Experiência perceptiva no processo de projeto arquitetônico

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Experiência perceptiva no processo de projeto arquitetônico

Talvez por conta do rumo que a evolução tecnológica tomou, o homem tenha se distanciado do mundo ao seu redor. Começou a enxergá-lo de maneira focal, selecionando o que deseja ver, emoldurando seus estudos. Há um bitolamento na ciência que crescemos aprendendo. Estamos tão perto de sínteses, números, dados, gráficos, fotos; que perdemos o corpo que estudamos. Estamos tão microscopicamente próximos de xilemas e floemas, textos, desenhos palitos e esquemáticos, que não enxergamos mais a árvore. Nem sentimos seu cheiro, sua textura ou o gosto de seu fruto. E é em um contexto da tecnologia extremamente ligada ao sentido da visão, do método científico como base da credibilidade, do mercado de trabalho como o único meio para se exercitar uma profissão; que o arquiteto projeta. Julga-se, então, relevante maiores estudos que sejam capazes de explorar a experiência perceptiva no processo de projeto de maneira a compreender e ressignificar a forma com que se produz, hoje, a arquitetura.

Experiência perceptiva no processo de projeto arquitetônico Por Gabriel Villas Boas Camargo, Luiz Gonzaga Philippi Filho e Rodrigo Gonçalves dos Santos



Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina

C172e

Camargo, Gabriel Villas Boas. Experiência Perceptiva no Processo de Projeto Arquitetônico / Gabriel Villas Boas Camargo, Luiz Gonzaga Philippi Filho, Rodrigo Gonçalves dos Santos. – Florianópolis : PET Arquitetura/UFSC, 2016. 80 p. : il. Inclui Bibliografia. 1. Arquitetura - Projetos e plantas. 2. Arquitetura - Aspectos psicológicos. 3. Arquitetura – Experiências. I. Philippi Filho, Luiz Gonzaga. II. Santos, Rodrigo Gonçalves dos III. Título. CDU: 72


Sumário

Prólogo.............................................................................7 1. Introdução..................................................................13 1.1 O Problema................................................13 1.2 Objetivo geral............................................14 1.3 Objetivos específicos...............................14 2. Metodologia..............................................................15 2.1 Marcos teóricos........................................15 2.2 O diário de bordo.....................................16 2.3 Os blocos...................................................17 2.4 O caderno..................................................18 Parte I.............................................................................23 Parte II............................................................................51 Referências....................................................................77



Experiência perceptiva no processo de projeto arquitetônico Por Gabriel Villas Boas Camargo, Luiz Gonzaga Philippi Filho e Rodrigo Gonçalves dos Santos



Prólogo

Não é assim que quero projetar. O corpo, máquina computadora, processa informações dadas, dados. O projetar arquitetura está longe de sentir o outro, a quem projeta. Não quero projetar como ensaio. Ensaio é uma desculpa para não colocar meu corpo em contato com o outro, no lugar. Absorvendo dados visuais, contábeis; executando alternativas de um catálogo. O arquiteto é esse corpo-máquina que computa repertórios e materializa algo frio, longe do corpo, dos sentidos e do sentido. Um arquiteto recém formado apresenta seu projeto de conclusão de curso, avaliado com nota máxima, a uma sala de interessados estudantes de arquitetura. Com uma vasta gama de estratégias e metodologias, mostra um repertório na montagem de um projeto de habitação. Utiliza, em seu ensaio, dados visuais: Porcentagens, mapas, relatos e fotos coletados por outros. O arquiteto impressiona a audiência com imagens de sua maquete virtual, representando pessoas que não moram ali, convívios que não acontecem, pássaros que não existem, balões que não sobrevoam aquele lugar. Imagens frias, sem cheiros, sem sons, carregados de luz e cores, tentando imitar ao máximo

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uma realidade que é apenas vista. São ilustrações que não permitem completá-las com a imaginação. Essa realidade gráfica que seu computador gerou é uma engenhosa e arrojada combinação de blocos e elementos, onde todas as questões já estão respondidas. Os cheios e vazios são linhas com dimensões regradas por normas: Ambientes são metros quadrados, janelas são estratégias bioclimáticas, pavimentos variam de três em três metros. A estrutura é encaixada em um volume já pronto. O problema da permeabilidade visual é resolvida por pilotis. A maquete física é uma caixa retangular. Os dados foram coletados, mas as sensações foram ignoradas. A insegurança é uma porcentagem. A temperatura é uma carta de máximas e mínimas. A história do lugar é uma taxa de ocupação. O que se conhece dos moradores é sua renda e regularidade da residência. Desconhece quem irá habitar sua habitação. Perguntei ao arquiteto: “Para quem é esse projeto?”. A resposta foi um número. Em uma disciplina de projeto, estudantes de arquitetura projetam longe do corpo, presos em métodos, ferramentas e ensinamentos. Alunos encaram o projeto arquitetônico como um conteúdo a ser aprendido. Não se questionam o que estão fazendo.

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Questionam os professores, adotam suas respostas como o correto, como uma solução para um problema matemático. Realizam projetos-ensaios, utilizam algum lugar de intervenção para fazer exercícios de urbanismo, paisagismo, tecnologias, conforto ambiental. O projeto torna-se uma desculpa para apreender os conteúdos de cada disciplina. Lugares de intervenção, esses, visitados por alunos que adentram o local pelas ruas dos carros, sem qualquer intenção de interagir ou conversar com alguém. Não se toca em nada, não se sente nada. Os corpos dos projetistas, ali, funcionam como tripés ambulantes, carregando olhos que sempre pousam sobre situações já consideradas positivas ou negativas. Existe uma ideia predeterminada do que é bom ou ruim, e é assim que os alunos rotulam o que observam. Fotos são tiradas para ideias já pensadas de projeto, como turistas fotografando cartões postais. Essas características superficiais, coletadas na visita, são levadas como partido de projeto. Os visitantes raramente permanecem ou param no lugar. Passam como um carro em uma via rápida, e às vezes, passam de carro pela via rápida. Há medo presente antes de conhecer o lugar. Medo que impede de conhecer o lugar. Árvores são contadas como áreas

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verdes ou de lazer. O relevo acidentado é sentido, preocupando-se com a porcentagem acima ou abaixo da norma. O desconforto do calor é motivo para terminar a visita. Refugia-se no ar-condicionado e internet da sala de aula. O que falta coletar de dados, utilizase de imagens de satélites, referências e documentos de outros órgãos e instituições. A credibilidade do levantamento se dá pela citação dessas referências, não pela experiência própria com o local de intervenção. Elabora-se mapas prontos: Cheios e vazios, gabaritos, fluxos que ignoram a experiência no lugar. Mapas idênticos que são elaborados por pessoas diferentes. Faz-se o que os professores pedem. Preocupa-se muito em não perder tempo com aquilo que não é pedido: Com “aquilo que não precisa”. O projeto é desenhado pelo achismo: “Acho que isso é assim... Acho que precisa disso... Acho que é isso que querem...”. Croquis, maquetes volumétricas, todas as representações são feitas depois de o desenho pronto no computador. São inúmeras representações finais de um projeto que está sendo desenhado: “Não queria ter que mudar isso, eu acabei de desenhar assim”. E fica assim. No entanto, muda -se ideias próprias, de horas pensadas, por palpites de professores. Faz-se o que foi pedido sem questionar: “Mas eu acho que

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não é isso que os professores querem...”. Plantas são traçadas no ritmo de um projeto relâmpago para se ficar em dia com a turma. Essas plantas são levadas até o final do projeto, fazendo -se questionamentos profundos em cima de um desenho feito sem pensar. O projeto final não cabe mais no lugar inicial de intervenção. Cabe apenas em uma maquete topográfica, com curvas de nível que nunca estiveram lá. Com o clima que a carta diz. Com o som de auto-estradas em plantas-baixas. Tem cheiro de papel e a cor branca da maquete. Os habitantes são números, idades, salários mínimos. Se o projeto foi feito para alguém, foi para os professores, que avaliam o trabalho com uma nota dez.

