/ Salve, Joaquim Pedro de Andrade!”

Livremente inspirado no poema “O padre, a moça”, de Drummond, o primeiro longa-metragem de ficção de Joaquim Pedro de Andrade se passa em uma pequena cidade em Minas Gerais, na qual Mariana (Helena Ignez) se apaixona por um padre (Paulo José) recém-chegado em missão sacerdotal. No entanto, Honorato, homem mais rico da cidade, tenta proibir a relação e se casar com a moça.

Nas palavras do diretor, “O padre e a moça é um filme de crise. Fui ficando cada vez mais sensível, ou atraído, por uma espécie de verdade nuclear na linguagem do cinema, nos assuntos tratados. Não queria perfumaria, nem falsas verdades, nem efeitos fáceis, nem nada disso. Fui chutando isso tudo pra corner. Então fiz O padre e a moça, um

filme sobre a inibição, um filme amarrado, de negação; um filme todo criado por negação. Os planos são todos estáticos; o padre é um personagem quase mudo. O fato mesmo de eu ter escolhido um padre vem do manto de inibição que cobria aquele padre, que o impedia de transar com a vida de uma mulher mais aberta. E tudo isso integra o filme, está na base. É um filme em que não aparecem crianças, todo mundo é meio feio, muito torto. É um filme sobre o negativo.”

Em 1966, o filme recebeu os prêmios de Melhor Direção, no Festival de Teresópolis, Melhor Fotografia, no Festival de Brasília, e o Prêmio de Qualidade do Instituto Nacional do Cinema. No mesmo ano, a estreia do filme foi marcada por um extenso embate com a censura, após reação de “autoridades eclesiásticas e de membros da tradicional família mineira”, como aponta pesquisa de Leonor Souza Pinto.

[Citações extraídas do livreto que acompanha a edição em DVD do filme, lançada pela Bretz Filmes]

Instituto Moreira Salles

Cinema

Coordenador | Curador

Kleber Mendonça Filho

Supervisora de curadoria e programação

Marcia Vaz

Programador adjunto

Thiago Gallego

Assistente de programação

Lucas Gonçalves de Souza

Projeção

Fagner Andrades e Gilmar Tavares

Revista de Cinema IMS

Produção de textos e edição

Thiago Gallego e Marcia Vaz

Diagramação

Marcela Souza e Taiane Brito

Revisão

Flávio Cintra do Amaral e Juliana Travassos

A programação do mês tem apoio da Cinemateca Brasileira, do Itaú Cultural, das distribuidoras Cinecolor, Embaúba Filmes, Imovision, Malute, O2 Play, Retrato Filmes, VideoFilmes e Vitrine Filmes.

Agradecemos a Adelia Sampaio, Ana Claudia Gonçalves Fonseca, Camila Leal Ferreira, Claudia Ferreira, Clélia Monção, Danielle Amorim, Edileuza Penha de Souza, Elisa Ximenes, GG Albuquerque, Guilherme Albani, Katya de Moraes, Luz Mágica Produções, Pedro Drummond, Pedro Guimarães, Rayane Priscilla Santos Pereira e Teresa Souza.

Dia D

Concepção: Bruno Cosentino e Eucanaã Ferraz (Coordenadoria de Literatura do IMS)

Venda de ingressos

Ingressos à venda pelo site ingresso.com e na bilheteria do centro cultural, para sessões do mesmo dia. No ingresso.com, a venda é mensal, e os ingressos são liberados no primeiro dia do mês.

Ingressos e senhas sujeitos à lotação da sala. Capacidade da sala: 85 lugares.

Meia-entrada

Com apresentação de documentos comprobatórios para professores da rede pública e privada, estudantes, crianças de 3 a 12 anos, pessoas com deficiência, portadores de Identidade Jovem, maiores de 60 anos e titulares do cartão Itaú (crédito ou débito).

Devolução de ingressos

Em casos de cancelamento de sessões por problemas técnicos e por falta de energia elétrica, os ingressos serão devolvidos. A devolução de entradas adquiridas pelo ingresso.com será feita pelo site Programa sujeito a alterações. Eventuais mudanças serão informadas no site ims.com.br e no Instagram @imoreirasalles. Confira as classificações indicativas no site do IMS.

Visitação: terça a sexta, das 13h às 19h. Sábados e domingos, das 9h às 19h.

Entrada gratuita.

Sessões de cinema: Quinta a domingo. Rua Teresópolis, 90 CEP 37701-058

Cristiano OsórioPoços de Caldas ims.pc@ims.com.br

ims.com.br

/institutomoreirasalles @imoreirasalles @imoreirasalles /imoreirasalles

/institutomoreirasalles

Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto
Toque familiar, de Sarah Friedland

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