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1. Introdução

1.1 O problema Talvez por conta do rumo que a evolução tecnológica tomou, o homem tenha se distanciado do mundo ao seu redor. Começou a enxergá-lo de maneira focal, selecionando o que deseja ver, emoldurando seus estudos. Há um bitolamento na ciência que crescemos aprendendo, estamos tão perto de sínteses, números, dados, gráficos, fotos; que perdemos o corpo que estudamos. Estamos tão microscopicamente próximos de xilemas e floemas, textos, desenhos palitos e esquemáticos, que não enxergamos mais a árvore. Nem sentimos seu cheiro, sua textura ou o gosto de seu fruto. Essa forma, problemática, de se apreender os fenômenos através do método científico já era estudada e criticada pelo filósofo Merleau-Ponty, em seus estudos acerca da Fenomenologia da percepção. O arquiteto Juhani Pallasmaa (2011, p. 17) compreende ainda que esta problemática se estende à arquitetura: “A falta de humanismo na arquitetura e das cidades contemporâneas pode ser entendida como consequência da negligência com o corpo e os sentidos e um desequilíbrio de nosso sistema sensorial”. Julga-

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se, então, relevante maiores estudos que sejam capazes de explorar a experiência perceptiva no processo de projeto de maneira a compreender e ressignificar a forma com que se produz, hoje, a arquitetura.

1.2 Objetivo geral Explorar a temática da experiência perceptiva no processo de projeto arquitetônico.

1.3 Objetivos específicos Contribuir para uma compreensão da atividade projetual em arquitetura de maneira que ela possa ser pensada como experiência perceptiva que marca e aciona os corpos dos envolvidos no processo. Elaboração de um ensaio arquitetônico-urbano que articule a descrição fenomenológica e a experiência perceptiva. Produção de um material escrito que possa ampliar as possibilidades de registro de uma pesquisa acadêmica trazendo reflexões críticas sobre o próprio fazer acadêmico científico e projetual.

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2. Metodologia

2.1 Marcos teóricos A aproximação com o tema se iniciou a partir de um embasamento teórico, que permeou textos e publicações de arquitetos e filósofos. Adotamos como marco teórico os estudos fenomenológicos sobre o espaço habitado, tendo como principal teor metodológico a descrição fenomenológica seguindo os pressupostos e escritos de Merleau-Ponty em “Fenomenologia da Percepção” (1945/1999) e suas questões que partem de trabalhos de Husserl. Seguidamente, Juhanni Pallasmaa em “Os olhos da pele” (1996/2011) fez a aproximação entre a Fenomenologia de Merleau-Ponty e a Arquitetura. Este diálogo entre arquitetura e fenomenologia se fortalece ainda mais com a leitura de “Cuestiones de percepción” (1994/2011) de Steven Holl que, através das zonas fenomênicas, possibilitou um maior entendimento da descrição fenomenológica na arquitetura.

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2.2 O diário de bordo Concomitantemente às leituras iniciais, realizouse a leitura do livro “Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios” (1952/2009) de C. Wright Mills. A leitura possibilitou-nos a ampliação das possibilidades de registro de uma pesquisa científica que, de certa maneira, busca criticar o próprio método científico de produção de conhecimento. Partindo-nos deste anseio, desenvolvemos uma escrita experimental que fosse capaz de articular as teorias estudadas de forma livre, lúdica e coletiva, sem o enrijecimento de uma escrita acadêmica tradicional. A própria linguagem e meios de comunicação criados, assim como nessa pesquisa, acabam prendendo o homem em um sistema, que talvez apenas com brincadeira ou poesia possa ser desenrijecido. E nesse ponto, Ponty também ressalta a contradição de, então, escrever ou estudar a fenomenologia. A elaboração de um “diário de bordo coletivo” foi a maneira que encontramos de materializar essa escrita experimental. Para a criação do diário, utilizamos a plataforma Google Docs, onde cada um dos integrantes da pesquisa possuía uma cor de letra e a cada leitura desenvolvia-se um texto no documento. Os outros inte-

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grantes, então, teciam comentários e contribuições no corpo do texto, resultando em uma escrita única e coletiva. A criação de um “Diário de bordo” proposta por C. Wright Mills é a maneira que nos predispomos a reunir o que se estuda intelectualmente como que se está experimentando como pessoa, como pesquisador. Desta forma, não há receio de usar sua experiência e relacioná-la diretamente ao trabalho em andamento. Segundo o próprio C. Wright Mills, esse processo de escrita, que envolve experiências próprias em conjunto com as profissionais, auxilia na própria formação do trabalhador intelectual, realizando suas próprias potencialidades, refletindo e criticando seu trabalho.

2.3 Os blocos Para seguir desenvolvendo uma escrita através de um “artesanato intelectual”, dividimos nosso diário de bordo em blocos. Os blocos temáticos permitem o desenvolvimento de uma escrita direcionada a um tema, porém não restrita a ele. Não há uma norma, não há um bloco de introdução, outro de desenvolvimento e conclusão, os blocos são independentes, podem ser adicionados uns aos outros, separados, mudarem de ordem ou

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mesmo serem suprimidos. Poder manipular os blocos tal qual um artesão manipula a matéria, traz nosso corpo pra nossa escrita fazendo com que “o artesão intelectual esteja atento para combinações não-previstas de elementos, evitando normas de procedimento rígidas que levem a um fetichismo do método e da técnica.” (MILLS, 2009) Por fim, essa escrita foi uma tentativa de registrar em texto algo mais próximo de nossas conversas em reuniões, pelos corredores ou em horários de lazer, compartilhando reflexões próprias, resultando nesse texto coletivo.

2.4 O caderno Ao fim da pesquisa, tentou-se reunir neste caderno, todo o material escrito. Esses textos provém dos blocos do diário de bordo, anotações e descrições individuais, discussões e diálogos. Como resultado, o caderno se estruturou da seguinte maneira: Primeiramente, o prólogo, é fruto de anotações que questionam o ambiente acadêmico, onde se insere essa pesquisa, levantando, assim, o intuito de todas as demais discussões e o tema da pesquisa. Com isso, a Parte I é um embasamento teórico, compilação de nossas reflexões sobre literaturas a respeito da temática “fenomenolo-

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gia e arquitetura”. Na Parte II, o tema é inserindo no processo de projeto arquitetônico. Em paralelo, como tentativa de ambientar a discussão, imprimisse junto ao texto, a descrição de uma experiência corporal, que, assim como em nossas conversas, é um jeito recorrente de dialogar sobre o tema, ou sobre o mundo.

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COM UM PÉ DIREITO DE MAIS OU MENOS

MEU CORPO E MEIO, E LARGURA DE UM EU DEITADO,

ESTAVA JUSTO DIANTE DE MAIS UM BEM DIMENSIONADO

E CALCULADO CORREDOR.



Parte I

“A fenomenologia é o estudo de uma filosofia que repõe as ESSÊNCIAS na EXISTÊNCIA [...] cujo esforço todo consiste em reencontrar este ingênuo CONTATO com o MUNDO. É uma tentativa de uma DESCRIÇÃO direta de nossa EXPERIÊNCIA tal como ela é.” (PONTY, 1999, p. 1, grifo nosso) Partindo de ideias de Husserl, se aproximar da essência de algum objeto, de algum espaço, é tentar se aproximar do que elas são, do que as coisas querem dizer, se aproximar do real, do fenômeno, do objeto, ou do fato. Quanto mais usamos nossa consciência para tentar compreender o objeto, mais nos afastamos de sua essência. Uma forma de se aproximar dessa essência é estar em contato com aquilo que existe e não em contato com os seus significados. Como uma comida que, por já saber que é gostosa, não se sente mais o gosto ao comer em um movimento automático, e o que é sentido é a ideia de ser gostosa, não o gosto – nem a experiência. A essência está naquilo que todos podem perceber

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sem nenhum conhecimento prévio. Tudo que é preciso explicar, estudar, aprender, não é essencial. É dessa essência que o humano se distancia ao ignorar sua experiência própria e pensar em conceitos já aprendidos. Uma ideia, um título ou um “status” que apenas representa algo que pode ser, não necessariamente é. Palavras se perdem em tantas sínteses e interpretações da ciência que fogem de seu real significado: expressar o que as coisas são. A fenomenologia é justamente uma desaprovação da ciência: “[...] A ciência não tem e não terá jamais o mesmo sentido de ser do que o mundo PERCEBIDO [...]” (PONTY, 1999, p. 3, grifo nosso) e para que possamos perceber este mundo é necessário existir nele e não observálo de fora. O conhecimento sintetizado dos livros é muitas vezes tão imperceptível para o corpo humano, que esse passa a ignorar sua própria percepção de mundo: Esquece o que seu corpo está sentido, dando maior atenção para o que sua consciência diz. Precisa ver para acreditar. Precisa consultar um termômetro para perceber que sente calor ou frio. Procura termos de física newtoniana para justificar o que aconteceu. A ciência trata as pessoas como um momento no mundo, como se “eu” não existisse no mundo para perce-

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bê-lo. Ela não relaciona essa percepção de mundo (algo tão variável e em constante mudança) com o conhecimento, exatamente porque a ciência precisa definir as coisas. Mas é nesse mundo que o homem se conhece. A fenomenologia vai buscar reestabelecer este contato do homem com o mundo. Se esse conhecimento científico é adquirido, ele não é naturalmente compartilhado por todos. Uma criança, que se dá conta do mundo naturalmente, percebe-o ingenuamente com seu corpo, sem nenhum tipo de ensinamento pré-estabelecido, utilizando seus sentidos para conhecer o mundo e se conhecer nele. Na essência das coisas, o que “eu” e “você” temos em comum é o nosso corpo que sentimos, ouvimos, enxergamos; sem necessitar de nenhum conhecimento prévio. O “outro” só existe quando o “eu”, também. Existir é perceber o mundo, inserido nele. Existência é o que se percebe, não o que é contado. A árvore existe para mim porque escalo sua copa, me apoio em seu tronco, descanso em sua sombra. Seus xilemas e floemas não existem para mim, pois não os percebo. O que existe são apenas os seus conceitos, que a partir de um conhecimento anterior, os aprendi. É, então, com o corpo que percebemos o mundo pe-

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la sua essência. Assim, o mundo deixa de ser o universo da ciência – composto sempre de novas descobertas estagnadas, guardadas e arquivadas em documentos e artigos – e passa a ser maleável, em constante mudança, pois, é o mundo, conjunto daquilo que percebemos. Nesse, eu existo, e me conheço pelo próprio mundo. O objeto existe porque posso descrevê-lo e eu existo por poder fazer tal descrição. Esse contato, mais simples e primitivo possível, é uma experiência ingênua do mundo, aquela que simplesmente se está engajada na situação vivida, sem questionamentos ou reflexões em relação à natureza. As pessoas creem aqui se relacionarem com as próprias coisas. O corpo é justamente o meio pelo qual as coisas podem ser conhecidas assim como são.

Ao experiênciar a verdade com o corpo, passa-se a perceber o mundo, então, a partir de uma percepção préreflexiva, em que a experiência – mais externa interação entre o “eu” e o “outro” possível – não passa por um julgamento, análise ou estudo: não passa por uma consciência. Isto me daria uma NOÇÃO de mundo. O corpo só pode tocar ou ver porque tem órgãos sensíveis, maciços. Seu caráter ativo depende de sua base sensível passiva. Há uma camada geral de sensibilidade da qual corpo e coisas participam. Esta camada geral de sensibilidade, Merleau-Ponty chama de carne. Além de participar da ordem passiva das coisas, o corpo também é ativo, explorador, volta-se sobre o mundo e quer conhecê-lo.

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CORREDOR, REVESTIDAS PELA

TINTA

E

LUZ

BRANCA

HOMOGENEAMENTE

D I F U S A NÃO

ME

ENVOLVIAM

E

FAZIAM

POR

COMPLETO

DO

MEU

CORPO TÃO SÓ UM ESPECTADOR

DAQUE L A

A R QUITE TURA


Ele não atribui vícios ou preconceitos às coisas que sente. O corpo é um ente sensível que se volta sobre outros entes sensíveis. Há casos em que o corpo se engana, mas as ilusões sensíveis sempre se revelam como tais diante de uma nova percepção, aparecendo, então, como verdadeira. Assim, a percepção garante ao menos um acesso indeterminado ao mundo, uma certeza de que há algo, embora a discriminação particular deste algo possa falhar. E não seria essa discrimi-

nação já parte da própria consciência, e não mais parte do corpo? Ao sentir um cheiro, pode -se identificar sua origem, e essa discriminação pode estar correta ou não. No entanto, antes dessa identificação, ou qualquer outra reflexão, já existia o cheiro, e o corpo já podia sentí-lo. A experiência não se delimita apenas por meio da amplitude intencional dos sistemas corporais. Mas sim, é um

processo muitas vezes passivo e sem qualquer intenção de fazê-lo. Ela só é possível porque as coisas são sensíveis e há uma dimensão carnal no mundo, na qual o corpo está envolvido. O corpo aprende, o corpo se readapta, o corpo

cresce, memoriza movimentos, memoriza vontades e elas vão se somando no decorrer do tempo, no decorrer das experiências. A experiência das coisas, no sentido mais ingênuo e primitivo, marca o nosso corpo e memoriza sen-

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sações multissensoriais. Essa experiência “afocal”, sem a intenção de perceber algo que já se sabe, sem tentar registrar um fenômeno já conhecido, é a essência das coisas, sentidas pelo corpo. São sensações que estão além da compreensão de nossa consciência. São cheiros, gostos, frios e quentes que nos trazem lembranças que, por vezes, nem são possíveis de as distinguir. Não são memórias de nossa consciência, mas do corpo. Experiência seria um “fenômeno originário, aquém das idealizações e construções da ciência que, transmitidas ao longo da história, regem nossa inteligência do ser e até o acesso ao próprio ser. Ela é a origem de todo ser e toda a verdade, mas nem por isso é imediata, tem de ser reconquistada, pois está enterrada sob os sedimentos dos conhecimentos anteriores” (PONTY, 1999, p. 403). Para liberar o corpo da consciência, faz-se uma redução, proposta por Husserl, uma suspensão do conhecimento do mundo transcendente (o mundo que excede o que se manifesta para nós) para priorizar os conteúdos da experiência vivida. Guarda-se a prioridade da experiência perceptivo-motora no que concerne ao esclarecimento do contato primordial ente ser humano e mundo. De certa forma, tenta-se privar da

consciência ou qualquer conhecimento antecedente, experienciando o fenômeno em si: O que existe, o que acontece.

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“A

LUZ

PARALISA

FORTE A

E

HOMOGÊNEA

IMAGINAÇÃO

DO

MESMO MODO QUE A HOMOGENEIZAÇÃO DO ESPAÇO ENFRAQUECE A EXPERIÊNCIA DA VIDA HUMANA E ARRASA O SENSO DE LUGAR. O OLHO H UMA NO É MA IS AD EQ UA DO PA RA E NXER GA R NO C REPÚSCULO DO QUE SO B A LUZ FO R T E DO S O L .

(HOLL, 2011, P. 24)”


É sentir o gosto da comida pelos sentidos. Sentir calor ou frio pela reação do corpo. Emocionar-se com uma paisagem pelo o que sente ao percebê-la, não por saber que é um importante cartão postal. “[...] tudo o que sei de mundo sei a partir de uma experiência minha de mundo, sem a qual (a minha experiência) os símbolos da ciência não poderiam dizer nada [...] a ciência não tem e não terá jamais o mesmo sentido de ser do que o mundo PERCEBIDO [...] eu sou a fonte absoluta; minha experiência não provem de meus antecedentes.” (PONTY, 1999, p. 3, grifo nosso) A experiência fenomenológica me ajuda a DESCREVER o mundo para o outro. Através de uma descrição pura consigo me APROXIMAR do real e descrever ao outro, com mais “fidelidade”, aquilo que existe. Não consigo explicar a minha consciência para o outro, o corpo e a pele é o que temos em comum e a descrição fenomenológica leva estes fatores em consideração. “Uma descrição pura exclui tanto o procedimento da ANÁLISE REFLEXIVA quanto o da EXPLICAÇÃO CIÊNTÍFICA” (PONTY, 1999, p. 4, grifo nosso). A descrição se

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dá pela experiência com o que existe, jamais se baseando em deduções ou informações anteriores. “É a tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela é, e sem nenhuma deferência à sua gênese psicológica e às explicações causais que o cientista, o historiador ou o sociólogo dela possam fornecer [...]” (PONTY, 1999, p. 1). Descrevemos o que existe no seu momento no mundo, reduzimo-los, deixamos o objeto em suspensão, sem utilizar de sínteses ou quaisquer dados que não tenhamos experienciado: “O mundo está ali antes de qualquer análise que se possa fazer dele” (PONTY, 1999, p. 5). A descrição ainda implica outras coisas: Enquanto eu descrevo o objeto, ele também me descreve, e a forma com que eu o descrevo ajuda o outro a me compreender. Além disto, em minha descrição, considero-me inserido no mundo e isto me ajuda a definir o meu mundo. Só consigo descrever as coisas se estou inserido nelas. No entanto, pela forma que a humanidade avançou na ciência, o corpo é cada vez menos usado em contato com o mundo, mas sim, como ferramenta que conecta a consciência à tecnologia. Esse avanço tecnológico acaba por sintetizar o corpo e o mundo. Seja resumindo movimentos físicos de um atleta a comandos em um controle

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de videogame, interações sociais em mensagens de texto e imagem, ou chão e parede em linhas numa planta-baixa; o humano está mais próximo de uma representação de mundo, do que da experiência com o próprio. O humano se viciou a uma obviedade em que tudo é explicado. Um filme não precisa mostrar toda uma ação, passo-a-passo, para explicar a quem assiste o que está acontecendo – embora, com o uso exacerbado da computação gráfica, seja isso o que aconteça. Pelo contrário: Com luz e

som, um filme emociona o espectador ao não revelar tudo, transmitindo apenas o essencial, permitindo, a quem assiste, que complete o que apenas lhe é passado com imagens, em uma compreensão multissensorial. Ao explicar tudo, definir, padronizar respostas e resultados, priva -se os corpos de sentir algo, lhes entregando sensações ou sentidos já prontos. Assim, a sociedade se afirma em uma ciência que diz o que é certo ou errado, um mercado que diz o que é melhor ou pior, uma arte cheia de estilos e modas. É em um contexto muito longe do corpo que o humano vive hoje. Cada vez menos o corpo nos conecta ao mundo que existe, enquanto a ciência e a tecnologia nos prende a essa ideia conceitual de mundo. Com a fadiga de uma arquitetura modernista que priorizava muitos aspectos científicos, idealizando casas – e pessoas – padronizadas, prédios replicados, cidades inteiras apenas ar-

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ticuladas por vias rápidas de carro, projetos monumentais elaborados em escala numa folha de papel; novas ondas de pensamento passaram a relacionar teorias filosóficas – disciplinas como o marxismo, feminismo, estruturalismo – com a arquitetura, ressignificando suas obras e fundamentando-as. “Não há dúvidas que, em meados da década de 1960, estávamos cada vez mais carentes de uma base teórica realista sobre a qual fundar o nosso trabalho.” (FRAMPTON, 2008, p. 51-52) Nessa nova maneira pós-moderna de pensar, alguns arquitetos encontraram, na fenomenologia, ideias vindas de Heidegger, Hurssel e Merleau-Ponty; que assemelhavam-se com suas preocupações no projetar o espaço, apreendendo essa arquitetura da forma como o corpo sente o mundo: De sensações visuais, táteis, olfativas e auditivas. “[...] A arte da visão, sem dúvida, tem nos oferecido edificações imponentes e instigantes, mas ela não tem promovido a conexão humana ao mundo. [...] a arqui-

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tetura modernista em geral tem abrigado o intelecto e os olhos, mas tem deixado desabrigados nossos corpos e demais sentidos, bem como nossa memória, imaginação e sonhos.” (PALLASMAA, 2011, p. 19) Arquitetos como Steven Holl e Juhani Pallasmaa, descontentes com o passado e o rumo atual da arquitetura, publicaram livros que falam da arquitetura, baseados em conceitos fenomenológicos. Para esses autores, a essência, a existência, o contato com o mundo, com o corpo, se perderam na experiência da arquitetura – os mesmos conceitos abordados, de maneira universal, por MerleauPonty. Quando fala de essência na arquitetura, Pallasmaa vê as edificações atuais carregadas de simbologias: Vê essas edificações carregadas de coisas que não as experienciamos como elas são, e sim, representam algo, algum material, algum valor, status ou ideia. “O exagero atual da ênfase das dimensões intelectual e conceitual da arquitetura contribui para o desaparecimento de sua essência física, sensorial e corporal. [...] Esse foco redutivista resulta

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em uma sensação de autismo arquitetônico, um discurso INTERNALIZADO e AUTÔNOMO que não se baseia em nossa realidade existencial compartilhada.” (PALLASMAA, 2011, p. 32, grifos nosso) Se a essência das coisas está mais próxima daquilo que experienciamos quando em contato com elas, na arquitetura atual, exemplos de prédios com revestimentos que imitam outros materiais, demonstram um carregamento de valores e ideias embutidas, esse “discurso internalizado e autônomo” que transmite apenas os significados de uma representação. Pisos podem enganar serem de madeira, mas para os pés – que não têm olhos – de quem anda por cima dele pela manhã, a sensação é gelada e lisa, com uma irregularidade repetida, falhas somente regradas pelo rejunte, poeira umedecida que gruda nos pés sobre um piso cerâmico. Pallasmaa, assim como Merleau-Ponty, faz referência à uma existencialidade compartilhada, onde a realidade pode ser entendida e experienciada por todos, sem necessitar de um conhecimento prévio. As obras estão carregadas de elementos – “meros objetos de sedução visual” (PALLASMAA, 2011, p. 11) – com a intenção de significar algo: Revestimentos que imitam outros materiais, frontões em

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escalas desproporcionais, materiais que não revelam seu tempo e uso. Por exemplo, a sensação de solitude ao espalmar uma parede de tijolos existe no experienciar seu corpo imóvel ao choque. Em uma placa cimentícia com textura de tijolos, que trabalha e treme com o impacto, o que existe é a ideia dessa solitude. Nem tanto, foi construído com o mesmo processo que uma parede de tijolos. Juhani Pallasmaa exemplifica que um edifício cujo material provém de sua região geográfica, caracteriza aonde aquela edificação está localizada, como é o clima dessa região, quem a habita, há quanto tempo existe, como e por quem é construída. Casos como aeroportos, construídos, em grande maioria, com materiais industrializados, existentes em todos os países, resistentes (visualmente) ao tempo, estão cheios de significados embutidos – como rico, forte, bem estruturado, audacioso, imponente, limpo, seguro, ecológico – mas estão descaracterizados com o seu lugar e seu tempo. Poderiam estar em qualquer lugar. “Os prédios de nossa era tecnológica em geral visam de maneira deliberada à perfeição atemporal e não incorporam a dimensão do tempo ou o processo inevitável e mentalmente importante do envelhecimento.” (PALLASMAA, 2011, p. 32)

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AOS POUCOS, AQUELA

ARQUITETURA FOI SE MOVENDO EM MINHA DIREÇÃO, AS PAREDES SE DESNUDAVAM LENTAMENTE, O REVESTIMENTO ABANDONANDO SUA

S UPERFÍCIE, DEVOLVENDO

Á ELA SUA COR

NATURALMENTE ACINZENTADA


Enquanto Ponty encara o contato com o mundo como a confirmação da própria existência por poder conhecer e perceber o outro, Pallasmaa em “Os olhos da pele”, relaciona esse contato com a visão, a arquitetura e o urbanismo. Sua opinião é que as obras se encaminham para, cada vez mais, agradar e entorpecer os olhos. Continua, refletindo que, enquanto a visão focada apenas permite deslumbrar o que pode ser visto, “nos tornando meros espectadores” (PALLASMAA, 2011, p. 13), o corpo tem o contato com o mundo pelos sentidos, as sensações que experiencia – sem que precise aprender significados ou eludibriar -se com prazeres visuais. No caso da visão, essa experiência parece acontecer sem a consciência desse sentido, visualizando de maneira periférica e afocal. O contato do corpo com o mundo acontece de forma inconsciente, sem uma pretensão. Acontece no dia-adia. A atual construção civil está carregada de elementos feitos para dar prazer ao observador. Uma estética feita para os olhos ou corpos que param em pontos específicos para admirar ou tirar fotos. No entanto, pouca importância tem para a percepção de quem usa o lugar, se ele passa pelos elementos todos os dias. A sua percepção, então, recai muito menos em especificidades de um elemento estético, e muito mais na essência daquilo que percebe. Enquanto os detalhes são registrados pela visão ou imagem de uma

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foto, a essência das coisas envolve o corpo e é contada pelas sensações que o corpo tem ou o modo como ele age, mesmo que inconscientemente. Prédios comercias que estampam capas de revista de arquitetura em uma perspectiva aérea, cheias de nuances em sua forma, com desencontro de lajes, aberturas zenitais que permitem a entrada de luz natural no hall, são atrativos para os leitores da revista, mas, provavelmente, são ignorados pela consciência de quem atravessa o hall todos os dias para chegar ao elevador. O que não é ignorado, pois é sentido, é a claridade e escuridão que aquela abertura promove ao passar pelo limite da iluminação zenital, o ar que circula dessas aberturas, o calor do sol e a agitação e sons que vêm da rua se transformando na sombra amena, calma e silenciosa da recepção desse prédio. Desenhos que apenas aparecem em planta-baixa, formas apenas percebidas em olho de pássaro, ou plasticidades que impactam no olhar, mas não emocionam no diaa -dia de quem usa uma edificação. Precisar olhar, admirar uma obra, servem apenas para isso: Admiração. “[...] Uma das razões pelas quais os contextos arquitetônicos e urbanos de nossa época tendem a nos fazer sentir como forasteiros, em comparação com o extremo

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envolvimento emocional provocado pelos contextos naturais e históricos, é sua pobreza em termos de visão periférica. A percepção periférica inconsciente transforma a gestalt da retina em experiências espaciais e corporais. A visão periférica nos integra com o espaço, enquanto a visão focada nos arranca para fora do espaço, nos tornando meros espectadores.” (PALLASMAA, 2011, p. 13) Esse corpo que, a partir dos sentidos, está em contato com o mundo, vê-se, hoje, longe dos edifícios que comportam átrios e elementos de escala desproporcionais para esse mesmo corpo. Desenhos urbanos em planta-baixa que não entendem a relação na escala humana; prédios que utilizam de dados bioclimáticos, mas esquece de como o corpo irá se adequar às estratégias tomadas, utilizando de médias aritméticas e corpos modelos. “Nos dias atuais, a luz se tornou uma mera matéria quantitativa, e a janela perdeu sua importância como mediadora de dois mundos, entre fechado e aberto, interioridade e exterioridade, privado e pú-

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blico, sombra e luz. Uma vez que perdeu seu significado ontológico, a janela se transformou em uma mera ausência de parede.” (PALLASMAA, 2011, p. 46) E a forma como essa arquitetura é elaborada, com o avanço da tecnologia, parece privar ainda mais o projetista do sentido e sentidos que um elemento ativa ao intuitivamente desejá-lo e criá-lo no projetar, tornando-o, então, em uma solução técnica, ou uma etapa advinda de um repertório estabelecido para concluir o projeto: “A criação de imagens por computador tende a reduzir nossa magnífica capacidade de imaginação multissensorial, simultânea e sincrônica, ao transformar o processo de projeto em uma manipulação visual passiva, em um passeio na retina. O computador cria uma distância entre o criador e o objeto, enquanto o desenho à mão e a elaboração de maquetes convencionais põem o projetista em contato tátil com o objeto ou o espaço. Na nossa imaginação, o objeto está simultaneamente em nossas mãos e dentro de nossa cabeça, e a

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imagem física projetada é modelada por nossos corpos. Estamos ao mesmo tempo dentro e fora do objeto. O trabalho criativo exige uma identificação corporal e mental, empatia e compaixão.” (PALLASMAA, 2011, p. 12) Pallasmaa resgata que as edificações no passar do tempo foram deixando de ser regradas pelos limites do próprio corpo que as construíam, para serem elaborados somente pela representação. O corpo está cada vez mais longe quando o uso de maquetes manuais ou desenhos como forma de desejar o projeto, são substituídos por imagens computacionais que imitam a visão focal (representando somente o que se quer ver) ou maquetes virtuais que apenas são regradas pelos olhos e por medidas – essas, qualificadas por um conhecimento que também é prévio e muitas vezes catalogado. O corpo não é mais o limite do desenho, e sim o desenho limita a edificação. Exemplo disso, está na virtuosidade que as formas das edificações ganharam graças à evolução da tecnologia de projetar. E, assim como uma linha traçada com um único movimento de braço em uma planta baixa, pode tornarse uma parede extensa, de dimensões descomunais ao corpo que a desenhou; construções atuais são primeira-

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mente desenhadas para, posteriormente, serem preenchidas pelo material escolhido. A forma, o peso, o espaço que a construção ocupa, e o seu desgaste, envelhecimento, o tempo que a construção tem; deixam de ser contados ao corpo, em uma construção sem identidade, se não, aquela que é contada aos olhos de quem observa. “É evidente que a arquitetura das culturas tradicionais também está intimamente vinculada ao conhecimento tátil do corpo, em vez de estar dominada pela visão e conceitualização. A construção em culturas tradicionais é orientada pelo corpo do mesmo modo que um passarinho dá forma a seu ninho movendo seu corpo.” (PALLASMAA, 2011, p. 25) Na arquitetura, Pallasmaa relaciona a experiência com o estímulo e uso de todo o corpo e seus sentidos. O homem experiencia o que ele sente sem intenção, sem uma consciência ou uma ideia que lhe foi ensinada daquilo que deve sentir. Assim como nos é ensinado as sensações que uma obra de arte passa, um revestimento que imita outro material nos conta o que devemos sentir, um poste de luz e uma câmera nos deve dar a sensação de segurança, ou um

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espelho d’água trará paz e tranquilidade com a sua contemplação. “Nas obras de arte, a compreensão existencial advém do nosso próprio encontro com o mundo e do nosso estar-no-mundo – ela não é conceitualizada ou intelectualizada.” (PALLASMAA, 2011, p. 25) Um processo inverso parece acontecer no processo de projeto, onde as percepções da arquitetura e paisagem foram catalogadas, e ensinadas como uma fórmula. Esqueceu-se que as percepções que o corpo terá inserido na arquitetura não precede de convenções ou intenções que possam ser ensinadas e apreendidas, mas sim da experiência com a mesma. “Uma obra de arquitetura não é experimentada como uma coletânea de imagens visuais isoladas, e sim em sua presença material e espiritual totalmente corporificada. Uma obra de arquitetura incorpora e infunde estruturas tanto físicas quanto mentais. A frontalidade visual de um desenho de arquitetura desaparece na

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experiência real da edificação.” (PALLASMAA, 2011, p. 42, grifos nosso) Assim, o processo de um projeto que insere o corpo na sua arquitetura, sem estar carregado de conceitos ensinados ou sensações apreendidas, está intrinsecamente relacionado à experiência. Do mesmo modo que o corpo do usuário experiencia o edifício, o corpo do arquiteto se coloca no projetar. O desenho não mais parte de medidas catalogadas como boas ou ruins, estilos, modas, ou qualquer outro conceito. Os materiais não são escolhidos para preencher o desenho. Desenha-se com os materiais. O projetista não precisa abrir um leque de opções e avaliar a partir de seus conhecimentos, mas colocar seu corpo livre de preceitos no projeto, transformando o seu desejo em matéria. Quando as percepções do projetista se encontram com as do usuário, numa ideia coletiva, onde o “eu e o outro” podem perceber o mesmo, livres de uma consciência ou ideia que lhes foi ensinada, a arquitetura chega a sua essência. “[...] durante o processo de projeto, o arquiteto gradualmente internaliza a paisagem, todo o contexto e os requisitos funcionais, além da edificação que ele

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concebeu: movimento, equilíbrio e escala são sentidos de modo inconsciente por todo o corpo, como tensões no sistema muscular e nas posições do esqueleto e dos outros órgãos. À medida que a obra interage com o corpo do observador, a experiência reflete nas sensações corporais do projetista. Consequentemente, a arquitetura é a comunicação do corpo do arquiteto diretamente com o corpo da pessoa que encontra a obra, talvez séculos depois.” (PALLASMAA, 2011, p. 63)

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CONSEGUIA, AGORA, IMAGINAR COISAS, POR NÃO ENTENDÊ-LAS POR COMPLETO.



Parte II

A distância que existe da humanidade com os demais animais quanto ao seu abrigo, talvez aconteça por, hoje, o abrigo humano exercer uma função muito mais complexa que apenas refugiá-lo do ambiente natural. São necessidades que transcendem às do corpo, e parecem requerer mais que esse próprio corpo para suprí-las. O humano, então, precisa projetar ao invés de apenas fazer. Projetar é o que permite construir o que está fora do alcance de um corpo. E esse projeto não necessariamente é uma representação gráfica, planta- baixa, desenho; mas sim, sempre é uma ideia, uma intenção. Um ato que prescinde de uma necessidade, um motivo. A cidade, assim, se constrói para comportar esse humano moderno, e para tanto, projeta-se. E é em um contexto da tecnologia extremamente ligada ao sentido da visão, do método científico como base da credibilidade, do mercado de trabalho como o único meio para se exercitar uma profissão; que o arquiteto projeta. O humano em formação aprende a estudar e comprovar seus estudos, respondendo a testes, o que se pede. Em forma de competição, lhe é ensinado que prevalece quem é melhor avaliado por esses testes. Forma-se, gradua-se,

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com a pretensão de se inserir no mercado de trabalho. Ensinamentos e conhecimentos são, então, para isso: Profissionalizar- se. É compreensível estudantes de arquitetura, inseridos nesse contexto, basearem-se completamente na ciência que lhes é ensinada para projetar, ignorando sua própria experiência e percepção, deixando de lado suas investigações pessoais. Ou a própria academia se regrar pelo método científico, referências bibliográficas, ao invés de criar e desenvolver suas próprias críticas, reflexões e dúvidas. Assim como um arquiteto inserido nesse mercado de trabalho, que projeta para atender às necessidades de uma especulação imobiliária – mais preocupada com o tempo e dinheiro que as necessidades da cidade – para atender à demanda de repetir modas e tendências – vendendo um valor embutido à quem pode pagá-lo – ou para se enquadrar nos métodos e materiais já concebidos de uma construtora; deve estar muito mais apto a executar soluções a partir de um catálogo ou um repertório pronto, que um projeto poético, cheio de reflexões a partir de experiências perceptivas de seu próprio corpo. As próprias ferramentas, que agilizam e facilitam o processo de projeto nessa situação em que os arquitetos exercem sua profissão, parecem afastar ainda mais o corpo do ato de projetar. Programas de computador que,

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para desenhar uma linha no espaço, necessitam de uma medida ou uma coordenada; que para simular uma iluminação ou ventilação, precisam de um material definido; otimizam a elaboração do projeto, mas privam o arquiteto de experimentar, de fazer algo que não entende por completo, de errar. Essa utilização dominativa de programas virtuais durante todo o processo de projeto, induz a atividade de projetar apenas virtualmente, não como uma forma mais prática de representar o que é definido durante o projeto, mas sim, definir e projetar a partir das limitações do programa. A atividade dos escritórios de arquitetura se transforma em uma corrida contra o tempo, pressionando arquitetos e estagiários a fazer um projeto que é, por fim, uma conciliação entre os pedidos do cliente, o acervo de materiais dos fornecedores, os métodos e cronograma da construtora, as normas e leis fiscalizadas, com a capacidade de representação dos programas computacionais, que gerará uma imagem do projeto que tenha o apelo comercial suficiente para vendê -lo. No entanto, é no produto desses projetos feitos tão longe do corpo, que vivemos.

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MEU CORPO SE INCLINAVA PARA TOCAR AQUELE

NOVO

SENTIR A SUA

ESPAÇO,

TEXTURA

QUE, PELA LUZ NÃO MAIS TÃO UNIFORME ,

ME INSTIGAVAM À EXPERIÊNCIA FAZENDO AS

TEXTURAS SALTAREM ME

DOS

TOCAVA

OLHOS.

COM

OLHOS D

E

OS CADA

T

A

L

H

E


Se, em resumo, constrói -se uma edificação para suprir uma necessidade, exercer uma função; o edifício construído altera o ambiente natural, transformando o vazio em um espaço determinado, artificial, uma obra de arte que um artista pretendeu expressar algo, questionar algo, emocionar alguém. Diferentemente daquilo que é natural, a arquitetura tem sempre um significado, um motivo para estar lá. A matéria não está ali apenas pela sua origem, mas porque alguém a colocou ali. O material, seu estado, as marcas do manuseio e a forma como foi colocado, contam o que é e quem o fez. Contam sua história. Existe ali, algo que transcende o que é cheio e o que é vazio. A arquitetura é, então, essa poesia feita de espaço e tempo. Mas é essa poética que parece ser deixada de lado na pressa que o mercado de trabalho exige. Parece até supérfluo produzir algo que parta de experiências pessoais, que não necessariamente é eficiente, rápido ou prático. A profissionalização da arquitetura parece ter privado o arquiteto de ser um artista, uma pessoa com corpo, sentimentos, memórias, experiências e desejos. Ao permitir-se usar as próprias percepções no processo de projeto, despido de quaisquer preconceitos, o arquiteto, então, utiliza no projetar, aquilo que – diferentemente de qualquer dado técnico, norma ou regra, estilo ou símbolo – é comum entre todos: O corpo.

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DOS TIJOLOS DE CONCRETO VIERAM OS TIJOLOS DE BARRO. OS MATERIAS NATURAIS DEIXAM QUE NOSSA VISÃO PENETRE EM SUAS SUPERFÍCIES E PERMITEM QUE NOS CONVENÇAMOS DA VERACIDADE DA MATÉRIA. OS MATERIAIS NATURAIS EXPRESSAM SUA IDADE E HISTÓRIA, ALÉM DE NOS CONTAR SUAS ORIGENS E SEU HISTÓRICO DE USO PELOS HUMANOS.


E assim como um projeto pode ser feito para atender um número, um ideal, um dado bioclimático; essencialmente, é sempre feito para um corpo. A arquitetura é redundantemente feita para o corpo, seja para acomodálo ou expulsá-lo, confortá-lo ou reprimí-lo. É com o corpo que será percebida a arquitetura. Esse, dotado de dimensões indefinidas, proporções variáveis, fluxos impossíveis de mapear, sensações, sentidos e memórias subjetivas; não é um problema que prescinde uma solução de projeto. Não é uma questão de ergonomia ou conforto, que para conseguir chegar à uma resposta para um problema, precisa generalizá-lo. Os corpos são diferentes e suas diferenças são o que os possibilitam conhecer o outro, e a si mesmos. São por serem diferentes que a cidade não é feita de prédios iguais, populada por pessoas iguais, com as mesmas necessidades, vontades, desejos; fazendo as mesmas atividades, indo à galerias de arte onde cada obra é a repetição da outra. Por causa dessas diferenças que cada casa tem seu jeito e cada um tem um jeito diferente de morar. A diferença parece justificar a existência do arquiteto, e esse, projetar, admitindo-a. Projetar para o corpo, então, não seria apenas atender a uma maioria, mas entender os diferentes corpos que usarão o espaço, e esse entendimento provém das experiências próprias de cada um.

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SINTIA ESSE MOVIMENTO DO EDIFÍCIO COMO UM CONVITE, UMA CONVERSA SINCERA A RESPEITO DE SUA ESSÊNCIA. CADA VEZ MAIS AS PAREDES IAM SE FECHANDO, ME ENVOLVENDO. DO TIJOLO VEIO A TAIPA, AS PAREDES SE A P R OX I M A N D O, GANHAND O CURVA S.


Em disciplinas de cursos de arquitetura, frequentemente se ensina medidas recomendáveis para quase todo tipo de situação: Dimensões de calçadas, vias, postes, bancos, rampas, escadas, corrimões, portas; número de escolas, creches, bibliotecas; quantidade de luminosidade, tamanhos de aberturas, capacidade de vazão. Esses dados normalmente são providos de normas e leis que os projetos arquitetônicos devem cumprir. E, embora essas medidas possam ser úteis e efetivas, é comum, tanto na academia quanto no mercado, utilizá- las sem refletir sobre o seu motivo, ou mesmo, o que são. O que são três metros de altura? Para o quê e para quem é essa altura? Como é subir ou descer uma rampa de 8% de inclinação? O que são quinhentos lúmens ou cem decibéis? Talvez porque são números, linhas em escala e desenhos esquemáticos, que podem ser aplicados diretamente no projeto elaborado com as mesmas ferramentas (unidades de medidas, plantas-baixas, cortes e vistas) acabam por não serem experienciados pelo corpo de quem projeta. O projeto não precisa ser uma pesquisa por materiais e dimensões ideais em bancos de dados. Mas um constante diálogo entre as experiências perceptivas do arquiteto com o seu corpo colocado no projeto. Ao experienciar com o corpo o que está sendo projetado, decisões do projeto, como medidas e materiais,

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ganham um significado além de sua decisão. Tornam- se algo diferente de um conhecimento, uma classificação ou item escolhido pelo projetista. Tornam-se algo intrínseco a quem projeta, pois quando seu corpo experiencia algo, ele ativa suas sensações, memórias e percepções, colocandose na situação do projeto. Não seria uma hipocrisia definir para um corpo, um espaço que considera o mais apropriado, se o próprio corpo que o projetou nunca o experienciou? Ou definir algo pela ideia que carrega: Decidir uma largura por ser espaçosa, um material por ser rústico, um equipamento urbano por ser necessário; ao invés de investigar o que são essa largura, material ou equipamento? Se todo projeto, ao fim, é para o corpo, projetar algo que nunca experienciou com o corpo seria, então, quase projetar algo que “ouviu falar” ser “espaçoso, rústico ou necessário”. O corpo que, inconscientemente, percebe as coisas ao seu redor, não percebe o conceito dessas coisas, apenas elas mesmas. Colocar o corpo no projeto é livrar-se de preconceitos e ideias prontas, para entender as coisas e o mundo em sua essência e, para tanto, projeta-se com o que se conhece. Essa percepção do corpo, diferentemente de dados, análises e respostas; não é exata, nem finita. Está incompleta, e, por isso, quando considerada em cada situação do projeto, traz, consigo, dúvidas e questionamentos. Essas

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indagações surgidas da experiência corporal, acionam as memórias sensoriais do corpo em um constante processo de compreensão do projeto. Uma busca por um entendimento próprio, que não provém, nem se alicerça, de referências bibliográficas, julgamentos já definidos ou perguntas já respondidas. Porque se investiga, e não apenas se soluciona, a relação do arquiteto com o projeto é diferente, uma vez que as situações do projeto questionam o corpo, e as percepções do corpo questionam o que é projetado, concebendo, juntos, um projeto em que o corpo conduz o projetar, assim como a edificação projetada conduzirá um corpo nela. E porque o corpo, com seus sentidos, está sempre sendo ativado quanto a esses questionamentos, o arquiteto coloca seu corpo em constante diálogo com o projeto. O corpo do arquiteto torna-se parte do projeto, e suas percepções, intenções e desejos, também. A partir dessa interação do corpo com o projeto, começa a se questionar e entender o que cada aspecto do projeto significa em relação às suas intenções. As coisas passam a significar o que elas são. Materiais perdem quaisquer conotações que não tenham sido experenciadas: Bom, ruim, belo, limpo, econômico, sustentável; e são investigados quanto ao que se experiencia em contato (inclusive visual) com eles. Um material passa a ser sensações,

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memórias sensoriais, percepções colocadas em um lugar ou situação pelo arquiteto. Uma altura desejável deixa de ser um número entre um mínimo e um máximo, mas uma distância que mexa ou brinque com o corpo do usuário por algum motivo ou intenção. Assim, mesmo que se utilize uma ideia pronta, uma medida padrão ou um material pré-fabricado; essas escolhas partem do entendimento das intenções do arquiteto. Quando esse entendimento do que se quer resulta, então, em uma medida, material, conceito – e não a partir do estudo de medidas, materiais e conceitos, faz-se uma decisão – o projetista parece estar mais próximo da essência do que deseja, e de uma compreensão mais livre de preconceitos e fenomenológica das coisas. Elementos arquitetônicos, como janelas, portas, pisos, tetos; não são obrigações de projeto. Não são necessidades que o projeto precisa suprir. São um motivo, uma intenção; e sua forma, dimensões e materiais seguem essa intenção. O que é uma janela, e o que é uma porta? Esses, deixam de ser elementos para serem o que são, seja uma passagem de um lugar para o outro, ou uma barreira. Não é uma simples porta de dimensão e local definidos, feita de madeira. Mas uma madeira que ora bloqueia e ora libera uma passagem. Uma madeira porque vibra ao batê-la, porque é áspera ao tocá-la, leve ao rodar no eixo, pesada e firme quando fixa. Uma largura que um corpo apenas

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atravesse sozinho. Que corpo? Como é o corpo de uma mulher grávida? Qual delas? São todos diferentes. A questão não é encontrar uma exata e perfeita medida para o corpo, nem tanto, definí- lo por completo, agrupando informações de vários corpos diferentes, para chegar em um resultado aproximado. Apenas por tentar entender como é um corpo, coloca-se esse corpo em um espaço, em uma situação, e utiliza-se das experiências perceptivas próprias para conhecer e entender as do outro. São pelas suas diferenças que o arquiteto percebe o seu próprio corpo e o do outro. Não são representações ou dimensões do outro corpo que fazem o arquiteto experienciar essas diferenças, mas sua espacialização. E essa é uma habilidade intrínseca ao corpo. Seu contato com o corpo real, que existe, sem uma intenção prévia de coletar dados, de fazer avaliações, permite a experiência própria, e traz uma noção do que é esse corpo. Não que essas ferramentas citadas não possam auxiliar o projeto, mas a partir desse entendimento corporal, qualquer medida, fórmula ou desenho aprendido, parecem ganhar um sentido e uma referência para o corpo de quem projeta. Começa-se a entender com o próprio corpo, o que são os três metros de altura, o que é um de largura, e o que e para quem é a porta.

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JUNTO

COM

O

ADOBE,

SEU CHEIRO E SUA TEMPERATURA. AQUELA ARQUITETURA NÃO ESTAVA MAIS SÓ NO MEU CAMPO DE VISÃO, ESTAVA VINDO DE ENCONTRO

A

MIM,

TOCANDO-ME NA PELE COM SUA TEMPERATURA FRIA, ENTRETENDO-ME A

PELOS

ARQUITETURA

M I

E M

R

E

HAVIA

M A G

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ATINGIDO

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PULMÕES.

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A

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MEU CORPO

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A Ã

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A

,


E também, não que alguém não possa ou deva simplesmente escolher uma porta pronta de um catálogo, seja pelo custo, praticidade, tamanho ou mesmo querer utilizar de um símbolo que aquele modelo ou material represente. Ou simplesmente porque quer. Nem tanto, invalida-se normas, regras e leis; ou seus motivos. Esses questionamentos são apenas uma forma de não fazer por fazer, ou só porque “as coisas são assim”. Uma maneira de compreender por si mesmo, e com o próprio corpo, as coisas como são – não como são contadas – e, dessa forma, internalizar essas percepções e sensações durante a concepção do projeto. Percebendo o mundo com os sentidos, evita-se conhecer os outros corpos por julgamentos. Não se contenta em conhecer materiais por uma tabela de dados, por resultados de testes. Não considera uma calçada “boa” apenas a partir de sua largura e pavimentação. Ao invés de definir uma edificação como boa ou má arquitetura, a partir de qualidades consolidadas: Funcional, racional, sustentável, esteticamente agradável, confortável termicamente, acusticamente e luminosamente; experiencia-se o prédio pelo o que é, pelas sensações ao estar nele. Entende sua função porque o usa. Percebe mudanças de temperatura, luz e som, pelas reações do corpo que interage com o prédio. Adentrase uma comunidade pela primeira vez, sem ficar reparando no que “têm” e no que lhe “falta”, procurando por poten-

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cialidades e deficiências já definidas, antes mesmo de saber o que essas atribuições todas são para aquele lugar. Antes mesmo de experienciar o lugar. Entretanto, se julgar um projeto apenas por suas representações gráficas, tabelas de desempenhos, uso de estratégias e materiais conhecidos e renomados, sem experienciar com o corpo a edificação, nem tanto, usá -la, parece ser uma incoerência; como seria possível, então, projetar para o corpo com maquetes, desenhos, esquemas, modelos em escala – todos essas, formas de representação – já que é dificilmente praticável projetar uma edificação inteira na escala real? Assim como projetar sem utilizar levantamentos e dados científicos, ou ferramentas, peças, mecanismos, cálculos e técnicas construtivas já consolidados; provavelmente, resultaria em um projeto incompatível com as necessidades modernas, que precisam de um espaço limpo, bem estruturado, com equipamentos e seus sistemas elétricos e sanitários. Acredita-se, então, que a experiência perceptiva auxilia no processo de projeto, uma vez que é a partir dela que compreende-se o corpo nesse projeto, enquanto concebe-o com as ferramentas, técnicas e dados que precisar. Dessa forma, projetar torna-se um processo introspectivo de entendimento do mundo.

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O C H Ã O, D E S CA S CA D O D E REVESTIMENTO AGORA RESP O N D I A À S M I N H A S PA S S A DA S, POSSO OUVIR MEU PÉ NO SOLO E O SOLO RESPONDENDO COM ESTALOS. ESTES REVERBERAVAM POR TODA S A S PA R E D E S AT É O N D E M E U OLHOS NÃO ACALÇAVAM MAIS E VOLTAVAM EM FORMA DE E C O, ECOANDO-SE EM MEU CORPO E REVELANDO-ME O QUE EXISTIA ALÉM DOS OLHOS. ESSA S EXPERIÊNCIA S SENSORIAIS SE ENRIQUECIAM NA MEDIDA QUE A LUZ DO E S PA Ç O I A D I M I N U I N D O A P E L A N D O PA R A Q U E A VISÃO DESSE MAIS E S PA Ç O PA R A MEUS OUTROS S E N T I D O S


Maquetes são feitas para si, para que o arquiteto, usando relações de proporção, materiais e formas; entenda o espaço enquanto o cria. Assim como croquis ou esboços são feitos durante e para o projetar. A importância desses parece se perder quando um projeto é todo elaborado em planta-baixa ou virtualmente, para depois, a partir das medidas e desenhos já prontos, serem feitos, transformandose em meras formas de representação final, as quais poderiam ser impressas ou feitas por outra pessoa. Quando um arquiteto faz uma maquete ou desenho, não está fazendo um trabalho braçal, uma tarefa ou uma etapa. Não é uma obrigatoriedade, é um processo. O arquiteto move seu corpo, mesmo que aparentemente apenas suas mãos, criando formas, não somente pelo o que os olhos enxergam na maquete ou no desenho, mas também pelo próprio movimento. Enquanto seus desejos e intenções são questionados pelo corpo e suas percepções acionadas, o próprio corpo cria essas formas ao mesmo tempo que as compreende. Não precisa desenhar ou fazer maquetes para confirmar algo que já foi pensado. Pensase com a maquete. Cria-se com o próprio desenho. É um processo de entendimento. E isso é algo que a modelagem virtual parece, por sua própria natureza, ser incapaz de permitir. Enquanto o Sketchup desenha cada linha com início e fim definidos, o desenho livre e o modelo físico não são exatos.

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“A S E

A

SOMBRAS

PROFUNDAS

ESCURIDÃO

SÃO

ES-

SENCIAIS, POIS ELA S REDUZEM

A

V I S Ã O,

PRECISÃO TORNAM

A

DA PRO-

FUNDIDADE E A DISTÂNCIA AMBÍGUAS E CONVIDAM A VISÃO

PERIFÉRICA

INCONSCIENTE E A FANTASIA 2011,

T Á T I L.”

( PA L L A S M A , P.

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Suas linhas e planos podem ser ora uma coisa, ora outra. Podem estar ali e depois não estar mais, e o que faz ser uma coisa ou outra é o pensamento de quem projeta em busca de compreensão. O desenho fica para sempre incompleto, pois completa-se com a imaginação, permitindo que a mente do arquiteto esteja dentro do desenho, e o desenho faça parte de um todo imaginário. Assim como plantas-baixas, cortes esquemáticos, implantações, não precisam ser etapas de projeto. Nem tanto, obrigações para expô-lo. Que sentido tem produzir seções de um projeto depois de feito, além de representar para alguém? Faz-se quantas plantas forem necessárias, quantos cortes precisar para entender o projeto. Essas ferramentas, elaboradas em escalas, são formas de ajudar, com proporções e medidas, o corpo que procura compreender o espaço. Assim como essas medidas e dimensões pouco significado têm para o corpo se, esse, não as experimenta. Decisões e escolhas, como os materiais usados, a técnica construtiva e o sistemas estrutural, elétrico e sanitário empregados; por mais que sejam ideias prontas, conceitualizadas ou aprendidas; são ferramentas que o arquiteto pode usar para conseguir criar o espaço que deseja. Não, necessariamente, é uma situação de abrir mão do projeto poético para suportar a edificação com medidas obrigatórias ou imprescindíveis. Nem uma simples

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aplicação de modelos consolidados para “solucionar” o projeto. Mas pode ser uma ótima oportunidade de utilizar dessas instalações e técnicas para projetar as intenções e desejos do arquiteto, as relações e interações com o corpo que se quer, a brincadeira ou poesia que quiser, com essas próprias instalações e técnicas. E o que parece fazer isso é o próprio entendimento delas. Assim, não se preenche formas puras, abstratas, pensadas apenas pela própria forma; com funções, materiais, estruturas e sistemas. Projeta-se com o material, suas texturas, seu calor ou frio, seu peso, suas sensações. A própria função e estrutura são criadas junto à forma. Com essa compreensão do projeto pelas experiências, em um processo de questionamento e reflexão a partir de sua percepção, o arquiteto tem suas próprias intenções como motivo de utilizar qualquer método, técnica, dado ou conhecimento. Isso traz ao processo um significado para cada escolha e decisão, em que essas fazem parte da própria concepção. O arquiteto não produz ao fim um “bom” projeto, com decisões certas, representado corretamente. Faz algo único, novo, que não traz apenas respostas, porque partiu de si e de suas dúvidas. Pois, ao fim, o projeto arquitetônico pode ser um meio de expressão do arquiteto com seu corpo, sensações, memórias e desejos; que será experienciado por outros corpos e suas percepções.

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AQUELE PERCURSO ATÉ ENTÃO LINEAR AGORA SE ABRIA EM INFINITA S POSSIBILIDADES, ME CONVIDAVA PA R A O U T R O S PERCURSOS, PA R A OUTRAS EXPERIÊNCIA S. . PERDI-ME NAQUELA ARQUITETURA RICA DE TEXTURA, TEMPERATURA PER DERSE

E SONS


A hipótese de a experiência perceptiva auxiliar no processo de projeto não é uma tentativa de criação de método ou técnica, assim como um livro que sistematize, conceitualize e ensine como projetar dessa forma seria incoerente. No entanto, como as indagações sobre o meio acadêmico e profissional que motivaram essa pesquisa, critica-se a forma como métodos e regras são seguidos cegamente, sem questionamento. Essa pesquisa, então, não é uma reflexão que exclui, ou conclui algo, mas sim questiona. É uma descrição de experiências que tenta elucidar hábitos e situações na prática do projeto arquitetônico, e não pretende ser uma simples negação, assim como o prólogo desse livro não começa com “Não é assim que se deve projetar”.

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Referências

FRAMPTON, Kenneth. Uma Nova Agenda Para a Arquitetura. São Paulo: Cosac & Naify, 2008. HOLL, Steven. Cuestiones de percepción. Barcelona: Gustavo Gili, 2011. MILLS, C. Wright. Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele. Porto Alegre: Bookman, 2011. A descrição que permeia todo o caderno foi feita em experiência com a obra “Transarquitetônica” de Henrique de Oliveira, exposta no Museu de Arte Conteporânea de São Paulo, em Junho de 2014. Lista de imagens OLIVEIRA, Henrique de. Foto de divulgação. Disponível em: <http://www.mvod.tv/wp-content/uploads/ 2014/06/root-system-tunnel-transarquitetonica-henrique-oliveira-7.jpg>. Acesso em: 19 maio 2016.

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Universidade Federal de Santa Catarina. PET Arquitetura e Urbanismo 2016. Roselane Neckel, Reitora. Jamil Assreuy Filho, Pró-Reitor de Pesquisa e Extensão. Sebastião Roberto Soares, Diretor do Centro Tecnologico. César Floriano dos Santos, Chefe do Departamento de Arquitetura e Urbanismo. José Ripper Kós, Coordenador do Curso de Arquitetura e Urbanismo. Vera Helena Moro Bins Ely, Tutora do PET Arquitetura e Urbanismo. Rodrigo Gonçalves dos Santos, Orientador da Pesquisa. Gabriel Villas Boas Camargo e Luiz Gonzaga Philippi Filho, Bolsistas.

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